quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Aventuras do Vampiro de Palmares – Gerson Lodi-Ribeiro – Resenha

Por Eric Silva

Um vampiro como nenhum outro que você tenha visto na literatura e séculos de história alternativa compõem o universo da terceira obra resenhada na campanha do #AnoDoBrasil. Livro do carioca Gerson Lodi-Ribeiro, Aventuras do Vampiro de Palmares, narra as desventuras e peripécias de Dentes Compridos, a última criatura remanescente de um povo milenar e indiferente à passagem dos séculos e que desde os tempos mais remotos sobreviveram da vitalidade do sangue humano até conhecerem o furor de suas presas. Um livro riquíssimo que reescreve a história da humanidade e do Quilombo dos Palmares, aliando ciência, misticismo, fantasia e fatos para compor uma trama que atravessa os tempos e desafia o seu leitor com a grande questão que nem mesmo a ciência foi capaz de responder: somos as únicas criaturas inteligentes a habitar o universo?

Sinopse

Do Peru pré-colombiano à Inglaterra Vitoriana, Aventuras do Vampiro de Palmares narra o trajeto dos filhos-da-noite, entidades naturais predadoras da raça humana que, ao longo dos séculos, foram sendo envoltos por uma áurea mítica de crendices e mitos que deram origem a lenda dos vampiros. Dentes Compridos é o único a escapar do massacre de seu povo milenar e sozinho corre o continente americano em busca de salvaguardar sua vida. Mas depois de muitas décadas de fuga em que esteve vivendo entre os índios brasileiros, o último filho-da-noite chega a nascente nação negra dos Palmares onde é capturado, feito cativo e depois, improvável aliado, um misto de agente secreto e assassino que age nas sombras na luta pela liberdade e pujança daquela que pretendia ser a primeira república das Américas e que se tornaria sua nação em definitivo.


Resenha

Desde John Polidori[1], James Malcolm Rymer[2] e Bram Stoker[3] que a literatura mundial está repleta de histórias de vampiros, dos mais variados tipos que vão dos sugadores mortos-vivos mais clássicos aos que brilham na luz do sol (rsrsrsrs). Mas piadas “crepusculares” à parte, na literatura brasileira também encontramos as nossas próprias histórias sobre o mito dos vampiros, algumas inspiradas nos modelos mais clássicos e outras extrapolando o próprio mito buscando outras raízes mais profundas. Mas a novidade trazida com Aventuras do Vampiro de Palmares, terceiro livro na campanha do #AnoDoBrasil, é o vampirismo científico, ou seja, vampiros encarados como criaturas naturais de uma espécie a parte, predadora da espécie humana e sanguissedenta (hematófaga), que em circunstância da força do tempo e das crendices passadas de geração em geração foram revestidas por uma representação fantasiosa, mesmo que com um fundo de verdade. Uma variação para mim completamente nova.

Meu primeiro contato com histórias nacionais sobre vampiros foi com O Andarilho das Sombras, primeiro livro da série Tempos de Sangue de autoria de Eduardo Kasse. Nesse livro, o autor cria Harold, um vampiro cuja origem remontam a mitos nórdicos que na Europa Medieval (cenário da trama) já caiam em decadência e desapareciam frente a hegemonia e imposição do catolicismo. Na trama idealizada por Kasse, o personagem principal conserva quase todos os aspectos tradicionais do vampirismo clássico. Além disso é marcante o peso dos contextos históricos de época sobre a trama, com destaque para a história religiosa-cultural medieval.

Depois de Kasse ainda não tinha lido outra obra nacional sobre vampiros. Aventuras do Vampiro de Palmares seria o meu segundo contato com o gênero em uma produção nacional, porém aqui, como já mencionei, a perspectiva de vampiro é bastante diferente, e mesmo tendo a História também um peso marcante para esta narrativa, ela se dá em épocas e espaços distintos em relação a obra de Kasse.
Em seu livro, Lodi-Ribeiro narra a história de Dentes Compridos, o último remanescente dos filhos-da-noite, autointitulados como o Povo Verdadeiro. Segundo a trama, que se inicia na América Latina pré-colombiana, surgira na Terra uma outra espécie, em alguns aspectos semelhantes a espécie humana, mas muito distinta em seus hábitos alimentares, nas suas habilidades naturais de predação, na capacidade de viver milênios, na sensibilidade a luz diurna e na grande capacidade de visão noturna. Uma espécie cuja gênese se perdera no tempo restando apenas os mitos contados pelos anciões do Povo Verdadeiro, mas cuja trajetória sobre a Terra seguiam de perto as grandes migrações humanas.

