sexta-feira, 19 de outubro de 2018

[Coleção Vaga-lume] Zezinho, o Dono da Porquinha Preta – Jair Vitória – Resenha


Por Eric Silva para a Tag Coleção Vagalume

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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A coleção vaga-lume é um conjunto de livro infantojuvenil que inegavelmente marcos a história de vida de muitos leitores brasileiros. São poucos os adultos leitores que nunca tenham lido pelo menos um dos livros dessa vasta coleção que reúne alguns dos maiores nomes da literatura infantojuvenil brasileira das décadas de 80 e 90.

Eu pessoalmente tenho muitas destas leituras na minha bagagem de adolescência: A Vida Secreta de Jonas e O Brinquedo Misterioso, ambos de Luiz Galdino, os livros de Marcos Rey como O Mistério do Cinco Estrelas, Na Rota do Perigo e Sozinha no Mundo, além de A Serra dos Dois Meninos de Aristides Fraga Lima.  Sozinha no Mundo e o livro de Aristides são os meus prediletos na coleção.

Meu amor por essa coleção é tão grande que lanço hoje uma nova tag exclusiva para ela. Entre os muitos que li e dos que possuo em casa começo resenhando um que só apareceu aqui no blog através do resumo de um antigo aluno meu, mas que, ainda assim, rendeu até o hoje mais de 1600 acessos: Zezinho, o Dono da Porquinha Preta.

Sinopse

Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma novela infantojuvenil do escritor mineiro Jair Vitória. Nesse livro Jair narra as aventuras de um menino do campo, Zezinho, na sua luta para impedir que seu pai, um homem rústico e turrão, venda sua porquinha de estimação para um dos lavradores vizinhos.

Resenha
Enredo

Zezinho é um menino do interior acostumado a uma educação rígida e sem muito sentimentalismo. Seu pai, Odilo, é um homem rústico endurecido pela difícil vida do campo e pouco acostumado a demonstrações de afeto e carinho. Sempre muito severo e rígido, os filhos o temem e basta uma palavra sua para que os meninos o atendam de pronto por temor de algum castigo ou represália. Mesmo a esposa tem pouca influência sobre Odilo que normalmente faz o oposto aos seus conselhos apenas para contrariá-la e demonstrar poder.

Na narrativa contada por Jair Vitória, Odilo resolveu vender, Maninha, a porquinha preta de estimação do filho criada sempre próximo a casa desde que era uma leitoa. Maninha é muito dócil e está preste a ter sua primeira ninhada de porquinhos. Zezinho tem muito afeto pelo animal e cuidou da porca desde que ela era pequena, acostumando-a a ficar próxima dos humanos, atender seus chamados e aceitar afagos seus.

Quando, Valtério, o filho do lavrador vizinho, conta a Zezinho que seu pai comprará Maninha de Odilo o menino se revolta com o amigo, acusando-o de invejoso e ladrão. Mas a principal revolta do menino é saber que seu pai jamais voltaria atrás com a sua decisão e venderia a porquinha desconsiderando os sentimentos do filho pelo animal.

Tentando impedir a venda da porquinha escondendo-a nas grotas[1] da região e convencendo os lavradores a não comprarem Maninha, Zezinho se envolve em diversas confusões que atiçam a ira do pai.

Personagens realistas: as vivências do autor

Jair Vitória é um escritor que cresceu e se criou na zona rural mineira. Suas narrativas dialogam com suas vivências na roça e, por isso, costumeiramente estão ligadas a questões da vida e do campo como Botina Velha, o Escritor da Classe que fala das crianças que abandonam a escola para ajudar no trabalho da lavoura e A Terra que Machucou que aborda a questão da luta pela terra.

Os personagens criados por Jair são inspirados na realidade brasileira e no cotidiano das populações rurais de sua época, o que torna o livro não só essencialmente brasileiro, como realista. Seus personagens são críveis e poderiam muito bem terem existidos na realidade ou terem sido inspirados em pessoas reais.

