quinta-feira, 26 de abril de 2018

A Arte Japonesa no Livro Beleza e Tristeza – Postagem Especial


Por Eric Silva

Livro do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1968, Yasunari Kawabata (川端康成), Beleza e Tristeza é um livro que fala sobre e gira entorno do mundo das artes. Artes plásticas, música, jardinagem, arquitetura, poesia. Muitos são os tipos de manifestações artísticas que são mencionados ou explorados pelo autor para construir uma trama que fala tanto de sentimentos fortes e conflitantes, bem como de infidelidade e de vingança, contudo a arte permeia ou é expressão de cada um desses sentimentos e ações e sustém a narrativa composta por Kawabata.

Na Postagem Especial de hoje, trazemos uma rápida galeria com a obra de alguns dos artistas e outros elementos artísticos citados, acompanhados de passagens do livro que fazem referências a elas ou a seus artistas.

Espero que goste de nossa pequena exposição.
Yôkoso

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As representações de Kobo Daishi


Kobo Daishi (弘法大師ou Kukai foi um monge budista, erudito, poeta e artista japonês que é diversas vezes citado em um dos capítulos do livro quando a artista Otoko Ueno decidia a temática em que se inspiraria para fazer um retrato de seu filho morto em um parto prematuro. Ao longo desse capítulo a personagem se recorda das pituras que representavam o monge quando ainda era criança e se questiona se deveria inspirar-se nelas. Abaixo você pode conferir duas destas representações


"Ela vira algumas pinturas antigas célebres representando Kobo Daishi jovem que a tinham comovido pela graça e sensibilidade inteiramente japonesas, mas, nessas obras, Kobo Daishi não era realmente uma criança e nunca ascendia ao céu. Otoko não desejava representar exatamente a ascensão da criança ao céu; procurava somente sugeri-la. Mas terminaria ela essa pintura algum dia?"


"Uma vez mais, foram as antigas pinturas, tão tipicamente japonesas, representando Kobo Daishi criança que lhe vieram ao espírito. Esses retratos tinham sua origem numa lenda sobre a vida do santo homem, segundo a qual Kobo Daishi criança se vira em sonhos sentado sobre uma flor de lótus de oito pétalas, conversando com o Buda.
Nessas pinturas de estilo convencional, Kobo Daishi mantinha-se sentado sobre o cálice de uma flor de lótus, o busto bem ereto. Nas pinturas mais antigas, ele tinha uma expressão distante e severa, mas seus traços se suavizavam e se tornavam mais encantadores nas obras mais recentes, a ponto de às vezes se poder confundir a face do santo homem menino com a de uma graciosa menina."

Nakamura Tsune

Pintor japonês nascido no ano de 1888 e falecido em 1924 com a apenas 37 anos de idade. Nakamura foi fortemente influenciado pelos artistas europeus Paul Cézanne e Pierre-Auguste Renoir, destacando-se na arte do retrato. Infelizmente não encontramos a obra do pintor que é citada no livro.

Retrato de Vasilii Yaroschenko por Nakamura Tsune (1920)

"O jovem Nakamura Tsune fizera retratos poderosos e sensuais da mulher que amava. Empregava bastante vermelho e dizia-se que fora influenciado por Renoir. Sua obra mais célebre e mais conhecida, o Retrato de Eroshenko, expressava de maneira quase religiosa, utilizando tons quentes e harmoniosos, toda a nobreza e melancolia do poeta cego".
Retrato de uma mulher (1913)


Jardins de Pedras

Os tradicionais jardins de pedras japoneses (枯山水 Karesansui) são constituídos principalmente de um campo raso de areia onde são dispostos alguns elementos naturais como cascalho, pedras e grama. Contudo os principais elementos sejam a areia revolvida para representar o mar e suas ondulações e pedras, comumente associadas às montanhas.

Em Beleza e Tristeza esse icônico elemento da jardinagem japonesa possui um grande destaque no capítulo Paisagem de Pedra no qual a protagonista Otoko Ueno vai ao jardim do templo Saiho-ji para contemplar, desenhar e "absorver" a energia de seus jardins de pedras. Ao longo do capítulo o narrador faz uma sintetiza um pouco da história do templo e de seus jardins enquanto embevecida a personagem os contempla e desenha. Contudo logo depois Otoko e sua aluna e amante Keiko começam a discutir a natureza abstrata das paisagens formadas por jardins de pedras, um diálogo que depois é desviado quando Keiko passa a falar de sua aproximação com o antigo amante de Ueno, o Sr. Oki.

Jardim de pedra do templo Ryoan-ji.
"Em Kyoto, ainda hoje, são muitos os monastérios com jardins de pedra. Os mais célebres são os de Saiho-ji, do Pavilhão de Prata, do Ryoan-ji , do Daitoku-ji, do Myôshinji.
Mas o mais famoso de todos é aquele de Ryoan-ji, do qual se diz, não sem razão, que encarna a essência da estética zen. Nenhum outro jardim de pedras pode se comparar às suas célebres ordenações de rochas."

Lagoa Dourada, no centro do jardim de musgo. Templo Saihō-ji ( 西 芳 寺 ).
"Otoko conhecia bem todos esses jardins. Este ano, no fim da estação de chuvas, ela foi ao Saiho-ji com a intenção de fazer alguns desenhos. Não que ela se julgasse capaz de pintar o seu jardim de pedras; desejava apenas absorver um pouco de sua força.
Não era esse um dos mais antigos e poderosos jardins de pedra? Otoko realmente não desejava pintá-lo. Que contraste faziam os arranjos de pedras atrás do monastério com a doçura do chão recoberto de musgos mais abaixo! Não fossem as idas e vindas dos visitantes, Otoko adoraria sentar-se ali em contemplação. Se ela abriu seu caderno de desenhos, foi sem dúvida para não despertar suspeitas nos passantes que a viam observando ora num canto, ora noutro."
Jardim da montanha feliz em Zuiho-in, um templo subsidiário de Daitoku-ji (大徳寺), Kyoto, Japão.


