sábado, 30 de setembro de 2017

A Sombra do Vento – Carlos Ruiz Zafón – Resenha de Releitura – Especial Zafón

Por Eric Silva

Notas:                                                                                                                                   
{1} a presente resenha é uma ampliação que reestrutura, adapta e aprofunda as considerações presentes em outro texto anterior sobre o mesmo livro, além de acrescentar observações e elementos ausentes no outro.
{2} todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.
{3} Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.


“Você sabe quando leu um bom livro quando vira a última página e sente-se quase como se tivesse perdido um amigo”. (Paul Sweeney)




“Os livros são capazes de mudar vidas, até mesmo guiá-las. Não são apenas palavras impressas no papel, mas o clamor da alma de quem as escreve, que se mistura a alma de quem as lê, em um frenesi de sensações e sentimentos tão violento quanto o caudal de um rio furioso.  Foi esse frenesi, tão parecido com a sensação de estar apaixonado, que revolucionou a vida de Daniel e fez dele o homem que se tornou. Que o guiou pelas ramblas e ruelas da antiga Barcelona franquista, em busca dos rastro de alguém que parecia ter sido engolido pelas sombras e pelo fogo”. Hoje retorno a este livro fabuloso para o especial Zafón e preservo aqui a mesma introdução da primeira resenha que fiz desse livro, porque ainda sinto viva a mesma chama de paixão que me consumiu quando li A Sombra do Vento pela primeira vez. Que essa paixão perdure por um tempo incontável.

Sinopse

Daniel ainda tinha 11 anos quando em uma noite se dá conta de que não se lembra mais do rosto da falecida mãe.  Para consolar o filho, o senhor Sempere conduz o menino pelas ruas de Barcelona durante a madrugada para conhecer um lugar misterioso e secreto: o Cemitério dos Livros Esquecidos. Na imensidão de livros daquele lugar, Daniel descobre A sombra do vento, livro de um misterioso e desconhecido escritor chamado Julián Carax. Obcecado pelo livro, Daniel busca saber mais sobre seu autor, mas a vida de Carax se demonstra um mistério cheio de lacunas. Se isso não bastasse, alguém estava decidido a destruir todos os seus livros e talvez aquele volume da Sombra do Vento fosse o último sobrevivente. Sempre em busca de desvendar o passado de Julian, Daniel dedica anos a sua investigação, percorrendo todos os recantos da antiga cidade cheia de histórias, segredos e perigos, e o que antes era só uma curiosidade se torna o principal propósito de sua vida.

Resenha

Obra do escritor espanhol Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento é decididamente um dos meus livros prediletos. Li esse romance pela primeira vez no primeiro semestre de 2016, em sua edição portuguesa, mas gostei tanto que decidi me aventurar mais pela literatura espanhola e inspirado na obra de Zafón criei a campanha do #AnoDaEspanha, primeira edição daquilo que depois chamei de Campanha Anula de Literatura do Conhecer Tudo.

Não há nada nesse livro que eu não gostei ou ache cansativo ou clichê. Gosto da sua narrativa, da beleza das palavras escolhidas pelo autor e da atmosfera de romance folhetinesco de aventura que ao mesmo tempo conserva uma atmosfera de saudosismo e uma poética que é toda própria de sua narrativa. Dessa vez li a edição brasileira e achei-a igualmente bela, e no futuro, quem sabe, leia também a edição original em espanhol.

Volto hoje a esse livro fantástico para reafirmar e aprofundar minhas considerações sobre ele, destacando minhas impressões sobre uma história que me parece quase perfeita porque não me deixou brechas para críticas negativas.

Sobre perdas e solidão: o contexto histórico e o enredo

Escrito em primeira pessoa, A Sombra do Vento conta a história das aventuras de seu narrador, Daniel Sempere, em busca de desvendar o passado e o destino dado a Julián Carax, um desconhecido escritor que além de ter desaparecido do mapa como muitos outros no período final da Guerra Civil Espanhola, ainda, estava tendo todos os seus livros sistematicamente destruídos por um misterioso incendiário.

