sexta-feira, 30 de março de 2018

Beleza e Tristeza – Yasunari Kawabata – Resenha


Por Eric Silva

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Introspectivo, contemplativo e fortemente ligado ao mundo das artes, Beleza e Tristeza foi o último romance do escritor japonês Yasunari Kawabata. Nele conhecemos uma história de amor e traição que acabou em tragédia e separação, mas que anos depois têm suas feridas reabertas. Um livro considerado por seus críticos como incômodo, mas que poderia ser também definido como polêmico.

Confira a resenha do segundo livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura japonesa.

Sinopse

Último romance do escritor japonês ganhador do Prêmio Nobel, Yasunari Kawabata, Beleza e Tristeza conta a história de Oki Toshio, um escritor japonês, que viaja para Quioto em busca de se reunir com uma antiga amante, Otoko Ueno, agora uma artista plástica, para tentar reconciliar o relacionamento rompido no passado de forma trágica.

Resenha
O enredo

Narrado em terceira pessoa e ambientado em um Japão que se adaptava a entrada da influência ocidental, a narrativa de Beleza e Tristeza (美しさと哀しみと) gira entorno de um pequeno núcleo de personagens, dos quais os protagonistas são o escritor Oki Toshio e a artista plástica Otoko Ueno.

No passado, quando Otoko ainda era uma garota de dezesseis anos, ela e Oki, um homem já com seus 31 anos, casado e pai de seu primeiro filho, tiveram um caso conturbado que trouxera sofrimento a todos e terminou em tragédia. Na ocasião, a moça deu à luz a um bebê prematuro que por conta do péssimo atendimento médico nasceu sem vida. Transtornada com a perda da criança, Otoko por um tempo a perde a razão e tenta cometer suicídio, mas sobrevive. A morte do filho, os ciúmes e descontroles da esposa de Oki e o desequilíbrio emocional de Otoko também acabam por acelerar a separação dos amantes, deixando marcas profundas em todos, mas principalmente na garota.

Vinte quatro anos depois, Oki é um escritor consagrado e seu maior sucesso, Uma garota de dezesseis anos, é um relato idealizado e apaixonado de seu romance e tragédia com Otoko Ueno. Ela por sua vez, tornou-se uma artista de sucesso e mora em um monastério de Quioto (京都市) onde vive com sua pupila Keiko, uma linda jovem com que também mantém um relacionamento amoroso.

Com a desculpa de ouvir os sinos dos monastérios de Quioto tocados na passagem de ano novo, Oki vai a antiga capital japonesa com a intenção de se reaproximar da amante do passado, mas esse contato inesperado desencadeia uma série de acontecimentos que envolve a todos novamente em momentos de angustia, sofrimento e traição, principalmente quando Keiko desperta em si o desejo profundo e incontrolável de vingar o sofrimento vivido por sua professora e amante.

Personagens

Como já mencionei, Beleza e Tristeza não conta com um vasto séquito de personagens, mas o mais curioso nesse livro é que enquanto os protagonistas são bastante passivos, os personagens secundários além de tomarem a cena, são os responsáveis por mover e direcionar a narrativa. 

Otoko é uma mulher fraca e fragilizada pelo passado. Não conseguiu desvencilhar-se de seu amor por Oki, mas, ao mesmo tempo, quer reter Keiko ao seu lado, por isso pressente a tragédia eminente quando a moça revela suas intenções vingativas, mas entregue a sua própria passividade pouco faz para deter o previsível. Por sua vez, Oki beira entre a passividade e a ação e apesar de todo o sofrimento que provocara tanto a sua família como a Otoko não hesita em reabrir a ferida com sua reaproximação indesejada. Na minha opinião um homem fraco e movido por seus desejos egoístas.

Mas a força da narrativa está mesmo em Sakami Keiko, que é de longe o personagem mais interessante da trama.

