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sábado, 5 de fevereiro de 2022

[Especial Zafón] Marina - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

Por Eric Silva

14 de março de 2021, Ano da Itália

“Cedo ou tarde, o oceano do tempo nos devolve as lembranças que enterramos nele”.

(Carlos Ruiz Zafón, Marina)

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Terror e mistério se misturam neste que é, sem dúvida nenhuma, o livro de transição entre o Zafón que escreveu a Trilogia da Névoa e aquele que cativou leitores do mundo todo com a quadrilogia do Cemitério dos Livros Esquecidos. Unindo um pouco de cada proposta, Marina é um livro sobre perdas, separações, loucura, genialidades deturpadas, intrigas, ambições, família e amor juvenil, mas em cujas páginas habitam criaturas malignas nascida do ódio e da perversão de alguém do passado. Uma narrativa que antes de A Sombra do Vento desnuda e viola os segredos da milenar cidade de Barcelona, e que apesar do enredo muito mais fantástico do que real, aborda o quanto são frágeis a sanidade e a vida humana.

Sinopse do enredo

Barcelona, setembro de 1979. Óscar Drai é apenas um menino solitário de 15 anos que vê seus dias transcorrerem na penumbra das galerias do internato onde seus pais o colocaram, mas seria naquele final de ano, percorrendo as ruelas do decadente bairro de Sarrià que sua vida mudaria para sempre.

Tudo começa quando, em uma de suas deambulações pelas ruas do bairro, ele se depara com um casarão aparentemente abandonado. Tomado pela curiosidade, o garoto aventura-se para além dos portões da propriedade e lá dentro é atraído pelo som de uma bela voz de mulher acompanhada pelo som de um piano. O indescritível som partia de uma galeria envidraçada onde cem velas bruxuleavam um brilho tênue.

Hipnotizado e sem se dar conta de sua imprudência, Óscar adentra o recinto e nele se depara com outro objeto enfeitiçado que lhe chama a atenção: ao lado do megafone que reproduzia aquela canção, repousava um relógio de bolso quebrado e muito antigo. Mas, subitamente, o encantamento se quebra quando o garoto se dá conta de que durante todo aquele tempo não esteve sozinho naquele lugar. Assustado com a presença inesperada, ele foge, mas por reflexo leva consigo o relógio.

Dias depois, ao retornar à casa para devolver o objeto roubado, Óscar conhece Marina, a jovem de olhos cinzentos que seria a chave para uma revolução nos dias monótonos do rapaz. Marina era filha de Germán, proprietário do casarão, e ainda que fosse tão jovem quanto Óscar, já carregava nos ombros a responsabilidade de cuidar do pai idoso na imensa e descaída propriedade, onde viviam com o espectro de uma felicidade passada que se deteriorou após a morte da mãe da garota. Ainda assim, o calor e a amorosidade daquelas duas pessoas enleiam o garoto que não consegue mais deixá-los, fugindo do internato sempre que possível para a casa daquela pequena família.

É convivendo com Marina que Óscar passa a aventurar-se pelos mistérios do passado de Barcelona, e em uma dessas aventuras, os dois presenciam uma cena estranha num antigo cemitério, onde uma mulher coberta por um manto negro visita uma sepultura sem nome, sempre à mesma data, à mesma hora.  Em um ímpeto imprudente, os dois se lançam ao desconhecido, passando por palacetes e estufas abandonadas, lutando contra manequins vivos e se defrontando diversas vezes com o símbolo de uma mariposa negra, numa busca desesperada por solucionar um mistério antigo e envolto em perigos que remontam aos anos de 1940.

Resenha

O último livro de Zafón que me restava resenhar, Marina é um livro de transição dentro da obra do escritor barcelonês e com ele me despeço definitivamente de meu querido autor. Depois desse texto resta-me apenas algumas postagens de análise de sua obra e encerrarei enfim esse longo projeto que se arrasta já há alguns anos (desde 2017).

Marina, como disse agora a pouco, é um livro de transição que demarca uma fronteira tênue entre o estilo narrativo inicial de Zafón que remonta as suas histórias infanto-juvenis de terror e povoa as páginas dos livros da série Trilogia da Névoa, e o estilo que se desenham na sua série mais famosa, O Cemitério dos Livros Esquecidos, com a qual ficou conhecido e foi consagrado como um dos maiores escritores espanhóis da história recente. Marina é um livro de transição, porque agrega em si o terror e as criaturas sombrias e macabras das primeiras narrativas do autor com a transformação de Barcelona em cidade-personagem, desterro de passados sombrios e trágicos no bom estilo investigativo de A Sombra do Vento.

Óscar Drai ainda não é um Daniel Sempere (vive no tempo futuro deste último e não tem um passado prévio que se misture simbioticamente ao passado da cidade), mas em muitas passagens do texto parece ser seu eco, seu alter ego. Ainda assim, Marina prenuncia a atmosfera sombria, decadente e antiga da cidade catalã envolta em brumas e vapor. O livro revira o passado de seus habitantes, exuma seus cadáveres, revolve o pó de seus palacetes para ouvir o eco de tragédias esquecidas, e nisso tudo faz lembrar o magnum opus de seu criador, como se fosse esta obra o epílogo de uma imersão na cidade mais goticamente hipnotizante da Catalunha. Claro que em 1999, quando foi publicada na Espanha, ninguém suspeitava destas coisas, porque de fato Marina foi o marco final dos textos infanto-juvenis de terror ao estilo de O Príncipe da Névoa e O Palácio da Meia-Noite com suas criaturas demoníacas. Cidades permeadas de segredos e um par ou mais de jovens investigando o passado das mesmas, na tentativa de saírem vivos da confusão para a qual – involuntariamente – são arrastados. Depois dessa obra Zafón só preservaria os conceitos investigativo e de cidade permeada de segredos e desgraças.

