domingo, 7 de fevereiro de 2021

Um Amor Incômodo – Elena Ferrante – Resenha

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

07 de fevereiro de 2021, ano da Itália

“Talvez eu quisesse tentar estabelecer entre nós uma intimidade que nunca existira, talvez eu quisesse confusamente fazer com que ela soubesse que eu sempre fora infeliz.”

(Elena Ferrante – Um Amor Incômodo)

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Edição Brasileira, pela editora Intrínseca. Preço de capa: R$ 39,90
Livro de estreia da celebrada e misteriosa escritora italiana Elena Ferrante Um Amor Incômodo é um livro um pouco monótono, mas que aborda a violência doméstica de forma autêntica e complexa. Uma narrativa crua, de personagens marcantes, sentimentos intensos e conflitivos e que trabalha com o onírico e com a memória.

Confira a resenha do segundo livro da IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.

 

Sinopse do enredo

Delia é uma desenhista de quadrinhos que abandonou sua cidade natal, Nápoles, para fugir do seu passado e da relação complicada que possuía com sua família. A única pessoa com quem a desenhista mantinha proximidade era com Amalia, sua mãe, que frequentemente ia a Roma visitá-la. Entretanto, mesmo essa presença um pouco constante da mãe era indesejada e incômoda a Delia, até o dia que Amalia é encontrada morta em uma praia em circunstâncias misteriosas: seminua, vestida apenas com um sutiã de grife.

A morte inesperada da mãe obriga Delia a retornar à Nápoles e enfrentar novamente o seu passado marcado pela violência doméstica causada pelos rompantes de raiva e ciúmes obsessivo de seu pai. Nessa viagem de volta ao passado, ao mesmo tempo em que busca lidar com a perda da mãe, a quadrinista se vê diante do desafio de buscar preencher as lacunas do passado, encarar os fortes sentimentos que Amalia lhe provocava e descobrir como ocorreu a sua morte. Mas é principalmente a figura do suposto amente da mãe, Caserta, que persegue as lembranças do passado e também o presente de Delia.

Entorno da figura de Amalia e Caserta gira a curiosidade e o desejo sôfrego de Delia de compreender o que de fato havia acontecido entre os dois no passado, provocando na italiana a reflexão dos fatos que se deram em sua infância e que levaram a deterioração da sua relação com a mãe e também com o pai.

Resenha

Elena Ferrante é uma das mais curiosas escritoras italianas que já ouvi falar. Não só por conta do sucesso de sua obra composta de nove livros – todos já publicados no Brasil – como também pelo mistério que envolve sua identidade, segredo este que já rendeu investigações e polêmicas na Itália há alguns anos.

Nunca havia lido nada de Ferrante apesar do sucesso da escritora entre os leitores brasileiros, mas resolvi fazê-lo por conta da IV Campanha Anual de Literatura, que nesse ano homenageia a literatura italiana. Por força desse fator, decidi ter meu primeiro contato com a obra da escritora a partir de seu livro de estreia Um Amor Incômodo (L’amore molesto), que segundo dizem os leitores assíduos da italiana é um livro ainda da fase pouco madura da escritora e, logo, ainda um pouco distante da sua escrita atual.

Um Amor Incômodo é um livro intimista e com uma caraga dramática pesada, mas que aborda com muita sensibilidade os desdobramentos emocionais na vida adulta de uma infância marcada pela violência doméstica.

Publicado em 1992, a obra foi adaptada em filme homônimo pelo cineasta Mario Martone em 1995, mas só em 2017 o livro foi publicado no Brasil.

O enredo conta a história de Delia, uma quadrinista quadragenária, profissionalmente realizada, mas emocionalmente abalada pelo passado familiar, o que imprime em seu comportamento um forte desejo de distanciamento dos seus familiares.

Delia (interpretada por Anna Bonaiuto). Cena do filme L'amore Molesto (1995).

Delia é o tipo de personagem introspectivo que se perde bastante nos próprios sentimentos e pensamentos. Como a história se passa no momento em que ela tenta lidar e processar a perda da mãe encontrada afogada no dia do aniversário da filha, durante grande parte da narrativa, Delia divaga sobre o passado e vai, ao mesmo tempo, reconstruindo a linha histórica de lembranças e memórias não muito confiáveis. Essa reconstrução é importantíssima na trama, porque nos revela o passado da protagonista ao mesmo tempo que, por um lado, nos elucida as circunstâncias que fizeram sua relação com a mãe se tornar insustentável e, por outro, desvenda os últimos passos de Amalia antes de ser encontrada morta.