Retratada como uma moça de beleza inquietante e de temperamento difícil e dúbio, a jovem pintora assume para si o papel de vingar o sofrimento passado imposto a Otoko e que ainda a atinge. Ciúmes e desejo de vingança se misturam e a personagem transita entre a falta de moralidade explícita, a paixão ardente, inconsequente e desequilibrada e o maquiavelismo, mas não um maquiavelismo em que os fins justificam os meios, mas em seu sentido figurado como sinônimo de qualidade do que é inescrupuloso. Keiko é dominada por um pensamento que aceita a máxima de que a dor causada contra alguém é motivo para gerar mais dor, ou seja, a ilógica pura da vingança. Aqui tantos os meios como os fins são escusos.

Na narrativa Keiko se torna a ponte entre o passado e o presente, reabre as feridas criando novas chagas, e envolve também nesse jogo o filho de Oki, Taichiro.

Professor universitário, Taichiro não tem uma boa relação com o pai e se ressente pela traição de Oki no passado. É um personagem bastante apagado em mais da metade da narrativa, contudo é também o elemento-chave para o desfecho da obra. Nesse ponto do livro sua presença se torna bem mais intensa do que a dos protagonistas e estes são gradativamente jogados para a margem dos acontecimentos. Ele se demonstra um homem relativamente cauteloso, mas tão fraco quanto o pai.

Por fim, Fumiko, esposa de Oki, é outro personagem com presença destacada, mas bem menos do que Keiko e o filho Taichiro. Ao lado de Otoko ela é uma das principais vítimas dos erros de Oki e a pessoa que mais sofre com a publicação do livro no qual o marido relatava o seu relacionamento extraconjugal. Mas apesar de todo o seu sofrimento ela é também a principal intermediadora de Oki com o mundo editorial, e contribuiu diretamente para que o livro fosse publicado e se tornasse um sucesso de vendas.

Polêmico, introspectivo e contemplativo: arte dentro da arte

Escrito na década de 1960, Beleza e Tristeza é um dos últimos escritos de Yasunari Kawabata (川端康成) antes que o autor cometesse suicídio em 1972. É um livro marcado por sentimentos fortes e conflitantes como ressentimento, arrependimento, amor, desejo, ódio, vingança, obsessão, infidelidade e covardia, porém com um traçado abstrato muito forte, pois como afirma Teixeira Coelho em seu prefácio, trata-se de um “romance que recorre ao simbólico e ao abstrato para tocar mais fundo no concreto e no real”.

Um tanto monótono, mas belo e profundo, Beleza e Tristeza expressa com sensibilidade aguçada a tragédia humana, o descompasso das paixões desmedidas e irresponsáveis. Expressa com clareza o lado egoísta, maquiavélico e dissimulado do espírito humano quando entregue ao desejo de vingança. Como parece ser o estilo da literatura japonesa esse é um livro bastante contemplativo e introspectivo, pois destaca e dá preferência ao universo interior – psicológico – de seus personagens. É em essência uma obra que exprime a natureza contraditória dos seres humanos, principalmente quando fala de como nos deixamos facilmente levar pelos ímpetos dos desejos sem medir as consequências de nossos atos ou pensar no sofrimento que deles pode decorrer.

O mundo das artes é sem dúvidas uma das principais marcas e planos de fundo do romance de Kawabata, e entorno desse mundo gravitam seus personagens.

A separação de Oki e Otoko se dá num momento de extrema fragilidade e dor da moça. Mas o laço não se desfaz por completo, restam as mágoas, as feridas, as amarguras, as esperanças vãs e os sentimentos de nostalgia, de acomodação e de amor quebrantado. Esses sentimentos são expressos com intensidade através da arte, e por serem intensos o que é triste se expressa como algo de rara beleza. Assim, a arte de Otoko atingiu a fama e o livro de Oki se revelou sua obra-prima. A arte é então retratada como expressão dos sentimentos e experiências pessoais, das desilusões e amarguras, e por ser cheia de significados é também contemplativa e para ser contemplada.

Mas, em Beleza e Tristeza, Kawabata não apenas utiliza a arte como manifestação dos sentimentos passados e presentes de seus personagens. Ele é também um livro que explora a contemplação e nuanças de diferentes outras artes. Além de metalinguístico – pois o livro fala também de literatura – essa é uma obra que explora o universo das artes como um todo, seja elas tradicionais ou mais contemporâneas, orientais ou ocidentais, abstratas ou impressionistas. Assim as artes plásticas, a música, a jardinagem, a arquitetura e a poesia dentre outras formas de expressão artística são contempladas e recebem seu devido espaço e tratamento no livro de Yasunari.

