domingo, 2 de dezembro de 2018

7ª Arte: Koe no Katachi – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Sensível e comovente, Koe no Katachi (聲の形, lit. "A Voz do Silêncio") é um longa-metragem de animação japonesa que com uma profunda delicadeza aborda a questões sérias como a surdez, o bullying e o suicídio. Um filme com um enredo universal, mas que fala precisamente da realidade japonesa no que diz respeito ao drama do suicídio.

Sinopse

Shōko Nishimiya (西宮硝子) é uma menina com deficiência auditiva – baixa audição – que sofre bullying de um grupo de colegas ao entrar para uma escola de ensino regular. Atormentada pelo assédio de um dos garotos particularmente mais travesso, Shōya Ishida (石田将也), ela vive um inferno particular ainda que tente com todas as forças fazer o seu melhor e ser amiga de todos.
Ishida não consegue compreender nem aceitar a condição de Nishimiya e começa a assediá-la quebrando seus aparelhos auditivos, dando-lhe sustos, destruindo seu material escolar, até chegar ao ponto de ferir seus ouvidos, o que causa a revolta da família da menina que pouco depois sai da escola.

Em consequência de suas ações, a mãe de Ishida tem um prejuízo financeiro e o rapaz passa a ser hostilizado pelos colegas e desprezado por seus pares, o que o torna tímido e antissocial. Sua dificuldade de se relacionar com as pessoas é tão grande que ele passa a ignorar os sons do seu entorno e não consegue encarar os rostos de seus colegas. Anos depois, farto das atitudes de desprezo dos antigos amigos e dos colegas, Ishida tenta cometer suicídio, mas desiste no último segundo, tomando a atitude de tentar consertar seus erros cometidos no passado e viver uma vida nova.

Resenha

Baseado em um mangá homônimo, Koe no Katachi (2016) é um drama romântico, obra do diretor Naoko Yamada (K-On!) e escrito por Reiko Yoshida (Waka Okami wa Shōgakusei!)[1]. O filme tem uma trama universal pintado com as cores da realidade japonesa, país com elevadíssimo índice de suicídio. A ideia, porém é delicada, romântica, dramática e comovente.

Esta animação está entre meus longas animados favoritos e tenho por ele um carinho de fundo sentimental, por razões muito pessoais. Yamada faz um trabalho excepcional e singelo com uma trama simples, mas com cores complexas e profundas. O filme é sereno como carpas nadando em água cristalina e repleta de luz, mas seu caráter multitemático e a importância de seus temas o faz profundo como um poço.

Os diálogos são inteligentes e, por vezes, profundos. Uma de minhas falas preferidas é do personagem Tomohiro Nagatsuka (永束友宏), primeiro amigo que Ishida faz no novo colégio, após salvá-lo de um valentão. Na cena, Nagatsuka explica a Ishida porque se tornou seu amigo e num tom divertido e brincalhão diz uma das frases mais belas do filme: “amizade está além da lógica e das palavras.

O filme não possui tom de humor, mas uma curva dramática suave e constante que envolve seu expectador e emociona, sobretudo em seu clímax, parte mais dramática, chocante e comovente de todo o filme.

Na parte técnica, Koe no Katachi é um filme que explora sobretudo o uso da câmera e uma paleta de cores bem claras e luminosas que pintam cenários singelos em sua maioria urbanos, mas também do rio local, principal cenário natural da história. Esses elementos juntos com uma trilha sonora que se harmoniza com os humores de cada cena enchem a tela de delicadeza, beleza e simplicidade.

Muita luz e cores claras.
Os cenários de Koe no Katachi não tem a mesma beleza estética de outra animação japonesa que assisti recentemente, Your Name, mas, ainda assim, é um filme belo e bem desenhado, algo bem dentro do padrão de qualidade da maioria dos animes japoneses. A luminosidade das cenas é fantástica entregando um filme claro que condiz com sua delicadeza.

A câmera sempre busca alternar diferentes ângulos produzindo efeitos bonitos e delicados. Longshots, planos de detalhes e contra-plongées são os enquadramentos mais bem explorados, indo do distante passamos para o muito próximo, e por vezes esse próximo capta apenas gestos ou detalhes: uma parte do corpo como mão, pés e braços, um jarro de flores, flores tremulando ao vento, pequenos furtos que caem de uma árvore ou a imagem singela de carpas nadando no rio.

A música de Kensuke Ushio não tem nada de especial, mas sustenta o equilíbrio entre câmera, cenário e cena, indo de alguns ritmos mais rápidos e agitados a outros muito tranquilos, em sua maioria tranquilos.