Kishida Ryusei

Nascido em 1891 e falecido em 1929, Kishida Ryusei foi um pintor japonês educado nas técnicas ocidentais da pintura e ficou célebre pelos muitos retratos que pintou de sua própria filha, Reiko. Em Beleza e Tristeza ele é citado apenas uma vez, enquanto Otoko reflete sobre algumas possibilidades de inspiração para fazer um retrato de Keiko. Na ocasião ela se recorda de uma das obras pintadas por Kishida no qual retrata sua filha em um estilo menos ocidental e mais próximo da estética tradicional japonesa.

Uma das pinturas de Kishida representando sua filha Reiko
"Otoko lembrou-se dos retratos que o pintor Kishida Ryusei fizera de sua filha Reiko. Eram tanto pinturas a óleo como aquarelas delicadas, minuciosamente executadas, semelhantes a obras religiosas e nas quais a influência de Dürer era visível. Um desses retratos impressionara Otoko mais do que os outros: tratava-se de um esboço em tons claros, sobre meia folha de papel chinês e que representava Reiko sentada ereta, o busto nu e os quadris envoltos numa tanga vermelha. Não era certamente uma das melhores obras de Ryusei, e Otoko se perguntava por que ele fizera esse retrato de sua filha num estilo tão tipicamente japonês, se já pintara obras semelhantes empregando técnicas ocidentais."
Uma estrada atravessando uma colina (1915)


Kobayashi Kokei

Nascido em 1883 e falecido em 1957, Kobayashi Kokei também foi um pintor japonês que ficou conhecido por suas pinturas executadas dentro da mais pura tradição japonesa. Na obra de Kawabata, assim como ocorreu com Kishida Ryusei é citado apenas uma vez, enquanto Otoko reflete sobre as possibilidades de inspiração para fazer o retrato de sua aluna.

Cabelo, Tóquio, Japão (1957)
"Então, por que não pintar Keiko nua, tal como ela lhe sugerira? Algumas pinturas budistas insinuavam até mesmo as curvas dos seios femininos. Entretanto, se se inspirasse no retrato de Kobo Daishi para pintar Keiko, como faria o penteado da jovem? Otoko vira a célebre tela de Kobayashi Kokei intitulada A cabeleira: tratava-se de uma obra de grande pureza, mas ela não conseguira imaginar Keiko penteada daquele modo. Depois de muito pensar, Otoko confessou para si mesma que pintar sua aluna era uma tarefa acima de suas forças."

Frutas (1910)


Jardim da Vila Imperial de Katsura

Conhecido também como o Palácio Separado de Katsura, a Vila Imperial é um conjunto formado por uma vila e anexos repletos de jardins que pertencia aos príncipes da família Hachijo-no-miya (八条宮) e que hoje é considerado um dos tesouros culturais mais importantes do Japão. Os jardins da Vila Imperial são considerados obras-primas da jardinagem tradicional japonesa, mas são citados apenas de forma muito breve no livro de Kawabata pela personagem Otoko quando esta compara a evolução do jardim da vila ao longo do tempo em contraposição a imutabilidade dos jardins de pedras.

Vista do jardim e do lago no palácio da Vila Imperial de Katsura.
 - Nunca aspirei a uma coisa dessas. - Otoko parecia inquieta. - Mas você não acha que durante todos esses séculos as árvores deste monastério, assim como as do jardim da Vila Imperial de Katsura, cresceram, envelheceram, sofreram tempestades e são hoje bem diferentes do que eram no passado? As paisagens de pedra, essas sem dúvida permaneceram as mesmas.

Katsura Rikyu (桂離宮)

Muitas outras formas de arte e obras artísticas são citadas pelo livro. Algumas delas porém não conseguimos localizar informações para incluí-las na galeria, outras pertencem ao mundo das letras. Contudo, esperamos que tenham gostado dessa nossa pequena amostra.




quarta-feira, 18 de abril de 2018

[Impressões] três livros de autoajuda indispensáveis para mim


A mágica da arrumação, O segredo do talento e Mudando o tom da conversa
Por Eric Silva

Nota: Impressões é uma tag que se diferencia das Resenhas por ser mais sintética, objetiva e menos analítica com cada obra. Ela é mais centrada na experiência que tive com cada obra e na opinião que tenho delas. É sempre uma postagem coletiva que agrega várias obras, sejam elas literárias, de artes plásticas ou cinematográficas, do mesmo autor ou de autores diferentes. Resume-se a: quem é o autor, conteúdo da obra, minha experiência e impressões.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa postagem, basta clicar no play.



Uma das principais qualidades da espécie humana é o seu desejo incessante de se aperfeiçoar, de estar sempre em movimento ascendente para fazer o melhor, da forma mais eficiente e com qualidade.

Os livros de autoajuda por muito tempo foram vistos de forma preconceituosa, mas o que muitos leitores ignoram é que de fato eles podem contribuir para esse projeto humano de ascender e aperfeiçoar-se. Trata-se de uma maneira de dividir experiências acumuladas e ideias bem-sucedidas. No plano pessoal, é uma forma de melhorar as competências e habilidades individuais, trazer soluções inteligentes para questões práticas do nosso dia a dia, e no plano profissional contribuem para a difícil tarefa de reunir, por exemplo, as sinergias necessárias para um trabalho em equipe coeso e produtivo.

