segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

A Vida Secreta do Senhor de Musashi e Kuzu – Junichiro Tanizaki – Resenha


Por Eric Silva

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Um samurai com uma perversão sádica e necrófila e um escritor que parte em uma jornada em busca de inspiração, A Vida Secreta do Senhor de Musashi é a reunião de duas novelas que inicialmente chama à atenção por uma temática muito peculiar e provocativa, mas que no final não impressiona.

Confira a resenha do décimo livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que em 2018 homenageia literatura japonesa.

Um livro, dois enredos distintos

Retratando duas épocas distintas da história do Japão, as duas novelas que compõem esse livro possuem tons e temáticas bastante distintos ainda que abordem a cultura de um mesmo país.

A primeira novela, que dá nome ao livro, relata a história de Terukatsu, o filho de um poderoso senhor de terras, que na infância foi conhecido por Hôshimaru e, na idade adulta, chegaria a suceder seu pai como o senhor de Musashi.

A Vida Secreta do Senhor de Musashi começa contando como, ainda na infância, Hôshimaru havia perdido sua inocência e adquirido uma certa inclinação sexual sadista.

Quando ainda era criança seu pai, Terukuni, selou um acordo político de paz com Tsukuma Ikkansai, senhor do castelo de Ojika. Nos termos desse acordo, Terukuni entregou seu filho mais velho e herdeiro, de apenas seis anos, como refém de Ikkansai. Hôshimaru foi então separado de sua família e levado ao castelo de Ojika, onde viveu por dez anos recebendo instrução em literatura e artes marciais para que se tornasse um samurai.

É nesse período que o castelo de Ojika é cercado por tropas inimigas e após semanas de cerco ameaça é tomado pelos inimigos. Por ser ainda menino e incapaz de lutar, Hôshimaru fica isolado com as mulheres e outras crianças no interior do castelo enquanto a guerra não é decidida. Inconformado por não poder participar das lutas, o menino fica curioso acerca das batalhas que acontecia fora dos muros do castelo até que ele encontra a oportunidade de presenciar um dos mais importantes rituais de guerra da cultura japonesa da época: o trato das cabeças decapitadas dos inimigos vencidos em batalha.

Ajudado por uma das mulheres que cuidavam das cabeças recolhidas pelos guerreiros de Ikkansai, Hôshimaru foge até um sótão isolado do castelo e lá assiste a um grupo de mulheres, entre elas uma linda jovem, que lavavam, penteavam e maquiavam as cabeças decapitadas. Maravilhado com aquele ritual e sobretudo com o zelo extremado com o qual a mais jovem das mulheres tratava as cabeças dos samurais, o menino desperta para sua sexualidade e tem o gatilho para o desenvolvimento de um fetiche sexual sádico e necrófilo que o acompanhará pelo restante da vida e que, de modo direto, influirá na sua personalidade, nas suas ações depois de adulto e nas suas decisões enquanto guerreiro e senhor feudal.

Por usa vez, na segunda novela, Kuzu, Junichiro Tanizaki conta a história da jornada de dois amigos à remota povoação que dá nome à história. O narrador de Kuzu é um escritor que busca inspiração para seu novo livro e decide partir em uma viagem à região de Yoshino, em Yamato, onde poderia resgatar informações sobre a vida de uma importante figura da história medieval japonesa: o Imperador Celestial. Com ele viaja um antigo amigo que busca alguns parentes e com eles as origens e a história de sua mãe falecida ainda muito jovem. Juntos eles seguem uma jornada de encontros e reencontros com o passado. A história gira entorno dessa busca dos dois personagens ao passo que se concilia com elementos da história e da cultura secular japonesa.

Resenha

Capa da edição lida. Imagem produzida por Eric Silva, em dezembro de 2018.
À primeira vista A Vida Secreta do Senhor de Musashi e Kuzu podem parecer duas narrativas bastante distintas, apesar de escritos pelas mesmas mãos. Essa sensação é em decorrência das temáticas muito diferentes e discrepantes. Contudo notei várias semelhanças no estilo de suas narrativas. A primeira delas foi a forma documental com o qual se dá a narração.

