domingo, 12 de abril de 2020

[ESPECIAL] O Acidente Nuclear de Chernobyl: Contexto Histórico de Vozes de Tchernóbil – Postagem Especial


Por Eric Silva para os blogs Conhecer Tudo e Geographia Mundi

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Em 26 de abril deste ano, o acidente nuclear de Chernobyl completa 34 anos. Hoje começo uma série especial de artigos sobre o livro Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch (grafado também como Alexijevich ou Alexievich), que documentou uma série de relatos de sobreviventes do acidente e também de seus descendentes. Neste primeiro artigo, como forma de introdução ao tema, trago um resumo do contexto histórico da época falando um pouco das cidades atingidas, da União Soviética no contexto da Guerra Fria e do acidente propriamente dito.

No segundo artigo, trago a resenha crítica do livro de Svetlana, e, no terceiro, uma galeria de imagens da zona de exclusão com citações do livro.

Confiram agora o contexto histórico do acidente.

A época do acidente

Em 1986, o mundo ainda vivia em plena Guerra Fria, um período no qual a ordem mundial se encontrava bipolarizada e as nações divididas em dois blocos: o bloco capitalista, comandado pelos EUA, e outro socialista, encabeçado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, ou apenas União Soviética). Ambas as nações naquele tempo buscavam demonstrar seu poderio tecnológico e bélico, bem como defender e promover as ideias de seus respectivos modelos sociais e econômicos, em um jogo político que buscavam influenciar diversos países, sobretudo através de ajuda econômica.

Durante a Guerra Fria os conflitos armados se deram de forma indireta, o que não eliminava, porém, a tensão de uma possível guerra entre as duas superpotências. Na época, a forte disputa ideológica empreendida pelas dois píeses, mas principalmente a ameaça de uma guerra atômica entre eles e que provavelmente exterminaria a vida na Terra, contribuíram não apenas para amedrontar todas as nações do mundo como deixavam as populações americana e soviética sempre alertas ao ataque inimigo.

Não é de se surpreender que o primeiro pensamento dos soviéticos, quando se iniciou a movimentação do exército vermelho no local da explosão da central atômica de Chernobyl, fosse a de que o acidente estivesse de alguma forma ligado a uma sabotagem promovida pelos inimigos. Pensamento que só com o tempo foi desfeito.

Localização da República Socialista Soviética da Ucrânia.
Autor: Milenioscuro. Wikimedia Commons.
Localizada na Europa Oriental, na fronteira com a atual Federação Russa, a Ucrânia, assim como muitas outras nações, em 1986, fazia parte da União Soviética como uma de suas repúblicas, uma das mais ricas da URSS. Na época, era chamada de República Socialista Soviética da Ucrânia (em ucraniano: Радянська Соціалістична Республіка Українa)[1] e ali viviam milhões de pessoas (51.706.746 em 1989) tanto nativas como oriundas dos mais diferentes recantos da extensa União Soviética, inclusive da república soviética vizinha, a República Socialista Soviética da Bielorrússia (em bielorrusso: Беларуская Савецкая Сацыялістычная Рэспубліка).

Seria na Ucrânia país, entre as cidades de Pripyat e Chernobyl, mais precisamente a noroeste desta última, onde a usina nuclear de Chernobyl seria construída, a 16 km da fronteira entre a Ucrânia e a Bielorrússia, e a cerca de 110 km de Kiev, a capital da república[2]. Hoje, completamente abandonadas, ambas as cidades são apenas o fantasma do que foram na época.


Chernobyl e Pripyat

Apesar de não terem sido as únicas áreas atingidas pela radiação liberada na explosão do reator 4, Chernobyl e Pripyat são os dois grandes símbolos do acidente.

Na época, Chernobyl era uma pequena e antiga cidade de 14 mil habitantes[3] localizada na província (oblast) de Kiev. O primeiro documento a menciona a cidade data do ano de 1193, no qual o sitio é descrito como um alojamento de caça pertencente ao Kniaz (rei, príncipe) Rostislavich[4].

Restaurante abandonado na cidade de Chernobyl. Autor: Natis. 
Wikimedia Commons.
Localizada quase na fronteira entre a Ucrânia e Bielorrússia, o município apesar de abrigar a usina nuclear (14,5 km a noroeste da cidade) que, por sinal, levava seu nome, não estava diretamente relacionada a ela e não era a residência de seus trabalhadores. É considerada uma cidade fantasma após toda a sua população ter sido evacuada. Hoje, os poucos residentes chegam ao número de 150 pessoas[5], uma pequena população composta por idosos que retornaram ilegalmente a zona de exclusão após as evacuações realizadas pelas autoridades soviéticas.

Visão da cidade de Pripyat nos tempos atuais. Autor: IAEA Imagebank. Wikimedia Commons.
Por sua vez, fundada em 1970[6], especialmente para abrigar os funcionários da central nuclear e suas famílias, a cidade de Pripyat se tornaria o principal cenário da tragédia.
Pripyat foi construída a 4 km da usina de Chernobyl e possuía a capacidade de abrigar entorno de 50 mil habitantes[7]. Segundo Aleksêi Timofeitchev[8], a cidade era mais uma das quase duas dúzias de “cidades atômicas” que existiam na URSS, tendo sido construída no mesmo ano que a usina por brigadas “superprodutivas”. Afirma também o autor que a cidade era habitada por uma população jovem (média de 26 anos) proveniente de todo o território soviético.