É claro que livros como este não são leituras constantes, porque cumprem um objetivo específico e bem determinado que é sanar uma dificuldade pessoal e despertar habilidades inatas ou melhorar as já existentes. Portanto, sua leitura é determinada pela necessidade do leitor. Ainda assim, muitos desses livros são interessantes a todo os públicos pela amplitude do tema que trabalha ou da abordagem que faz do problema.

Hoje, no Impressões selecionei três livros de autoajuda que são indispensáveis para mim, levando em consideração meu perfil profissional como professor e, no plano pessoal, a minha total incapacidade de manter meus papéis e livros arrumados por muito tempo.

Coincidentemente, as três obras foram publicadas pela editora Sextante, uma das maiores referências no país no que diz respeito a publicação de livros do gênero.

A mágica da arrumação

Autora de quatro livros, Marie Kondo é uma consultora japonesa que ficou conhecida no mundo pelos seus trabalhos na área de organização pessoal. Ainda criança já era obcecada por organização e se interessava por qualquer publicação sobre o tema e a partir de seus 15 anos, a se dedicar afundo ao tema.

Após muitas tentativas frustradas de aplicar técnicas e métodos sugeridos pelas publicações a que tinha acesso, Marie acabou por desenvolver seu próprio método de organização, o KonMari, que hoje ela divulga através de seus livros, palestras e em seu trabalho como consultora.

Uma de suas principais obras, A mágica da Arrumação ensina os principais fundamentos e técnicas do KonMari. Simples, mas transformador, o método de Kondo se resume a apenas duas etapas consecutivas: descarte e organização. Contudo estes dois estágios são interpassados por alguns princípios básicos que não só prometem pôr fim a bagunça como também melhorar a qualidade de vida das pessoas que o aplicam.

O principal princípio do KonMari é, por categoria, descartar tudo aquilo que não te faz feliz. Basta que você primeiro espalhe pelo chão todos os objetos de sua casa que pertençam a uma mesma categoria (roupas, livros, papéis, komono, recordações e itens de valor sentimental) e depois pegue cada um deles e pense se ele te traz felicidade, alegria. Se o objeto não lhe inspira estes sentimentos, descarte-o. Depois de fazer isso com todas as suas coisas, passe para a organização dos objetos que foram conservados – etapa que Marie explica passo a passo como fazer, sempre buscando simplicidade e economia de espaço.

O método de Kondo pode soar estranho, mas de fato funciona, por ser mais intuitivo do que técnico, por dar a pessoa todo o poder de decisão sobre o que descartar e o que conservar porque não é baseado em critérios numéricos ou de tempo. Funciona por não lhe exigir a compra de nenhuma parafernália de organização, mas, principalmente, por te conduzir a eliminar tudo o que não lhe é necessário, mas que você guardou por que achou que um dia precisaria.

Sou a pessoa mais desorganizada que conheço. Para todos os lados que você olhar verá bagunça, livros e papéis aos montes. Até mesmo os meus arquivos digitais são um amontoado de duplicatas e "objetos" espalhados por dois computadores e dois HDs sem nenhuma forma de organização, catalogação ou coisa parecida. Tenho coisas que não sei que tenho e de que não faço uso. Para completar minha tragédia Shakespeariana pessoal, sou colecionador voraz, sobretudo de livros. Mari está sendo para mim uma grande inspiração, apesar de estar conscientemente ferindo uma de suas principais recomendações: não moldar ou modificar o método a minha personalidade.

A mágica da Arrumação é um livro objetivo, completo e realista. Um pouco mais extenso do que os livros do gênero costumam ser, mas porque a autora não se limita apenas a dizer o que você deve fazer, mas também divide com leitor algumas de suas experiências com clientes.

Não nos pede coisas irrealizáveis, mas que apenas eliminemos o que não nos é, de fato, necessário. As recomendações são bem explicadas e exemplificadas. Passou-me a impressão de um método simples e eficaz, ainda que radical, que irá de fato e objetivamente cumprir o que promete. Em alguns momentos a autora aparenta um ar de ditadora, principalmente quando afirma que para papeladas a sua Regra Geral é "jogue tudo fora", mas essa impressão é afastada à medida que ela explica os pormenores e reforçado quando ela afirma que jamais faz nenhum descarte dos objetos de um cliente, que isso é algo que somente ele pode fazer, ela se limita a indagá-lo se de fato aquilo lhe traz felicidade.

De resto, só tenho uma mensagem para o leitor. Da minha parte acho que o termo descartar usado pela autora não precisa significar jogar no lixo. Além de desperdício, seria ecologicamente irresponsável e socialmente mesquinho, por tanto sugiro que este descarte tão necessário de roupas, brinquedos e outros itens signifique doações para obras de caridade, a exemplo do trabalho do Exército de Salvação e das Obras Sociais Irmã Dulce, ou diretamente para pessoas carentes da comunidade. Espero que descartar signifique doações para bibliotecas públicas, para escolas e coisas do gênero.

A edição lida é da Editora Sextante, do ano de 2015 e possui 160 páginas.





O segredo do talento

O estadunidense Daniel Coyle é jornalista, editor da Outside Magazine e já foi duas vezes finalista do National Magazine Award. É autor de O código do talento, que figurou a lista dos mais vendidos do The New York Times. Vive com sua esposa Jen e seus quatro filhos em Cleveland, Ohio, durante o período escolar, e, em Homer, no Alasca, durante o verão.