Outro ponto interessante na obra é como ela está à frente de seu tempo ao apresentar com relativa naturalidade a questão do homossexualismo entre as personagens Otoko e Keiko.

Mesmo sendo um livro da década de 60, quando uma “moralidade heterossexual” ainda se sobrepunha, não há uma escandalização por parte do narrador acerca da existência uma relação homossexual entre mestra e aprendiz – isso fica a cargo da visão estreita de quem lê.

O narrador não se demonstra indignado ou reativo, tudo é tratado como algo que se dá, logo também não há apoio ou exaltação. Quem gera as dúvidas são os próprios personagens, sobretudo Otoko. A perplexidade está também apenas nos personagens como Fumiko, que fica escandalizada com a relação homoafetiva entre as pintoras.  Entretanto, por parte da narração, nada é tomado como absurdo ou errado.

Isso me impressionou porque não há, dentro do contexto histórico em que foi escrito, um medo por parte do autor de ser polêmico, de causar incômodo ou desconforto. As relações existem, são fato, e, aceitando-as ou não, elas são parte concreta da realidade e da existência humana, sempre foram, e por isso não há porque ignorar ou fingir que não existem. Ainda assim a visão da sociedade da época não é ignorada e expressa através da perplexidade de Fumiko.

Conclusão

Quando se lê Beleza e Tristeza é quase impossível não buscar na trama o significado de seu título. Foi um dos elementos que mais persegui na obra. Percebi a beleza nos cenários silenciosos e vazios de jardins, parques e templos descritos pelo livro. Também nos corpos femininos da jovem Keiko e de Otoko quando jovem. Mas tudo que é belo nesse livro também é triste. Não apenas os dramas e amarguras do passado que seus personagens carregam no seio, mas em cada coisa, na arte por eles produzida, nos seus pensamentos, nos lugares onde vão há um pouco dessa tristeza. Então tudo que é carregado de beleza neste livro é igualmente morada para uma tristeza silenciosa, não dita.

O ponto fraco do livro e que o tornaria impopular entre as novas gerações de leitores é sua monotonia causada pelo caráter introspectivo e abstrato. A narrativa arrastada e com longas incursões pelo psicológico e passado dos protagonistas, torna o livro pouco instigante na maior parte de seu enredo, mesmo que a linguagem seja acessível e não muito erudita.

Com um enredo cheio de sutilezas e silêncios que caminham inexoravelmente para a tragédia, Kawabata escolheu para seu livro um desfecho em aberto, em suspenso, abrupto, interrogativo e sugestivo. Um desfecho que incomoda o seu leitor assim como nos alerta Teixeira Coelho, no prefácio do livro, e isso só fez do final de Beleza e Tristeza a parte mais interessante e instigante do livro.

Em algumas das resenhas que eu li, algumas pessoas de fato se incomodaram com o final em aberto e sugestivo que não se preocupa em dar conclusões. No entanto, a forma como ele acaba tão abruptamente é original e quase cinematográfico, como uma cena que acaba com um close em um ponto específico e sugestivo. Um close em um olhar que abre parênteses para milhares de interpretações, e isso é, por si só, emocionante, provocante.

Confesso que Beleza e Tristeza está longe de ser um livro das minhas preferências e gostos, mas no final fiquei querendo mais umas cinco ou dez páginas. Acho que a intenção de Kawabata tenha sido justamente essa.

A edição lida é da Editora Globo, do ano de 2008 e possui 289 páginas.

Sobre o autor

O autor, Yasunari Kawabata (1899-1972).
Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1968.
Nascido em 11 de junho de 1899, na cidade de Osaka (大阪市), Japão, Yasunari Kawabata (川端康成) foi o primeiro escritor japonês a ganhar, em 1968, o Prêmio Nobel de Literatura.

Órfão aos 3 anos de Idade, Kawabata foi criado pelo avô materno. Em 1924, diplomou-se em Literatura pela Universidade Imperial de Tóquio e foi fundador do jornal de letras Bungei Jidai. Sua primeira obra de destaque foi A Dançarina de Izu (伊豆の踊り子), publicado em 1926.