Segundo as lendas contadas por aquele povo, o Inominado, um ser responsável pela criação do Mundo Mortal e do Mundo Elevado, teria criado inicialmente a espécie humana, ou vidas-curtas assim como os filhos-da-noite os chamavam por viverem relativamente muito pouco. Os humanos formariam o Povo Predileto, que caíra em desgraça com seu criador após roubarem dele o Fogo. Em represália ao mau feito de suas criaturas, o Ser divino cria uma outra espécie, dita quase imortal, que predaria os humanos e se nutriria de seu sangue. Nasce assim o Povo Verdadeiro, mais fortes e longevos do que os humanos, de número bem menor, mas o topo da cadeia alimentar.

Contudo, após uma série de ações imprudentes, os filhos-da-noite conhecem seu fim restando apenas um representante da extirpe quase extinta. Um jovem e inexperiente que sempre em movimento, foge daqueles que sabiam como eliminá-lo e passa a viver entre os índios da América do Sul, predando de forma discreta e meticulosamente calculada, ainda que tivesse seus momentos de excesso e carnificina, o que o obrigava a migrar novamente. É assim, migrando, que Dentes Compridos chega ao território da nascente nação banta de Palmares formada por ex-escravos fugidos da colônia luso-brasileira.

Palmares, na época uma nação em formação e luta pelo seu reconhecimento como território independente, tinha como principais aliados os holandeses da Nova Holanda de Maurício de Nassau, sedeada em Recife. Junto com os holandeses o novo país negro combatia as tentativas de reconquista dos lusitanos, seus inimigos em comum.

Em Palmares, Dentes Compridos é capturado pelos irmãos Zumbi e Andalaquituche durante o reinado de Ganga-Zumba e em troca de sua vida passa a agir como agente secreto e assassino de elite dos palmarinos nas mais arriscadas missões e aventuras em prol da grande nação banta.

Localização da Palmares real. Algumas das povoações do mapa são
citadas e compõem importantes cenários da narrativa de Lodi-Ribeiro.
Aventuras do Vampiro de Palmares é um livro notável e também inteligente. Se destaca pela empresa ambiciosa de seu autor ao reescrever grande parte da história do Brasil para dar vida a uma narrativa que se inicia ainda com a aventura e ascensão dos povos pré-colombianos, destacadamente o Império Inca ainda em expansão, e segue cobrindo quase 12 séculos para encontrar seu desfecho ainda em 1888.

Dos povos pré-colombianos à Inglaterra Vitoriana de Jack, o Estripador, passando pela Guerra de Independência Norte-americana, é surpreendente como o autor costura diferentes acontecimentos da história de períodos e lugares distintos por toda América e Europa, reescrevendo a história para conectar povos e nações muito diferentes entorno de uma nação em parte imaginada, em parte verídica, um mosaico do que poderia ter sido Palmares: uma grande nação afrodescendente e livre. Infelizmente, a História real fora bem diferente da História Alternativa criada por Lodi-Ribeiro que imagina o antigo quilombo dos Palmares se tornar uma das mais destacadas potências do mundo moderno.

Neste passeio pela História Oficial e pela sua História Alterativa, Lodi-Ribeiro faz diversas referências a figuras reais que vão pouco a pouco perfazendo o conjunto dos personagens que animam a narrativa, como Túpac Yupanqui, Zumbi dos Palmares, George Washington, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson.

Mas acerca dos personagens tenho outras duas coisas a mencionar. A primeira é que a História contada ganha proporções tão grandes que é como se ela fosse também um personagem, o principal deles, testemunhada pelos olhos de Dentes Compridos que é ao mesmo tempo modificado por ela e até certo ponto humanizado pelo contato prolongado com os palmarinos. A minha segunda observação é que em concordância com o nome de vidas-curtas, fica visível ao leitor mais atencioso que todos os personagens humanos possuem passagem efêmera pela história, algumas tão rápidas quanto uma estrela cadente que corta o céu em noite escura, e outros bem menos, por atravessar várias décadas ao lado de Dentes Compridos, testemunhando suas aventuras. De qualquer forma, Dentes Compridos é o único personagem que sobrevive a força do tempo da narrativa.

Neste ponto é válido destacar como fica bastante perceptível que o ponto marcante do autor é sua explosão criativa. Além de reescrever a história do mundo que conhecemos, nos primeiros capítulos, em um tom narrativo que nos faz lembrar as antigas lendas e alegorias contadas pelas civilizações milenares, o autor vai pegando um pouco da cultura sul-americana antiga, com referências da tradição cristã (não é dado um nome a Deus), das histórias bíblicas sobre a criação, até mesmo da mitologia grega (o roubo do fogo) e ainda algumas teorias científicas, a exemplo da era das glaciações e das migrações humanas pré-históricas que colonizaram o planeta e o continente americano, e, por fim, junta todas estes elementos para criar um mito novo a sua maneira.