Porém, são os personagens os pontos mais fortes do filme. Muito diversas suas “atuações” demonstram as mais diferentes facetas dos sentimentos humanos como culpa, gentileza, raiva, preconceito, arrependimento, amor, agressividade, arrogância, perdão e vulnerabilidade. Sem dúvida são personagens bem-feitos, complexos, redondos e críveis, cada qual com sua própria “humanidade” e trazem uma mensagem positiva frente a vida e sobre o valor do arrependimento sincero e do perdão.


Elenco principal
Nishimiya é uma garota gentil e sensível que sinceramente deseja ser amiga de todos e se relacionar bem com seus colegas de sala. Ela é, sem dúvidas, uma protagonista que intriga e encanta o expectador tanto quanto Ishida que se transforma ao longo da trama se tornando mais gentil e preocupado com as pessoas. Ele era travesso e insensível no começo da história, mas se torna alguém triste e reflexivo, mas, ao mesmo tempo, alguém que vem dando tudo de si para se tornar alguém melhor. O romance que parece se desenvolver entre os dois não é foco do filme, o que o torna algo bastante delicado. Mas os dois são responsáveis pelas cenas mais tensas e difíceis da obra.

Os protagonistas podem até parecer monótonos, mas é o conjunto com as personalidades mais ativas dos outros personagens que fazem o filme. Personalidades como da determinada Yuzuru Nishimiya (西宮結絃), irmã mais nova de Shoko; da arrogante de Naoka Ueno (植野直花), colega de Ishida e Shoko quando eram do fundamental; ou a atitude egoísta de outra das colegas da época, Miki Kawai (川井みき) que sempre se fazia de vítima quando, na verdade, por omissão, também tinha parcela de culpa no bullying cometido contra Shoko. O choque entre essas personalidades contrastantes e as mudanças que elas vivem ao longo da trama tornam mais tensa, real e profunda a história.

Multitemático: a surdez, o bullying e a questão do suicídio.

Apesar de seu um drama romântico, o romantismo da trama é bem suave e fica em segundo plano, não se sobressaindo em relação a temas mais pesados como o bullying e o suicídio. Koe no Katachi é um filme multitemático e que perfeitamente enquadrado em seu contexto histórico e local. O tema da surdez é o ponto de apoio da trama cujo título (em português, A voz do silêncio) faz referência.

A surdez é uma condição que ao longo da história foi vista de forma preconceituosa. No passado, os surdos não eram vistos como pessoas. O grande valor que era dado a oralidade fazia com que o olhar da sociedade tirasse dessas pessoas a sua humanidade, puramente pela incapacidade dos mesmos de falar.

Na Idade Média, por exemplo, os surdos não podiam ser herdeiros de sua família e para contornar essa situação algumas famílias abastadas pagavam preceptores que fossem capazes de ensiná-los a falar. A Igreja Católica por muito tempo teve um importante papel nesse processo discriminatório já que sua surdez fugia do padrão de “a imagem e semelhança de Deus”.

Na História, houve períodos em que a linguagem de sinais foi desenvolvida para permitir a comunicação dessas pessoas, e, em outras, ela foi vista como maléfica e por conta disso muito surdos foram obrigados a aprender a falar, a usar a oralidade a partir até mesmo de métodos perversos e completamente ineficientes.

Enfim, ao longo de séculos a surdez foi colocada em uma condição de discriminação e os surdos colocados em uma posição submissa. Hoje muita coisa mudou, mas os surdos ainda não se encontram realmente incluídos na sociedade. Os Estados ainda não vêm preparando a sociedade para socializar normalmente com os surdos e facilitar a comunicação com os mesmos. O preconceito sobrevive e pouco é feito para combatê-lo. Mas esse preconceito, quando se dá nas escolas, dá margem a outro problema da sociedade moderna: o bullying.


Cena de bullying cometido por Ishida contra Shoko.
O bullying é um fenômeno que nasce da incapacidade das pessoas de aceitaram o que é diferente e numa atitude de demonstração de poder cometem atos de violência psicológica e até física contra aqueles que não se encaixam num determinado padrão social. É também uma atitude de tentativa de se sobressair socialmente través de brincadeiras que divertem alguns em detrimento de outros, no caso da vítima.