Filho de lavradores, assim como Zezinho, Jair tirou de suas próprias vivências o material que inspirou a história, por isso a sua narrativa mesmo voltada para crianças e jovens adolescentes é repleta de sensibilidade e delicadeza e todos os seus elementos (cenários, linguagem, costumes e temas) são realistas e apontam para o seu conhecimento da vida e da criação do povo mais antigo das áreas rurais. Zezinho poderia ser o alter ego da criança que Jair foi na infância: uma criança travessa, mas sensível e inocente, muito ligada aos animais e corajosa no sentido de defender as criaturas por quem tem estima. Isso torna Zezinho, o dono da Porquinha Preta um livro sensível e delicado e até mesmo profundo.

Zezinho teme o pai assim como os seus irmãos, mas é igualmente obstinado, e mesmo não fazendo frente ao pai diretamente usa de todos os recursos que lhe são possíveis para impedir a venda do animal. Jair dá ares de travesso a seu personagem principal, mas coração sensível e determinado. É um personagem difícil de ignorar e muito fácil de ser estimado pelo leitor. Jair acerta em sua fórmula para fazer uma história com personagens cativantes e cria um protagonista pelo qual você torce apesar de todas as brigas e traquinagens cometidas pelo menino ao longo da narrativa.

Por seu turno, Odilo, por seu caráter severo e turrão, acaba fazendo, dentro da narrativa, o papel de vilão que bate e briga à toa, do pai insensível e implicante. Trata-se da transposição para a literatura do imaginário adolescente que quando se vê contrariado pelos pais costuma pintá-los com ares de tirania e vilania.

A mãe é mais sensível e se entristece por ver a tristeza do filho, mas sabe que é impotente ante a teimosia do marido e, realista e pessimista, tenta apenas convencer o menino de desapegar-se do animal.

Os demais personagens, com exceção do menino Valtério, possuem participação muito secundária. Jair dedica um certo tempo na descrição psicológica de Odilo, mas não o faz em relação aos aspectos físicos. Os demais personagens ficam, em sua maioria, em segundo plano, enquanto personagens como o próprio Zezinho, seu irmão mais velho Orlando e o amigo Valtério são construídos ao longo da narrativa, sem uma preocupação de caracterizá-los profundamente. Seus detalhes vão sendo construídos ao longo da história.

Orlando é representado como o irmão mais velho que gosta de fazer troça do mais novo, em contraste com os caçulas da família que se demonstram sensíveis, prestativos e inocentes e buscam ao seu modo ajudar Zezinho ou pelo menos consolá-lo, mesmo que este não saiba reconhecer e aceitar o pequeno e inútil esforço dos irmãozinhos.

Valtério no imaginário de Zezinho é seu principal antagonista, porque seria ele o incitador da questão da venda da porquinha. Foi sua inveja e cobiça de ter uma porquinha mansa que incitou o pai, seo Martinho a querer comprar Maninha e, por sua vez, estimulou Odilo a vendê-la. Por isso, no imaginário simplista de criança injustiçada, primeiro pelo amigo que lhe traíra, e depois pelo pai que desconsiderava sua estima pelo animal, faz com que ele veja Valtério como inimigo invejoso que conta vantagem em poder, pela força do dinheiro, tomar-lhe a porquinha preta.

Um livro que fala de educação e de amor

Fotografia: Eric Silva, 2018.
O enredo do livro é simples, porém profundo. Zezinho, o dono da Porquinha Preta, é uma obra essencialmente pedagógica, a qual já utilizei muitas vezes em aulas de aperfeiçoamento da leitura.

Como educador formado em letras e que exerceu o magistério, Jair demonstra, em uma linguagem muito simples, que a melhor educação é aquela feita com diálogo e sem violência. Essas são as temáticas principais de seu livro: educação e amor.

