Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo
7 de março de 2021, ano da Itália
“O mimetismo batesiano se verifica quando uma espécie
animal inócua, aproveitando sua semelhança com uma espécie tóxica ou venenosa
que vive no mesmo território, consegue imitar a cor e os comportamentos dessa
última. Assim, na mente dos predadores, a espécie imitadora é associada à
perigosa, o que aumenta suas possibilidades de sobrevivência”.
(Niccolò Ammaniti, epígrafe)
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colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após
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Confira a resenha do terceiro livro da IV Campanha Anual
de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.
Sinopse do enredo
Roma,
fevereiro de 2000. Munido de comida, bebida, livros e jogos, Lorenzo Cuni está
escondido no porão de seu prédio, rodeado de objetos empoeirados de uma
condessa morta, esperando que a semana branca (settimana bianca) acabe e ele possa enfim retornar para o andar de
cima e contar para a mãe o quão divertido foi passar aqueles dias esquiando nos
alpes italianos com seus amigos.
Mentir
e esconder-se ali era a única opção depois que ele inventou uma viagem que não
existia com amigos que ele nem se quer conhecia. Uma maneira louca de fugir da
perseguição dos pais que queriam que ele tivesse amizades.
Tudo
parecia dar certo. Ele conseguiu enganar os pais em relação a viagem, e
conseguiu despistar a mãe quando esta queria levá-lo ao ponto de encontro com
os tais amigos. Depois disso, conseguiu se instalar secretamente em seu refúgio
sem grandes esforços. Apesar disso, ele não contava que um segundo elemento se
introduziria em seus planos: a meia irmã Olivia, com a qual Lorenzo quase não
teve nenhum contato e que era viciada em drogas.
Naquele
justo momento, Olivia aparece em busca de algumas coisas pessoais no porão da
casa do pai, de algum dinheiro e de um lugar para “ficar limpa”, ou seja, para
esperar passar o tempo de abstinência dos narcóticos que usava. Sob coerção,
Lorenzo se vê obrigado a “hospedar” a irmã em seu refúgio secreto e, por vários
dias, conviver com ela, uma quase desconhecida. É assim que Olivia se soma a
equação de Eu e Você, e à vida do
jovem Lorenzo.
Resenha
Quando
comprei Eu e Você, em 2019, de
planos fazer naquele ano a quarta edição da CALCT, fiquei um
tanto receoso porque a capa e o título sugerem mais um daqueles romances de
amor adolescente e dramático. Todavia o livro de Niccolò Ammaniti vai para um
caminho totalmente oposto, e se ainda
assim Eu e Você (no original, Io e Te) seja um tanto dramático, é um livro sem muito romantismo,
cheio de originalidade e que conseguiu me agradar com seus personagens, sua
narrativa e sua leitura ágil e descomplicada.
Li numa resenha que este livro promete pouco e entrega pouco, mas para
mim, esse “pouco” foi mais do que o suficiente. É claro que Eu e Você não explora as belas paisagens italianas ou os cenários
romanos seculares, mas, por outro lado, explora um pouco da natureza humana
daqueles que são deslocados. O próprio protagonista e narrador é daquelas
almas egocêntricas que preferem a solitude de estar em sua própria companhia
porque considera que não há nenhuma outra associação melhor, mas que se vê –
por atrito – forçado a amadurecer. A outra protagonista é uma pessoa destruída
pelo desprezo de seus pares e pelo vício das drogas. Alguém desajustado, que
mesmo não estando à espera de que alguém lhe estenda a mão, luta com suas
próprias forças para encontrar um caminho.
Ammaniti parece gostar dos romances
dramáticos e de família, a exemplo do seu elogiado Como Deus Manda (Come Dio
Comanda), onde os dois protagonistas, pai e filho, vivem uma relação
baseada na violência e no conflito. Eu e Você é mais
suave, mas possui seus próprios tons dramáticos. A temática sobre as drogas já se tornou
corriqueira – afinal, mais do que nunca, o uso de drogas se tornou um fato
universal –, mas está em perfeito equilíbrio com a proposta e nível do livro.
Ainda assim, ele foi bom o suficiente para garantir uma adaptação para o cinema
realizado em 2012 por Bernardo Bertolucci e que rendeu várias indicações para o
Prêmio David di Donatello.
A
escrita de Ammaniti é ágil, leve e sucinta sem deixar de ser descritiva e bem
escrita. É prosaica, mas não destituídas de alguma poesia. Há um
equilíbrio entre diálogo e narração, e o narrador, por sua personalidade
individualista é irônico e opinativo. Mas o interessante nesse livro é o choque
existente entre duas gerações de irmãos tão distintos entre si. Ele amado e
mimado, ela ovelha negra, perdida, indesejada. Desse choque nasce uma novela
interessante, ainda que limitada. Mas o que quero mesmo é destacar seus
personagens muito bem-feitos.
Lorenzo
é um personagem tão peculiar quanto interessante. Ele é um ator nato e o meio termo entre um adolescente esnobe e
malcriado, mas sensível, e o futuro projeto de um manipulador taciturno,
antissocial e calculista, mas que não se concretiza. Observador,
inteligente, e egocêntrico, mas pouco dado a conversar com aqueles que não
faziam parte de seu círculo familiar. Só a mãe, o pai e a avó lhe importavam.