Vista da cidade de Nápoles com Vesúvio ao fundo. Nápoles é o principal cenário do livro de Ferrante. Imagem de Damirux. Wikimedia Commons.


O enredo em si é esse reencontro da protagonista com o seu passado
, com ela mesma e com as lembranças de sua relação com a mãe. Mas mesmo sendo conturbada essa relação entre mãe e filha, é ela que dá forma e norte a personalidade da protagonista que inicialmente demonstra uma aversão quase que instintiva e bastante intensa pela presença de Amalia, chegando a se sentir um tanto aliviada com a morte de sua progenitora. No entanto, gradativamente vai se revelando que, na verdade, essa aversão é fruto de um sentimento frustrado e infantil de desejo de simbiose, ou melhor dizendo, de querer ser a mãe, fundir-se e confundir-se com a personalidade materna, como também observa Aline Aimee. Daí vem o título do livro. O amor de Dalia por Amalia era tão cheio de marcas, complexos e sentimentos conflitantes que ele se tornava incômodo, angustiante, sofrido.
A principal marca da personagem principal na narrativa é sua difícil relação com a mãe. Delia analisa e reconstrói essa relação a partir das memórias que possui de sua infância com Amalia, o pai, o tio e os vizinhos: Caserta, o menino Antonio e o avô confeiteiro de Antonio. Ao mesmo tempo ela envereda numa busca por reconstituir os últimos acontecimentos vividos por Amalia, como sua reaproximação com o suposto amante do passado, Caserta, e também fechar as lacunas que explicariam as circunstâncias de sua morte.

A minha opinião sobre a personagem principal é que ela não é a figura mais importante de sua própria história e perde um pouco de seu protagonismo para a figura da mãe, personagem forte e dúbio e que, por isso, me faz lembrar de outra personagem feminina: Capitu, do livro Dom Casmurro, obra icônica do escritor brasileiro Machado de Assis.

Amalia, cuja morte é o motivo de existir enredo, rouba a cena por ser uma personagem difícil de precisar e de descrever, mas que ao mesmo tempo é a cola que une todo o elenco do livro e os fios de sua trama. Sem ela, simplesmente, não existiria história.

Amalia jovem, interpretada por Licia Maglietta (1995).

Em sua juventude, a mãe de Delia é descrita por Ferrante como uma mulher bonita, risonha e provocante, que buscava preservar o bom humor e o gosto pela vida, mesmo vivendo em um ambiente sufocante e marcado pela violência. Casada com um pintor fracassado que sobrevivia com a venda de pinturas baratas de temas vulgares, Amalia sofria constantemente com as agressões do marido extremamente ciumento e que sempre a agredia. Mesmo em ambientes públicos, quando algum homem se dirigia a ela e a mesma esboçava algum tipo de simpatia, Amalia costumava ser vítima das agressões. Os abusos também eram muito comuns por conta dos constantes presentes que Amalia recebia do vizinho Caserta que era sócio de seu marido nos negócios de vendas de pinturas.

Desse modo, o tema da violência doméstica se torna um elemento imprescindível da história escrita por Ferrante e dá a narrativa um caráter bastante realista. As lembranças de Delia são profundamente marcadas pelas cenas de violência protagonizadas pelo pai e, por isso, o tema funciona como elemento crucial na formação da personalidade da protagonista. O resultado é que o desenho psicológico de Delia é bastante conturbado e atravessado pelo produto de um passado marcado de um lado pela frustração e nunca conseguir se igualar a figura materna, e de outro pela violência doméstica da qual ela foi testemunha e em um dado momento foi também impulsionadora.

Cenas do filme L'Amore Molesto de Mario Martone (1995) 
e que retratam a violência doméstica sofrida por Amalia.

Outros dois personagens importantes na trama são o tio Filippo, irmão de Amalia e que em vez de defendê-la das agressões a culpava por elas, e Caserta, outro personagem enigmático da trama e que sustenta a narrativa junto com as lembranças de Amalia conservadas por Delia.

Filippo é um homem tosco e irritadiço. Na maior parte do tempo fica xingando no dialeto local e falando mal de Amalia, a culpando por destruir o próprio casamento por seu comportamento, na visão dele, bastante reprovável. Ele junto com o pai de Delia representam na narrativa a figura do homem machista que vê na mulher a reencarnação da devassidão e da pecaminosidade, devendo ser corrigida a sua inclinação inevitável para a infidelidade com pancadas. 