Toda a trama começa na noite quando Daniel, ainda criança, acorda desesperado por não conseguir mais lembrar do rosto da mãe, falecida alguns anos antes. Para consolá-lo, o pai do menino leva-o no meio da noite a um lugar escondido na cidade de Barcelona, cuja localização deveria continuar em segredo: o Cemitério dos Livros Esquecidos. Nesse lugar, que nada mais era do que uma colossal biblioteca secreta, eram mantidos centenas de livros a salvos do furor da ditadura da época.

Como todos que conheciam pela primeira vez o Cemitério, Daniel teve o direito de levar para si um exemplar de suas muitas estantes e conservá-lo consigo para sempre. Caminhando naquela profusão de livros, o menino encontra aquele que seria o estopim para uma aventura que mudaria os rumos de sua vida: A Sombra do Vento, o livro de um escritor de nome Julián Carax.

Feliz com seu achado, Daniel volta para casa com o pai e mergulha no enredo daquele livro misterioso sem, no entanto, conseguir se desvencilhar de sua narrativa gótica ao longo de toda a madrugada. Tão fantástico era aquele livro que Daniel desejou conhecer mais da obra de seu escritor e ler todos os seus livros. Contudo, para sua decepção bem pouco se sabia sobre Carax, de sua história, destino e mesmo de seus livros. Nem mesmo o pai do menino, “livreiro de raça e bom conhecedor dos catálogos editoriais”, nunca havia ouvido falar do misterioso escritor. Pior do que isso, ao que parecia todos os livros do autor estavam sendo queimados por um louco que os comprava a qualquer preço, unicamente para depois deitar-lhes fogo.
                                                                                     
Diante daquele impasse, Daniel por muitos anos se lançaria na aventura de desvendar esse passado de Carax sempre envolto em mistérios, perigos e lacunas. O livro de Zafón irá, então, nos guiar entorno desta busca que muito contribuiu para o crescimento do próprio Daniel e que incansável persistia em reunir todas as informações possíveis sobre a vida de Carax.

Barcelona 1950.
Imagem: Francesc Català Roca

Passada entre os anos de 1945 e 1956, a história de A Sombra do Vento tem por cenário a Barcelona dos tempos do governo fascista do general Francisco Franco.

Depois da sangrenta guerra civil entre republicanos e nacionalistas que findaria com ascensão do general Franco ao poder, em 1939, a Espanha mergulharia em um período fortemente marcado pela repressão e controle social da ditadura franquista e que perduraria até a morte do ditador em 1975. Durante o conflito, Barcelona foi uma das cidades que por mais tempo resistiram às tropas de Franco e por isso as marcas do conflito ali parecem ser bem mais profundas.

A história contada pelo livro de Zafón se situa exatamente no auge de um período marcado pela repressão e eliminação dos opositores políticos por parte da administração do regime. Uma época na qual também se buscava propagar “um discurso romântico nacionalista, catolicista, anticomunismo e tradicionalista”[1] que se centrava e enaltecia a figura do líder. Cenário que se materializa sobretudo na figura louca e tirânica de um dos principais personagens da trama: o Inspetor de polícia Francisco Javier Fumero que encontra no sistema vigente o espaço necessário para dar vazão a sua brutalidade e insanidade.

Por se situar neste período, A Sombra do Vento não é uma obra que se limita a falar de livros ou da paixão por eles, é uma obra que fala sobre uma época sombria da história da Espanha. A Barcelona descrita na história é uma cidade de pessoas ainda marcadas pelos anos de Guerra Civil. As marcas do conflito estão em todos os lugares, como nos restos de estilhaço na Plaza de San Felipe Neri, mas principalmente nas pessoas. A Sombra do Vento, parafraseando Saramago, é um ensaio sobre a amargura e a solidão. Quase todos os personagens são de alguma forma atingidos pela amargura, alguns deles pela loucura, mas principalmente pelo sentimento da perda. São pessoas que sofreram os terrores do conflito, que perderam pessoas queridas no Castillo de Montjuic[2], que amargam vidas solitárias ou que vivem os dissabores da perseguição política, ideológica ou moralista vigente no período ditatorial.