Se tudo não bastasse é quase incrível – e aqui uso a palavra em sua denotação original, como sinônimo de inacreditável – o conhecimento de marinha e da geografia marinha de Boston demonstrada pelo autor ao narrar uma das passagens mais intensas da narrativa. Conhecimento que, sem dúvida, ele aproveitou de sua experiência como antigo oficial da Marinha do Brasil.

Contudo, se a história comporta um mix de profundos conhecimentos de História com força criativa para reescrevê-la, um problema me chamou a atenção. Se bem que não se trata de um problema, mas um fator dificultador. Lodi-Ribeiro demonstra ser um escritor muito culto de vocabulário lauto, o que é expressivo na linguagem bastante rebuscada de seu livro. Mas devido a este extenso vocabulário em alguns momentos a leitura se tornou difícil pelo grande número de palavras e expressões não tão corriqueiras, fazendo com que o glossário no final do livro e o dicionário embutido no Kindle fossem de grande valia e essenciais.

Mas de toda forma é um livro que surpreende pela proposta de reinventar não só a história como um gênero. Começo a compreender que a Editora Draco possui um séquito de autores que se destacam pela originalidade mesmo quando em gêneros por demais difundidos e algumas vezes desgastados. Autores como Kasse e Merege que se destacam pelo talento narrativo e trabalham o clássico do terror e da fantasia, respectivamente, sem deixarem de ser atuais, criativos e cativantes, e como Beraldo e Lodi-Ribeiro, que trazem propostas em campos que ainda não foram muito bem explorados pela literatura fantástica nacional, valorizando as grandes nações negras, guerreiras, inteligentes, místicas.

A edição lida é da Editora Draco, digital, do ano de 2014 e em sua edição impressa possui 300 páginas. 

Se quiser saber mais sobre Gerson Lodi-Ribeiro ou sobre os demais autores da campanha do #AnoDoBrasil clique aqui (link)

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

Prévia do Google Books








[1] Médico e escritor inglês que em 1819 publicou The Vampyre, obra que estabeleceu o arquétipo moderno do vampiro (carismático e sofisticado) – atualmente poderíamos considerá-lo como um arquétipo clássico devido à diversidade atual de tipos de vampiros presentes na literatura. Sua obra também influenciou outros escritores do gênero como Bram Stoker.
[2] Escritor britânico do século XIX que em coautoria com Thomas Peckett Prest escreveu a obra folhetinesca Varney, o Vampiro (1847).
[3] Romancista, poeta e contista irlandês que escreveu o romance gótico Drácula (1897), considerada até os tempos atuais como a principal obra no desenvolvimento do mito literário moderno do vampiro.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Dois Irmãos – Milton Hatoum – Resenha

Por Eric Silva

Nesse mês de Janeiro iniciamos a nossa campanha do #AnoDoBrasil que ao longo do ano de 2017 fará um passeio pela literatura e pelo cinema brasileiro. O ponto de partida desse nosso itinerário foi O Caçador, livro de estreia da escritora carioca Ana Lúcia Merege, e agora, inspirados pela nova minissérie da Rede Globo, apresentamos o segundo ponto desse percurso: Dois Irmãos, livro do manauense Milton Hatoum. Com este romance publicado pela primeira vez no ano de 2000, somos levados para a exuberante capital amazonense, nas primeiras décadas do século XX, para conhecer os dramas vivido por uma família de ascendência libanesa marcada pelo ódio e pelos atritos entre dois irmãos, conflito que vai deixando um rastro de dores ao desgastar as relações e a convivência entre os membros da família.
 
Sinopse

Segundo livro de Milton Hatoum, Dois Irmãos narra a conflituosa história dos gêmeos Yaqub e Omar. Filhos de dois imigrantes libaneses que viviam no Amazonas, os irmãos preocupavam constantemente a família com suas brigas e o ódio que existia entre os dois, tornando impossível a convivência.

Centrada no drama da família que pouco a pouco vai se desestruturando, a narrativa é contada pelo olhar de Nael, o filho da empregada, que narra os acontecimentos 30 anos depois terem ocorridos e, a partir de suas memórias e das histórias que ouvia de sua mãe, Domingas, e do pai dos gêmeos, Halim, vai desnudando o cotidiano da família e da Manaus do início do século XX.