Marina preserva características que a aproximam bastante de As Luzes de Setembro, sobretudo na estética de seu terror pautado em criaturas mecânicas que diabolicamente possuem vida própria. No entanto, inicia lentamente a fórmula de A Sombra do Vento marcada por personagens mais complexos e pelo estilo gótico, histórico-investigativo que mergulha nas brumas de Barcelona, descortinando a cidade, nos fazendo vivê-la, percorrê-la, senti-la como se fosse nossa, como se fosse parte de seus personagens, como se fosse ela mesma a maior e a principal protagonista do enredo: tudo vem da história de Barcelona e diz respeito a ela. Descortinar os segredos por trás da mulher de preto e da marca da mariposa negra é antes de tudo descortinar o passado da cidade, entrar em sua intimidade.

Assim como os demais escritos de Zafón (contos, romances e novelas) Marina foi escrito de forma cinematográfica. É uma narrativa que propicia ao leitor imaginar grandes cenas como se estas fossem resultado do enquadramento de uma câmera. Cenários, a movimentação dos personagens, a forma como as marionetes se movem e atacam, tudo é tão bem descrito que você é capaz de “ver” a cena se desenrolar como se acompanhasse os personagens ao longos dos becos, ruas, ramblas e palacetes arruinados de Barcelona. Os mais imaginativos talvez consigam até mesmo crer que sentem o ar frio da noite barcelonesa.

A escrita do autor é aqui tão impecável quanto já seria nos seus livros posteriores. Estão lá as construções estilísticas, o texto instigante e elegantemente escrito, bem como as descrições muito bem construídas e com detalhes que ajudam a construir toda a atmosfera da trama sem ser econômico nem excessivo.

Quando se trata de mistério, Marina não é tão intrincado ou complexo quanto as obras que o sucederam, mas está um pouquinho além do que vemos nos livros que o antecedem. A história envolve mais personagens, mais histórias; é necessário acompanhar pistas e testemunhas são deixadas pelo meio do caminho. Mas quando se trata de terror, para mim, ela está no mesmo patamar de As Luzes de Setembro e suas repulsivas criaturas mecânicas (os de Marina me pareceram piores). Não sei se a razão seja pelo fato de eu odiar bonecas, mas achei tenebrosas as criaturas que povoam as páginas de Marina e, por isso, tenho para mim que – dos seus romances – este é o que contém o terror mais bem-acabado e desenvolvido. Contudo eu avaliaria melhor se gostasse e lesse com maior frequência o gênero terror. Prefiro o thriller e o suspense.

Mas a verdade é que Marina – sobre o fundo de uma trama de mistério e terror – é mais uma narrativa sobre perdas, separações, loucura, genialidades deturpadas, intrigas, ambições, família e amor juvenil, temas que foram caros a Zafón. A pesar de ser uma narrativa muito mais fantástica do que real, ela aborda o quanto são frágeis a sanidade e a vida humana.

Ademais, não conseguirei perscrutar muitos detalhes sobre os personagens, porque quase um ano separa a minha leitura do livro (fevereiro de 2021) e a escrita desta resenha (janeiro de 2022), contudo achei que a grande lacuna do livro é o passado de Óscar.

O rapaz a pesar de ser o principal personagem da trama – ao lado, é claro, de Marina –, está bem distante do foco da narrativa. Quase nada da sua vida antes e depois de Marina é abordado e isso é – com toda a certeza – intencional. Marina é o elo que une direta e indiretamente todas as peças da trama. Sem ela Óscar nunca teria seu caminho cruzado pela mulher de preto, nem vivido uma aventura arriscada e tenebrosa. É ela junto com o “furto” do relógio os dois grandes acontecimentos que fazem a trama mover-se. Também bem pouco ou nada Óscar teria feito. Foi a passagem dela pela vida do rapaz que o impele a narrar toda a história.  Sem Marina seus dias haveriam transcorrido como de costume e é por isso que ele narra essa história quinze anos após os fatos terem ocorrido. É ela também o personagem de quem melhor me recordo.

Marina é inteligente, corajosa e sagaz, misteriosa e de humor um tanto mutável. Há nela uma aura sedutora, travessa, zombeteira, mas que por vezes oscila para algo um tanto fadigado e envelhecido. Por vezes ela é séria, melancólica e reservada. É notável que pesa em suas costas uma grande responsabilidade, mas você sempre tem a sensação de que há algo a mais.

Germán, por sua vez, ao bom estilo zafoniano, é um homem envelhecido e doente que vive com os olhos voltados para os fantasmas de seu passado. Mas também lembro pouco sobre seu perfil psicológico.

Enfim, Marina me cativou bem mais do que os livros da Trilogia da Névoa, porque se assemelha bem mais as obras posteriores de Zafón do que os seus três primeiros livros – ainda que, na essência, eu classificaria Marina como um “quarto” livro desta coleção.

O desfecho da trama de mistério não me surpreendeu muito, mas o destino dos protagonistas me pegou de surpresa. Mas acostumado como estou com Zafón – enfim li toda a sua obra – aceitei bem o desfecho de tudo.

Ademais, gostei bastante da obra porque para mim foi um retorno a Barcelona, mas também porque entrevi nela o Zafón que conheci primeiro em A Sombra do Vento, o que me deixou bastante satisfeito. Infelizmente é o último Zafón que me restava ler, e doí-me saber que não haverá outro nem para mim nem para nenhum dos milhões de leitores que este barcelonês sério e meio misterioso cativou e fez seu fã. Com essa resenha – um pouco fraquinha, lamento – me despeço de um dos meus autores favoritos e espero que, no futuro, eu seja novamente cativado por alguém de igual ou maior valor.

À Zafón, o meu adeus.

A edição lida é da Editora Suma, do ano de 2011 e possui 192 páginas. Tradução de Eliana Aguiar. Título original: Marina.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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domingo, 28 de fevereiro de 2021

[Especial Zafón] La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

 Por Eric Silva

28 de fevereiro de 2021, Ano da Itália

“Bienvenido a un nuevo libro – desgraciadamente el último – zafoniano”

(Émile de Rosiers Castellaine, La Ciudad de Vapor)

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Livro póstumo de Zafón, La Ciudad de Vapor em sua edição original. 

