quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Absolutos – Sinfonia da Destruição – Rodolfo Salles – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Com um título inspirado, Absolutos: Sinfonia da Destruição é o último lançamento do selo editorial do blog A Taverna. Um space opera dinâmico e criativo e que dá início a série escrita pelo brasileiro Rodolfo Salles, com milhares de leitores na plataforma Wattpad.

Sinopse estendida

Em um futuro muito distante os seres humanos já não vivem isolados no planeta Terra. Viagens interestelares, bem como o contato com espécies alienígenas já são uma realidade, e devido a esses contatos muitas guerras e batalhas foram travadas até que as diferentes raças descobrissem uma maneira de coexistirem.

Érico é um jovem hacker que vive na pequena lua de Miesac, com seus irmãos adotivos Vexel, uma corredora profissional, e Miro, uma versão futurista de youtuber. Quando ainda era muito pequeno, o rapaz havia sido enviado àquela lua em uma cápsula de fuga por sua irmã biológica, Daina, para que escapasse do ataque alienígena que destruiria seu planeta natal. Resgatado pelos dois irmãos, Érico cresce em Miesac com o sonho de se tornar um caçador de relíquias, uma espécie de aventureiro intergaláctico que, em grupos, esquadrinha o Espaço em busca de artefatos antigos, raros e de grande valor. Porém alguns mistérios perturbam a mente do rapaz, cujo passado é praticamente desconhecido. O principal deles é o significado de um conjunto de tatuagens que ele possui por todo o corpo desde quando se lembrava.

É buscando respostas sobre seu passado e sobre as misteriosas tatuagens que Érico se aproxima de uma conhecida e poderosa irmandade hacker que lhe coloca em contato com uma entidade cibernética chamada Decifradora. Somente a Decifradora poderia ter respostas sobre o significado das tatuagens e com a ajuda da irmandade e de seus dois irmãos, Érico localiza a entidade que lhe faz revelações ainda mais perturbadoras.

O rapaz descobre que na verdade é um ser temido pelas mais poderosas organizações do Universo e que de tempos em tempos é responsável por trazer caos e destruição. Ele é um absoluto, único ser capaz de controlar uma poderosa e elementar forma de energia universal: o Campus.

De tão temível, a história dos Absolutos precedentes é censurada e sistematicamente apagada dos bancos de dados digitais de todo o universo. A existência de um absoluto é uma ameaça para o universo e deve ser extirpada, e se o poder de Érico despertasse ele também traria caos e destruição. Diante da previsão de um destino nefasto, Érico deseja ver-se livre daquele poder, mas para isso ele deveria encontrar um Desbravador, um tipo de hacker que tivera sua consciência digitalizada e “elevada” para o mundo virtual, permitindo-lhe acumular uma grande gama de conhecimentos. Apenas um Desbravador pode mudar o destino gravado naquelas tatuagens, mas encontrá-lo é um imenso desafio e Érico precisa se aventurar pela galáxia e ao mesmo tempo fugir de uma poderosa organização que deseja a sua destruição.

Resenha

Absolutos: uma space opera nacional

Primeiro volume da trilogia Absolutos, de Rodolfo Salles, Sinfonia da destruição é um space opera nacional que carrega todas as principais características de seu gênero e não faz feio quando se trata de criatividade, diversidade e poder imaginativo.

Ainda que sobre-existam alguns pequenos problemas em seu texto, publicado pela primeira vez em fevereiro de 2016, de forma independente, através da plataforma Wattpad, esse é um livro de qualidade evidente, não é à toa que na plataforma de textos ele possua mais de 28 mil leituras e tenha ficado em décimo lugar no ranking de livros de Ficção Científica do Wattpad em junho de 2017[1].

Atualmente, dentro do universo literário, tenho observado que o space opera, com suas viagens intergalácticas, planetas e formas de vidas exóticos, tem perdido espaço para as histórias de distopias tecnológicas geralmente situadas numa Terra destruída ou em colapso social ou ambiental, como muitas das histórias do gênero cyberpunk, que vem fazendo sucesso no mercado editorial internacional. Rodolfo, porém, aposta no retorno de um subgênero que contagiou muitas gerações e que presenteou o mundo geek com obras memoráveis como a série Fundação, de Isaac Asimov, na literatura, e, no cinema, com franquias como Star Trek (Jornada nas Estrelas), de Gene Roddenberry, e Star Wars (Guerra nas Estrelas), de George Lucas.