Resenha

Caim e Abel. Esaú e Jacó. Quantas histórias de irmão que não se entendem e se odeiam nós conhecemos? Relacionamentos que foram atravessados pela discórdia, pelo ódio, pela inveja e pelo ciúme. Citei apenas exemplos bíblicos, os mais conhecidos, mas mesmo aí ao lado, se você procurar bem, pode haver um. Talvez na sua rua, ou no seu bairro, até na sua própria família, quem sabe. É fácil encontrar casos de irmãos que não se dão bem. Às vezes, são coisas bobas, implicância mesmo, mas por vezes, coisas mais sérias de pessoas que deliberadamente se odeiam. Com efeito, esses últimos são casos que desestruturam a família, preocupam os pais, torna a convivência insuportável, quando não, impossível.

Coisas semelhantes aconteciam com os gêmeos Yaqub e Omar do livro Dois Irmãos. E por ser algo tão comum, escrever um livro sobre o assunto pode parecer, à primeira vista, mais um clichê. Eu, particularmente, durante muito tempo tive problemas com a literatura brasileira devido aos temas muito corriqueiros e repetitivos que tanto aparecem nos livros nacionais, a exemplo dos dramas amorosos e de famílias desestruturadas. Acho, inclusive, que pelo mesmo motivo não sou ligado em histórias de amor, ou em livros e filmes do tipo Sessão da Tarde. Dramas e histórias do tipo têm que apresentar tramas bem inteligentes, inovadores ou bastante tocantes para chamarem minha atenção.

Não seria de se admirar que eu achasse Dois Irmãos um livro chato, corriqueiro, clichê. No entanto, o encanto e profusão de cenários tão atípicos na minha realidade, que fizeram tudo parecer ser tão distante quando na verdade é tão próximo, aliado à narração límpida e envolvente, tão cheia de brasilidade e em muitos momentos atravessada por poesia, e, por fim, tudo isso arrematado com personagens tão intensos, algumas vezes incríveis, em outras odiáveis, por vezes tão familiares, me enredaram na atmosfera morna dos trópicos e li todo o romance quase sem perceber. No fim, achei-o mais real, mais vivo e, por isso, distante do idealismo enfadonho de alguns dos antigos clássicos do Romantismo Regionalista – desculpe gente, mas o trauma das aulas de literatura vai demorar mais um pouco a passar.

Yaqub e Omar ainda jovens com a mãe Zana em adaptação para
a televisão realizada pela Rede Globo de Televisão.
Halim era um imigrante libanês que há muito tempo viera com um tio para a cidade de Manaus. Sempre fora um homem pacato, que depois de muito esforço conseguiu conquistar Zana, a filha de Galib, outro imigrante do Líbano conhecido na capital amazonense por seu restaurante, o Biblos. Depois de casados, Zana desejava ter filhos, o que Halim não queria, preferindo a volúpia de sua vida de casado. Ainda assim, o casal tivera três filhos, primeiro os gêmeos Yaqub e Omar – ou o caçula, como era chamado – e depois, Rânia, a única mulher. Com eles, na casa do bairro portuário, ainda viviam Domingas, uma órfã indígena que desde jovem servia ao casal como empregada doméstica, e seu filho, Nael, nascido depois que os gêmeos já eram maiores. Mas sem dúvida, o centro de todas as atenções na casa eram os dois irmãos. Yaqub com seu temperamento calado e recluso em contraposição ao gênio competitivo, tempestuoso e inconsequente de Omar.

Numa síntese, eu caracterizaria Omar como impulsivo, bravejo, farrista, intenso demais em suas paixões pela boa vida e pelos prazeres que esta lhe proporcionava, um despreocupado rufião. Por sua vez, Yaqub é contido demais, calculista, frio em suas ações, só o irmão era capaz de deixá-lo exaltado. Personalidades conflitantes, extremamente opostas e dificilmente conciliáveis. Mas mais do que incompatibilidade de gênios, o favoritismo cego e doentio da mãe, pelo “mais novo”, seu zelo extremo e obsessivo, pesava negativamente na relação entre os irmãos, como uma centelha que avivou a chama de ódio entre os dois, ou como o movimento de placas que com sua força extrema e absurda amplia um abismo.

Contudo as brigas dos irmãos na infância tiveram seu apogeu quando Omar, em uma disputa pela atenção de Lívia, a sobrinha dos vizinhos, cortou o rosto do mais velho com os cacos de vidro de uma garrafa, deixando em Yaqub uma marca que jamais o permitiria esquecer seu ódio pelo irmão. Daquele dia em diante, tudo mudaria para o rapaz que sofreria não só com as brincadeiras na escola sobre a cicatriz em seu rosto, como também com a distância imposta pelo pai que o manda para casa de parentes no Líbano na tentativa de evitar um conflito maior entre irmãos.