Odilo é um homem rude que educa seus filhos com uma disciplina baseada no medo e na violência. A sensação transmitida pelo livro não é a de que seus filhos o respeitam porque o amam e admiram, mas porque o temem, porque temem um castigo do qual em algum momento já haviam sido submetidos.

“Zezinho saiu apressadamente. Ordem do pai era ORDEM de verdade. Não era brincadeira. Nem era pensar em contrariá-lo. Correu e foi ajudar o irmão no paiol”.

Ele não demonstra afeto pelos filhos e nem compreensão. Não age conforme um diálogo para entender as crianças e suas vontades para fazê-las compreender seus motivos e respeitarem a sua autoridade. Averso a qualquer conversa ele prefere demonstrar seu poder contrariando os desejos da esposa e dos filhos em vez de entrar em um consenso com os mesmos:

“Sabia que o pai sempre gostava de contrariar a mãe, mostrando que não aceitava opinião de ninguém em casa, mas talvez ela conseguisse alguma coisa”.

Em sua compreensão as vontades e desejos das crianças não deveriam ser ouvidas, muito menos atendidas, devem ser descartadas imperando apenas a palavra dele:

“Menino não tem querer. Menino não tem nada aqui em casa. Só tem a roupa que veste e a comida que come”.

Trata-se de uma educação rígida, inflexível e violenta – simbólica e fisicamente falando – e que resulta, invariavelmente, em problemas futuros. Quase sempre este autoritarismo gera desobediência, o que de certa forma acontece com Zezinho.

Como educador e quase pai, acredito que o diálogo e a liberdade de expressão são caminhos mais promissores ainda que não perfeitos – não há educação perfeita –. Isso não significa que não haja autoridade. Autoridade é conquistada com respeito e admiração. O diálogo serve para esclarecer o posicionamento de ambos e o adulto tomando a sua concepção acerca do problema e o posicionamento da criança deve ponderar e saber quando dizer não e quando ser flexível, sempre tentando fazer a criança compreender as razões de suas decisões e a legitimidade das mesmas.

O que falta na relação de Odilo e sua família é essa flexibilidade e diálogo. Pelo contrário, ele prefere punir o erro com a violência em lugar do diálogo, dos combinados e das proibições e suas respectivas consequências quando são quebrados os acordos e imposições (punição não violenta). Essas são práticas que ensinam e impõem limites. Centrado em uma educação arcaica, Odilo prefere a agressão física:

E já foi tirando o cinturão. Quando via o pai puxando o correião daquele jeito, tremendo de raiva, a surra não era brincadeira. Ia ser fogo. O pai não perdoava. Fugir era uma coisa que não devia nem pensar. Só se fosse para nunca mais voltar em casa.

– Não, paizinho, vou capinar agora.

– Aqui o seu capinar, Zezinho.

A primeira lambada estalou nas pernas. Zezinho pulou e acudiu com as mãos. A segunda guascada atingiu as mãos dele e ara aliviar a dor, levou as mãos à boca. Mas o pai não cava tempo de ele acudir a dor. As lambadas eram rápidas e terríveis. A dor andava das costas às pernas.

O propósito de Jair Vitória é tecer uma crítica a esse modelo arcaico de disciplinamento, e no final mostra que seu resultado nem sempre é bom ou tem um resultado conforme o desejado. O que fica é a revolta:

Sentia o corpinho dolorido, macetado. Não estava gostando do mundo naquele momento. Toda vez que apanhava, passava a estar contra tudo.

“Mas a Maninha ele não vende. Se ele vender, eu mato ela. Dou veneno pra ela. Vou pegar aquele Valtério e dar um murro no nariz dele pra tirar sangue.”

Por isso, Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma leitura que também recomendaria aos pais como uma reflexão sobre educação.