A proposta do livro é recheada de ideias criativas e originais. Ela, obviamente, se inspira no universo space opera do qual se origina, como a ideia de uma criatura titânica em forma de verme subterrâneo que me fez lembrar do universo de Duna, criado por Frank Herbert. Contudo, as respostas para a tecnologia, a proposta de um universo anárquico e o conjunto de espécies criadas pelo autor são originalíssimas. Além disso, a proposta sobre a qual foi criada a imagem do que é ser um Absoluto é muito instigante.

Achei divertida a forma como a trama brinca com a natureza e importância dos Absolutos. Eles certamente são tiranos sanguinários, mas seriam realmente obscuros os seus propósitos? Além disso, eles são cercados de mistérios. Do outro lado, temos Érico, que parece ser uma contradição no conjunto de Absolutos. Mas ele continuará sendo a ovelha negra da família? Ou cederá a sua herança histórica, tornando-se mais um temível tirano e o vilão de sua própria trama? Ou ainda, dominará seus dons, usando-os para um propósito maior? Muitas dúvidas permeiam a história de Érico e seu futuro. Ademais, a narrativa de Sinfonia da Destruição possui muitos outros mistérios e pontos obscuros que instigam a leitura completa da série.

Muitas espécies e personagens

Como não podia ser diferente, Rodolfo reserva um grande espaço em sua narrativa para a descrição não apenas do universo que ele cria para abrigar sua trama, como das muitas sociedades e espécies de seres vivos que nele habitam. Humanos, ánimas, tharinos, nobas, léstaris e muitos outros, cada qual com suas características e peculiaridades específica, povoam uma galáxia regimentada por uma forma de anarquia universal. Mas de todas as espécies, certamente, a que mais chama atenção são os tharinos, espécie bípede que só se diferenciava dos humanos pela “sua pele extremamente branca, lisa e seus olhos amarelos como girassóis”, além, é claro, da sua capacidade de abrir e selar portais que levavam a qualquer ponto do universo.

Personagens principais. da esquerda para direita: Érico, Darwin, Camilo e Alopex

Semelhante ao que o escritor Felipe Castilho faz em seu livro a Ordem Vermelha: filhos da degradação, Rodolfo cria um núcleo de personagens centrais com representantes de cada uma das espécies mais importantes, mas coloca um humano como seu protagonista.

Érico é antes de mais nada um sonhador, alguém sedento por ação e aventura e, por isso, na maior parte do tempo ele se demonstra muito empolgado, mesmo quando o seu destino se mostra um fardo preocupante. Muito jovem, a imagem que se pode ter de Érico é de alguém ainda imaturo e demasiadamente otimista. Porém, ele é também uma pessoa de ação, apegado à família, fiel e também corajoso, ainda que, por vezes, se demonstre bastante egoísta, sobretudo quando quer embarcar as pessoas em suas aventuras, mesmo quando estas claramente não estão dispostas a fazê-lo. Ele é assim com Camilo, um veterano de guerra que atormentado pelas muitas mortes que provocara em seu passado e, por isso, decidiu abandonar o trabalho de piloto de naves espaciais.

Camilo vivia isolado em um planeta inóspito onde montava espaçonaves com sucata vinda do espaço para depois revendê-las. Érico entra em sua vida de forma súbita e acaba arrastando-o contra vontade para sua aventura pelo espaço. O mesmo se dá com a ánima Alopex que por muito tempo se encontrou confinada em um laboratório abandonado e também é arrastada por Érico. Alopex como qualquer ánima tem um aspecto muito animalesco e até primitivo que não chega a se desenvolver “muito intelectualmente, passando a maior parte de sua vida agindo por instintos e inseridos em rotinas escolhidas por eles”. Apesar de agressiva, briguenta e irritadiça, a ánima se demonstra uma amiga zelosa e protetora.

Há ainda a tharina Darwin, uma criminosa irônica e de personalidade muito forte que salva a vida do rapaz em troca de sua própria liberdade e o impressiona com suas capacidades incríveis de teletransporte através de portais.