“Os pais tiveram de conviver com um filho silencioso. Temiam a reação de Yaqub, temiam o pior: a violência dentro de casa. Então Halim decidiu: a viagem, a separação. A distância que promete apagar o ódio, o ciúme e o ato que os engendrou”.

“Foi o seu último baile. Quer dizer, a última manhã em que viu o irmão chegar de uma noitada de arromba. Não entendia por que Zana não ralhava com o Caçula, e não entendeu por que ele, e não o irmão, viajou para o Líbano dois meses depois”.

Durante o tempo em que Yaqub ficou no Líbano, Omar foi criado como filho único, com todos os seus desejos atendidos pela mãe, e com isso, o regresso irmão, cinco anos depois, reavivou o ódio entre eles.

Narrado a partir das lembranças de Nael e de tudo que ouvira da mãe e de Halim, Dois irmãos vai contando todos os conflitos, problemas e obsessões dos membros de uma família que pouco a pouco vai se destroçando, consumida pelo conflito entre os irmãos e pelas confusões causadas por Omar. Em paralelo, vamos percorrendo a história e as transformações sofridas pela capital do Amazonas no começo do século XX e durante o domínio repressivo da ditadura militar, bem como essas mudanças vão se refletindo na família de Halim e na sua vizinhança.

Como já mencionei, Dois irmãos é um livro que ultrapassa os clichês, não obstante é também uma obra que impulsiona seus leitores mais sensíveis a sentirem os mais intensos e diversos sentimentos pelos seus personagens. Um livro em que você ou ama os personagens ou odeia-os.

Eu amei Nael, cuja história, em minhas horas de meditação pós leitura, encontrei similitudes com meu próprio passado, mas senti de enfado a ódio por todos os outros. Yaqub pela sua arrogância e estreiteza de espírito e Omar pela sua falta de caráter e atitudes baixas e infantis. Odiei Zana pelos seus excessos e incapacidade de ver que ela era o verdadeiro centro e a força geradora de todos os conflitos e problemas da família – o livro deveria ser chamado de A Mãe. Também por Domingas e Rânia, por terem sido, na maior parte do tempo, incapazes de gritarem pela sua independência. E por fim, também Halim, por ser um homem fraco e omissivo diante dos inúmeros problemas de sua família. Contudo, em relação a este último, confesso que alguns de seus poucos rompantes, nos quais demonstrou-se mais enérgico, valeram a pena.

Só consegui torcer por Nael, porque me identifiquei profundamente com o personagem. Apesar de suspeitar que um dos gêmeos era seu pai, Nael nunca foi declarado como neto nem por Halim e muito menos por Zana, que expressava antipatia pelo garoto e fazia dele o seu moleque de recados. Trabalhava na casa como outro empregado, e os únicos que demonstravam realmente alguma empatia por ele era Halim, que sempre o tinha por perto contando suas histórias, e Yaqub apesar de ser bastante fechado. Mesmo Rânia, que nunca o tratara mal, sempre o usou o rapaz em atividades braçais e de rua no comércio da loja da família. Diante de tamanha indiferença e negligência é natural que Nael nutrisse ressentimento por não ter sido reconhecido por aquela família e em alguns momentos chega a ser palpável o sentimento do rapaz.

Contudo, me identifiquei com Nael, porque, como ele, eu também fui o filho da doméstica explorada, o elemento a mais que vivia no quartinho dos fundos da casa, assim como ele entregue aos estudos, uma de minhas poucas distrações. Não estive na posição dele de filho de um dos patrões, mas conheço bem o que é estar numa casa que não lhe pertence, na condição de agregado. Por isso, Dois Irmãos me soa tão familiar, tão próximo.

Além disso, a obra de Hatoum torna-se um livro de memórias, algumas confiáveis, outras nem tanto, que vão sendo costuradas pelo seu narrador, que é, ao mesmo tempo, testemunha ocular e ouvinte de informações que vem de outros, tornando Dois Irmãos um mosaico de lembranças.

Mas nesse mosaico algumas coisas me incomodaram bastante. Uma delas foram os capítulos demasiadamente longos e densos em acontecimentos, o que dificultava bastante decidir uma parada da leitura que não prejudicasse depois a retomada da narração. Mas a principal foi os recuos e retornos no tempo, muitos deles abruptos, em meio a descrição de um fato, desordenando e depois retornando ao ponto onde se estava.

O Autor
A escrita de Hatoum me fez lembra de como é nossa memória, que vai e vem, dançando no tempo, pelos anos, sem se preocupar com a ordem. Lembranças que puxam outras, referências que vão sendo lembradas em meio a recordação de outro fato, mas que na narração dificultavam a leitura e a localização no tempo da narrativa. Só para se ter uma ideia, não acreditei quando o narrador passou a sugerir que Halim e Zana já se tornavam idosos e sentiam o peso da idade, porque o vai e vem no tempo já havia me deixado totalmente confuso.