Reunião de todos os contos escritos pelo barcelonês Carlos Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) traz onze breve narrativas que resgatam as origens de personagens da quadrilogia que se inicia com o livro A Sombra do Vento, ampliando o universo literário da saga. Traçando uma linha histórica da cidade catalã de Barcelona, a cidade feita de vapor, desde a antiguidade até um futuro incerto e apocalíptico, a coletânea reúne narrativa carregadas de melancolia, tragédia e maldição, com personagens taciturnos, desgraçados e malditos, compondo um caleidoscópios de narrativas góticas, de formação, fantásticas, históricas e mesmo de terror, escritas com o melhor do estilo cinematográfico, poético e metafórico de Zafón.

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês, penúltima a ser resenhada para o Especial Zafón e última a ser publicada no mundo.

Sinopse do enredo

La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) é uma coletânea que reúne onze contos de Carlos Ruiz Zafón, três deles inéditos e os demais publicados de forma dispersa em diferentes publicações entre os anos de 2002 e 2012. Contos que ampliam o universo literário de sua mais importante obra, a quadrilogia d’O Cemitério dos Livros Esquecidos, além de apresentar personagens novos que não figuram na série e personagens reais cujas vidas são recriadas pela pena gótica e trágica do escritor barcelonês.

O conto que inaugura a obra, Blanca y el adiós, nos dá vislumbres da difícil infância de David Martín, um dos muitos gênios malditos e desafortunados da Zafón, no caso um escritor, que é também personagem principal do livro O Jogo do Anjo. Neste conto até então inédito, Zafón narra como o pequeno David conheceu a menina Blanca, uma garota rica que experienciava a dor causada pelos problemas familiares entre seus pais e que, pelo acaso de um encontro fortuito no calçadão de uma livraria, acaba conhecendo David e se tornando, mais tarde, a primeira musa inspiradora das narrativas fantásticas do garoto.

Além de Blanca y el adiós, no livro, Zafón dedica ainda um segundo contos ao personagem de O Jogo do Anjo. No desconcertante Sin nombre, o autor narra a história sombria e misteriosa do nascimento de David, bem como nos apresenta as várias incógnitas que giram entorno da identidade de sua mãe, uma garota desesperada que vaga pelas ruas cobertas de neve de uma Barcelona indiferente enquanto sente as dores do parto e busca auxilio.

Em Una señorita de Barcelona, Zafón conta a história soturna de Eduardo Sentís, um fotografo arruinado que herdara as dívidas de um negócio falido de seu patrão e que encontra como recurso de vida sua própria filha e o talento da menina para encarnar personalidades de pessoas mortas para dar pequenos golpes em familiares e amantes desesperados e enlutados.

Já em Rosa de Fuego, o escritor dá um recuo no tempo e retorna ao século XV para contar as origens da família Sempere e principalmente do Cemitério dos Livros Esquecidos, a colossal biblioteca secreta e importante personagem dos livros da série que leva seu nome. Neste conto, resenhado individualmente aqui no blog em dezembro de 2020, Zafón narra a história da chegada do hacedor de laberintos, Edmond de Luna, a uma Barcelona arrasada pela febre e de como o regresso do desfortunado engenheiro seria responsável por uma tragédia ainda maior que “habría de teñir el cielo de la ciudad de fuego y sangre”.

A temática das origens dos Sempere e do grandioso palácio de livros têm continuidade no quinto conto da coletânea, El Príncipe de Parnaso, também resenhado individualmente aqui no blog. Nesse conto Zafón avança pouco mais de um século em relação a Rosa de Fuego e recria de forma trágica, gótica e romântica a história da juventude de Miguel de Cervantes, escritor real e expoente da literatura clássica espanhola, para contar como este cai nas garras diabólicas de Andreas Corelli, outro personagem fundamental do livro O Jogo do Anjo.

Por sua vez, Leyenda de navidad toma emprestada a temática do natal para contar mais uma história (esta muito breve) de terror e de maldição. Em outro contexto, o tema frio e obscuro de um dia natalino na cidade catalã é novamente resgatada na história seguinte, Alicia, al alba, que narra o encontro de um jovem empregado de um bazar com uma misteriosa moça que tenta penhorar uma preciosa guirlanda de perolas e safiras durante os bombardeios da Guerra Civil Espanhola.

Na sequência, Hombres de gris, avança para o momento histórico espanhol seguinte, ou seja, para o contexto do regime franquista, e narra a história de um assassino de aluguel que retorna a Barcelona que abandonara muitos anos antes, a fim de cumprir a mais difícil de suas missões e salvaguardar a estrutura que sustenta o regime ditatorial de Franco.

Por fim, as três últimas narrativas são breves e versam sobre temas muito distintos entre si.

Na curtíssima narrativa de La mujer de vapor, Zafón fala de como um ex-detento não tendo onde morar passa suas noites em praça pública até ser convidado por uma moça para viver em um dos muitos apartamentos abandonados de um prédio condenado, e lá encontra a felicidade em meio a bons e improváveis vizinhos. Enquanto isso, em Gaudí em Manhattan, Zafón volta aos grandes personagens históricos da Espanha para contar sobre o misterioso projeto de um hotel planejado pelo arquiteto catalão Antoni Gaudí que deveria ter ser construído na ilha de Manhattan, o que jamais chegou a ser concretizado.

Por fim, La Ciudad de Vapor se encerra com a mais breve das narrativas da coletânea, Apocalipsis en dos minutos, no qual o narrador conta seus últimos momentos de vida antes do fim do mundo.

Resenha

Livro póstumo de Carlos Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor é também o último a ser publicado do autor barcelonês cuja obra literária conta agora com nove livros. A coletânea reúne narrativas curtas de um Zafón maduro e fortemente influenciado pela atmosfera com a qual ele revestira A Sombra do Vento, e cada vez mais distante daquele Zafón que escrevera a cinematográfica porém infantil Trilogia da Névoa.