Para escrever O segredo do talento: 52 estratégias para desenvolver suas habilidades, Coyle se dedicou por cinco anos a pesquisas sobre talento e visitou incubadoras de talentos em diversos países, inclusive o Brasil. Com os resultados de suas pesquisas o jornalista formulou 52 estratégias simples e claras para ajudar qualquer pessoa a desenvolver de forma satisfatória as habilidades que deseja.

As breves orientações que se dispersam pelo livro foram divididas em três seções que funcionam como três grandes etapas do desenvolvimento da habilidade.

A primeira seção é chamada de primeiros passos. Nela Coyle através de 12 dicas busca orientar o leitor a buscar sua motivação para o desenvolvimento da habilidade e reconhecer o tipo de habilidade que ele pretende desenvolver. Segundo o autor as habilidades se dividem em duas categorias: as de alta precisão e as de alta flexibilidade.

As habilidades de alta precisão são aquelas que “devem ser aplicadas de apenas uma forma, a mais correta e sistemática possível, para que se chegue a um resultado ideal”, exemplo da tacada de um golfista, ou tocar uma melodia no piano. Por sua vez, as habilidades de alta flexibilidade são aquelas que “podem ser aplicadas de diversas formas, e não apenas uma, para que um bom resultado seja alcançado” em que a ideia não é “precisão, mas ser ágil e interativo, reconhecendo de forma instantânea padrões no decorrer do processo e tomando decisões inteligentes e oportunas”, a exemplo de escrever uma trama complexa para um romance.

Dadas as orientações para motivar e identificar o tipo de habilidade, a segunda seção se dedica a instruir o “desenvolvimento das habilidades” orientando como chegar à prática intensiva e fugir da prática superficial, enquanto que a terceira é direcionada ao “progresso contínuo”, através da manutenção do foco, da prática e da garra.

Ao longo destas três seções Coyle alia conhecimentos de neurociência – simplificadas para o leitor – com os resultados de suas investigações nas incubadoras de talentos que visitou e das entrevistas com instrutores competentes para orientar a preparação, a prática e o progresso da empreitada, nem sempre fácil, de desenvolver uma habilidade e, dessa forma, superar o mito do gênio, que afirma ser o talento algo inato, que nasce com a pessoa.

Esse livro ganhei de um dos meus alunos, mas demorei a lê-lo. Quando o fiz percebi que muitas daquelas ideias de fato podiam me ajudar, tato no desenvolvimento de meu trabalho como professor, mas principalmente na construção de meus blogs. Dicas como “é melhor praticar cinco minutos por dia do que uma hora por semana”, “dê preferência a simplicidade”, “abandone o relógio” ou “não fuja da luta” faz uma diferença enorme no que você pretende fazer, para que faça de forma verdadeira, engajada e com resultados. Para quem é INDISCIPLINADO como eu, é o livro certo porque diz o que fazer para quê, através do esforço e da repetição, você crie hábitos novos e que lhe levem ao lugar que pretende chegar. Por isso marquei as dicas que achei mais valiosas e conservo o livro na cabeceira da cama para tê-lo sempre à mão, junto com O Príncipe, de Maquiavel.

O segredo do talento é um livro de fácil consulta e de fácil entendimento. Segundo seu próprio conselho para melhorar como mentor, o autor buscou evitar discursos longos e transmitir a informação aos poucos e de forma clara. Por isso, muitas das dicas são recheadas de exemplos práticos retirados de suas investigações, e as teorias da neurociência que servem de suporte para suas explicações foram simplificadas a fim de que o leitor não tenha dificuldade de compreender exatamente aquilo de que necessita. Nada mais do que o essencial, eu diria.

Todavia, achei que no conjunto das dicas predominaram aquelas que são direcionadas as habilidades de alta precisão, o que não é meu caso. Por outro lado, isso tornou o livro matéria obrigatória para esportistas e musicistas, principalmente, mas também para profissionais que trabalham com atividades de alta precisão como no caso da dança, sobretudo clássica, e nas artes circenses. As demais dicas são valiosas tanto para as habilidades de alta precisão quanto as de alta flexibilidade, e que por si só já valem a leitura do livro.

De certo modo, o segredo do talento é um compêndio sobre o esforço e a dedicação para evoluir e ser melhor no que se faz ou para expandir e contemplar novos horizontes.

A edição lida é da Editora Sextante, do ano de 2014 e possui 128 páginas.




Mudando o tom da conversa

Bailarina, coreografa e professora, Dana Caspersen é também mediadora de conflitos de renome internacional. Especialista em mediação que usa a linguagem corporal para ensinar a mediação de conflitos em universidades, empresas e instituições na Europa e nos Estados Unidos, Dana também orienta sobre como trabalhar o conflito na família ou no local de trabalho até o diálogo com a comunidade sobre questões societárias. Dana ainda concebeu e dirigiu, em colaboração com comunidades, governos e fundações nos Estados Unidos, na Europa e no Reino Unido, vários diálogos públicos coreográficos de grande escala sobre temas desafiantes, desde a imigração até a violência.

Em Mudando o Tom da Conversa a autora estadunidense lista 17 princípios básicos para analisar e resolver conflitos, através da identificação e diferenciação de necessidades, interesses e estratégias, privilegiando a escuta em lugar do ataque e a mudança de linguagem para a construção de um diálogo útil e que leve a soluções e acordos possíveis.