[SPOILER em itálico] Não posso me esquecer de mencionar que um tema polêmico tratado no livro é a questão do incesto. Cheio de sutilezas, no livro, a narrativa não afirma explicitamente, mas sugere um caso incestuoso entre Rânia e seus irmãos, sobretudo, o “mais velho”, Yaqub. A recusa em se casar, a devoção em relação ao irmão afastado, as várias horas que ficavam trancados no quarto a sós. Tudo é tratado de forma sutil, mas vai deixando pistas para que o leitor tire suas próprias conclusões, e se formos muito atentos, mesmo na relação entre Zana e Omar vemos algo de sexual, mas nada me pareceu ficar muito claro em relação a estes dois.

Mas como sempre, livros como este também me atarem pela Geografia e pela História contidas em suas tramas. Os igarapés, a cidade flutuante, a vida dos ribeirinhos e dos amazonenses tudo isso me chamou a atenção. As paisagens e estilo de vida em uma Manaus do começo do século XX, período em que a cidade passa a conhecer uma época de clara decadência e, anos depois, a tentativa de modernização através do seu processo de industrialização.

Ademais, em Dois Irmãos é notável a integração dos personagens com o meio. É possível notar como as mudanças que a cidade sofre vão repercutindo em suas personagens, porque são pessoas que ao longo da trama vão sendo tomadas pela nostalgia de outros tempos. No processo de reconstrução urbanística de Manaus é quando fica mais perceptível os sentimentos dos personagens aflorarem. Uma das cenas mais dramáticas é a destruição da Cidade Flutuante, um enorme conglomerado de casas de madeira construídas sobre toras e que flutuavam sobre o Rio Negro e os igarapés da cidade formando uma grande favela flutuante. A demolição do conglomerado mexe profundamente com Halim que sofre e se enfurece diante da destruição de lugares que lhe eram tão caros. Cenas como essa mostram a integração dos personagens com o lugar, com os cenários, algo que só havia visto nos livros de Jorge Amado, onde os personagens não estão apenas na cidade de Salvador, mas vivem e respiram a Cidade da Bahia, são parte dela e ela parte deles. Hatoum consegue efeito parecido.

A Cidade Flutuante de Manaus. Revista O Cruzeiro, 07 de Julho de 1962. Disponível em: http://idd.org.br

Numa tarde que ele escapara logo depois da sesta eu o encontrei na beira do rio Negro. Estava ao lado do compadre Pocu, cercado de pescadores, peixeiros, barqueiros e mascates. Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade Flutuante. Os moradores xingavam os demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a cabeça, revoltado, vendo todas aquelas casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns palavrões, gritava “Por que estão fazendo isso? Não vamos deixar, não vamos”, mas os policiais impediam a entrada no bairro. Ele ficou engasgado, e começou a chorar quando viu as tabernas e o seu bar predileto, A Sereia do Rio, serem desmantelados a golpes de machado. Chorou muito enquanto arrancavam os tabiques, cortavam as amarras dos troncos flutuantes, golpeavam brutalmente os finos pilares de madeira. Os telhados desabavam, caibros e ripas caíam na água e se distanciavam da margem do Negro. Tudo se desfez num só dia, o bairro todo desapareceu. Os troncos ficaram flutuando, até serem engolidos pela noite.

Em conclusão, Dois Irmãos é um livro interessante que nos faz conhecer a multiplicidade cultural e étnica que nosso país abriga e abrigou ao longo de sua história. Acho ainda que o livro de Hatoum serve de mensagem para os muitos brasileiros que pouco sabem sobre a Região Norte do país, sobre as cidades ribeirinhas da Amazônia ou de seu estilo de vida, de suas cores e de seus sabores. Eu, particularmente, aprendi muito sobre um pedacinho do país que conheço pouco. Espero conhecer mais ainda.

A edição lida é da Editora Companhia das Letras, do ano de 2007 e possui 266 páginas. Se quiser saber mais sobre o autor confira nossa postagem sobre os autores que estamos lendo na campanha (Clique Aqui).