[...] "Falei-lhe de como, até aquele instante, não havia compreendido que aquela era uma história de pessoas solitárias, de ausências e de perda, e que, por esse motivo, havia me refugiado nela até confundi-la com a minha própria vida, como quem escapa pelas páginas de um romance porque aqueles que precisam amar são apenas sombras que moram na alma de um estranho." [...]

Por outro lado, o livro não se limita a falar de desesperança e ao mesmo tempo abre espaço para o sonho, a amizade e o amor juvenil. Daniel é o principal exemplo disso. Um rapaz jovem e apaixonado, que como qualquer adolescente tem seus momentos de dúvida e de cometer seus erros e injustiças, mas que carrega consigo sua própria luz. Ainda que carregue como todos os outros o peso de uma perda, esse sentimento se contrapõe a seu coração sincero, curioso e aventureiro que anima e move toda a história e as pessoas que atravessam seu caminho ou estão a sua volta.

Uma escrita fabulosa que mistura vários estilos

O autor.
Imagem: Wikimedia Commons.
A Sombra do Vento é um livro em estilo gótico cheio de surpresas e lugares espetaculares. À medida que vamos lendo o magnetismo da escrita de Zafón prende nossa curiosidade e a cada nova revelação tece uma parte de outra história paralela e marcada por sofrimento e desencontros: a história do passado de Julian Carax. Uma trama original que mistura muitos estilos como o suspense das novelas de detetives e de aventuras com um toque gótico e da ficção sobrenatural, o que, no conjunto, dá a trama um caráter único, singular, sem abusar de clichês, ou tornar complexo e cansativo o enredo.

Logo no começo da narrativa, Zafón demonstra o poder de um escrita que também é marcada pela originalidade, e, brincando com as palavras, faz construções de grande beleza estética para descrever com detalhes concretos os cenários e as personagens que os animam. É com uma escrita elegante sem ser cansativa nem por demasia extravagante que o autor, logo nas primeiras páginas, descreve a imagem melancólica de um amanhecer enevoado – e a capa do livro não poderia ser mais adequada – na qual um pai e seu filho atravessam as ruas desertas de uma Barcelona que ainda despertava, para irem de encontro com a maior aventura de suas vidas:

[...] Ainda me lembro daquele amanhecer em que o meu pai me levou pela primeira vez para visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos. Despontavam os primeiros dias de Verão de 1945 e andávamos pelas ruas de uma Barcelona aprisionada sob um céu cinzento, com um sol de vapor que se derramava na Rambla de Santa Mónica como uma grinalda de cobre líquido.
– Daniel, o que você vai ver hoje não pode contar a ninguém - advertiu meu pai. – Nem ao seu amigo Tomás. A ninguém.
– Nem a mamãe? – perguntei, em voz baixa.
Meu pai deu um suspiro, amparado naquele sorriso triste que o perseguia como uma sombra pela vida.
– Claro que sim – respondeu, cabisbaixo. – Com ela não temos segredos. A ela você pode contar tudo. [...]

Esse estilo e construções narrativas é marcante na narrativa sempre que o autor tenta reproduzir a atmosfera de uma Barcelona misteriosa e gótica e que se encontrava mergulhada no torpor de uma época de censura e repressão.

No que tange à tradução, acho que tanto aquela realizada para o português lusitano    por J. Teixeira de Aguilar quanto a tradução brasileira feita por Marcia Ribas[3] são esplendorosas, no entanto, em alguns momentos de maior lirismo da escrita de Zafón acho que a tradução portuguesa ficou mais sofisticada, contudo a tradução brasileira é mais limpa e fluida, sem deixar de ser bela. Dessa forma, o lirismo de Zafón é preservado, e, assim como suas construções, cria cenários na qual mergulhamos sem sentir e nos faz vislumbrar toda a cena como se assistíssemos a um filme:

[...] Por quase meia hora perambulei pelos esconderijos daquele labirinto com cheiro de papel velho, pó e magia. Deixei que minha mão roçasse as avenidas de volumes expostos, numa tentativa de fazer a minha escolha. Percebi, entre os títulos apagados pelo tempo, palavras em línguas conhecidas e dezenas de outras que não podia reconhecer. Percorri corredores e galerias em espiral, repletos de milhares de volumes que pareciam saber mais a meu respeito do que eu sobre eles. Aos poucos, assaltou-me a ideia de que atrás da capa de cada um daqueles livros se abria um infinito universo por explorar e que, fora daquelas paredes, o mundo deixava que a vida passasse em tardes de futebol e em novelas de rádio, satisfeito em ver apenas até onde vai o seu umbigo e pouco mais. Talvez tenha sido esse pensamento, talvez o acaso ou seu parente elegante, o destino, mas naquele mesmo instante percebi que tinha escolhido o livro que ia adotar. Ou talvez devesse dizer, o livro que me adotaria. Ele se destacava timidamente no canto de um estante, encadernado numa capa cor de vinho e sussurrando o seu título em letras douradas que brilhavam na luz vinda da cúpula no alto. Aproximei-me dele e acariciei as palavras com as pontas dos dedos, lendo em silêncio:

A Sombra do Vento
JULIÁN CARAX

[...]

Essa é uma passagem que, além de revelar importantes aspectos do lirismo da escrita de Zafón, mostra também como este registra os fatos e os lugares de forma criativa e tece as história de seus personagens ligando-os entre si de forma majestosa e inteligente. Mesmo quando li a versão portuguesa com todos os limites das diferenças regionais do idioma ainda consegui me apaixonar pela forma como ele compõe sua história, pela sua capacidade criativa.

Dos personagens principais, os meus favoritos

Ilustração a lápis para o livro de Carlos Ruiz Zafón: A sombra do Vento.
Novembro de 2008.
Arte de Elisa de la Torre
A Sombra do Vento é um romance de muitos personagens, cada qual com sua própria importância e participação na aventura de Daniel, porém alguns, além do protagonista, se destacam e se tornaram os meus favoritos ou dignos de nota, como é o caso do principal antagonista da trama: Fumero.

Daniel é o principal personagem da trama junto com o misterioso Julian Carax. Filho do comerciante de livros Sempere, Daniel se mostra, a princípio, um garoto ingênuo, mas que ao longo da história vai ganhando maturidade, porém sem perder o frescor que é comum a juventude, nem a capacidade de se apaixonar por qualquer mulher que lhe encantasse os olhos. Perdera cedo a mãe cujo rosto já não se lembrava e tem uma relação de altos e baixos com o pai que possui ao longo da trama uma presença relativamente silenciosa apesar de sua importância enorme para o enredo.

Pouco a pouco, o menino entristecido que nos é apresentado no primeiro capítulo vai dando lugar a um outro, mais aventureiro, mais ousado e aberto ao desconhecido. Na minha opinião – dando uma de psicólogo até – eu diria que, na verdade, a busca pelo passado de Carax foi para o garoto uma forma de preencher um vazio deixado pela morte da mãe. Vazio que o pai nunca foi capaz de suprimir apesar de seu zelo e amor. Desvendar Carax seria a chave para que ele recordasse o rosto perdido de sua mãe, como sugere o enredo.

Muito intenso, Daniel é um personagem cativante, a pesar de em alguns momentos se mostrar inseguro, vacilante, mas são características que o torna mais humano.  Ainda me impressionou algumas vezes como com o seu jeito manso, sua malícia e astúcia convencia as pessoas a dizerem o que ele queria e precisava saber. É através de seus passos e andanças que vamos conhecendo a cidade e seus curiosos e melancólicos habitantes.

Por sua vez, Fermín era um alegre e beberrão morador de rua que fora resgatado da indigência por Daniel e seu pai que lhe deram um trabalho na livraria. Um literato desavergonhado e mulherengo que viva fazendo referências aos clássicos junto com seus comentários bem humorados sobre a virilidade masculina e os jogos de sedução entre homens e mulheres. Mas Fermín é também um personagem que considero curioso. Mesmo tendo sofrido horrores durante e depois da Guerra Civil, ele conservava a alegria, a espiritualidade e a juventude que somente os personagens mais jovens da trama conseguiam esboçar e até de forma mais intensa do que esses.