Os contos reunidos em La Ciudad de Vapor não só resgatam as origens dos principais personagens da tetralogia como também recriam a Barcelona – desde sempre antiga – de A Sombra do Vento. Recriam a melancolia e a frieza de uma cidade ora mergulhada em neblina, ora recoberta de neve e gelo, mas sempre indiferente e impassível em relação aos dramas, às violências e às tragédias vividas por seus filhos. Uma cidade que abriga emudecida as muitas histórias que se interpõem e compõem o teatro e o palco do drama humano encenado por muitas vidas anônimas e públicas, mas todas elas marcadas pela dor, pela perda, pela miséria e, sobretudo, pela tragédia.

Não há um só conto desta obra que não carregue as marcas da tragédia, da crueldade ou então da decadência humana, tendo algumas poucas almas um fulgor que acalenta os perdidos, os malditos e os desgraçados que perfilam nas páginas do livro. Não é à toa que os cenários são quase sempre soturnos, noturnos, decadentes, cobertos de névoas, de neve e gelo ou chuvosos.

Como disse, neste conto a decadência e a corrupção humana estão por todo o livro, mas destacadamente em Una señorita de Barcelona. Nele Zafón relata o declínio de um pai que pouco hesita – em troca de dinheiro – em submeter sua única filha, ainda pequena, a fazer o papel de substituta da menina morta de uma família abastarda e enlutada. Mais tarde, o mesmo pai também não hesita em prostituir a filha feita moça e fazer dela seu ganha-pão. Uma garota que passa a viver narrativas que ela mesmo cria para iludir e roubar homens consumidos pela dor e pela perda, e que no processo se dilui na identidade de pessoas mortas como forma de preencher os vácuos e os vazios de sua própria vida.

Mas, mais do que um conto trágico, Una señorita de Barcelona também resgata, em escala menor, um estilo de escrita zafoniana que cria um caleidoscópio de histórias e tragédias pessoais que se cruzam e se entremeiam a partir do encontro de várias pessoas com passados melancólicos e desgraçados. Trata-se de um caleidoscópio de narrativas que Zafón explora intensamente em Marina e sobretudo na quadrilogia do Cemitério.

Dos contos, os mais breves são precisamente os mais potentes, surpreendentes e impactantes. É o caso de Sin nombre, o mais desconcertante de todos, o mais sombrio, cru e perfeito de toda a obra. Nele Zafón traz a vilania e podridão humana tenebrosamente potencializada por um elenco de personagens incógnitos e dentre os quais somente a criança recém-nascida possui um nome. Feroz, este é o melhor dos contos da obra e o anonimato de seus personagens amplifica seu caráter sombrio, porque aquilo que não tem nome a mim me parece também não ter rosto, o que é ainda mais sombrio.

Forte é também o desfecho surpreendente de La mujer de vapor bem como as cenas descritas nos parágrafos que encerra o enigmático Alicia, al alba. Este último é também outro conto melancólico, envolto em mistérios, em brumas e neves, o que ressaltou em mim a impressão de que Zafón tinha atração não só pela tragédia, mas pela falta de calidez do inverno, pelo não dito e pelos mistérios de um rosto feminino perdido no passado e marcado pela tristeza silenciosa.

Por fim, dos contos mais curtos, o menor de todos, Apocalipsis en dos minutos, é exatamente o que seu título anuncia: uma narrativa com um tempo narrativo tão curto e escrito em linhas tão breves que o próprio texto pode ser lido em dois minutos.

Digo que em conjunto são contos que, como elucida o editor Émile de Rosiers Castellane, trazem elementos de muito gêneros literários: os livros de formação (aprendizagem), os históricos, as obras góticas, os thrillers – sobretudo de terror –, as histórias românticas e o caleidoscópio de narrativas do qual falamos, ou, nas palavras de Castellane, “el relato dentro del relato”. Ao mesmo tempo, eles criam uma linha do tempo da história da mais importante cidade catalã, indo dos finais da Idade Média no trágico e fantástico Rosa de Fuego até o futuro impreciso porém igualmente trágico e (agora) apocalíptico de Apocalipsis en dos minutos.

O estilo cinematográfico e as construções metafóricas e estilísticas que tanto caracteriza a fase madura de Zafón estão lá também e representaram para mim – que li a obra em seu idioma materno – um desafio de tradução e compreensão linguística, semântica e metafórica. Através destas construções metafóricas e cinematográficas Barcelona se veste com mantos de fogo, de cinzas e de neve, neblina e vapor, justificando o título da coletânea e resgatando uma vez mais os cenários e contextos prediletos de um autor que flertava com o trágico e com o gótico e que gostava de desnudar as misérias humanas em narrativas repletas de aventuras, História, poesia e mistério.

Uma vez mais me despeço de meu escritor predileto, de suas tramas carregadas de mistérios e melancolias. Falta agora resenha apenas o livro Marina, e terei resenhado toda a sua obra.

Enfim, sigo ansioso pela publicação de La Ciudad de Vapor em português para que ele ocupe, junto aos seus irmãos, o espaço que lhe é de direito na minha estante.

A edição lida é digital da Editora Grupo Planeta, do ano de 2020 e possui, em sua edição física, 224 páginas.

***

Nota: os leitores que não foram iniciados no labiríntico e caleidoscópio universo do El Cementerio de los Libros Olvidados sugiro que leia primeiro a quadrilogia que começa com A Sombra do Vento e encerre com La Ciudad de Vapor. As narrativas farão mais sentido com estas referências.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

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domingo, 31 de janeiro de 2021

[Especial Zafón] El Príncipe de Parnaso (conto) - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

 Por Eric Silva

21 de fevereiro de 2021, Ano da Itália

“[...] Miguel de Cervantes, luz entre poetas, mendigo entre los hombres y Príncipe de Parnaso.”

(Carlos Ruiz Zafón, El Príncipe de Parnaso)

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Capa da edição promocional da editora Planeta de Libros,
distribuída em 2012 na Espanha.