Em sua escrita recorreu a técnicas surrealistas que tentou combinar coma estética tradicional japonesa. Com a publicação de Yukiguni (雪国, O País das Neves), em 1934, ascendeu à posição de importante escritor da literatura japonesa. Entre suas obras mais importantes, Senbazuru (千羽鶴, Mil Tsurus), Yukiguni e Koto (古都, Kyoto) foram citadas na ocasião de sua premiação com o Nobel de Literatura.

Em seu discurso de recebimento do prêmio, condenou a prática do suicídio, recordando amigos escritores que haviam tirado suas próprias vidas. Contudo, em 1972, o próprio Kawabata, em decorrência de um surto depressivo, comete suicídio pela inalação de gás.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.

Abaixo você pode conferir uma prévia da edição portuguesa disponível no Google Books.

Prévia do Google Books





Último livro resenhado pela campanha (clique na imagem)

quinta-feira, 15 de março de 2018

Ordem Vermelha: filhos da degradação – Felipe Castilho – Resenha

Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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“Chegamos até aqui porque não temos medo de rastejar [...]. É isso o que acontece quando se é forçado contra o chão por tanto tempo. Aprendemos a não temê-lo” 
(Ordem Vermelha, Felipe Castilho).


Ler livros de fantasia escritos por brasileiros já é algo rotineiro para mim. Na verdade, leio-os mais do que obras do gênero escritas por estrangeiros. Mas quando me decidi por ler Ordem Vermelha, o fato que me chamou a atenção não foi bem a sua nacionalidade, mas por ser a primeira obra de fantasia nacional publicado pela Editora Intrínseca.

Lançado em parceria com a Comic Con Experience (CCPX)[1], Ordem Vermelha é obra do escritor paulista Felipe Castilho e o primeiro livro da duologia Filhos da Degradação, nome tão forte quanto o conteúdo de sua narrativa. O conceito do livro, porém, nasceu de um trabalho conjunto de Felipe com o escultor digital e modelador 3D, Victor Hugo Sousa, e com o também escultor, pintor e artista conceitual, Rodrigo Bastos Didier, ambos responsáveis pela elaboração da arte visual dos personagens principais da trama.

Nesta obra temas como escravidão, opressão, religião, mito, cultura e multirracialidade se misturam a uma narrativa de ação e fantasia que não deve nada a nenhuma obra estrangeira.


Enredo     

Mapa de Untherak. Arte: Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
Seis grandes deuses criaram o mundo, a humanidade e além dela outras cinco raças: os Anões, os Kaorshs, os Gnolls, os Gigantes e os Sinfos. No plano terreno cada raça possuía seus próprios dons e papéis, porém, os humanos, incitando a discórdia e a inveja entre as raças, iniciaram uma guerra entre espécies, o que muito desagradou aos deuses.

Enfurecidos com a ingratidão de suas criaturas, os deuses puniram severamente cada uma das espécies e reduziram o mundo a um grande deserto, onde só um pequeno pedaço de terra continuaria a ser habitável. Esse deserto era a Degradação, e a última terra seria chamada de Untherak. Por fim, como para completar o castigo divino, os seis se tornaram uma, Una, a deusa de seis faces. Una tingiu o sol de negro e dele tirou o principal símbolo do governo tirânico que instauraria sobre as raças sobreviventes reunidas em Untherak: a mácula, um líquido negro, maldito, que atormentava a alma daqueles que nele fossem batizados e nos humanos fazia corroer a carne.

Em mil anos de governo tirânico, Una comandou Untherak com mãos de ferro, através do medo e da violência e com ajuda de seus sacerdotes, a Centípede, e de seu poderoso e imortal general, Proghon. A Deusa ainda concedeu aos súditos obedientes que lhe serviam diretamente a condição de Autoridades e reservou aos demais a pobreza e a condição “subumana” de escravos, podendo comprar apenas a sua semiliberdade. De tal modo, Una erigiu uma sociedade desigual, temente ao seu poder absoluto e ao castigo da mácula e penitenciada pelo trabalho forçado e mal remunerado. Mas em si, a Deusa carregava consigo um grande segredo que ameaçaria seu governo milenar. De posse desse segredo e guiados por um misterioso guerreiro de capa vermelha, a cor proibida por Una, um pequeno e inesperado grupo insurgente tenta derrubar o regime.