Em ambas as novelas Tanizaki traz um narrador que é também um investigador do passado. Tanto o narrador observador de A Vida Secreta do Senhor de Musashi quanto o narrador personagem de Kuzu contam suas histórias com um profundo tom jornalístico que enfatiza bastante as peculiaridades culturais e históricas dos momentos históricos por eles pesquisados.

O narrador da primeira novela se apoia em escritos de pessoas próximas do senhor de Musashi para narrar sua história. Ele interpreta os escritos o compara e aí reconstrói o mosaico da vida sexual e particular do protagonista. Enquanto isso, o narrador de Kuzu mescla documentação histórica com história pessoal sua e de seu amigo, mas ainda aí há um profundo tom de resgate e de documentação do passado.

Outro aspecto foi a ênfase grande nos aspectos culturais de cada época. Muitas referências às artes literárias e guerreiras, às fábulas e à cultura são feitas pelo escritor, com maior destaque para Kuzu.

Contudo o conteúdo de A Vida Secreta do Senhor de Musashi é mais inquietante, ainda que não seja um texto apelativo ou demasiadamente pesado. Não é uma abordagem pornográfica e muito menos sensacionalista, mas que ainda assim mexe com muitos tabus. Por sua vez, Kuzu tem uma temática bem mais leve e monótona – na verdade achei todo o livro monótono. 

Por ser profundamente ligado a elementos culturais do Japão, esse segundo conto exige do leitor conhecimentos profundos sobre a literatura, a história japonesa, do seu folclore e de seu teatro tradicional. Confesso que me senti perdido na leitura dessa novela, que além de enfadonha é cheia de citações e referências a coisas que simplesmente desconheço e cuja ausência de notas de rodapé contribuíram para me manter na ignorância. Por isso, não consegui me concentrar na leitura que foi mais maquinal e mecânica do que imaginei que seria ao começar as primeiras páginas.

A escrita de Tanizaki não é atrativa, metafórica ou lírica e poética, ainda que seja firme e fluida. Mesmo Kuzu com a beleza de seus cenários poderia ser um conto belo e poético, mas foi seco e sem beleza.

Objetivamente, nada nos dois contos me chamou muito a atenção. O caráter jornalístico das novelas foi o que mais me desestimulou durante a narrativa com as constantes intromissões e análises do narrador da primeira novela, bem como com a insistência do narrador de Kuzu em fazer milhares de referências e inferências a aspectos da história japonesa e de sua arte.

Quando li Beleza e Tristeza de Yasurai Kawabata me incomodou um pouco as constantes e massivas referências ao mundo das artes e que davam base a trama, mas consegui tolerá-las sem prejuízo da minha compreensão da narrativa. Em grande parte, a escrita limpa de Kawabata e a construção dos personagens e do drama entorno do qual gira a trama tenham contribuído enormemente para manter minha atenção. Contudo, o mesmo não se deu com os escritos de Tanizaki. De certo modo a falta de sabor como o qual a segunda metade da primeira novela se desenvolve foi o gatilho para que eu não tivesse mais paciência para compreender Kuzu de uma forma mais global. Confesso que só os últimos capítulos foram para mim mais significativos e inteligíveis, porém o desfecho dessa segunda novela foi tão fraco e decepcionante que me arrependi do tempo gasto em sua leitura.

Aprendi um pouco mais da história dos samurais e das guerras e conflitos medievais da história japonesa e mesmo o rito das cabeças decapitadas me pareceu interessante. Por isso, e somente por isso valeu a pena ler A Vida Secreta do Senhor de Musashi, mas a história vai se tornando maçante e o texto não possui uma beleza estética que me impressionasse.