Sinopse do enredo

Barcelona, 1616.

Do alto da muralha que selava Barcelona, Antoni de Sempere, el facedor de libros, avista a chegada à cidade do cortejo fúnebre de seu amigo Cervantes, tendo ao seu lado a funesta figura de Andreas Corelli, o principal responsável pelas desventuras de seu amigo.

Corelli não havia envelhecido um único dia depois de todo o tempo que se passara desde a primeira vez que Cervantes e Francesca haviam chegado a Barcelona, em 1569, como dois fugitivos de terras italianas. E como já se era de esperar, o macabro arcanjo estava ali para testemunhar a ida de Cervantes ao túmulo após este ter finalmente escrito a obra-prima prometida ao funéreo editor.

É em meio ao incômodo diálogo com o perturbador Corelli que Sempere se entrega as suas recordações acerca de Miguel de Cervantes Saavedra e de como este, ao mesmo tempo, conhecera em seu exílio na Itália, a criatura mais bela já vista e assinara um pacto que seria razão de sua fama e de seu maior infortúnio. 

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês resenhada para o Especial Zafón.

Resenha

Publicado em 2012, El Príncipe de Parnaso é um conto de 35 páginas que foi oferecido pela editora Planeta, até onde sei, somente na Espanha, como uma cortesia aos compradores do romance de Zafón, El Prisionero del Cielo (O Prisioneiro do Céu) na ocasião de sua publicação. Por conta disso, assim como os demais contos do autor, não chegou a ser pulicado no Brasil e nem em língua portuguesa. Ele é também um dos onze contos que integram a coletânea póstuma do autor, La Ciudad de Vapor – que em breve será publicada no Brasil.

O conto é mais um dos que integram o universo da série d’O Cemitério dos Livros Esquecidos trazendo como personagens uma figura real – Miguel de Cervantes Saavedra, escritor espanhol dos séculos XVI e XVII e autor de Dom Quixote – dois antepassados de personagens da quadrilogia do Cemitério e Andreas Corelli, a figura sobrenatural que carimba sua presença em duas obras do autor:  As Luzes de Setembro e O Jogo do Anjo.

A história de El Príncipe de Parnaso se passa na Barcelona de meados da Idade Moderna, um pouco mais de um século depois dos fatos narrados em outro conto que integra o universo da série do Cemitério, Rosa de Fuego e que narra um pouco da origem da misteriosa biblioteca que funciona como eixo principal de todos os livros da série.

Neste segundo conto, Zafón desvia-se da história da secular biblioteca – ainda que a cite nos parágrafos que encerram a narrativa, [ALERTA DE SPOILER] sugerindo que Cervantes esteja secretamente sepultado dentro da colossal biblioteca –, e foca sua trama numa recriação da história de Miguel de Cervantes, mais exatamente de um episódio de sua mocidade quando este esteve vivendo em Roma após ter fugido de Madri.

Na biografia do autor espanhol, consta realmente que para evitar ter a mão direita decepada como punição por participar de um duelo, Cervantes fugiu para Roma em 1569[1]. Contudo, o relato de Zafón é obviamente ficcional – sobretudo quanto ao local real de sepultamento do escritor –, mas toma por base uma estadia real de Cervantes naquela que se tornaria séculos depois na capital da Itália atual.

Neste conto Zafón descreve um Cervantes em início de carreira, um tanto vacilante, bastante melancólico, tentando mostrar a sua arte para algum editor que quisesse publicá-la. Zafón desenha um jovem que já possui as marcas de um talento observável, mas pouco polido, ainda muito bruto e distante do horizonte onde estaria o escritor que se imortalizaria e teria sua obra conhecida em todos os cantos do planeta. Contudo, para alcançar esse horizonte distante o destino coloca no caminho de Cervantes o diabólico Corelli que conduzirá o jovem escritor para uma direção inesperada.

Em paralelo, a narrativa também conta a história de Francesca di Parma, uma pobre miserável, mas de grande beleza que tivera o infortúnio de ser abandonada bebê em baixo de uma ponte, sendo resgatada por uma família de facínoras e trapaceiros tão pobres quanto ela, mas que só não a descartaram de novo por terem visto em sua beleza uma forma de explorá-la e obter algum lucro. Prova disso é que ao surgir a oportunidade de conseguirem um grande lucro às custas da garota não hesitam em submetê-la a um destino cruel.

Zafón faz o encontro destas duas almas perdidas (ele real, ela fictícia) e tem-se um conto sobre amor e tragédia, com pitadas de terror e elementos fantásticos e góticos.

Apesar de não ter um enredo grandioso e nem mesmo muito ambicioso, El Príncipe de Parnaso conserva o que há de melhor no estilo “zafoniano” de escrita: muitas e ricas construções estilísticas, cinematográficas e metafóricas, atmosfera gótica e soturna, ambientes decadentes, romance trágico, e, por fim, artistas frustrados, melancólicos, loucos ou à beira da insanidade. Toda a poética singular do autor se expressa nesse texto, o que dificultou bastante a minha leitura, haja vista que li o conto em sua língua materna.

Apesar de não ter um enredo tão instigante quanto os livros da série do qual faz parte El Príncipe de Parnaso me atrai por ser mais um vislumbre do estilo maduro de Zafón, e do qual senti muita falta nos livros juvenis da Trilogia da Névoa.

Como o texto é contado a partir de um flashback de Sempere – porém narrado em terceira pessoa – os fatos não são absolutamente contados em ordem cronológica. Pelo contrário, o conto começa no ano de 1616, recua 47 anos no passado até 1569, recua mais alguns meses, avança até 1610 e depois retorna a 1616. Para evitar confusões, cada capítulo – com exceção de dois – são datados e localizados geograficamente no título.