Muitos outros personagens importantes compõem a história, como o Tenente Hathor e os irmãos Vexel e Miro, além de outros que vão emergindo na trama ao longo de seu desenvolvendo e vão ocupando papéis estratégicos na mesma.

Edificando mundos: estética, narração e temáticas

Narrado em terceira pessoa, Sinfonia da Destruição possui alguns contrastes entre narração e diálogo que me chamaram a atenção logo nas primeiras páginas. Quando se analisa o narrador onisciente logo se nota que a forma como os mundos, as raças, a tecnologia e as ações dos personagens são descritos difere bastante da linguagem adotada por vários de seus personagens.

Sobretudo Érico e Miro, por serem personagens muito jovens, possuem uma linguagem muito despojada e coloquial comum aos adolescentes e que contrasta profundamente com a linguagem bem mais rebuscada de seu narrador. Contudo, os dois não são os únicos a terem uma linguagem contrastante. Outros personagens também apresentam linguagens pouco desenvolvidas ou coloquiais como Alopex, por ser uma ánima, e também Eurália, uma evox (ser com inteligência artificial) que devido a um defeito em seu sistema operacional tinha dificuldades de aprendizagem. O resultado final obtido pelo autor é uma mescla de estilos linguísticos que se tornam próprios dos personagens caracterizando-os e que, ao mesmo tempo, diverge do tom mais rebuscado da narração.

Entretanto, quando digo que a narração é mais rebuscada, não quero dizer com isso que Sinfonia da Destruição seja um livro difícil de ler. Pelo contrário, sua linguagem é leve e não chega a ser erudita, como nos clássicos. Uso o termo rebuscado em oposição a uma linguagem cotidiana, gramaticalmente incorreta e de vocabulário pobre, aspectos marcantes na forma de falar de Alopex e Eurália. Rodolfo escreve muito bem e seu texto flui com facilidade não sendo cansativa a leitura. Mesmo nas passagens mais descritivas (essenciais na ficção científica) o texto não se torna enfadonho ou desestimulante.

Não vejo grandes problemas na escrita deste primeiro livro da série, mas algo que me chamou a atenção foi, no entanto, muito pontual, e está relacionado a uma única cena um pouco mais romântica entre Darwin e Érico, já no meio da narrativa.

Nessa passagem, inicialmente de ação, os dois personagens passam muito abruptamente de uma situação de tensão, risco e espanto, para um momento mais relaxado e nostálgico, e de novo para uma situação de perigo e ameaça. O que me incomodou na cena foi sua transição emocional um tanto repentina que, no momento da leitura, me causou certo estranhamento.

Senti o esforço de Rodolfo para tornar natural a transição da primeira situação para a segunda, porém a mudança de “humores” dos dois personagens não soou muito bem integrados. Faltou um pouco mais de “gradatividade” (neologismos!!) que fariam com que o humor de ambos não mudasse de forma súbita ou inesperada. O cenário criado é espetacular e a forma como essa passagem acaba é quase um épico, mas a transição da ação para o nostálgico romântico precisava de mais suavidade, descrevendo também como a tharina foi passando da tensão de uma situação inesperada e ilógica, para um momento mais contemplativo e de recordação do passado. A transição de Érico foi bem descrita, mas há um apagão em relação a Darwin e desse ponto emergiu meu estranhamento.

Por sua vez, quanto a temática, o livro fala de liberdade e destino. Seriamos nós mesmos os responsáveis pelo caminho que trilhamos, ou ele já foi traçado como nos desenhos de uma tatuagem e seriam como os desenhos: permanentes e inalteráveis?

Pode até não ter sido a intenção do autor, mas as tatuagens de Érico é também uma metáfora sobre o destino e o que fazemos de nosso futuro. Somos ou não donos de nossos destinos? Essa é a grande questão que permeia toda a história de Sinfonia da Destruição e tira o sono de seu protagonista que teme a si e a seu futuro, mais do que qualquer adversidade que se entreponha em seu caminho.

Contudo, se destino é o tema principal, Absolutos surpreende pela gama de subtemas que enriquecem um universo que já foi idealizado para ser amplo e diverso. Não se trata apenas de uma narrativa de viagens intergalácticas, planetas exóticos e seres além da imaginação. Censura, tecnologia, Inteligência Artificial (I.A.) e “emancipação tecno-robótica”, realidade virtual, ciberpirataria e irmandades hackers, política, conspirações, ditaduras, anarquismo e corrupção são alguns dos muitos subtemas que permeiam e atravessam a trama de aventuras, tornando-a mais eclética e rica. Essa diversidade é, para mim, o maior ponto do livro.