Os
pais se preocupam com a pouca sociabilidade do filho. Quando era pequeno,
Lorenzo só respondia aos estranhos com “sim, não, e não sei”, e se insistissem,
dizia aquilo que eles queriam ouvir. Quando “os outros” não o deixavam em paz,
se tornava agressivo e, por isso, os pais preocupados o mandaram para um
psicólogo, que o menino tratou logo de tentar enganar, fazendo-se passar por um
“menino normal”. Contudo o diagnóstico não poderia ser ao mais exato: Lorenzo
era “incapaz de sentir empatia pelos
outros”, “[...] tudo que está fora de
seu círculo afetivo não existe, não lhe suscita nada” e “acredita que é especial e que apenas pessoas
especiais como ele podem compreendê-lo”.
Os
pais, obviamente, desacreditaram deste diagnóstico e tiraram o menino do
tratamento. Para eles, o filho era “afetuoso”, “um menino normal”. No entanto,
aquela decisão foi a chave para que Lorenzo aprendesse a dissimular, fingir ser
quem não era para que as pessoas o deixassem em paz. Se misturava com os outros
jovens numa distância segura o suficiente para que eles e os pais pensassem que
ele era um “deles”, que tinha amigos, e longe o suficiente para não ser
importunado. Como um inseto havia aprendido a mimetizar.
“Eu me misturava como
uma sardinha em um cardume de sardinhas, me mimetizava como um bicho-pau entre
ramos secos”.
Contudo,
ao entrar no liceu[1] público a técnica deixa de
ser eficiente e ele se torna alvo de bullying. O que lhe resta é evoluir, não
como pessoa, mas como imitador, e é através da imitação das práticas e
trejeitos dos mais temidos da escola que ele consegue afastar todo os indesejáveis.
Ele passava a ser uma mosca que imitava as vespas.
“Em algum lugar, nos trópicos, vive uma mosca que imita as vespas. Tem
quatro asas, como todas as de sua espécie, mas mantém uma sobre a outra, e
assim parecem apenas duas. Tem listras amarelas e pretas no abdome, antenas,
olhos protuberantes e até um ferrão de mentira. Não faz nada, é boazinha. Mas,
vestida como uma vespa, é temida pelas aves, pelas lagartixas, até pelos seres
humanos. Pode entrar tranquilamente nos vespeiros, um dos lugares mais perigosos
e vigiados do mundo, e ninguém a reconhece.
Eu tinha errado tudo.
Era isso que eu devia fazer.
Imitar os mais perigosos”.
Desse modo, Lorenzo continuava sozinho e isolado.
Sentia-se feliz sozinho, mas ao lado dos outros tinha que representar, o que
chegava a amedrontá-lo. Além disso, inventava mentiras e casos engraçados da
escola para deixar os pais tranquilos. Foi nesse círculo interminável de
mentiras e dissimulações que ele acabou por inventar que alguns amigos haviam o
convidado para esquiar e teve que buscar uma maneira de sustentar sua mentira.
Nesse ponto começa de fato a história do livro.
[ALERTA DE SPOILER]. Olivia por sua vez é pintada pelo
narrador sob as cores da irmã-mistério, desconhecida, inoportuna, indesejada,
inteligente e boa mentirosa, mas, ao mesmo tempo, objeto de uma curiosidade
pouco confessada e que ao olhar do irmão vai pouco a pouco se transformando,
pela força da convivência forçada, como alguém em mutação.
[ALERTA DE SPOILER]. Ela, por sua vez, oscila da
indiferença a curiosidade, das pequenas implicâncias a solidariedade fraternal
que quebra lentamente o iceberg em que Lorenzo estava preso. Na maioria do
tempo padece dos efeitos da abstinência, mas, nas suas falas, é possível
perceber o ressentimento que nutria do pai e da madrasta.
É interessante notar que Olivia na história funciona como
o ponto de pressão de Oliver, forçando-o a abandonar seu egocentrismo para
ajudá-la em um momento em que ela se encontra extremante vulnerável e doente.
[ALERTA DE SPOILER]. Eles dois não conviveram, mal se
conheciam, e se viram em pouquíssimas oportunidades, mas a relação irmão e
irmã, com seus altos e baixos, birras e solidariedades está ali, explícita,
palpável. E desse modo aquele breve tempo juntos acaba por impulsionar o lado
mais humano do garoto e contribui para seu crescimento e amadurecimento por
forçá-lo a deixar de olhar para si, para olhar para o outro. Uma temporada
breve, mas significativa ao ponto de levar o menino a ampliar seu círculo
afetivo outrora tão estreito.
Enfim, o desfecho é singelo e muito
sensível, sem deixar de ser, até certo ponto, realista e verossímil. O livro
como um todo não é um clássico, e rapidamente caiu no esquecimento, mas tem
qualidade e te prende, sendo, em parte, até comovente.
A
edição lida é da Editora Bertrand Brasil, do ano de 2013 e possui 160 páginas.
Sobre o autor
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Preview do
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Abaixo você pode conferir uma prévia do
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[1]O
liceo italiano corresponde, aproximadamente, a nosso ensino médio, antigo
segundo grau. Dura cinco anos, e o aluno pode optar entre o liceo scientifico e o liceo classico. (Nota original do
tradutor)