Fermín juntamente com Daniel são a alma da história e por isso, em meados da narrativa, o ex-mendigo se torna o principal aliado de Daniel na investigação sobre o mistério de Carax.

Outros dois personagens dignos de nota são Julian Carax e o inspetor Francisco Javier Fumero.
Carax se revela a maior surpresa desse livro, pois ao contrário do que se poderia esperar de um escritor, sua vida foi bastante conturbada e cheia de percalços. Um personagem enigmático, sedutor, cuja existência foi capaz de interferir na vida de muitas outras pessoas. Uma história digna de seus próprios livros.

Ao longo da trama vamos aprendendo a amá-lo e odiá-lo, somos alimentados pelo mistério de sua vida e agraciados com um final surpreendente. Carax figura para Daniel como um personagem misterioso cujo mistério da vida o seduzia e tragava e no fim, dividimos com o rapaz o seu fascínio por esse homem cheio de mistérios e pelas várias formas que esse toma ao longo da vida.

Fumero, por seu turno, era um homem asqueroso e louco com uma lista de assassinatos e torturas tão grande que fazia dele o homem mais perigoso de Barcelona e o terror causado pelos anos de ditadura é marcante na história através de sua figura sinistra. Ao longo do livro o personagem vai ganhando espaço e importância como o principal antagonista de Daniel e principalmente de seu companheiro de aventuras, Fermín, a quem Fumero já perseguia desde a época da guerra, tomando-o como um de seus maiores desafetos.

Gradativamente a trama vai conectando cada personagem e expõe uma rede de relações conturbadas e perigosas que conecta cada história entorno de Carax, Daniel e Fermín, entrelaçando as vidas de todos eles como se fossem os fios de uma grande e complexa tapeçaria. Contudo, nenhuma dessas conexões soa ao leitor como absurda ou forçada pelo autor para dar um destino à história. Pelo contrário, demonstram a sagacidade de um escritor acostumado ao mistério e que por isso sabe soltar cada revelação, cada segredo no seu devido momento e assim reconstituir aos poucos cada passo do passado e do presente de seus personagens.

Um livro onde cabe uma cidade inteira

Vista sobre a avenida Paseo de Gracia.
Imagem: Wikimedia Commons

Acho que dizer que Barcelona é também uma personagem de A Sombra do Vento não seria de todo um absurdo, porque nesse livro vivemos a cidade catalã junto com Daniel, aprendemos o nome de suas ruas, de suas ramblas e plazas, conhecemos seus cantos e recantos, sua gente. Ela tem também uma importância enorme para seus moradores que a vivem com intensidade e conhecem-na intimamente.

Afirma Pedro Lacerda[4], em artigo sobre o filme Las Insoladas, que a cidade pode possuir “um papel importante na condução dos seus indivíduos e também é reflexo deles, estabelecendo uma troca que pode gerar, por vezes uma apatia, em outros momentos a descoberta de novos sentidos escondidos em parques, ruelas, paredes e topos de prédios”.

A Barcelona de Zafón é cheio dessas identificações de que fala Lacerda. Ela guarda seus segredos encantados como O Cemitério dos Livros Esquecidos, reduto de alguns poucos escolhidos. Ela guarda lugares tenebroso e esquecidos como “O Anjo da Bruma”, mas também é fonte de diversos laços subjetivos que seus moradores nutrem com seus espaços. Isso torna Barcelona não só o cenário mas um personagem que influi sobre a vida de seus personagens, em seu humor e estado de espírito. Além disso sua história tem peso sobre os personagens tanto quanto eles tem peso sobre a construção de sua história futura. 