Como docente o conflito é uma situação presente em meu dia a dia. Insatisfações, desinteresse, hierarquia e conflitos de interesses, de gerações, entre alunos e entre aluno e professor, entre responsável e aluno, entre responsável e professor. São situações delicadas que volta e meia o educador têm que lidar. Lidar com eles, porém é o grande desafio, principalmente, quando se trabalha com pessoas bem diferentes, com desejos e prioridades distintas, e, sobretudo, com um público que não enxerga o mundo da mesma forma que você. Lidar com conflitos é certamente algo que como professor tenho que estar em processo contínuo de reinvenção e aperfeiçoamento.

Quando ganhei este livro em um sorteio do Skoob percebi que era a chance de trabalhar minhas capacidades de mediação de conflitos, percebi também que ele seria mais um livro para estar sempre à mão, na cabeceira da cama, sobretudo, na mochila. Depois de fazer uma leitura preliminar percebo que de fato ele pode me ajudar nesse sentido.

Mudando o Tom da Conversa é uma leitura bem rápida e clara, mas que não se limita apenas a expor os 17 princípios elaborados pela autora. Mais do que isso, a obra busca trabalhar exaustivamente com exemplos e também com treinos para que o leitor tente pôr em prática a essência de cada princípio ensinado. Dessa forma além de apreendermos o conceito podemos visualizá-lo na prática em situações simuladas que contrapõem a reação indesejada que precisa ser mudada e a reação de quem segue o princípio proposto.

Uma das primeiras coisas que me chamou a atenção para esse livro foi seu projeto gráfico com páginas em branco, vermelho e negro, com seções bem demarcadas e letras grandes para destacar os princípios e os antiprincípios que são confrontados. Contudo achei exagerado porque pelo seu conteúdo o livro de Dana poderia ser menor (menos páginas) e num formato pocket. Penso assim porque esse é um livro que o leitor deveria ter sempre à mão, para reestudar seus princípios, treinar e fixá-los melhor, no entanto, o tamanho e o peso do livro não contribuem para isso. Em formato de bolso seria melhor.

Ainda assim, Mudando o Tom da Conversa é um livro objetivo, cuja proposta é, de fato, trabalhar a reeducação de nosso posicionamento e reação frente aos conflitos do nosso dia a dia., tanto no trabalho como em nossa vida doméstica. Um livro essencial para o trabalho em grupo, com o público e para cargos de chefia e supervisão.

A edição lida é da Editora Sextante, do ano de 2016 e possui 272 páginas.


sexta-feira, 13 de abril de 2018

A história dos deuses Izanagi e Izanami: mitologia e dualidade no livro O Conto da Deusa – Postagem Especial


Por Eric Silva
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.



A mitologia é um aspecto comum a todos os povos antigos que surgiram na história humana. Uma forma de explicar o mundo e transmitir valores para as novas gerações. Dessa forma todo povo antigo possui um mito que conta como surgiu o mundo e seu povo.

Alguns destes conjuntos de mitos se tornaram famosos e se espalharam pelo mundo como é o caso das mitologias grega e nórdica. Outros nunca ganharam projeção ou então foram perdidos, seja pela falta de registro de povos ágrafos, ou por conta dos muitos casos de genocídio e etnocídio cometidos por colonizadores europeus na América, na África, na Ásia e também na Oceania.

O Japão como um país de cultura secular também possui seus mitos e figuras mitológicas ainda pouco conhecidos no ocidente. Mitos que falam da criação do mundo e do arquipélago japonês e criaturas mitológicas e sagradas que povoaram e ainda povoam o imaginário religioso de seu povo.

Um desses mitos é retratado por Natsuo Kirino em seu livro O Conto da Deusa, primeira obra resenhada na III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo. Natsuo faz uma releitura do mito da criação do Japão pelos deuses Izanagi e Izanami para criar uma narrativa sobre tradição, amor, ressentimento e vingança, por consequência a autora japonesa acabou por nos apresentar um pouco da mitologia dos japoneses.

No texto de hoje falarei um pouco do mito de Izanagi e Izanami conforme ele é contado por Natsuo, e como esta autora liga isso a uma ideia de dualidade que parece ser marcante na filosofia religiosa japonesa.

Observação: o texto apresenta spoilers da trama do livro.

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Um pouco sobre O Conto da Deusa

Capa da edição brasileira.
Mesclando mitologia e ficção literária, O Conto da Deusa conta a história da criação do Japão através de uma narrativa de amor e traição que fala também de tradições e da marginalização da mulher. Uma obra povoada de símbolos, ao mesmo tempo que profunda e contemplativa, mas que também revela uma forte crítica à posição da mulher dentro das traições machistas que regeram e regem tanto a sociedade ocidental quanto a oriental.

O livro se divide basicamente em 5 grandes partes durante os quais Namima, a protagonista e narradora da trama, relata toda a trajetória de sua vida terrena e os acontecimentos posteriores a sua morte. É a través dessa narração que sabemos como o destino trágico e sofrido da moça, uma simples ilhoa que por conta de tradições arcaicas e injustas é obrigada a cumprir o duro e solitário papel de guardiã dos mortos (sacerdotisa das trevas), se entrecruza com a história dos Deuses Izanami – a quem Namima serve no mundo dos mortos – e Izanagi (no livro grafado com Izanaki), seu esposo.

Em paralelo a história de vida de Namima, Izanami e uma de seus serviçais, Hieda no Are, contam à sacerdotisa das trevas a narrativa do surgimento dos Deuses que criaram o céu, a terra e os mares além de outros deuses dos quais faziam parte Izanagi e Izanami, os “Deuses do desejo masculino-feminino”.