Caserta é descrito no livro como um homem “esperto, de pele escura como um sarraceno, mas com olhos de diabo assanhado”, tinha fama de importunar as mulheres do bairro e desde a infância sua imagem causava a Delia uma mistura conflitante de atração, repulsa e medo. Este não era seu nome, mas um apelido.

Discussão entre Caserta (camiseta branca - por Enzo De Caro), Filippo (com a arma - Francesco Paolantoni) e o pai de Delia (à esquerda - Italo Celoro) em cena de flashback do filme L'amore Molesto (1995).

Na época, o pai da menina já era um pintor medíocre que pintava por ninharias, foi Caserta quem percebeu a possibilidade de que ele ganhasse um pouco mais pintando retratos a óleo das mães, irmãs e namoradas dos marinheiros americanos com saudades de casa. O negócio com Caserta porém de se desfez depois que o pai de Delia achou uma proposta mais vantajosa, pintando imagens de ciganas. Amalia se opôs e daí em diante as brigas entre o casal por conta de Caserta começaram, se tornando pior quando Delia lançou ao pai a semente da desconfiança de uma possível traição. Filippo e o cunhado quase mataram Caserta e seu filho, obrigando-o a fugir com sua família.

Passados todos aqueles anos Caserta ainda era um nome envolto em mistério, e de alguma forma ele estava ligado aos últimos dias de vida de Amalia. Delia não sabia como nem porque, mas o mistério daquele homem asqueroso a atraía.

A título de conclusão...

Apesar de ser uma narrativa na qual a narradora reflete bastante sobre cenas e episódios ocorridos no passado, Ferrante usa de uma narração linear e não recorre a flashbacks. Delia narra os hábitos, as brigas, os fatos, os lugares e as pessoas, mas não perde a sua condição de narradora quando evoca o passado. Por conta disso, ela acaba por caminhando pela linha tênue entre os acontecimentos do passado e o presente, como se o passado fosse imagens fantasmagóricas que a quadrinista vislumbra sobrepostas às imagens do presente. Por isso, não é incomum que sonho, lembrança e realidade se fundam na mente da narradora e ela chegue até mesmo a ter visões, sobretudo da mãe.

Ferrante escreve um livro de atmosfera intimista e psicológica muito marcante. Lembranças, divagações e fantasias da protagonista se misturam, mostrando que muitas das respostas que ela buscava já estavam guardadas em seu subconsciente, e seria o contato que ela faz com todas aquelas pessoas do passado o fator responsável por trazer gradativamente à tona as lembranças mais escondidas.  Desse modo, o tom que percebi dominar na obra foi a da confusão de sentimentos, pensamentos e lembranças que emanam de Delia e que conduzem a personagem em um encontro com seu passado, recuperando cenas e enredos esquecidos e deformados com o passar do tempo.

Enfim, achei o livro monótono, mas a forma como Ferrante aborda a violência doméstica através das lembranças um tanto inconsistentes da protagonista e os complexos e aversões que ela desenvolveu no processo foi excepcionalmente autêntico e até mesmo complexo. Ademais, Um Amor Incômodo é uma narrativa crua, de sentimentos muitos intensos e conflitivos e que trabalha com o onírico e com a memória. Possui personagens muito marcantes, cujos sentimentos e ações nos fazem questionar muito sobre a natureza humana.

Muitos afirmam, que este livro não é o melhor de Elena, mas como minha primeira experiência com a autora, não farei julgamento de valor. Além disso, é sabido de qualquer leitor experimentado que livros de estreia quase sempre são reflexos de um escritor ainda em formação, ainda cru e em processo de aperfeiçoamento. Justamente por isso é interessante ler estes livros, porque eles meio que humanizam aqueles que se encontram no panteão da literatura internacional.

A edição lida é da Editora Intrínseca, do ano de 2017 e possui 176 páginas.

Sobre o autor

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que prefere manter sua identidade em segredo sob a justificativo poder escrever com liberdade, e para que a recepção de seus livros não seja influenciada por uma imagem pública. Especula-se que seja uma tradutora, Anita Raja, que nasceu em Nápoles e que seja casada com o também escritor Domenico Starnone.

A autora concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e intermediadas pelas suas editoras italianas. A única certeza sobre ela é que escreve desde 1991, ano em que publicou seu primeiro romance, L'amore molesto, livro resenhado nesta postagem.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano.

Saiba mais sobre os autores que estão sendo lidos na Campanha no link: autores.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: mapa.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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