Daniel como narrador cita e descreve lugares de Barcelona de uma forma espontânea e cheia de detalhes, demonstrando que conhece-a em toda a sua intimidade, além de deixar nítido na sua fala a relação de amor que nutre por sua cidade:

[...] O dia estava esplêndido, com um céu azul de brigadeiro e uma brisa limpa e fresca que cheirava a outono e a mar. A minha Barcelona favorita foi sempre a de outubro, quando a nossa alma sai para passear e nos sentimos mais sábios só de beber água na fonte de Canaletas que, por milagre, nesses dias se quer tem gosto de cloro. Eu avançava a passos rápidos, esquivando-me dos engraxates, dos empregados de escritório que voltavam do cafezinho da manhã, dos vendedores de bilhetes de loteria e de um balé de lixeiros que pareciam limpar a cidade a pincel, sem pressa e muito meticuloso. Nessa época, Barcelona começava a se encher de automóveis, e na altura do sinal da Rua Balmes observei, de pé nas duas calçadas empregados de escritório com capas de chuva cinzentas e olhar faminto que comiam com os olhos um Studebaker como se ele fosse uma mulher de roupa de banho. Subi pela Balmes até à Gran Via, aflito os sinais, bondes, automóveis e até motocicletas com sidecar. [...]

Mas o garoto não apenas vive cada pedaço de Barcelona como em certos momentos a cidade parece responder aos seus sentimentos através da mudança das estações e do tempo.

[...] Ela vai ligar depois, falei para mim mesmo. Alguém devia tê-la surpreendido. Não devia ser fácil burlar o toque de recolher do senhor Aguilar. Não havia razão para sustos. Com essa e outras desculpas arrastei-me até à mesa para fingir que acompanhava o meu pai e Fermín no seu café da manhã. Talvez fosse a chuva, mas a comida havia perdido todo o seu sabor.
Choveu a manhã inteira e, logo depois de abrir a livraria, tivemos uma falta de luz geral no bairro que durou até o meio-dia. [...]

Quase sempre que os personagens se encontravam apreensivos ou tristes, como Daniel nessa passagem, a cidade parece em sintonia com o sentimento vivido por eles. Por isso, falar em Barcelona como um outro personagem da trama não me soa como exagero.

Ultimas considerações sobre um livro marcante

Imagem: Eric Silva.

Como disse em outro momento, A Sombra do Vento é um livro lindo e sincero e o principal responsável por despertar em mim um fascínio pela Espanha, particularmente por Barcelona, que até então não existia. Em grande parte esse fascínio se deve a narrativa tão cheia de imagens de uma Barcelona antiga e pelo fato de Daniel nos pegar pela mão e ir apresentando cada recanto do mais belo ao mais tenebrosos de uma cidade fantástica, mas que se encontrava sempre encoberta por uma neblina criada pelo momento histórico.

Assim como o livro de Carax se caracterizava por ser uma narrativa fantástica que envolvia o sobrenatural e o misterioso, a obra de Zafón mergulha nesse mesmo universo de ausências, mistérios, perdas e solidão. O autor ainda demonstra uma sensível capacidade de compor imagens singelas e tenebrosas em que reúne beleza e sensibilidade – “uma rosa rodeada de inverno”.

Ler A Sombra do Vento foi ainda mais interessante porque fala de um apaixonado pelos livros, assim como eu. Além disso, a narrativa misturou tudo o que gosto: lugares incríveis, mistério, uma boa escrita e aventura. É ao mesmo tempo um livro que traça a história “recente” de uma cidade deslumbrante e com séculos de existência provocando o seu leitor para ama-la tanto quanto os seus personagens, e provavelmente o seu autor.

Só faz um ano que li esse livro e essa releitura só veio reafirmar o que eu já sabia: A Sombra do Vento é um livro fantástico que nunca me cansa, uma narrativa que eu amo. Só renovou um desejo que expressei na primeira vez que resenhei esse livro, torno a repetir aqui: ainda quero um dia encontrar o caminho para o Cemitério dos Livros Esquecidos, e complemento que este caminho está em Barcelona cidade que definitivamente um dia percorrerei assim como fizeram Daniel e Fermín.