A resenha completa do livro você pode encontrar neste link e abaixo você confere um resumo desse importante mito da tradição religiosa japonesa a partir da narração empreendida por Natsuo.

O mito de Izanagi e Izanami

No princípio tudo o que existia era o caos. Até que a matéria informe foi dividida no céu e também na terra que sem forma flutuava como óleo sobre os mares, mas essa. Outras divisões foram se dando sempre em pares complementares até que o mundo chegasse a ser o que é hoje.

Izanagi e Izanami. Obra de Kobayashi Eitaku, 1885.
Wikimedia Commons.
Quando o céu e a terra se dividiram surgiu a primeira divindade única e sem sexo ou forma, Ame-no-mi-naka-nushi (天之御中主神), a divindade do Centro Celestial, que governava no coração do céu acima de todos os outros. Após ele, outras quatro divindades sem corpo ou sexo surgiram: Takami-musuhi (高御産巣日神), a divindade da Criação Celestial, Kamu-musuhi (神産巣日神), a divindade da Criação Terrena, Umashi-ashi-kabi-hikoji (宇摩志阿斯訶備比古遅神), o estimado Soberano do Cálamo, e Ame-no-toko-tachi (天之常立神), a divindade Eternamente Presente no Céu. Esses cinco primeiros deuses passaram a ser conhecidos como as Cinco Divindades Celestiais Separadas.

Posteriormente dois outros deuses sem forma física ou distinção de sexo apareceram: Kuni-no-toko-tachi (国之常立神), a deidade Eternamente Presente na Terra, e Toyokumono (豊雲野神), o Espírito das Nuvens Abundantes.

As outras divindades que se seguiram apareceram sempre aos pares masculino e feminino. Entre eles Izanagi (イザナキ) e Izanami (伊弉冉尊), os deuses do amor conjugal e que assumiam a forma humana de um homem e uma mulher.

Izanagi e Izanami eram os deuses responsáveis por gerar a terra e nela aquela que se tornaria o Japão. Também geraram os elementos da natureza e toda a diversidade de deuses que habitavam o mundo natural, todos eles nascidos do ventre de Izanami. Por isso, ao descerem dos céus a primeira ordem recebida pelos deuses primordiais foi a de solidificar a terra que vagava à deriva nos mares. À vista disto, o casal de deuses munidos de uma lança decorada com joias (a amenonuhoko, “lança do céu”)[1] foram até a ponte flutuante entre o céu e a terra e juntos arremessaram a lança na água, agitaram-na e quando novamente a ergueram, as gotículas que pingaram da ponta coagularam quando atingiram as ondas e formaram uma ilha, a ilha de Onogoro (淤能碁呂島).

Em Onogoro, Izanagi e Izanami e construíram um palácio cujo pilar principal alcançava a Planície do Alto Céu e os permitiam comungar com os deuses que residiam no alto, e por isso chamaram o pilar principal de seu palácio de o “Pilar do Céu”.

Após terem construído sua morada, os dois deuses manifestam um determinado interesse e curiosidade um pelo corpo do outro o que os levariam ao matrimônio. Essa passagem do mito, contado pela própria Izanami, em O Conto da Deusa, é relatado de forma bastante sutil:

“Assim que nós o construímos, Izanaki perguntou: “Como é a forma de seu corpo?” Veja bem, eu fui a primeira deusa a aparecer em forma de mulher, e Izanaki não entendia isso. Então eu respondi: “Meu corpo tem uma forma perfeita, mas em um lugar é vazio.” A isso, Izanaki respondeu: “Meu corpo é perfeito em forma, mas em um lugar existe um excesso.” Ele continuou: “Deixe-me colocar meu lugar de excesso dentro de seu lugar vazio, preenchendo-o, portanto. Nesse dia eu gostaria que nós déssemos à luz a terra. O que você me diz?” E eu concordei.”

Diante da aprovação de Izanami, Izanagi sugeriu que ambos contornassem o Pilar do Céu como uma cerimônia matrimonial, ele indo para a esquerda e ela, para a direita. Quando ambos se encontraram ela foi a primeira a dizer “Que homem de grande formosura eu conheci!”. Ainda que desapontado, por ter pensado que seria o primeiro a falar, Izanagi respondeu: “Que mulher de grande formosura eu conheci.” E depois desta cerimônia ritual os dois realizaram a sua união que resultou no primeiro filho do casal e que foi chamado de Hiruko (水蛭子). Contudo a criança era imperfeita, não possuindo ossos, e seu corpo era mole e macio. Por isso o casal decidiu colocar o bebê numa canoa de junco e deixar que a correnteza do mar o levasse.

Após o tempo nasce o segundo filho, que deu origem a pequena ilha de Awa no lugar de produzir uma grande faixa de terra. Como uma pequena ilha não era considerada pelos deuses como digna de importância, estes resolveram relatar aos deuses superiores suas desventuras e lhes pedir algum conselho.

Os deuses da Planície do Alto Céu disseram que o erro fora cometido durante a cerimônia de matrimônio, quando Izanami falara antes de seu marido, quando este deveria ser o primeiro a falar. Não era permitido às mulheres falar primeiro, por isso o casal deveria refazer o ritual.

Izanagi e Izanami fizeram como lhe aconselhavam os deuses maiores e o primeiro filho que geraram dessa união foi a ilha de Awaji. Em seguida Shikoku e as ilhas Oki. Depois Kyushu e em seguida as ilhas de Isa, Tsushima e Sado. Por fim, geraram a maior ilha de todas, Honshu. Oito ilhas ao todo. As maiores ilhas que compõem o arquipélago japonês e que os deuses puseram o nome de País das Oito Ilhas.