Esses constantes vão-e-vêm se dão porque o flashback de Sempere é também entrecortado por um relato do próprio Cervantes, porém narrado em terceira pessoa, e que numa taverna conta a história do tempo passado em Roma e de como acabara fugindo de lá com Francesca. O relato é feito a Sempere e também ao espirituoso, esperto (e inconveniente) Sancho Fermín de la Torre. E aqui temos um dado curiosos: para mim, que li agora 80% da obra de Zafón, é evidente que o nome do personagem Sancho foi escolhido a dedo para fazer referência a dois personagens icônicos. O primeiro deles é Fermín Romero de Torres, amigo, cúmplice e protetor do jovem Daniel desde os fatos narrados no livro A Sombra do Vento até o encerramento da série com O Labirinto dos Espíritos. O segundo personagem pertence ao Cervantes real: o simplório escudeiro de Don Quixote, Sancho Pança.

É perceptível que Zafón escolhe esse nome tão estranho e incomum com o intuito de sugestionar que Cervantes escolhera o nome do escudeiro de Don Quixote inspirando-se na triste figura que conhecera anos antes em Barcelona: um antepassado longínquo do moderno Fermín da Espanha franquista para quem o grande artista uma vez contara a sua história.

Oura referência, essa menos obvia, está no título. El Príncipe de Parnaso faz referência a um dos livros do Cervantes real, Viaje del Parnaso, uma das obras poéticas do autor e publicada em 1614. O termo Parnaso, por sua vez, faz referência ao monte grego Παρνασσός (Parnassos) que aparece na mitologia grega como lar das Musas e que por isso é associado ao lar da poesia, da música e do aprendizado[2]. Um paraíso da arte e das letras. Como grande escritor, Cervantes seria o príncipe de Parnaso.

Para concluir. Em termos de pontos forte e fracos, reitero que o melhor deste conto é a escrita, e sua fragilidade, o enredo. A ideia é original, apesar de que tornar personagens reais em fictícios não seja nenhuma novidade na literatura. Contudo, Zafón integra Cervantes com perfeição ao universo expandido de O Cemitério dos Livros Esquecidos.

Edição espanhola de A Cidade de Vapor

Algo que lamento muito e a mim causa espanto é que a editora Suma, na ocasião da publicação da edição brasileira de O Prisioneiro do Céu, não tenha seguido os passos da editora Planeta de Libros e publicado também aqui essa edição promocional, ou, no mínimo ter publicado o conto em versão epub gratuito como muitas editoras vem feito nos últimos anos com seus títulos mais populares. Já vi coleções (sagas, séries) que eu – da minha parte – dificilmente investiria esforço para ler, terem contos associados aos livros publicados na Amazon e mesmo no Google Play. A Suma perdeu esta oportunidade na época. Todavia, com o lançamento, na Espanha, de La Ciudad de Vapor, isso será corrigido, uma vez que El Príncipe de Parnaso figura entre os contos da coletânea.

É verdade que o conto não é tão instigante quanto a série, mas ganha pontos por nos dar mais um vislumbre dos ancestrais da mesma, assim como Zafón fizera em Rosa de Fuego porém este último destoa um pouco das narrativas centrais por seus elementos fantásticos que inexistem na quadrilogia e também no El Príncipe de Parnaso. Verdade seja dita, El Príncipe de Parnaso tem mais a ver com a série do que Rosa de Fuego.

Quanto ao desfecho, este não é particularmente surpreendente, porque já era do conhecimento do leitor desde as primeiras páginas. No entanto, os dois últimos parágrafos sugestionam mais algumas coisas acerca das origens da grande biblioteca. É neste breve ponto da trama que fica claro porquê, apesar de não focar na grande biblioteca de livros esquecidos, a edição promocional do conto traz em sua capa uma ilustração em ponta de lápis que sugere ser um vislumbre do Cemitério de Livros quando este estava em construção. Um empoeirado e secreto paraíso de livros que para sempre os fãs de Zafón procurarão pelas estreitas ruas da Barcelona antiga.

A edição lida foi distribuída gratuitamente como brinde pela editora Planeta na época do lançamento de El Prisionero del Cielo na Espanha. A edição é do ano de 2012 e possui 35 páginas. Como ele não é acessível no Brasil li numa versão em epub que encontrei na internet.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

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[1]https://super.abril.com.br/historia/o-cavaleiro-da-triste-figura/.

[2]MOUNT PARNASSUS. In: WIKIPÉDIA, The Free Encyclopedia. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Mount_Parnassus>. Acesso em: 15 jan. 2021.

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

[Especial Zafón] As Luzes de Setembro - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

Por Eric Silva para o Especial Zafón

24 de janeiro de 2021, Ano da Itália

“A solidão traça estranhos labirintos”

(Carlos Ruiz Zafón, As Luzes de Setembro)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

Capa da edição brasileira. Suma das Letras, 2013.

Uma bela comunidade litorânea da Normandia, um romance juvenil de verão e as sombras de um passado macabro e marcado pela dor e pela destruição.  As Luzes de Setembro (Las Luces de Septiembre) é o terceiro e último livro juvenil de Carlos Ruiz Zafón que integra a Trilogia da Névoa. Um romance para jovens com um enredo mediano, mas muito bem escrito, que como outros livros do autor é bastante cinematográfico, mas que também repete muitas fórmulas já exploradas nos dois livros que o precedem.

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês resenhada para o Especial Zafón.

Sinopse do enredo

Normandia, verão de 1937.

Após perder o marido e passar por dificuldades financeiras para sustentar a si e a seus dois filhos, Simone Sauvelle encontra num pequeno vilarejo na costa da Normandia uma oportunidade irrecusável para trabalhar como governanta de um imponente casarão. O salário era generoso e seu empregador, Lazarus Jann, também oferecia a possibilidade de se instalarem numa modesta residência construída no vértice do cabo do pequeno vilarejo, a Casa do Cabo. Mesmo que precisassem abandonar Paris, aquela era uma luz de salvação que permitiria a Simone garantir o sustento dos filhos, mas que também mudaria para sempre a vida de sua família.

