Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo
07 de fevereiro de 2021, ano da Itália
“Talvez eu quisesse tentar estabelecer
entre nós uma intimidade que nunca existira, talvez eu quisesse confusamente
fazer com que ela soubesse que eu sempre fora infeliz.”
(Elena
Ferrante – Um Amor Incômodo)
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Edição Brasileira, pela editora Intrínseca. Preço de capa: R$ 39,90 |
Confira a resenha do segundo livro da IV Campanha Anual
de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.
Sinopse
do enredo
Delia é uma desenhista de
quadrinhos que abandonou sua cidade natal, Nápoles, para fugir do seu passado e
da relação complicada que possuía com sua família. A única pessoa com quem a
desenhista mantinha proximidade era com Amalia, sua mãe, que frequentemente ia
a Roma visitá-la. Entretanto, mesmo essa presença um pouco constante da mãe era
indesejada e incômoda a Delia, até o dia que Amalia é encontrada morta em uma
praia em circunstâncias misteriosas: seminua, vestida apenas com um sutiã de
grife.
A morte inesperada da mãe
obriga Delia a retornar à Nápoles e enfrentar novamente o seu passado marcado
pela violência doméstica causada pelos rompantes de raiva e ciúmes obsessivo de
seu pai. Nessa viagem de volta ao passado, ao mesmo tempo em que busca lidar
com a perda da mãe, a quadrinista se vê diante do desafio de buscar preencher
as lacunas do passado, encarar os fortes sentimentos que Amalia lhe provocava e
descobrir como ocorreu a sua morte. Mas é principalmente a figura do suposto
amente da mãe, Caserta, que persegue as lembranças do passado e também o
presente de Delia.
Entorno da figura de Amalia e
Caserta gira a curiosidade e o desejo sôfrego de Delia de compreender o que de
fato havia acontecido entre os dois no passado, provocando na italiana a
reflexão dos fatos que se deram em sua infância e que levaram a deterioração da
sua relação com a mãe e também com o pai.
Resenha
Elena Ferrante é uma das mais curiosas escritoras italianas que
já ouvi falar. Não só por conta do sucesso de sua obra composta de nove livros
– todos já publicados no Brasil – como também pelo mistério que envolve sua
identidade, segredo este que já rendeu investigações e polêmicas na Itália há
alguns anos.
Nunca havia lido nada de Ferrante apesar do sucesso da escritora entre os leitores brasileiros, mas resolvi fazê-lo por conta da IV Campanha Anual de Literatura, que nesse ano homenageia a literatura italiana. Por força desse fator, decidi ter meu primeiro contato com a obra da escritora a partir de seu livro de estreia Um Amor Incômodo (L’amore molesto), que segundo dizem os leitores assíduos da italiana é um livro ainda da fase pouco madura da escritora e, logo, ainda um pouco distante da sua escrita atual.
Um Amor
Incômodo é um livro
intimista e com uma caraga dramática pesada, mas que aborda com muita sensibilidade
os desdobramentos emocionais na vida adulta de uma infância marcada pela
violência doméstica.
Publicado em 1992, a obra foi adaptada em filme homônimo pelo
cineasta Mario Martone em 1995, mas só em 2017 o livro foi publicado no Brasil.
O enredo conta a história de Delia, uma quadrinista
quadragenária, profissionalmente realizada, mas emocionalmente abalada pelo
passado familiar, o que imprime em seu comportamento um forte desejo de
distanciamento dos seus familiares.
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Delia (interpretada por Anna Bonaiuto). Cena do filme L'amore Molesto (1995). |
Delia é o tipo
de personagem introspectivo que se perde bastante nos próprios sentimentos e
pensamentos. Como a história se passa no momento em que ela tenta lidar e
processar a perda da mãe encontrada afogada no dia do aniversário da filha,
durante grande parte da narrativa, Delia
divaga sobre o passado e vai, ao mesmo tempo, reconstruindo a linha histórica
de lembranças e memórias não muito confiáveis. Essa reconstrução é
importantíssima na trama, porque nos revela o passado da protagonista ao mesmo
tempo que, por um lado, nos elucida as circunstâncias que fizeram sua relação
com a mãe se tornar insustentável e, por outro, desvenda os últimos passos de
Amalia antes de ser encontrada morta.