Em seguida, Izanami deu à luz todas as espécies de divindades, os kamis. O Deus dos Oceanos, o Deus das Águas, o Deus do Vento, o Deus das Árvores, o Deus das Montanhas, o Deus das Planícies e depois o Deus do Fogo. Contudo, quando deu à luz Kagutsuchi (軻遇突智), o Deus do Fogo, Izanami sofreu queimaduras graves que a levaram à morte e à jornada sem retorno em direção ao Reino dos Mortos.

Enlutado com a perda de sua esposa, Izanagi enterrou Izanami no monte Hiba e, dirigindo toda a sua fúria ao filho Kagutsuchi, o decapitou. Mas isso não foi o suficiente para aplacar o sentimento de perda do grande Deus da vida e desejoso de se reunir a esposa foi em busca dela no Reino dos Mortos, determinado a encontrar uma maneira de trazê-la de volta à vida.

Ao chegar na escuridão absoluta do submundo, ele chamou por Izanami e pediu que ela retornasse. Contudo a deusas já não podia retornar ao mundo dos vivos porque consumira a comida da fornalha daquele reino sombrio e ali deveria permanecer.

Ainda assim, ela pede para que ele ali ficasse um pouco, devendo, no entanto, não a olhar. Impaciente para ver a esposa, Izanagi não obedece ao perdido da deusa e acende uma tocha usando um dos dentes de seu pente de madeira. Com a repentina claridade Izanagi se deu conta que sua esposa já não era bela como antes e havia se transformado em um cadáver em estado de putrefação, com o corpo “infestado de larvas” e o belo rosto afundado em si mesmo.

Enojado, o deus decidiu ir embora animando a fúria de Izanami por ele não ter cumprido a sua promessa de não a olhar. Para impedir que o esposo fugisse ela manda em seu encalço as Bruxas de Yomi para capturá-lo, sem sucesso. Izanagi escapa do submundo e bloqueando a passagem com uma enorme pedra impede que Izanami também fugisse dali, encerando-a por toda eternidade no Reino dos Mortos.

Enfurecida Izanami decide matar todos os dias mil pessoas, decisão que Izanagi rebate prometendo fazer todos os dias nascerem outras mil e quinhentas no lugar.

A mitologia e a dualidade de todas as coisas: voltando ao livro de Natsuo Kirino

A literatura japonesa é sempre carregada da forma contemplativa e muito característica dos orientais de verem o mundo. Quando analisamos o livro de Natsuo e o mito que lhe dá vida observamos que o objetivo da autora foi falar de muitos temas que na cultura japonesa se encontram intrinsecamente ligados entre si, ainda que muitas pessoas não o percebam em seu cotidiano.

Por isso, ela escreve uma história em que várias dimensões complementares se entrecruzam: a mitologia e a religião que por muitos de seus traços fomentou por séculos, dentro da sociedade, práticas e ideias machistas que legitimavam a submissão e marginalização da mulher, além de alicerçar uma infinidade de tradições injustas impostas por gerações. Todavia, gosto de pensar nesse livro também como uma história sobre a dualidade e a complementariedade de todas as coisas – um conceito pilar da crença filosófica-religiosa de muitos povos orientais.

Em O Conto da Deusa há um intenso diálogo entre duas dimensões quase que indissociáveis da cultura japonesa: a sua mitologia e as crenças sincréticas dos japoneses, que costumam associar elementos de várias religiões tradicionais do oriente como xintoísmo, o taoismo e o budismo, além dos princípios filosóficos do o confucionismo[2].

O tei-gi, a forma mais conhecida de se representar o conceito de yin-yang.
Wikimedia Commons.
A intertextualidade com a mitologia é evidente pois a autora se apropria do mito da criação do Japão para criar o plano de fundo de sua narrativa. Entretanto, por todo o livro também é possível encontrar outras referências mais ligadas às religiões que influenciam a cultura local. A principal destas referências é o conceito de dualidade do taoismo (Yin-yang).

O Yin e Yang descrevem duas forças fundamentais opostas e complementares que regem o mundo e se encontra na essência de todas as coisas. Yin seria o princípio feminino, passivo, noturno e escuro, quanto que o Yang o seu oposto (o princípio masculino, ativo, diurno e luminoso). “Segundo essa ideia, cada ser, objeto ou pensamento possui um complemento do qual depende para a sua existência. Esse complemento existe dentro de si. Assim, se deduz que nada existe no estado puro: nem na atividade absoluta, nem na passividade absoluta, mas sim em transformação contínua[3].

Na narrativa de Natsuo, essas duas forças fundamentais e as suas sucessões cíclicas cumprem o papel de um dos principais pilares entorno do qual se constrói toda a narrativa e sua problemática. Tudo começa com Izanagi e Izanami que além de serem os deuses criadores do mundo como o conhecemos e progenitores dos kamis () – as divindades xintoístas – são também a representação da dualidade do masculino e do feminino, representado pelo homem e pela mulher, mas também são a representação da dualidade fundamental da vida e da morte.

Inicialmente ambos os deuses representam a vida e o nascimento ao darem origem a diversas ilhas e divindades geradas do ventre de Izanami quando fecundada por Izanagi. Contudo, tudo toma um tom fúnebre quando a deusa progenitora se torna deusa dos mortos e fundamentalmente o oposto de seu marido, ainda deus da vida e do nascimento e responsável por repor no mundo as vidas ceifadas por sua esposa. A partir de seu falecimento Izanami é encerrada em um mundo de escuridão e lamento, enquanto seu esposo continua a habitar um mundo cheio de vida e banhado pela luz.