Por outro lado, outro aspecto explorado pela narrativa é o amor. O amor do pai que falta aos filhos e o amor de Zezinho pelo animal de estimação. Isso de certa forma está também ligado ao tema de educação. Porque não existe educação verdadeira que deixe de lado o amor. É preciso amor para educar, porque se trata de uma tarefa árdua.  Do amor nasce a compreensão e a empatia em relação ao sofrimento do outro, mas é também do amor que nasce o desejo de lutar. O amor por Maninha fortalece Zezinho para que ele desafie os desejos do pai de vendê-la, mesmo com todo o medo que ele sente por aquele homem de figura imponente e ameaçadora.

Últimos comentários: narração, escrita e desfecho

Narrado em terceira pessoa e seguindo um tempo cronológico, Zezinho, o dono da Porquinha Preta é um livro de linguagem simples e escrita limpa, sem muitas metáforas ou recursos estilísticos que viessem a complicar a compreensão de seu principal público-alvo: crianças e jovens adolescentes.

Os diálogos e mesmo a narração aproveitam da linguagem simples do interior explorando muitos vocábulos regionais de uma linguagem popular que é mais próxima da realidade daquelas pessoas. Isso garante o realismo e a verossimilhança da narrativa. Contudo, é nos diálogos que essa particularidade fica mais visível. Imitando a forma regional de falar ou autor usa o coloquialismo para construir falas como: “Mas ele é mais grande que você, Zezinho” ou “É capaz que eu vou também”.

O narrador explorar alguns termos regionais, mas, por seu lado, garante todas as convenções da norma-padrão da língua, sem, no entanto, utilizar-se de um tom erudito ou rebuscado.

Em sua escrita, Jair mistura os pensamentos de Zezinho às falas do narrador ao ponto de narração, comentários e pensamentos narrados em discurso indireto virarem uma coisa só, numa forma de narração confortável e gostosa que flui tranquilamente e instiga a leitura.

Ilustração de Cirto Gerano que encerra o sexto capítulo.
As ilustrações de Cirto Genaro são bonitas e delicadas feitas com técnicas na ponta de lápis com delicadeza e realismo.

O desfecho é tocante e não desagrada, mas é um pouco abrupto e apressado. Mas independentemente de ter sido apressado e não desenvolver plenamente uma das cenas mais tocantes da história, ele entrega a narrativa deixando um questionamento sobre crescimento, amadurecimento e determinação, ressaltando até mesmo em suas últimas linhas o caráter pedagógico do livro.

A história de Zezinho não é minha preferida dentro da Coleção Vaga-lume, mas está entre os livros que mais admiro por ser muito bem escrito e trabalhado com carinho pelo seu escritor. É perceptível pela escrita de Jair o carinho e docilidade com o qual ele compôs sua narrativa e personagens, transformando uma historinha simples e até banal em um livro bonito e delicado, que busca ensinar seus leitores através de personagens cativantes e sem perder o realismo ou tornar-se por demasia infantil.

A edição lida é da Editora Ática, do ano de 1996 e possui 127 páginas.

Sobre o autor

Jair Vitória nasceu numa fazenda no município do Prata, Triângulo Mineiro, em 1943. Viveu seus primeiros sete anos na zona rural e só conheceu a cidade quando já era rapazinho.  Era filho de lavradores e estudou a maior parte do tempo na escola da zona rural. Parou de estudar três vezes para ajudar os pais na roça. Entretanto, o pai desejava ao filho um destino diferente do dele que não possuía nem o primário. Jair volta a estudar na roça até quando chegou à universidade. Trabalhou de datilógrafo e estudou à noite. Dedicou-se ao magistério e à literatura e formou-se em Letras, pela Universidade de São Paulo.

Seu primeiro livro publicado foi o livro de contos "Cuma-João".

Aposentado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, retornou ao Triângulo Mineiro, e, atualmente, vive na pequena cidade de Tupaciguara, onde escreve seus livros.





[1] Cavidade, na encosta de serra ou de morro, provocada por águas das chuvas, ou, em ribanceira de rio, por águas de enchentes (Houaiss, 2001)

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