Universo “tolkieniano”?

Falar de Ordem Vermelha é algo complicado, porque qualquer detalhe pode se tornar um grande spoiler. A trama, pode se dizer é relativamente breve, porque não percorre um longo período cronológico, mas é tão cheio de detalhes e reviravoltas, que resenhar sem, digamos, “entregar o ouro”, é algo complicado.

Logo que se começa a leitura de Ordem Vermelha somos apresentados à história do surgimento das várias raças que compõem o universo de Untherak (anões, kaorshs, gnolls, gigantes e sinfos). Também ficamos sabendo como estes entraram em conflito e como acabaram encarando uma sina miserável. Nesse momento é muito difícil não se pensar em uma referência a obra de J. R. R. Tolkien, autor da saga do Hobbit e d’O Senhor dos Anéis.

Tolkien é mundialmente conhecido na literatura fantástica por ter criado todo um complexo e completo universo ficcional centrado na Terra Média, onde diferentes raças coexistem (raramente de forma pacífica): os hobbits, os anões, os humanos, os maiar, os elfos, os entes, os orcs, para citar só algumas destas raças. É neste universo multirracial que se dão todas as histórias narradas nos livros do autor que se preocupou inclusive em criar um idioma com estrutura gramatical e fonética própria, o Quenya.

Una (canto direito) e representantes de algumas das raças de Untherak.
Da esquerda para direita: kaorsh, humano, sinfo, anão.
O animal que serve de montaria ao sinfo seria um betouro.
Arte: Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
Em Ordem Vermelha temos também um mundo multirracial, mas bem menos complexo e não menos original. Se houve uma inspiração na obra de Tolkien ela se limitou à criação da raça dos anões e a ideia de coexistência de diferentes raças com diferentes visões de mundo. Em todo o resto a criação de Castilho é originalíssima com a criação dos kaorshs, indivíduos “altivos e esguios, preparados para transpor obstáculos e responsáveis por dar cor ao mundo”, mas que passaram a ter as cores presas dentro de si; os gnolls, seres “silenciosos como a chuva, velozes como os rios” que foram condenados a andar sobre as quatro patas e se tornaram criaturas horrendas e brutais, reduzidos posteriormente a meros cães de guarda; e por fim, dos sinfos, criaturas que nasciam das árvores e eram “leves como o pólen carregado pelo vento” e “mensageiros da magia invisível”, mas que tiveram seu tempo de vida bastante reduzido. São criaturas imaginadas pelo autor e que possuem culturas próprias o que só enriquece o universo de Untherak.

Alguns resenhistas ainda citam uma certa familiaridade do enredo de Ordem Vermelha com a narrativa do livro Mistborn, do escritor norte-americano de fantasia e ficção científica Brandon Sanderson. Mas este eu nunca li, então não emitirei opinião nem em acordo, nem em desacordo.

Quase saídos de um RPG: Personagens e Movimento

Aelian
Arte de autoria de Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
Mas se Ordem Vermelha é um livro de forte inspiração medieval que nos faz lembrar do universo tolkieniano, por outro lado ele é também um livro que tem um pé na modernidade.

Castilho escreve uma trama que parece ter saído de um jogo de RPG e, alternando entre "matizes cruas" e leves, trata em sua obra de diversos temas marcantes: religião, escravidão, selvageria, multiplicidade racial, corrupção, opressão, questões de gênero e cultura.

Ordem Vermelha é do tipo do livro de fantasia que vai além dos elementos mágicos e sobrenaturais que caracterizam o gênero. Ele trata de visões de mundo com a leveza de quem sabe que a realidade é composta de muitas “cores” e de diferentes olhares.

A sensação de ler um RPG surgiu logo no início quando autor descreve os movimentos extravagantes com os quais o personagem principal, Aelian, manejava a sua espada. Ao longo da leitura essa sensação só aumenta quando nos damos conta do quão cinematográfica é a narrativa, sobretudo, em seus últimos capítulos.