Prévia do Google Books


Postagens Relacionadas





[1] https://www.todamateria.com.br/franquismo-na-espanha/
[2] Antiga fortaleza militar situada em uma montanha com o mesmo nome. O local foi ponto estratégico de defesa e palco de muitas prisões e torturas ao longo de diversos conflitos ocorridos em Barcelona.
[3] Os trechos publicados aqui foram extraídos da edição brasileira: ZAFÓN, Carlos R. A Sombra do Vento. Tradução: Marcia Ribas. 1 ed. Rio de Janeiro: Suma de letras, 2007. 400 p.
[4] http://obviousmag.org/megafone_vermelho/2015/a-cidade-como-personagem.html

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Quem é Carlos Ruiz Zafón? - Especial Zafón

Por Eric Silva

Escritor barcelonês, Carlos Ruiz Zafón é autor do romance A Sombra do Vento, seu livro mais conhecido e que já foi traduzido para mais de 30 idiomas e publicado em cerca de 45 países.

Nascido em 25 de setembro de 1964, Zafón é filho de uma família sem tradição literária. Sua mãe era dona de casa e o pai, um agente de seguros bem sucedido. Contudo desde muito cedo o jovem Carlos despertou o seu talento e interesse para a literatura. Sendo um amante do romance do século XIX, Zafón tem como suas principais influências autores como Fedor Dostoyevsky, Leon Tolstoy e Charles Dickens.

Foi educado na escola dos jesuítas de San Ignacio de Sarriá e seguiu com a formação em Ciências da Informação chegando a receber ainda no primeiro ano de curso uma proposta de trabalho no mundo da publicidade. Atuou como diretor criativo de uma importante agência barcelonesa até o ano de 1992 quando decidiu deixar a publicidade e seguir uma carreira na literatura.

Muda-se, em 1933, para Los Angeles, onde começa a trabalhar como roteirista enquanto dedicava parte de seu tempo na confecção de seu primeiro romance, O Príncipe da Névoa, (do original em espanhol El príncipe de la niebla), obra ganhadora do prêmio espanhol Edebé de literatura infantil e juvenil. Com uma história de mistério ambientado em uma cidade nas margens do Atlântico, durante a Segunda Guerra Mundial, ainda no ano de 1943, esse livro é o primeiro da Trilogia da Névoa composta também pelos livros O Palácio da Meia-Noite (1994) e As luzes de Setembro (1995).

Em 2001, lançou seu primeiro livro adulto A Sombra do Vento (em espanhol, La Sombra Del Viento) com o qual se tornou uma das maiores revelações literárias. Ambientado em Barcelona durante o período da ditadura franquista na Espanha, esse livro inaugura uma nova série O Cemitério dos Livros Esquecidos (do espanhol, El cementerio de los libros olvidados), produzida pelo autor nos últimos 15 anos e finalizada em 2016. 

A tetralogia é composta também pelos livros O Jogo do Anjo (2008) (El juego del ángel), O Prisioneiro do Céu (2011) (El prisionero del cielo) e O Labirinto dos Espíritos (2016) (El laberinto de los espíritus). Em 2012, publicou ainda um conto complementar à série chamado Rosa de Fuego, onde narra as origens do Cemitério dos Livros Esquecidos remontando à época da inquisição espanhola do século XV.

Por A Sombra do Vento, Zafón foi finalista dos prêmios literários espanhóis Fernando Lara 2001 e Llibreter 2002, e em Portugal, foi premiado com as Correntes d'Escritas (2006).

É ainda autor do livro Marina, publicado em 1999, e que é possivelmente, das obras de Ruiz Zafón “a mais indefinível e impossível de categorizar, e talvez a mais pessoal delas” (Wikipédia Espanhola).

Todas as obras citadas foram traduzidas e publicadas no Brasil pelo selo editorial Suma de Letras, pertencente ao grupo Companhia das Letras. Hoje, o trabalho de Zafón já foi traduzido para mais de cinquenta línguas o que o tornou em um dos autores mais reconhecidos da literatura internacional dos nossos dias e o escritor espanhol mais lido no mundo depois de Cervantes.

Zafón faleceu no dia 19 de junho de 2020, na cidade onde vivia no EUA, Los Angeles, em decorrência de um câncer contra o qual lutou ao longo de dois anos. Zafón tinha 55 anos.