Em meados de junho, Simone e seus filhos, Irene e Dorian, partem para Baía Azul, uma pequena comunidade pesqueira onde vivia o excêntrico inventor que empregaria Simone. Naquela costa Lazarus construíra um grande casarão repleta de máquinas e autômatos bizarros e maravilhosos e a qual dera o nome de Cravenmoore. Ali o inventor vivia recluso com sua esposa enferma e ao lado de sua fábrica de brinquedos fechada vários anos antes.

O vilarejo era tranquilo e a comunidade hospitaleira e, por isso, os Sauvelle não encontram dificuldades para se adaptar nem a casa nem ao lugar, sobretudo com a ajuda da animada e faladeira Hannah, a jovem cozinheira de Cravenmoore e que logo faz amizade com Irene e vai com ela a toda parte falando (até os mínimos detalhes) sobre tudo e sobre todos do lugar. É também através de Hannah que Irene conhece o primo da moça, o jovem Ismael, e seu veleiro, Kyaneos, com o qual o rapaz foge para o mar sempre que tem vontade.

Não demora muito para que os dois jovens se encantem um pelo outro e Ismael leve Irene para conhecer o farol e a costa em seu veleiro. Contudo, o clima de felicidade e de romance de verão dura pouco quando, numa certa manhã, Hannah é encontrada morta no bosque próximo à casa de Lazarus em circunstâncias misteriosas. Decididos a descobrir o mistério por trás da morte da moça os dois jovens acabam por desenterrar o passado assombrado e trágico de Cravenmoore e seus habitantes.

Resenha

Último livro da Trilogia da Névoa, série de livros juvenis independentes escritos pelo barcelonês Carlos Ruiz Zafón, As Luzes de Setembro é pouco mais do que a repetição das fórmulas empreendidas pelo autor nos dois romances que o antecederam.

A Trilogia da Névoa em ordem cronológica de publicação.


Assim como O Príncipe da Névoa e O Palácio da Meia-noite este é mais um livro que explora não somente as temáticas góticas e de mistério comuns a toda a obra do autor como também traz novamente o sobrenatural como elemento definidor da trama (uma criatura feita de sombras, um casarão imenso com inúmeros cômodos e cheio de autômatos sinistros). O plot do livro em essência segue a mesma fórmula dos demais da trilogia, mas resgata sobretudo aquela usada em O Príncipe da Névoa:

-        Uma localidade pequena e litorânea cuja principal marca é a presença de um farol;

-     Um casal adolescente recém-formado (ele apaixonado pelo mar, ela forasteira que acabara de mudar-se e com a família e um irmão menor que também protagoniza na história);

-       Um mistério tenebroso e trágico que envolve o passado de um morador da localidade e que emerge para pôr os protagonistas em risco de vida;

-        Um punhado de jovens inteligentes e proativos;

-        Lugares arruinados, amaldiçoados ou bucólicos;

-        O verão local como marca temporal e romântica (amor de verão);

-        Grandes cenas cinematográficas;

-    Uma criatura quase mitológica que tem sua origem em uma comunidade suburbana paupérrima da infância pobre de um dos personagens.

-        [ALERTA DE SPOILER] e um desfecho trágico.

 

Tantas semelhanças entre os plots dos três livros – mas sobretudo com o primeiro deles – é explicado pelo próprio autor que chegou a afirmar que As Luzes de Setembro foi uma forma de “solucionar alguns elementos que não havia resolvido do jeito que gostaria em O Príncipe da Névoa”. De fato, ambos os livros são compostos com marcas temporais, atmosferas e cenários parecidos, além de uma mesma referência a névoa que dá nome a trilogia.

O que vai diferenciar esse roteiro dos demais são as circunstancias em que cada fato se dá. Os períodos históricos são um destes elementos. Muito próximos (1943, 1932 e 1937, respectivamente), mas em momentos um tanto distintos (período entre guerras e 2ª Guerra Mundial), mudando sensivelmente no caso do segundo livro por conta do seu deslocamento geográfico da Europa para o subcontinente asiático.

Mudam na trama também o passado dos personagens, o tipo de natureza do vilão principal bem como suas motivações e poderes, a função de alguns elementos dentro da narrativa (com destaque para o farol), a composição dos grupos familiares dos protagonistas e a função e destaque que cada um deles têm na trama com maior ou menor protagonismo. Além disso, nesta história a pequena comunidade litorânea que serve de ambientação ganha um nome e uma localização espacial um pouco mais definida.

Mas uma marca distintiva entre os romances que mais me chamou a atenção está no fato de que em As Luzes de Setembro o autor reforça ainda mais o caráter de terror da trama. Trata-se de algo que ele inicia em O Palácio da Meia-noite, porém já nos últimos capítulos. Ao contrário, em As Luzes de Setembro o terror e a tensão estão presente em mais da metade da peça, se insinuando tanto em pequenas coisas – a exemplo do pequeno autômato[E1]  em forma de anjo que se move sozinho e cujos olhos brilham na escuridão ao lado da cama do garoto Dorian –, até em momentos maiores como nas cenas de perseguição bastante cinematográficas e cheias de “efeitos especiais” envolvendo o casal jovem da trama. Além disso, os elementos de terror vão mudando aos poucos: de gatos estranhos, névoa e navios afundados, o autor segue para espetáculos incendiários, trens fantasmas e colossais estações ferroviárias arruinadas, e por fim, retorna à névoa acrescida de criaturas mecânicas que se movem sozinhas e doppelgänger.

Os personagens de As Luzes de Setembro seguem também quase as mesmas fórmulas com as quais foram construídos os protagonistas e personagens secundários dos dois livros anteriores. Por isso não sinto nenhuma vontade de alongar a resenha falando deles. Cito apenas que vejo em Ismael uma cópia quase idêntica de Roland de O Príncipe da Névoa; em Irene, uma Alicia que ganha protagonismo, que é mais família, mais sociável, madura e mais comunicativa, e, por fim, vejo em Dorian um Max que perde o faro investigativo, a força e o relevo na trama para concedê-los à irmã (troca de papéis), mas sem ficar de todo destituído do seu protagonismo. Quanto aos demais, acho-os tão fracos que não quero me deter neles.