Mas se de um lado gosto de tramas complexas e que desafiam o seu leitor, de outro concordo que o elemento fundamental para uma história de fantasia ou de ficção científica é, na verdade, o quão criativo o escritor é ao idealizar mundos e realidades capazes de fazer o leitor imaginar lugares exóticos sem, no entanto, perder verossimilhança.

Galáxia Eidola, o cenário da trama da série.
Para mim, o mais fantástico nos livros de ficção científica é a criação de um mundo em toda a sua complexidade. Ali o escritor se torna um deus que edifica a realidade como numa sinfonia da criação (desculpem-me o trocadilho) e convida o leitor a sonhar com universos para além da imaginação. Rodolfo parece compreender isso muito bem e concebe um universo de maravilhas, criando em seu livro construções sofisticadas e originais para compor tecnologias e mundos.

Para mim – e isso é uma nota puramente pessoal – a história de Érico não é tão importante quanto contemplar o universo grandioso criado para abrigá-la. Digo isso, porque não é na trama que reside a beleza da ficção científica, mas na criatividade empregada para criar um universo fantástico e verossímil que desafie a mente humana e faça-a sonhar. Ficção científica é antes de tudo um sonho, uma utopia (ou distopia) cheia de maravilhas.

Rodolfo é certamente um talento criativo que com o tempo se tornará ainda mais afiado e o primeiro volume de Absolutos é um prenúncio disso. Os poucos pontos fracos da narrativa estão ainda na pouca experiência que qualquer escritor em começo de carreira deixa transparecer nos seus primeiros escritos. Pequenos deslizes gramaticais e alguns pontos e diálogos com desenvolvimento apressado são algumas dessas fraquezas, mas que só muito raramente sobrepujam o conjunto. Todavia é o exercício da pena que faz o escritor.

O desfecho – como era de se esperar em uma trilogia – deixa várias perguntas em aberto e faz revelações extremamente importantes para a continuação da trama. Apenas a leitura do segundo volume permitirá descobrir os caminhos que serão trilhados e se Érico poderá de fato decidir o seu destino.

A segunda edição também promete a ascensão de um arqui-inimigo para Érico, mas fica obscuro se este de fato representaria as forças do bem. De qualquer forma, o desfecho de Sinfonia da Destruição é um convite para continuar a leitura e descobrir novos rincões da galáxia de Eidola e o destino de sua maior ameaça(?): o absoluto Érico, “o horror dos céus”.

A edição lida é digital, do selo editorial Histórias d’A Taverna, do ano de 2018, e possui 447 páginas.

Sobre o autor

Rodolfo Salles é escritor de ficção fantástica e colaborador do blog A Taverna. Designer especialista em produção de vídeos, nasceu e mora em São Paulo. Escreve desde criança, período onde começou a criar mundos fantásticos e lúdicos. Com o surgimento do Wattpad, o que era apenas um hobby se tornou parte fundamental de sua vida. Devido ao sucesso de sua obra na plataforma, decidiu relançá-la em versão profissional como autor independente.

Após ganhar o prêmio Wattys na plataforma, em 2017, com o conto Último Dia — concorrendo em uma seleção com mais de 280 mil participantes — decidiu explorar novos horizontes profissionais. O conto foi republicado pela revista Trasgo n° 17, enquanto o autor decidiu relançar Absolutos como autor independente pela Amazon, apoiado pelo selo d’A Taverna.





[1]https://www.wattpad.com/story/52180236-absolutos-i-a-sinfonia-da-destrui%C3%A7%C3%A3o

domingo, 2 de setembro de 2018

Relatos de Um Gato Viajante – Hiro Arikawa – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Uma história tocante, leve e gostosa de ler, que num tom bem-humorado vai falando da vida cotidiana, de perdas e de desafios que encontramos no caminho trilhado por cada um dos personagens. Esse é Relatos de Um Gato Viajante (旅猫リポート), primeiro livro da japonesa Hiro Arikawa (有川 ) publicado no Brasil. Um livro que, através da voz narrativa de um gato sarcástico, mas fiel ao seu amigo e dono, conta a história de uma viagem pelo Japão e de retorno ao passado.