Ademais, os personagens, ainda que bem descritos e desenvolvidos, não impressionam nem cativam. Só Hôshimaru intriga por suas ações e inclinações morais, mas ele sozinho não é o suficiente para impedir que a trama se torne chata em grande parte do seu desenvolvimento. Não senti nenhum humor na trama nem um sentimento forte o suficiente para reduzir o forte tom jornalístico da primeira trama. Kuzu ainda suaviza esse seu caráter do meio para o final da trama, mas não salva por completo a peça.

A edição lida é da Editora Companhia das Letras, do ano de 2009 e possui 218 páginas.

Sobre o autor

Junichiro Tanizaki (谷崎 潤一郎) nasceu em 24 de julho de 1886, em Tóquio. É um dos maiores autores da literatura japonesa moderna e o mais popular romancista japonês depois de Natsume Soseki.

Estudou literatura japonesa na Universidade Imperial de Tóquio e com influências de Poe, Baudelaire e Oscar Wilde, começou a escrever desde cedo.  Publicou seu primeiro trabalho em 1909, numa revista literária que ajudou a fundar.

A partir de 1923, deixou-se absorver pela cultura de seu país e abandonou a inclinação ocidentalizante, vivendo nesse momento uma crise intelectual e emocional que contribuiu decisivamente para torná-lo um dos nomes centrais da literatura japonesa do século XX. O centro dos seus interesses é a preservação da língua e da cultura tradicional do Japão.

Em 1949, recebeu o prêmio Imperial de Literatura. Dentre suas principais obras estão Amor insensato (1924), Voragem (1928), Há quem prefira urtigas (1930), A chave (1956) e Diário de um velho louco (Estação Liberdade, 2002).

Morreu em 30 de julho de 1965, um ano após ter sido o primeiro autor japonês eleito membro honorário da American Academy and Institute of Arts and Letters.



2 comentários:

  1. juliaalvares.c@hotmail.com28 de janeiro de 2021 às 15:14

    Nossa, esse é um dos livros que eu mais gosto na vida. Gostei muito da primeira novela, porque é muito bem escrita, o tema é interessante e é um refresco ler livros de uma cultura sem a culpa cristã sempre de fundo. Mas o que eu realmente amei foi Kuzu. Li numa época apropriada também, porque foi num final de semestre em que eu estava cursando uma matéria na universidade de patrimônio cultural, material e imaterial. Achei a história linda, me perdi na leitura. O Tanizaki escreve bem demais, e o tradutor arrasou. Mas é uma história para a qual você tem que estar com disposição. É uma viagem na construção da memória, pessoal e coletiva, nas barreiras entre imaginário, real e memória, na narrativa da memória. E foi uma demonstração prática de tudo que eu estava aprendendo na matéria de patrimônio cultural. Fiquei também morta de vontade de conhecer o sul do Japão. Você procurou imagens da planta kuzu? Parece um cenário de sonho.

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    1. Olá, Julia. Obrigado pelo comentário.

      Lembro-me que quando li esta obra não consegui me identificar completamente com ela, apesar de ser nipófilo. É um livro para ser lido mais de uma vez, que exigem conhecer a complexa tessitura histórica e cultural do Japão e por isso fiquei disperso em boa parte da leitura. Menos no primeiro conto e mais em Kuzu.

      Você felizmente estava em uma posição melhor, imersa em uma discussão que coadunava com a trama e teve desse modo uma experiência mais profunda, intima e significativa com a trama do que o meu eu de 2018. Acredite, porém que apesar de minha impaciência com a monotonia da literatura japonesa como expressei ao falar deste e de outro livro nesta resenha, sou sempre impelido e atraído por ela e já tenho outra meia dúzia de livros japoneses por lê na estante.

      Quanto a planta Kuzu, só obtive resultados significativos ao fazer a pesquisa em inglês com a expressão chave "kudzu plant". Se for realmente a planta a que se refere, sua observação é de fato certeira.

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