quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O Caçador – Ana Lúcia Merege – Resenha

Por Eric Silva

“A natureza não para durante o inverno. Mesmo as plantas ocultas sobre a neve se preparam para brotar de novo, e esse período de sono e de recolhimento é parte do drama de toda existência. Acostumados a viver em seu próprio ritmo, os homens muitas vezes não notam essas mudanças, que, no entanto, ocorrem também com cada um deles. E, para os poucos que se deixam guiar pelo ciclo da vida, elas acostumam ser percebidas a partir do primeiro sinal”
(O Caçador, Ana Lúcia Merege)

Chegamos a 2017, o #AnoDoBrasil, e para inaugurar a campanha que homenageará a literatura do nosso país escolhemos um livro que li ainda em 2016, mas que é especialíssimo: O Caçador, livro de estreia da escritora carioca Ana Lúcia Merege. Com uma narrativa rápida, mas profunda, esta releitura do conto da Branca de Neve vai além do conto e explora ao máximo a criatividade e o talento narrativo que são próprios da escritora, dando vida e continuidade a história do caçador que salvara a princesa, mas cujo destino fora esquecido pelo próprio conto que lhe deu vida. Por ser um livro bonito e de um encanto único, que ele será o primeiro ponto no itinerário da nossa nova campanha.

Sinopse

Solitário na floresta o caçador só ouvia vozes humanas quando ia ao castelo entregar a carne e as peles que caçavam para a rainha, mas mesmo em sua vida reclusa e controlada pelos ritmos da natureza, ele vivia tranquilo e era feliz nunca tendo sentido falta de nada que a floresta não pudesse lhe prover. Tudo muda porém quando a rainha exige sua presença e o incube de uma tarefa tenebrosa: levar a princesa a floresta e lá, secretamente, matá-la, trazendo como prova o coração da garota.
Mesmo tendo tentado cumprir sua palavra com a rainha, o jovem caçador fraqueja e poupa a vida da princesa. Em vez de levar à rainha o coração da garota entrega à bruxa o coração de um animal da floresta e é aí que sua história de desventuras começa, em uma caminhada errante por florestas, cidades e aldeias, entrecortando e testemunhando histórias, as mais fantásticas, até que conheça o seu verdadeiro destino.

Resenha

Fazer releituras dos clássicos contos de fadas é algo que vem se tornando frequente nos últimos tempos. Seja para tornar os velhos contos em algo mais verossímil e realista como foi o caso do filme Para Sempre Cinderela, do diretor Andy Tennant, ou para transformá-los em algo deslocado e que pouco tem a ver com o original, como é o caso do filme João e Maria: Caçadores de Bruxas, de Tommy Wirkola, em que as crianças rejeitadas e abandonadas na floresta crescem e se tornam caçadores de bruxas. Há ainda aquelas releituras que buscaram na fusão de vários contos uma narrativa nova e as vezes a partir de um olhar que se quer mais moderno, como vemos em A Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman. Porém mais do que buscar inovar, releituras são desafios que exigem do escritor criatividade e talento narrativo, porque comparações são inevitáveis e resistências são comuns, é aí que poucas são as fórmulas que realmente dão certo em tornar a releitura uma história tão boa quanto o original ou até melhor.

Por sua vez, a autora brasileira Ana Lúcia Merege buscou seguir caminhos próprios para compor a releitura do conto da Branca de Neve em seu primeiro livro de ficção, O Caçador. Neste livro, ao contrário de modificar profundamente a história original, a autora buscou ampliá-la, dando destino, alma e personalidade a um personagem cuja participação pode ser considerada central para que a história siga para seu desfecho, mas cujo destino sempre foi ignorado: o caçador.

Acredito que todos devam saber que, no conto original da Branca de Neve, o caçador era apenas mais um homem que vivia de seu trabalho penoso e solitário na floresta, mas que para seu infortúnio fora escolhido pela rainha para ser o algoz da princesa, por quem sua majestade nutria um ódio e inveja sem limites. Porém apiedando-se da garota o homem decide poupar a princesa e mandá-la embora para a floresta. Para prestar contas de sua missão à rainha, o caçador leva a ela o coração de um animal como se este pertencesse a princesa e aí termina a participação daquele homem sem nome e sem passado.

Em O Caçador, Ana Lúcia buscou dar um rosto, um passado e um futuro a este personagem, dotando-o de alma e sentimentos. É pegados pela mão da autora que vamos sendo guiados pela história das desventuras do caçador de Branca de Neve, passando por cidades, aldeias e florestas, vivendo entre os homens e os lobos, naquele que parece ser um dos melhores livros da escritora.

O personagem

Ana Lúcia traz para a imagem do caçador um olhar
mais humanizado, sem, no entanto, negar a forte
integração deste com a natureza selvagem das florestas.
O caçador de Ana lúcia é pouco mais do que um rapaz, e, por seu isolamento, é um jovem ainda puro que não aprendera a malícia dos que vivem além da floresta, nem conhecia a extensão da maldade ou da natureza mesquinha de muitos homens. De tão integrado a floresta e a natureza era como se delas fizesse parte. Contudo, a medida em que vai prosseguindo sua história, o rapaz vai conhecendo o mundo dos homens e sobretudo sua maldade, o que faz com que ele deseje cada vez mais o isolamento. Ainda assim, nem o ressentimento que os homens lhe inspiram, nem a abominação que sentia pelo modo como eles viviam, são suficientes para embrutecer o coração do rapaz e nem fazê-lo deixar de desejar uma companhia.