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


Prévia do Google Books





quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O Caçador – Ana Lúcia Merege – Resenha

Por Eric Silva

“A natureza não para durante o inverno. Mesmo as plantas ocultas sobre a neve se preparam para brotar de novo, e esse período de sono e de recolhimento é parte do drama de toda existência. Acostumados a viver em seu próprio ritmo, os homens muitas vezes não notam essas mudanças, que, no entanto, ocorrem também com cada um deles. E, para os poucos que se deixam guiar pelo ciclo da vida, elas acostumam ser percebidas a partir do primeiro sinal”
(O Caçador, Ana Lúcia Merege)

Chegamos a 2017, o #AnoDoBrasil, e para inaugurar a campanha que homenageará a literatura do nosso país escolhemos um livro que li ainda em 2016, mas que é especialíssimo: O Caçador, livro de estreia da escritora carioca Ana Lúcia Merege. Com uma narrativa rápida, mas profunda, esta releitura do conto da Branca de Neve vai além do conto e explora ao máximo a criatividade e o talento narrativo que são próprios da escritora, dando vida e continuidade a história do caçador que salvara a princesa, mas cujo destino fora esquecido pelo próprio conto que lhe deu vida. Por ser um livro bonito e de um encanto único, que ele será o primeiro ponto no itinerário da nossa nova campanha.

Sinopse

Solitário na floresta o caçador só ouvia vozes humanas quando ia ao castelo entregar a carne e as peles que caçavam para a rainha, mas mesmo em sua vida reclusa e controlada pelos ritmos da natureza, ele vivia tranquilo e era feliz nunca tendo sentido falta de nada que a floresta não pudesse lhe prover. Tudo muda porém quando a rainha exige sua presença e o incube de uma tarefa tenebrosa: levar a princesa a floresta e lá, secretamente, matá-la, trazendo como prova o coração da garota.
Mesmo tendo tentado cumprir sua palavra com a rainha, o jovem caçador fraqueja e poupa a vida da princesa. Em vez de levar à rainha o coração da garota entrega à bruxa o coração de um animal da floresta e é aí que sua história de desventuras começa, em uma caminhada errante por florestas, cidades e aldeias, entrecortando e testemunhando histórias, as mais fantásticas, até que conheça o seu verdadeiro destino.

Resenha

Fazer releituras dos clássicos contos de fadas é algo que vem se tornando frequente nos últimos tempos. Seja para tornar os velhos contos em algo mais verossímil e realista como foi o caso do filme Para Sempre Cinderela, do diretor Andy Tennant, ou para transformá-los em algo deslocado e que pouco tem a ver com o original, como é o caso do filme João e Maria: Caçadores de Bruxas, de Tommy Wirkola, em que as crianças rejeitadas e abandonadas na floresta crescem e se tornam caçadores de bruxas. Há ainda aquelas releituras que buscaram na fusão de vários contos uma narrativa nova e as vezes a partir de um olhar que se quer mais moderno, como vemos em A Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman. Porém mais do que buscar inovar, releituras são desafios que exigem do escritor criatividade e talento narrativo, porque comparações são inevitáveis e resistências são comuns, é aí que poucas são as fórmulas que realmente dão certo em tornar a releitura uma história tão boa quanto o original ou até melhor.

Por sua vez, a autora brasileira Ana Lúcia Merege buscou seguir caminhos próprios para compor a releitura do conto da Branca de Neve em seu primeiro livro de ficção, O Caçador. Neste livro, ao contrário de modificar profundamente a história original, a autora buscou ampliá-la, dando destino, alma e personalidade a um personagem cuja participação pode ser considerada central para que a história siga para seu desfecho, mas cujo destino sempre foi ignorado: o caçador.

Acredito que todos devam saber que, no conto original da Branca de Neve, o caçador era apenas mais um homem que vivia de seu trabalho penoso e solitário na floresta, mas que para seu infortúnio fora escolhido pela rainha para ser o algoz da princesa, por quem sua majestade nutria um ódio e inveja sem limites. Porém apiedando-se da garota o homem decide poupar a princesa e mandá-la embora para a floresta. Para prestar contas de sua missão à rainha, o caçador leva a ela o coração de um animal como se este pertencesse a princesa e aí termina a participação daquele homem sem nome e sem passado.

Em O Caçador, Ana Lúcia buscou dar um rosto, um passado e um futuro a este personagem, dotando-o de alma e sentimentos. É pegados pela mão da autora que vamos sendo guiados pela história das desventuras do caçador de Branca de Neve, passando por cidades, aldeias e florestas, vivendo entre os homens e os lobos, naquele que parece ser um dos melhores livros da escritora.

O personagem

Ana Lúcia traz para a imagem do caçador um olhar
mais humanizado, sem, no entanto, negar a forte
integração deste com a natureza selvagem das florestas.
O caçador de Ana lúcia é pouco mais do que um rapaz, e, por seu isolamento, é um jovem ainda puro que não aprendera a malícia dos que vivem além da floresta, nem conhecia a extensão da maldade ou da natureza mesquinha de muitos homens. De tão integrado a floresta e a natureza era como se delas fizesse parte. Contudo, a medida em que vai prosseguindo sua história, o rapaz vai conhecendo o mundo dos homens e sobretudo sua maldade, o que faz com que ele deseje cada vez mais o isolamento. Ainda assim, nem o ressentimento que os homens lhe inspiram, nem a abominação que sentia pelo modo como eles viviam, são suficientes para embrutecer o coração do rapaz e nem fazê-lo deixar de desejar uma companhia.