Confira a resenha do quarto livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura japonesa.

Sinopse

Nana (ナナ) era um autêntico gato de rua: esperto, caçador, livre e destemido. Mas não apenas isso, era um felino sarcástico e senhor de sua própria vontade. Foi dormindo em cima de uma van prata estacionada na rua, quando ainda não possuía um nome, que conheceu Satoru Miyawaki (宮脇 ), o dono da van. A amizade começaria ali e se estreitaria muito devagar, à medida que Nana foi, gradativamente, aceitando os mimos de Satoru e permitindo alguns tímidos afagos em retribuição.

Todavia, seria um acidente que uniria definitivamente os dois. Atropelado por um carro, Nana buscaria por socorro próximo ao apartamento de Satoru e seria resgatado por ele, que além de socorrê-lo, cuida de sua recuperação. Nesse processo, o rapaz, um gateiro incorrigível, se afeiçoa ainda mais ao animal e o gato a ele. Ligados um ao outro, o gato acaba por ficar com Satoru, que, em alusão ao rabo torto do felino, lhe dá o nome de Nana, o número sete em japonês.

Nana e Satoru permanecem juntos ao longo de cinco anos, mas, por razões pessoais, Satoru não pode continuar cuidando do animal. Relatos de Um Gato Viajante é a narrativa de uma viagem de despedida sob a perspectiva de Nana. Os dois atravessam o Japão de sul a norte visitando pessoas do passado de Satoru em busca de alguém que pudesse adotar o gato.

Resenha

Logo nas primeiras linhas, o livro de Hiro Arikawa faz referência a obra Eu sou um gato, de Natsume Soseki (夏目 漱石), um dos mais importantes escritores e filósofos do Japão na era Meiji. Mas, ao contrário do personagem que dá título ao livro de estreia de Soseki, o felino da história Arikawa não possui o dom da telepatia, mas é dono de um nome feminino e de um humor sarcástico ímpar.

Trata-se um livro de temas bastante cotidianos e universais, e, por isso, não espelha apenas a realidade japonesa. Por outro lado, o livro de Arikawa faz um breve retrato do Japão moderno, descrevendo alguns dos muitos estilos de vida que são comuns aos nipônicos: pais ausentes que trabalham excessivamente, adolescentes que vivem com autonomia, jovens que realizam trabalhos de meio período para sustentar seus gastos pessoais, além de profissionais que, por conta de seus trabalhos, vivem mudando de cidade.

Muito atual, a obra faz também uma rápida menção à última grande crise econômica que afetou todo o mundo e gerou, entre outras consequências, recessão e demissões no Japão. Essa realidade vivida pelos nipônicos não é esquecida pela autora que faz menções às demissões cada vez mais comuns:

“Cerca de três anos já haviam se passado desde que Shusuke Sugi e a esposa, Chikako, abriram uma pousada com esse slogan.

A oportunidade surgiu quando, por causa da recessão, a empresa onde ele trabalhava fez um programa de demissão voluntária. A família de Chikako era dona de um sítio de fruticultura, e justo naquela época havia uma pousada ao lado à venda, por uma pechincha. Então, o casal comprou a pousada, já mobiliada, para reabri-la.”

Contudo, essa não é uma obra sobre problemas econômicos, mas sobre amizade, infância, família, perdas e resignação. De forma leve, o livro fala de sentimentos, ao mesmo tempo que demonstra como a vida pode ser difícil e marcada por perdas e sofrimentos. Os dramas da vida são citados como se tudo pertencesse a um passado longínquo. Mas, ao mesmo tempo, o eco do que se foi reverbera no presente deixando marcas evidentes como arrependimentos, dúvidas, alguns sentimentos remanescentes e nostalgia. No entanto, ao abordar questões como família e amizade, o livro também esboça um retrato das relações interpessoais contemporâneas japonesas que, em alguns aspectos, são tão universais e, em outros, bastante singulares e próprias da cultura do Japão, país onde as pessoas são bem contidas quanto aos seus sentimentos e se tratam com bastante discrição e reserva.