Dessas dualidades de vida e nascimento, feminino e masculino encerrados na mitologia, Natsuo retira o combustível necessário para alimentar a sua narrativa com muitas outras dualidades ou ideias duais, complementares e opostas que permearão também toda a parte fictícia da narrativa. Os principais exemplos dessas ideias estão encerrados na narrativa do povo da ilha de Umihebi e dizem respeito as suas crenças e tradições religiosas.

Mikura-sama, a sacerdotisa maior da ilha de Umihebi, representava yang e por isso era a sacerdotisa da luz (governante do reino da luz), enquanto que sua filha – sua sucessão – deveria ser yin. Por sua vez, sua neta mais velha, Kamikuu, seria sucessão de yin, e logo, yang, enquanto que Namima, por ter nascido depois, seria, na sequência, novamente yin, o que representaria as sucessões continuas que mencionamos, formando um ciclo.

Para que se garantisse o equilíbrio das coisas e a proteção dos ilhéus, quando Mikura-sama veio a falecer Kamikuu deveria sucedê-la como sacerdotisa da luz enquanto à Namima era reservado o destino de ser seu oposto: a sacerdotisa das trevas (governante do reino das trevas) e protetora dos mortos.

Como se vê a ordem religiosa dos ilhéus era sustentado pela dualidade entre a yin responsável por zelar dos mortos e por isso excluída do convívio com os vivos, e a yang responsável pela proteção da vida, dedicada a pedir proteção aos pescadores durante suas viagens e responsável por gerar mais vida que perpetuasse o ciclo.

Porém além de Yin-Yang outras dualidades complementares aprecem na narrativa como a contraposição entre morte (Amiido, Namima e Izanami) e vida (Kyoido, Kamikuu e Izanagi) e nascente e poente presente em passagens como esta:

[...]
Eu fiquei lá parada, petrificada. O que eles queriam dizer com aquilo?
— Deste dia em diante você será a guardiã do Amiido. Kamikuu, Filha dos Deuses, é yang. Ela é a alta sacerdotisa que governa o reino da luz. Ela reside no Kyoido no limite leste da ilha, onde o sol nasce. Mas você é yin. Você deve presidir o reino das trevas. Você morará aqui, no Amiido, no limite oeste onde o sol se põe.
Eu me virei para olhar, chocada, a minúscula choupana perto da caverna cheia de cadáveres. Então aquela deveria ser a minha casa? Eu estava em estado de estupor.
O chefe da ilha berrou uma ordem:
— Namima! Pelos próximos vinte e nove dias você erguerá as tampas dos caixões e verificará se Mikura-sama e Namino-ue-sama não retornaram à vida. Você jamais terá permissão para voltar ao vilarejo. Comida será deixada para você na entrada do Amiido. Você comerá essa comida. Existe um pequeno poço atrás da choupana. Nada lhe faltará.
[...]

Como se vê nesse trecho Natsuo explora bastante a ideia de dualidade e descreve uma sociedade – a dos ilhéus de Umihebi – toda organizada entorno destes conceitos duais que eles respeitam profundamente e aceitam como verdade indiscutível. O Amiido na narrativa é o cemitério do vilarejo e logo residência dos mortos, enquanto que o Kyoido era um lugar sagrado onde a sacerdotisa da luz fazia suas orações e pedidos por proteção para a ilha. Como lugares opostos eles também residem em extremos opostos (leste e oeste), mas são fundamentalmente complementares e necessários. Ao mesmo tempo, a sacerdotisa da luz goza de liberdades que à sacerdotisa das trevas era negado, como, por exemplo, habitar entre os ilhéus, ser vista por eles.

Como sabemos, os mitos surgem nas sociedades tradicionais como forma de explicar a vida, o mundo e a própria organização da sociedade. Pelo mito muitas ideias são ensinadas e impostas as gerações seguintes, tradições, práticas e crenças são legitimadas e junto com isso toda a filosofia de um povo. As tradições da ilha de Umihebi estavam fundamentalmente baseadas nas crenças mitológico-religiosas de seu povo e por reproduzia injustiças e as legitimavam como necessárias a manutenção do equilíbrio da vida.

Natsuo explora as ideias de dualidade presente no mito dos deuses Izanagi e Izanami – morte e vida, homem e mulher, – e também nas tradições da fictícia Umihebi – Yin e yang, luz e trevas –, para falar de como o mundo muitas vezes é regido por ideias opostas e complementares, de que somos um todo composto de parte muito distintas entre si, mas fundamentalmente ligadas e indissociáveis.

No entanto, a autora vai além e dá margem a uma discussão de como as ideias transmitidas pelos mitos e tradições, por vezes, são utilizadas como justificativas para injustiças, e também de como essas ideias também são forjadas para submeter determinado grupo ou seguimento social – são utilizadas como justificativas para a opressão. Uma das discussões mais explícitas é o papel de submissão da mulher que no caso de Izanami não poderia ter falado antes de seu esposo e, por consequência disso, tivera filhos defeituosos. Uma clara justificação de porque a mulher deveria se submeter a vontade de seu esposo, ser silenciosa e submissa a sua autoridade. Isso faz de O Conto da Deusa mais do que uma simples releitura de um mito secular e transforma-o em uma obra instigante e profundo ao seu modo, que discute temas ainda atuais, com um olhar contemporâneo, mas sem perder de vista o passado e as raízes de um povo que hoje consegue com muita perspicácia aliar o moderno e o tradicional.







[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Mitologia_japonesa
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Jap%C3%A3o#Religi%C3%A3o
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Yin-yang

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