Uma coisa que me inquietou logo no começo da leitura foi não saber a razão da autora não ter dado um nome ao seu personagem principal, como é comum em qualquer livro. Curioso fui perguntar diretamente a escritora. Atenciosa, Ana me respondeu no mesmo dia e explicou que seus personagens eram arquétipos e que dar-lhes nome seria de alguma forma reduzi-los.

Pensei um pouco naquela resposta tentando entendê-la e foi aí que a ficha caiu: se personagens sem nomes eram incomuns nos romances, não o eram nos contos de fada – Ana queria preservar a natureza original do conto. Acho que, de tanto tempo que passei sem ler os clássicos contos de Andersen e dos irmãos Grimm, já havia me esquecido que esta era uma característica fundamental deste gênero.

Em O Caçador os príncipes
não são os grandes heróis da história.
A verdade é que tudo em O Caçador procura preservar os aspectos básicos que caracterizam os contos de fadas originais como os elementos mágicos que se misturam a vida cotidiana medieval, o núcleo problemático de caráter existencial e os obstáculos que servem de teste e ritual de iniciação para o herói ou heroína[1]. A grande diferença é que no livro de Ana Lúcia, não são os príncipes os grandes heróis, mas o homem simplório, recluso e de vida tão humilde, mas dotado de um coração puro e sem medo.

Predileto

O Caçador é o terceiro livro da autora que leio, o primeiro foi O Castelo das Águias e depois Anna e a Trilha Secreta, e nessas leituras uma coisa que tenho apreciado bastante é a forma como a autora escreve, talento que O Caçador deixa explícito de forma contundente.

Ana Lúcia tem um dom todo especial de articular as palavras, o que ela faz com maestria, narrando os fatos com beleza, segurança e naturalidade e fazendo da leitura algo agradável e envolvente.

Assim como nos velhos contos de fada, O Caçador é um livro de poucas falas deixando quase exclusivamente ao narrador o papel mais importante de nos guiar pela história. Mesmo sendo seu livro de estreia, a obra já expõe a maturidade da autora e deixa extravasar todo o seu talento narrativo, aliando-os a uma boa história, de enredo nem um pouco previsível e com uma narração em muitos pontos carregados de um lirismo único como é visível na citação do começo desta resenha. Além disso, a medida que a história do caçador vai se desenrolando, suas aventuras vão atravessando outros contos e se entremeando por caminhos improváveis.

Estou lendo também o livro A Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman, e que como já afirmei também é uma releitura de contos de fadas recentemente publicada pela editora Rocco em uma edição luxuosa e lindíssima. Mas afirmo com toda a segurança e sem presunção, que quando confrontei o livro do autor britânico com o livro da Ana Lúcia, achei o livro da autora brasileira de qualidade narrativa bem superior. Ana foi cuidadosa em todos os detalhes, criou um personagem cativante e O Caçador é um livro que dificilmente se preveria o desfecho.

A autora
Gosto de Gaiman, já resenhei aqui no blog um de seus livros, Lugar Nenhum, onde elogiei sua criatividade e imaginação na criação da Londres de Baixo, mas desta vez ele não conseguiu alcançar meu coração como Ana fez com O Caçador, e acho que contos de fada são para isso: encantar e conquistar corações. Por isso o escolhi para inaugurar a campanha de 2017, o #AnoDoBrasil.

A releitura de O Caçador está perfeita, sem excessos, com uma boa dosagem de realismo e magia e, principalmente, deixando transparecer todo o talento da autora para a narração.

A obra chegou a mim através de uma doação da autora para a biblioteca da Filarmônica de minha cidade. Logo que o tive em mãos senti que ele seria especial e a leitura só confirmou o que minha intuição disse primeiro. Desde já O Caçador é, dentre os livros que já li de Ana Lúcia, o meu predileto.

A edição lida é da Franco Editora, com ilustrações de Neli Aquino, do ano de 2009 e possui 100 páginas. Para o pessoal da Biblioteca da Filarmônica: o livro já estará acessível a todos ainda este mês.

Quer saber mais sobre a autora? Confira nossa postagem sobre os autores que estamos lendo na campanha (CliqueAqui).







[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/Contos_de_fadas#Caracter.C3.ADsticas_dos_contos_de_fadas

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