Raazi
Arte de autoria de  Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
Mesmo para mim, que não sou um gamer, bastava fechar os olhos para imaginar os cenários e os personagens dentro de um grande jogo virtual. Além disso há muito movimento na narrativa e cenas de fugas por telhados e construções que me fizeram lembrar de parkour[2]. Quando se soma ao seu estilo cinematográfico a narrativa se torna dinâmica e imaginá-la como um jogo é algo muito fácil.

A construção dos personagens é outra coisa fabulosa e que se harmoniza completamente com o RPG. Felipe dá um destaque todo especial a descrição e composição de cada raça e também dos personagens que figuram o elenco principal. Aparência, estilo de luta, personalidade, raízes culturais e crenças, conhecimentos e habilidades, filosofia de mundo e de vida, tudo é primorosamente destacado e descrito sem cometer excessos ou valer-se de textos longuíssimos, dando uma naturalidade incrível à narração.

Cada personagem possui sua própria personalidade, muito própria e demarcada. Aelian, o jovem falcoeiro humano que desde criança trabalhava como escravo, é, sem dúvida, o personagem mais destacado, mas ele divide seu protagonismo com muitos outros tão importantes quanto ele na composição da trama: Aparição, Raazi, Yanisha, Ziggy e Harun.

Aelian é impulsivo, mas inteligente. Está sempre fugindo do Poleiro (seu local de trabalho) pelos telhados da cidadela e tem como fiel amigo um falcão que o ajuda em suas aventuras e em vários momentos salva sua vida. É com ele que Aparição, um misterioso e habilidoso rebelde, tem seu primeiro contato com a trama. Também será esse encontro com o guerreiro que trajava uma capa vermelha (a cor proibida em Untherak), que revolucionará não só a história de Aelian como de toda a Untherak.

General Proghon.
Arte de autoria de  Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
As Kaorshs Raazi e Yanisha formam a dupla mais destemida e corajosa da trama. Guerreiras tremendas e quase suicidas, elas são destacadas também como duas pessoas extremamente ligadas à cultura e às crenças quase extintas de seu povo.

O sinfo Ziggy é, dos personagens, o mais intrigante. Ele parece inocente e infantil, mas, em muitos momentos, pega-nos de surpresa com a profundidade de algumas das suas colocações. É também um alguém de coração forte e valoroso, mas igualmente gentil. Total oposto dos antagonistas: Una e Proghon, esse último, o principal general da Deusa, uma criatura em forma de homem coberto de mácula e que ostentava uma máscara de caveira feita de ouro. Ambos representam, junto com seus subordinados, tudo o que há de mais cruel, autoritário, obscuro, corrupto e opresso em Untherak.

Mas de todos os personagens, o anão Harun é o que mais guarda surpresas dentro da narrativa. Por isso não falarei nada sobre ele nesta resenha.

Multitemático

A princípio Ordem Vermelha tem uma narração arrastada, mas que gradualmente vai se tornando dinâmica e revelando uma obra multitemática que alia ação, fantasia e denúncia, ou seja, aos poucos o livro se revela tematicamente muito rico, ainda que muitos de seus temas sejam trabalhados com sutileza e dentro dos limites de uma ficção de fantasia.

Na obra de Felipe Castilho a temática central é, sem dúvida, a opressão imposta por um governo teocrático, ditatorial e escravocrata e esse tema central é tratado de forma crua e realista sem nenhum eufemismo.

Una
Arte de autoria de Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
O sistema social criado por Una sobrevive do trabalho forçado e mal remunerado de centenas que vivem à mercê dos humores e brutalidades dos Autoridades e sob o julgo do poder de uma deusa ferina. Um sistema opressor que não só eliminava a liberdade e ceifava vidas, mas que tentava também suprimir e destruir parte da identidade de cada povo escravizado. Desse último ponto emergem os outros temas que orbitam entorno da temática central: a questão da religião nascida do mito e das narrativas incessantemente reproduzidas; a abundância de culturas e visões de mundo nascidas da multirracialidade e a imposição de uma crença sobre os costumes, tradições e filosofias de outros grupos na tentativa de suprimi-las e eliminá-las, mantendo um controle social maior sobre diferentes grupos étnicos (etnocídio).