Confira abaixo a lista completa dos prêmios ganhos pelo autor disponível em seu website oficial:

·         Na Espanha:
o    Prêmio da Fundação Jose Manuel Lara para o livro mais vendido.
o    Prêmio dos Leitores de La Vanguardia.
o    Prêmio Protagonistas.
·         Nos Estados Unidos:
o    Borders Original Voices Award.
o    Prêmio Gumshoe.
o    New York Public Library Book to Remember.
o    BookSense Book of the Year (Menção Honrosa).
o    Barry Award, Joseph-Beth e Davis-Kidd Booksellers Fiction Award.
·         Na França:
o    Livre de Poche 2006.
o    Prêmio pelo melhor livro estrangeiro.
o    Prix ​​du Scribe.
o    Prix ​​Michelet.
o    Prix ​​de Saint Emilion.
·         Na Holanda:
o    Prêmio dos Leitores.
·         Na Noruega:
o    Bjornson Ordem para o mérito literário.
·         No Canadá:
o    Prêmio Canadian / Quebec Bookstores.
·         Na Bélgica:
o    Humus Award pelo melhor livro do ano votado pelos leitores da Bélgica (2006).
·         No Reino Unido:
o    Prêmio de Ottakar.
o    Nielsen Golden Book Award.
o    Finalista para o autor do ano 2006 British Book Awards.
o    Sexta posição na lista da Waterstone dos 25 melhores livros dos últimos 25 anos.
·         Em Portugal:
o    Prêmio Varzim de Povoa.

Referências
http://www.carlosruizzafon.com

Postagens Relacionadas



segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Ficha Técnica: Marina – Especial Zafón

Por Eric Silva

Título Original: Marina                                                   

Gênero: Mistério

Ano de publicação original: 1999

Editora da edição original: Edebé

Selo editorial da edição brasileira: Suma de Letras.

Número de Páginas: 192

Avaliação no Skoob: 4,3 (máximo 5)

Sinopse oficial da edição brasileira:

Neste livro, Zafón constrói um suspense envolvente em que Barcelona é a cidade-personagem, por onde o estudante de internato Óscar Drai, de 15 anos, passa todo o seu tempo livre, andando pelas ruas e se encantando com a arquitetura de seus casarões.

É um desses antigos casarões aparentemente abandonados que chama a atenção de Óscar, que logo se aventura a entrar na casa. Lá dentro, o jovem se encanta com o som de uma belíssima voz e por um relógio de bolso quebrado e muito antigo. Mas ele se assusta com uma inesperada presença na sala de estar e foge, assustado, levando o relógio. Dias depois, ao retornar à casa para devolver o objeto roubado, conhece Marina, a jovem de olhos cinzentos que o leva a um cemitério, onde uma mulher coberta por um manto negro visita uma sepultura sem nome, sempre à mesma data, à mesma hora.

Os dois passam então a tentar desvendar o mistério que ronda a mulher do cemitério, passando por palacetes e estufas abandonadas, lutando contra manequins vivos e se defrontando com o mesmo símbolo - uma mariposa negra - diversas vezes, nas mais aventurosas situações por entre os cantos remotos de Barcelona. Tudo isso pelos olhos de Óscar, o menino solitário que se apaixona por Marina e tudo o que a envolve, passando a conviver dia e noite com a falta de eletricidade do casarão, o amigável e doente pai da garota, Germán, o gato Kafka, e a coleção de pinturas espectrais da sala de retratos.


Resenha: Em breve.


segunda-feira, 11 de setembro de 2017

#7 Lirismos: Soneto de Separação – Vinicius de Moraes

Postagem: Eric Silva
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


Sobre o autor

Vinicius de Moraes foi um poeta, dramaturgo, jornalista, diplomata, cantor e compositor brasileiro. Nasce na cidade do Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 1913, e morreu na mesma cidade no dia 9 de julho de 1980. Ficou famoso por seus sonetos e pelo lirismo de sua obra poética, contudo seu trabalho é vasto e compreende desde a literatura até o teatro, o cinema e a música. Sua composição "Garota de Ipanema", feita em parceria com Antônio Carlos Jobim, é considerado como um hino da MPB.
















Poema extraído do livro Antologia Poética, publicado em 1976, pela editora J. Olympio.





Postagens populares

Conhecer Tudo