Um gato sarcástico e seu dono: os personagens principais

Nana e Satoru são indiscutivelmente os personagens mais importantes da trama, mas suas histórias são contadas intercaladamente ou simultaneamente a dos amigos de Satoru, o que dá a sensação de um protagonismo móvel, ou compartilhado.

Nana é um gato bastante rabugento e algumas vezes beira a megalomania. Seu forte senso de fidelidade e companheirismo, quando somados aos seus comentários e observações sarcásticas sobre o comportamento humano, dão ao personagem um ar cativante, e reserva à história um tom de humor leve e inteligente.

Ele acha seu nome estranho e feminino, mas, sobre protestos, acaba cedendo à vontade do dono. É o tipo do personagem que mobiliza a história, quebra momentos monótonos e até mesmos os tristes, tornando o tom geral da narrativa mais dinâmico e variado.

Satoru, por sua vez, é a paciência, resignação e preocupação em formas humanas. Desde a infância se mostra como um amigo fiel e paciente. Um garoto corajoso que enfrenta os desafios que a vida lhe impusera sem, no entanto, se queixar ou demonstrar autopiedade. Sempre muito reservado, Satoru a todo o momento se demonstra aberto a ajudar seus amigos, mas não costumava dividir com eles os seus sofrimentos, demonstrando resignação quanto ao seu destino e um desejo forte de não incomodar os outros com seus problemas.

Com Nana, Satoru se revela um dono zeloso e preocupado, sempre buscando assegurar o bem-estar de seu companheiro. Mudar-se para um prédio que aceitasse animais, buscar garantir o conforto de Nana durante toda a viagem, desistir várias vezes de confiá-lo a alguém quando percebia que aquele não era o melhor lugar para deixar o felino, são algumas das ações empreendidas pelo personagem e que demonstram seu zelo pelo amigo.

Contudo, se muito do zelo extremado do personagem é típico de sua personalidade, também é igualmente decorrente aos problemas do passado. Quando ainda era menino, Satoru foi obrigado a se separar de seu primeiro animal de estimação, o gato Hachi (). A experiência traumática e o fato de Nana lembra seu antigo gato acabam por ampliar ainda mais o afeto do rapaz pelo animal.

Outros personagens importantes compõem o pequeno, mas marcante elenco do livro: Kosuke Sawada (澤田 幸介), amigo de infância de Satoru, Daigo Yoshimine (吉峯 大吾), o amigo do começo da adolescência, Shusuke Sugi ( 修介) e Chikako Sakita(杉 千佳子), o casal de amigos do fim da adolescência e início do período universitário, e, por fim, a tia de Satoru, Noriko Kashima (香島 法子).

Apreciação crítica

O livro de Hiro Arikawa é narrado sob o ponto de vista de duas perspectivas, com duas vozes narrativas intercaladas. A primeira e principal delas é a do inteligente e sarcástico Nana. Quando não está ele próprio narrando todo o capítulo, a voz de Nana interfere na segunda voz de narração e dá a narrativa um tom humorado e cheio de críticas, comentários e perspectivas próprias que vão da “rabugentisse” gostosa dos gatos ao carinho velado de um animal amoroso e amigo fiel.

O outro narrador é onisciente e se encarrega de narrar tanto fatos do presente que não foram presenciados por Nana ou Satoru, como os fatos passados que, em flashbacks, vão narrando o passado de Satoru, as pessoas que cruzaram o seu caminho e as histórias que marcaram profundamente sua vida.

O livro, como sugere o título, está dividido em relatos, cada um deles contando a história de um novo encontro de Nana e Satoru com uma nova pessoa do passado do rapaz, até que se alcança o último relato, que narra o final da viagem empreendida pelos dois. No fim, todo o conjunto do livro se torna o relato delicado e comovente de duas viagens simultâneas: uma ao redor do Japão, indo de Tóquio à Sapporo, e a outra, em regresso ao passado, num longo recordar de acontecimentos e pessoas importantes que transpuseram, mexeram ou mudaram o destino de Satoru.

Trata-se de uma história que o rapaz vai dividindo com seu gato a partir de suas recordações com os amigos. Enquanto isso, os dois presenciam paisagens triviais e cotidianas pelo caminho, mas que se tornam momentos sublimes de contemplação do mundo e da vida, lembranças para serem guardadas e servirem de elo com o passado.