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Vista da cidade de Nápoles com Vesúvio ao fundo. Nápoles é o principal cenário do livro de Ferrante. Imagem de Damirux. Wikimedia Commons. |
O enredo em si
é esse reencontro da protagonista com o seu passado, com ela
mesma e com as lembranças de sua relação com a mãe. Mas mesmo sendo conturbada
essa relação entre mãe e filha, é ela que dá forma e norte a personalidade da
protagonista que inicialmente demonstra uma aversão quase que instintiva e
bastante intensa pela presença de Amalia, chegando a se sentir um tanto
aliviada com a morte de sua progenitora. No entanto, gradativamente vai se
revelando que, na verdade, essa aversão é fruto de um sentimento frustrado e
infantil de desejo de simbiose, ou
melhor dizendo, de querer ser a mãe, fundir-se e confundir-se com a
personalidade materna, como também observa Aline Aimee. Daí vem o título do
livro. O amor de Dalia por Amalia era
tão cheio de marcas, complexos e sentimentos conflitantes que ele se tornava incômodo, angustiante, sofrido.
A principal marca da personagem principal na narrativa é sua
difícil relação com a mãe. Delia analisa e reconstrói essa relação a partir das
memórias que possui de sua infância com Amalia, o pai, o tio e os vizinhos:
Caserta, o menino Antonio e o avô confeiteiro de Antonio. Ao mesmo tempo ela
envereda numa busca por reconstituir os últimos acontecimentos vividos por
Amalia, como sua reaproximação com o suposto amante do passado, Caserta, e
também fechar as lacunas que explicariam as circunstâncias de sua morte.
A minha opinião sobre a
personagem principal é que ela não é a figura mais importante de sua própria
história e perde um pouco de seu protagonismo para a figura da mãe,
personagem forte e dúbio e que, por isso, me faz lembrar de outra personagem
feminina: Capitu, do livro Dom Casmurro,
obra icônica do escritor brasileiro Machado de Assis.
Amalia, cuja
morte é o motivo de existir enredo, rouba a cena por ser uma personagem difícil
de precisar e de descrever, mas que ao mesmo tempo é a cola que une todo o elenco
do livro e os fios de sua trama. Sem ela, simplesmente, não existiria história.
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Amalia jovem, interpretada por Licia Maglietta (1995). |
Em sua juventude, a mãe de Delia é descrita por Ferrante como
uma mulher bonita, risonha e provocante, que buscava preservar o bom humor e o
gosto pela vida, mesmo vivendo em um ambiente sufocante e marcado pela
violência. Casada com um pintor fracassado que sobrevivia com a venda de
pinturas baratas de temas vulgares, Amalia sofria constantemente com as
agressões do marido extremamente ciumento e que sempre a agredia. Mesmo em
ambientes públicos, quando algum homem se dirigia a ela e a mesma esboçava
algum tipo de simpatia, Amalia costumava ser vítima das agressões. Os abusos
também eram muito comuns por conta dos constantes presentes que Amalia recebia
do vizinho Caserta que era sócio de seu marido nos negócios de vendas de
pinturas.
Desse modo, o tema da violência doméstica se torna um elemento
imprescindível da história escrita por Ferrante e dá a narrativa um caráter
bastante realista. As lembranças de Delia são profundamente marcadas pelas
cenas de violência protagonizadas pelo pai e, por isso, o tema funciona como
elemento crucial na formação da personalidade da protagonista. O resultado é que o desenho psicológico de
Delia é bastante conturbado e atravessado pelo produto de um passado marcado de
um lado pela frustração e nunca conseguir se igualar a figura materna, e de
outro pela violência doméstica da qual ela foi testemunha e em um dado momento
foi também impulsionadora.
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Cenas do filme L'Amore Molesto de Mario Martone (1995) e que retratam a violência doméstica sofrida por Amalia. |
Outros dois personagens importantes na trama são o tio Filippo, irmão de Amalia e que em vez de defendê-la das agressões a culpava por elas, e Caserta, outro personagem enigmático da trama e que sustenta a narrativa junto com as lembranças de Amalia conservadas por Delia.
Filippo é um homem tosco e irritadiço. Na maior parte do tempo
fica xingando no dialeto local e falando mal de Amalia, a culpando por destruir
o próprio casamento por seu comportamento, na visão dele, bastante reprovável.
Ele junto com o pai de Delia representam na narrativa a figura do homem
machista que vê na mulher a reencarnação da devassidão e da pecaminosidade,
devendo ser corrigida a sua inclinação inevitável para a infidelidade com
pancadas.