Ao detalhar a cultura e as visões de mundo de cada raça o livro deixa evidente a riqueza cultural dos povos que compõem a população de Untherak, mas, ao mesmo tempo, demonstra também como pelo domínio milenar de Una esses aspectos culturais vão desaparecendo, se diluindo e sendo esquecidos.

Esses são temas trabalhados de modo mais leve, mas que caracterizam uma narrativa que é mais do que pura ação e fantasia. Há uma mensagem nas entrelinhas que fala muito da história humana de imposição cultural-religiosa, no qual a dominação de um povo ou grupo sobre o outro é feita pelo medo, pela violência, pelo cerceamento da liberdade e pela fé ou cultura imposta.

Por fim, outros dois temas explorados tangencialmente à narrativa principal são o homossexualismo feminino e o vício em carvão (droga ilegal comercializada no mercado negro de Untherak e que serve de alento aos miseráveis que padecem dos horrores do sistema de governo de Una). De um lado Felipe trata com muita leveza e naturalidade do tema das relações homoafetivas e do companheirismo nestas relações, trazendo para trama duas personagens que formam um casal, e de outro, faz uma alusão aos difíceis tempos modernos nos quais as pessoas escapam da realidade através do uso de entorpecentes.

A título de conclusão

Ordem Vermelha não foi um livro que me surpreendeu, porque venho aprendendo que no Brasil há escritores de fantasia muito bons e que estão pouco a pouco conquistando seu espaço: Ana Lúcia Merege, Eduardo Kasse, J. M. Beraldo, Eduardo Spohr, Gerson Lodi-Ribeiro e, agora, Felipe Castilho. Cada qual com seu estilo, temáticas e referências, mas todos excelentes escritores.

Castilho escreve uma narrativa instigante, criativa, que busca ser original e também multitemática, sem, por outro lado, tornar-se uma sopa confusa cheia de temas divergentes. Tudo se conecta harmoniosamente e tem seu lugar, conduzindo, por fim, a um desfecho em aberto – como se deve esperar de uma duologia. Mas trata-se de um desfecho épico, cinematográfico e instigante que revela um breve deslumbre dos desdobramentos da narrativa e do que acontecerá no livro seguinte. Um desfecho que atiça a curiosidade do leitor e deixa-o ansioso pela continuação.

Enfim, do meu ponto de vista, Ordem Vermelha é um livro que busca de forma sutil, mas visível, integrar temas que constroem uma narrativa para além da fantasia pura (de mundos meramente mágicos), ou da ação pura (de guerras sem muito sentido), para falar de lutas que unem raças na busca pela liberdade e pela verdade. Uma luta que não é só formada de baixas, mas que busca igualmente derrubar símbolos de opressão. Foi essa multiplicidade temática o ponto de que mais gostei na obra de Felipe Castilho.

A edição lida é da Editora Intrínseca, do ano de 2017 e possui 448 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books além de um vídeo promocional da editora Intrínseca com um rápido bate papo com o autor e seus colaboradores.

Sobre o autor

Paulista, Felipe Castilho é autor de livros de fantasia e contos, estes últimos publicados quinzenalmente no site Quotidianos. É autor da obra O legado folclórico, que une mitologia brasileira com o mundo dos videogames. Pelo quadrinho Savana de Pedra foi indicado ao Prêmio Jabuti.

Preview do Google Books








[1]Comic Con Experience (também conhecida apenas como CCXP) é um evento brasileiro de cultura pop nos moldes da San Diego Comic-Con cobrindo as principais áreas dessa indústria como: jogos, quadrinhos, filmes e TV. Realizado pela primeira vez em dezembro de 2014 pelas equipes do site Omelete, da Piziitoys e pela agência Chiaroscuro Studios, é considerado o maior evento nerd já organizado no país e a terceira maior Comic Con do mundo em público (em 2016). (Wikipédia)
[2]Atividade recreativa e esportiva, praticada em áreas urbanas ou rurais, que consiste em deslocar-se o mais rápida e eficientemente de um ponto a outro usando habilidades atléticas para superar os obstáculos (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

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