Uma coisa que me inquietou logo no começo da leitura foi não saber a razão da autora não ter dado um nome ao seu personagem principal, como é comum em qualquer livro. Curioso fui perguntar diretamente a escritora. Atenciosa, Ana me respondeu no mesmo dia e explicou que seus personagens eram arquétipos e que dar-lhes nome seria de alguma forma reduzi-los.

Pensei um pouco naquela resposta tentando entendê-la e foi aí que a ficha caiu: se personagens sem nomes eram incomuns nos romances, não o eram nos contos de fada – Ana queria preservar a natureza original do conto. Acho que, de tanto tempo que passei sem ler os clássicos contos de Andersen e dos irmãos Grimm, já havia me esquecido que esta era uma característica fundamental deste gênero.

Em O Caçador os príncipes
não são os grandes heróis da história.
A verdade é que tudo em O Caçador procura preservar os aspectos básicos que caracterizam os contos de fadas originais como os elementos mágicos que se misturam a vida cotidiana medieval, o núcleo problemático de caráter existencial e os obstáculos que servem de teste e ritual de iniciação para o herói ou heroína[1]. A grande diferença é que no livro de Ana Lúcia, não são os príncipes os grandes heróis, mas o homem simplório, recluso e de vida tão humilde, mas dotado de um coração puro e sem medo.

Predileto

O Caçador é o terceiro livro da autora que leio, o primeiro foi O Castelo das Águias e depois Anna e a Trilha Secreta, e nessas leituras uma coisa que tenho apreciado bastante é a forma como a autora escreve, talento que O Caçador deixa explícito de forma contundente.

Ana Lúcia tem um dom todo especial de articular as palavras, o que ela faz com maestria, narrando os fatos com beleza, segurança e naturalidade e fazendo da leitura algo agradável e envolvente.

Assim como nos velhos contos de fada, O Caçador é um livro de poucas falas deixando quase exclusivamente ao narrador o papel mais importante de nos guiar pela história. Mesmo sendo seu livro de estreia, a obra já expõe a maturidade da autora e deixa extravasar todo o seu talento narrativo, aliando-os a uma boa história, de enredo nem um pouco previsível e com uma narração em muitos pontos carregados de um lirismo único como é visível na citação do começo desta resenha. Além disso, a medida que a história do caçador vai se desenrolando, suas aventuras vão atravessando outros contos e se entremeando por caminhos improváveis.

Estou lendo também o livro A Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman, e que como já afirmei também é uma releitura de contos de fadas recentemente publicada pela editora Rocco em uma edição luxuosa e lindíssima. Mas afirmo com toda a segurança e sem presunção, que quando confrontei o livro do autor britânico com o livro da Ana Lúcia, achei o livro da autora brasileira de qualidade narrativa bem superior. Ana foi cuidadosa em todos os detalhes, criou um personagem cativante e O Caçador é um livro que dificilmente se preveria o desfecho.

A autora
Gosto de Gaiman, já resenhei aqui no blog um de seus livros, Lugar Nenhum, onde elogiei sua criatividade e imaginação na criação da Londres de Baixo, mas desta vez ele não conseguiu alcançar meu coração como Ana fez com O Caçador, e acho que contos de fada são para isso: encantar e conquistar corações. Por isso o escolhi para inaugurar a campanha de 2017, o #AnoDoBrasil.

A releitura de O Caçador está perfeita, sem excessos, com uma boa dosagem de realismo e magia e, principalmente, deixando transparecer todo o talento da autora para a narração.

A obra chegou a mim através de uma doação da autora para a biblioteca da Filarmônica de minha cidade. Logo que o tive em mãos senti que ele seria especial e a leitura só confirmou o que minha intuição disse primeiro. Desde já O Caçador é, dentre os livros que já li de Ana Lúcia, o meu predileto.

A edição lida é da Franco Editora, com ilustrações de Neli Aquino, do ano de 2009 e possui 100 páginas. Para o pessoal da Biblioteca da Filarmônica: o livro já estará acessível a todos ainda este mês.

Quer saber mais sobre a autora? Confira nossa postagem sobre os autores que estamos lendo na campanha (CliqueAqui).







[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/Contos_de_fadas#Caracter.C3.ADsticas_dos_contos_de_fadas

5 comentários:

  1. Muito obrigada! Uma resenha como essa é a melhor forma de começar o ano. Espero que mais pessoas procurem e curtam O Caçador, e meus outros livros também!

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  2. Olá,
    Reconheço que não tenho tendencia a ler livros nacionais, mas sua resenha me deixou com vontade de ler este!

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    1. Pois leia, o livro é muito bom. Esta é minha modesta opinião. Por isso escolhi ele para abrir a campanha de 2017.

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  3. Eu queria saber qual é o gênero textual? do conto O Caçador...

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    1. Pela extensão e número reduzido de personagens, uma novela.

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