Caserta é descrito no livro como um homem “esperto, de pele escura como um sarraceno, mas com olhos de diabo
assanhado”, tinha fama de importunar as mulheres do bairro e desde a
infância sua imagem causava a Delia uma mistura conflitante de atração, repulsa
e medo. Este não era seu nome, mas um apelido.
Na época, o pai da menina já era um pintor medíocre que pintava
por ninharias, foi Caserta quem percebeu a possibilidade de que ele ganhasse um
pouco mais pintando retratos a óleo das mães, irmãs e namoradas dos marinheiros
americanos com saudades de casa. O negócio com Caserta porém de se desfez
depois que o pai de Delia achou uma proposta mais vantajosa, pintando imagens
de ciganas. Amalia se opôs e daí em diante as brigas entre o casal por conta de
Caserta começaram, se tornando pior quando Delia lançou ao pai a semente da
desconfiança de uma possível traição. Filippo e o cunhado quase mataram Caserta
e seu filho, obrigando-o a fugir com sua família.
Passados todos aqueles anos Caserta ainda era um nome envolto em
mistério, e de alguma forma ele estava ligado aos últimos dias de vida de Amalia.
Delia não sabia como nem porque, mas o mistério daquele homem asqueroso a atraía.
A título de conclusão...
Apesar de ser uma narrativa na qual a narradora reflete bastante
sobre cenas e episódios ocorridos no passado, Ferrante usa de uma narração linear
e não recorre a flashbacks. Delia
narra os hábitos, as brigas, os fatos, os lugares e as pessoas, mas não perde a
sua condição de narradora quando evoca o passado. Por conta disso, ela acaba
por caminhando pela linha tênue entre os acontecimentos do passado e o
presente, como se o passado fosse imagens fantasmagóricas que a quadrinista
vislumbra sobrepostas às imagens do presente. Por isso, não é incomum que
sonho, lembrança e realidade se fundam na mente da narradora e ela chegue até
mesmo a ter visões, sobretudo da mãe.
Ferrante escreve um livro
de atmosfera intimista e psicológica muito marcante. Lembranças, divagações
e fantasias da protagonista se misturam, mostrando que muitas das respostas que
ela buscava já estavam guardadas em seu subconsciente, e seria o contato que
ela faz com todas aquelas pessoas do passado o fator responsável por trazer gradativamente
à tona as lembranças mais escondidas.
Desse modo, o tom que percebi
dominar na obra foi a da confusão de sentimentos, pensamentos e lembranças
que emanam de Delia e que conduzem a personagem em um encontro com seu passado,
recuperando cenas e enredos esquecidos e deformados com o passar do tempo.
Enfim, achei o livro monótono, mas a forma como Ferrante
aborda a violência doméstica através das lembranças um tanto inconsistentes da
protagonista e os complexos e aversões que ela desenvolveu no processo foi
excepcionalmente autêntico e até mesmo complexo. Ademais, Um Amor Incômodo é uma narrativa crua, de sentimentos muitos
intensos e conflitivos e que trabalha com o onírico e com a memória. Possui
personagens muito marcantes, cujos sentimentos e ações nos fazem questionar
muito sobre a natureza humana.
Muitos afirmam, que este livro não é o melhor de Elena,
mas como minha primeira experiência com a autora, não farei julgamento de
valor. Além disso, é sabido de qualquer leitor experimentado que livros de
estreia quase sempre são reflexos de um escritor ainda em formação, ainda cru e
em processo de aperfeiçoamento. Justamente por isso é interessante ler estes
livros, porque eles meio que humanizam aqueles que se encontram no panteão da
literatura internacional.
A edição lida é da Editora Intrínseca, do ano de 2017 e possui 176 páginas.
Sobre
o autor
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que
prefere manter sua identidade em segredo sob a justificativo poder escrever com
liberdade, e para que a recepção de seus livros não seja influenciada por uma
imagem pública. Especula-se que seja uma tradutora, Anita Raja, que nasceu em
Nápoles e que seja casada com o também escritor Domenico Starnone.
A autora concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e
intermediadas pelas suas editoras italianas. A única certeza sobre ela é que
escreve desde 1991, ano em que publicou seu primeiro romance, L'amore
molesto, livro resenhado nesta
postagem.
Confira quem
são os outros autores participantes da Campanha deste ano.
Saiba
mais sobre os autores que estão sendo lidos na Campanha no link: autores.
Conheça
os pontos do nosso itinerário no mapa do link: mapa.
Preview do Google Books
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível
no Google Books.
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