A primeira aparição de Andreas Corelli?

Mas algo que me causou surpresa foi a participação (rápida, mas decisiva) em As Luzes de Setembro de um personagem do universo de O Cemitério dos Livros Esquecidos: o diabólico arcanjo Andreas Corelli[E2] .

Interpretação artística do personagem Andreas Corelli.
Artista: Bertus Dokter.


Corelli é um editor dotado de uma áurea e aparência sobre-humana e que gosta de fazer pactos com artistas malditos. Ele aparece pela primeira vez na série d’O Cemitério em seu segundo livro, O Jogo do Anjo, cuja trama é tão intrincada que nos faz duvidar da real existência de Corelli.

As razões da minha surpresa ao encontrar este personagem na trama do terceiro juvenil de Zafón são, na verdade, duas. A primeira delas é que este foi um fato atípico na trilogia. Em nenhum dos outros dois volumes Zafón faz com que enredos de séries diferentes se entrecruzem ou mesmo que um personagem transite entre os dois universos. O primeiro caso de fato não acontece em nenhum dos livros, mas o segundo acontece neste. Ainda assim, achei bastante coerente a inserção do personagem ao se levar em consideração sua natureza sobrenatural e que combina muito mais com a atmosfera fantástica, sobrenatural e de terror da Trilogia da Névoa. Muito mais do que com os livros de O Cemitério dos Livros Esquecidos, que tem uma pegada mais realista – mesmo em o Jogo do Anjo que nos faz crer ser Corelli uma alucinação do protagonista.

A segunda razão de minha surpresa está ligada a origem do personagem. Achava eu que Corelli, enquanto personagem, havia nascido em O Jogo do Anjo (2008) e depois transportado para outras tramas, a exemplo do conto El Príncipe de Parnaso. No entanto, tendo sido As Luzes de Setembro uma obra de 1995 – uma diferença temporal de 13 anos entre os dois livros – fica evidente que O Jogo do Anjo não foi a primeira aparição do personagem na obra de Zafón. Talvez o autor aproveitou no livro de 2008 um personagem de grande potencial, mas que fora pouco explorado em 1995. Digo talvez, porque há a possibilidade de que Corelli tenha aparecido em algum outro conto mais antigo do autor e isso só poderei comprovar quando tiver a oportunidade de ler La Ciudad de Vapor, ainda sem tradução no Brasil.

Um enredo mediano muito bem escrito

No que diz respeito a escrita, Zafón continua impecável. Linguagem leve, mas elegante. Texto fluido e bem estruturado. Prosaico até onde precisa ser, sem destituir o texto de poética e das construções estilísticas (metafóricas) corriqueiras em sua obra.

Na narração ele aproveita a estatura narrativa de O Palácio da Meia-noite alternando entre narradores-personagens – que se manifestam em cartas trocadas entre o casal da trama após a ocorrência dos fatos narrados e que ajudam a dar uma noção de continuidade –, e um narrador predominante em terceira pessoa. Assim como no caso supracitado, os narradores-personagens possuem uma nostalgia quase poética em seus brevíssimos discursos (apenas dois, um para iniciar – Ismael – e outro para encerrar o livro – Irene).

O livro foi para mim uma experiência bem mediana e nada em particular me chamou a atenção para que eu gostasse um pouco mais da trama ou do enredo em geral.

No que diz respeito as ideias do autor para o enredo do livro, achei-as bem medianas, mas talvez porque eu esperasse muito mais de Zafón do que ele de fato entregou nesta obra e nas demais que compõe a série. Essa minha queixa já é antiga.

Apesar de gostar e achar original a inserção dos autômatos na trama, algo que até então só havia visto no filme A Invenção de Hugo Cabret (2011) e sem o elemento de terror, não achei As Luzes de Setembro tão criativo, mas uma junção de elementos já nas obras do autor, somado a algumas histórias já muito exploradas pela literatura em geral: amores de verão, artistas (cientistas) loucos, doppelgänger, diários/escritos deixados por pessoas já mortas e/ou desconhecidas, problemas familiares trágicos na infância, etc.

Um automato é uma máquina ou robô desenvolvido para operar automaticamente. A maioria deles possuem estruturas mecânicas sofisticadíssimas e que lhes permitem realizar uma tarefa simples. Na foto, o automato desenhista do filme A Invenção de Hugo Cabret, 2011.


O que eu vejo ganhar força neste livro são os conhecidos elementos cinematográficos que autor explora bastante em O Palácio da Meia-noite e que parecem ter fechado um pouco os buracos deixados pela leve sensação de falta de enredo que o livro me deixou.

As construções cinematográficas são boas e Zafón não se perde nesta que é uma das mais destacadas marcas de seu trabalho literário e que, acredito eu, é resultado e influência dos anos em que o autor trabalhou como roteirista (o autor ainda conta no prefácio que escreveu As Luzes de Setembro tendo a sua janela a vista da Melrose Avenue bem como das letras de Hollywood em sua colina).

Quanto aos pontos negativos, acho que eu resumiria da seguinte maneira: um enredo mediano muito bem escrito, que não empolga, que é bastante previsível em algumas partes e que no final você nem gosta nem desgosta. Em outras palavras, o fim da descida que começara em O Príncipe da Névoa. Isso, no entanto, não me surpreende muito, porque é comum que sagas – mesmo aquelas de livros independentes – percam fôlego com o avanço dos volumes porque vão se esgotando os recursos ou as temáticas.

E o que dizer do desfecho? Basicamente o mesmo que já disse no parágrafo a cima: mediano. Não surpreende porque já era previsível, mas é um pouco menos trágico (sem deixar de sê-lo, no entanto). Acredito que o que dá um up no fim do livro é a carta de Irene à Ismael que dá uma noção de continuidade na narrativa selando de vez o enredo.

A edição lida é da Editora Suma das Letras, com tradução de Eliana Aguiar. Do ano de 2013 e possui 232 páginas. O título original em espanhol é Las Luces de Septiembre.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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