Arikawa não se preocupa em tecer uma narrativa nem complexa nem inusitada ou inverossímil. Sua aposta é em uma narrativa simples e cotidiana, com dramas (pequenos e grandes) que podem ser comuns a vida de qualquer um: pais ausentes e pouco afetuosos, relações desgastadas, amizades, separação, perdas e orfandade. Mas apostar no cotidiano não significa que seu livro é pobre em movimento ou pouco estimulante. A escritora japonesa rompe com o enfadonho com uma escrita impecável, atual e bem-humorada sem se tornar banal ou cansativa. Nana com sua personalidade marcante transforma a atmosfera do livro, tornando interessante o que poderia ser apenas a história de um homem que perdeu muitas coisas ao longo da vida, mas que nunca deixou de olhar a beleza das coisas ou ter uma atitude positiva.

É um livro muito fácil de ler, com uma linguagem limpa e acessível. O texto é muito fluido e a narrativa bem estruturada entrono dos fatos narrados por Nana e os flashbacks que contam progressivamente passagens da infância e da mocidade de Satoru. Mas é o bom humor de Nana, aliado a uma tradução impecável e uma escrita tão bem-feita quanto divertida, que fazem a história instigante e nem um pouco cansativa.

Arikawa cria um livro com algum relevo e profundidade, mesmo tratando de um tema bastante universal e desgastado. Ela nos faz conhecer lentamente os seus personagens, envolve-nos com seus dramas, medos, fragilidades e personalidades e gradativamente faz com que nos simpatizemos com eles, com que se torne significativos e maiores do que a narrativa em si.

Enfim, gostei desse livro como um todo: escrita, narrativa, personagens e narração. Porém, não digo que Relatos de um Gato Viajante se tornou um dos meus livros preferidos, pois sua narrativa não traz nada de novo ou de surpreendente. Já li, mas sobretudo assisti, muitas histórias semelhantes, especialmente em animes japoneses que tratam do dia a dia do povo nipônico e os dramas pessoais de seus protagonistas. Ainda que tenha me comovido bastante em sua reta final, o livro está para mim mais como uma leitura agradável, divertida e de fácil digestão, do que uma obra marcante e profunda que você procura ter sempre à mão. O caso é que se trata de um bom livro, delicado e sereno, cuja narrativa não possui pontos fracos relevantes, mas que também não se destaca como uma obra-prima.

O desfecho é fechado e foi, para mim, uma surpresa que me comoveu bastante. Chegou até mesmo a influiu no meu humor durante todo o dia, me deixando pensativo e um pouco melancólico. Porém, para os mais perspicazes o final do livro é fácil de ser lido nas entrelinhas e não causa grandes assombros. Mas de qualquer forma, este é um livro que certamente agrada muitos e diferentes tipos de leitores, mesmo os que não são, como eu, fanáticos por gatos.

Em conclusão, é um livro delicado, verossímil e sentimental. Pelo sucesso alcançado em terras nipônicas, foi adaptado para o cinema, em filme do diretor Koichiro Miki que entrará em cartaz no dia 26 de outubro deste ano no Japão[1]. Um livro que fala de sentimentos, de amizade e de perdas. Uma história que fala de amor e respeito aos animais e de como esta parceria entre animais e pessoas pode ser consoladora e fundamental à vida, tanto quanto as relações interpessoais. Uma leitura leve, agradável e cheia de humanidade.

A edição lida é da Editora Alfaguara, do ano de 2017 e possui 256 páginas.

Sobre o autor


Hiro Arikawa (有川 ) nasceu em 1972 em Kochi, no Japão. Seus romances são best-sellers no país e muitos deles já foram adaptados tanto para a TV japonesa, quanto para o cinema.
Frequentemente escreve sobre as Forças de Autodefesa do Japão (JSDF) e seus três primeiros romances sobre esse ramo são conhecidos como Jieitai Sanbusaku (A Trilogia SDF). Em 2003, ganhou o décimo prêmio Dengeki Novel de novos escritores pelo seu romance Shio no Machi: Wish on My Precious, primeiro volume da série.

No Brasil, seu único livro publicado é Relatos de Um Gato Viajante, lançado originalmente no Japão em 2011.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

Preview do Google Books







[1] http://asianwiki.com/The_Travelling_Cat_Chronicles

Postagens populares

Conhecer Tudo