A condição de surdo é algo que despertou em Ishida essa incapacidade de aceitação. Ele considerava a atitude e as necessidades de Shoko incômodas, achava, ainda mais perturbadoras suas tentativas de socializar e fazer amizades, sempre perdoando ou fingindo não perceber as maldades de seus colegas, as brincadeiras cruéis e as agressões. Ela buscava fazer o seu melhor e integrar-se naquele conjunto como uma igual. Suas atitudes eram positivas, humildes e resignadas, mesmo quando ela tinha tudo para se lamentar ou sentir raiva. A personalidade tão diferente de Shoko desperta o ódio de Ishida, porque ele era incapaz de entendê-la e se demonstrou igualmente incapaz de fazer o mesmo quando foi sua vez de estar do outro lado e ser a vítima do bullying, tentando recorrer ao suicídio.

O suicídio é outra temática muito bem explorada pela trama do filme. O Japão é conhecido por possuir uma elevada taxa de suicídios se comparado a muitos países.

Tentativa de suícidio de Ishida
Segundo uma reportagem da BBC Brasil, de 2015[2], mais de 25 mil pessoas cometeram suicídio no Japão, numa média de 70 por dia, sendo que o suicídio é a principal causa de morte entre os homens japoneses com idades entre 20 e 40 anos.

Como afirma essa reportagem, o principal fator dos suicídios é o isolamento que antecede a depressão e o próprio suicídio. Acredita-se que o suicídio em nome da honra que historicamente foi cometido pelos samurais ("seppuku") e pelos jovens pilotos "kamikazes" da Segunda Grande Guerra seria um dos motivos principais para a elevada frequência com a qual os japoneses tiram a própria vida. Ou seja, eles encaram o suicídio “como uma forma de assumir responsabilidade por alguma coisa". Mas essa não seria a razão tratada pelo filme, e sim o sofrimento pessoal.

A reportagem da BBC esclarece que no caso dos jovens japoneses a perda da esperança e a incapacidade de pedir ajuda são os principais motivos para se matarem. As crises financeiras se demonstraram como fator estimulador, uma vez que a realidade trabalhista e econômica se tornou bastante difícil e desfavorável com "condições precárias de emprego".

No caso de Ishida e Shoko o sofrimento pessoal causado pelo bullying os levaram a uma condição de desespero e inconformidade. Sentir-se socialmente deslocado e isolado fragilizou a vontade de ambos em tentarem se manter vivos. O suicídio se apresenta então como possibilidade real de amenizar o sofrimento pessoal. A própria estrutura social os impelem a isso:

"Esta é uma sociedade muito orientada por regras. Jovens são moldados para se encaixar em nichos existentes. Não há como alguém expressar seus sentimentos verdadeiros. Se são pressionados por seu chefe ou se deprimem, alguns acham que a única saída é morrer."[3]

Esse é o caso dos personagens do filme, que apesar de jovens não se sentem adequados e são incapazes de pedir ajuda, pois a cultura os impelem a resolver sozinhos os seus problemas. Levá-los a outras pessoas significaria ser inconveniente e incômodo.

A reportagem ainda esclarece que “o Japão é famoso por uma condição conhecida como "hikkimori", um tipo de isolamento social grave”, que seria alimentado pela tecnologia que incentiva esse isolamento. Por se tratarem de jovens com “muito conhecimento, mas pouca experiência de vida”, pessoas como Ishida e Shoko “não sabem como expressar suas emoções", as guardam para si e chegam a um extremo de inferno pessoal. Se isso não bastasse, aponta a reportagem, os sistemas de tratamento para os que sofrem de depressão são ruins e a doença mal compreendida, o que inviabiliza um tratamento adequado e eficiente. O sofrimento dessas pessoas chega a uma condição insuportável e a morte se torna algo bem mais atraente.

A mensagem trazida pelo filme é a de que lutemos para dar o melhor de nós mesmos tentando preservar a esperança na vida. Que busquemos ajuda e nos relacionar melhor. Ele ainda busca demonstrar os resultados nefastos do bullying e combatê-lo, trazendo uma mensagem de respeito às diferenças e as deficiências físicas.

Enfim, é um filme delicado e inspirador que joga uma reflexão sobre eventos e questões contemporâneas tanto japonesas como universais, promovendo uma discussão relevante e tecendo uma mensagem positiva que atinge em cheio seus expectadores. Um filme que cumpriu minhas expectativas e que já assisti diversas vezes por ser especial, educativo e louvável seja pela beleza de sua narrativa ou pela importante contribuição social que ele faz.

A película é uma produção dos estúdios Kyoto Animation, e entrou em cartaz no ano de 2016. Tem duração de 130 minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:



Trailer








[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Koe_no_Katachi_(filme)
[2] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb
[3] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb

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