Santiago (s/d)[9] conta que a região era originalmente “um modesto reduto de agricultores”, porém com a chegada da usina, a primeira da Ucrânia, mas que mudaria completamente com a instalação do núcleo urbano. Afirma ainda, que pensada para ser uma cidade-modelo, Pripyat foi “meticulosamente planejada” com uma grande infraestrutura que ia desde “uma ampla rede de atrativos culturais” até “um centro médico, escolas secundárias, escola técnica, mercados e restaurantes” além de diversas pré-escolas, opções para a prática de atividades físicas e outras obras que ainda seriam implantadas. Contudo após o acidente toda a população da cidade teve que ser evacuada e a infraestrutura abandonada.


O acidente e a zona de exclusão

A tampa do reator (escudo biológico superior)
apelidado de "Elena" caída de lado na cratera
de explosão. Sobrepostas estão a posição pré-explosão
dos tanques de vapor, do piso da sala do reator
e das treliças do telhado.
Autor: Tadpolefarm. Wikimedia Commons.
Segundo informações da época, o acidente de Chernobyl ocorreu na madrugada de 26 de abril de 1986, quando os seus operadores realizavam um experimento no reator 4 da usina.

Souza (s/d)[10] explica que o objetivo do experimento realizado naquela noite era observar o comportamento do reator quando este fosse utilizado com níveis baixos de energia. Mais especificamente, Pedrolo (2014)[11] comenta que a intensão era testar se as turbinas do reator “seriam capazes de gerar energia suficiente para manter as bombas do líquido de refrigeração funcionando” em situações de perda de potência “até que o gerador de emergência fosse ativado”.

No processo, afirma Souza (s/d), diversas normas de segurança foram desrespeitadas e um dos principais erros cometidos foi a interrupção da circulação do sistema hidráulico que controlava a temperatura dentro do reator, o que desencadeou um processo de superaquecimento irreversível e a consequente explosão do reator cheio de Urânio-235. Contudo essa explicação para o acidente não é aceita por todos, sendo que muitos apontam para falha humana e outros para erros no projeto e na construção do reator.

O vídeo abaixo (em inglês) mostra um esquema de como o retor explodiu.


Com a explosão, uma enorme quantidade de material radioativo foi lançado na atmosfera liberando uma radiação 400 vezes maior do que as bombas de Nagasaki e Hiroshima (SOUZA, s/d). O resultado foi a formação de uma grande nuvem de radiação que atingiu vários países europeus, alcançou outros continentes, mas que contaminou principalmente a república soviética mais próxima: a Bielorrússia (ou Belarus).

Nos dias que se seguiriam, a ação dos ventos e da chuva aumentariam a disseminação da radiação e segundo reportagem da BBC[12], o incêndio provocado pela explosão na usina ainda perduraria por mais 10 dias, durantes os quais os soviéticos tentariam conter as chamas do material radioativo com areia (para o incêndio) e chumbo (para a radiação) lançados sobre o reator de helicóptero.

A reação do Estado Soviético ao incidente foi considerada como lenta e contribuiu para que se prolongasse o tempo de exposição de milhares de pessoas à radiação, sobretudo na cidade de Pripyat. A população não foi avisada de imediato da magnitude da situação nem foram tomadas medidas de emergência como a distribuição de pílulas de iodo para impedir a absorção de iodo radioativo pelo corpo[13]. Mesmo o processo de evacuações só teve início 30h depois da explosão da usina, quando milhares de pessoas foram deslocadas para outras áreas com a promessa de que retornariam em poucos dias.

Visão externa do Palácio da Cultura. Autor: Timm Suess. Wikimedia Commons.
Visão interna do Palácio da Cultura. Autor: Timm Suess. Wikimedia Commons.

Como medida emergencial o governo soviético estabeleceu uma área de isolamento que se estende por uma área de raio de 30 km entorno do local da usina, evacuando mais de 135 mil pessoas residentes nesta área[14]. Ainda hoje a chamada Zona de alienação da Usina Nuclear de Chernobyl ou Zona de exclusão de Chernobyl ainda existe, é patrulhada por policiais aramados e a moradia é proibida, ainda que alguns dos evacuados tenham regressado a zona de forma clandestina e permanecem vivendo nela apesar do isolamento. Todavia, ainda segundo reportagem da BBC, a região nunca foi completamente evacuada devido a variação das regras de exclusão que dentro do perímetro da zona variam segundo os níveis de radiação.

“A usina, fechada em 2000, não tem residentes oficiais. Trabalhadores envolvidos na desativação da usina e na descontaminação da área têm permissão para morar na cidade de Chernobyl, a uma distância de 15 km da usina, mas ainda assim há um limite para o número de semanas consecutivas que podem passar no local”.

Outra medida adotada pelo Estado Soviético para combater o incêndio do reator 4, isolá-lo e fazer a “limpeza” da usina, cidades, povoados e campos contaminados foi a criação de uma brigada formada por 600.000 homens entre soldados, voluntários e especialistas de diversas áreas que passaram a ser chamados de “liquidadores” (“ликвида́тор” "likvidators").

Liquidador soviético durante as atividades de descontaminação.
Autor: IAEA Imagebank. Wikimedia Commons.
O objetivo dos liquidadores era conter o avanço da radiação impedindo que esta se alastrasse ainda mais e que outros montantes fossem liberados pelo reator, trabalhando inclusive em medidas para evitar uma segunda explosão. As atribuições destes homens ia desde a construção do sarcófago de aço e concreto que deveria envolver e isolar o reator 4, como desativar edifícios, realizar medições de radiação, remover camadas superficiais inteiras de solo contaminado, exterminar animais domésticos contaminados, demolir e enterrar construções cobertas por resíduos radioativos, fazer a limpeza de povoados inteiros e remover os destroços da explosão do teto e do entorno do reator.

Expostos a grande níveis de radiação e sem os equipamentos de proteção adequados apenas 5% dos liquidadores ainda vivos se encontram saudáveis[15], a maioria morreu ainda muito jovem, sobretudo por doenças como o câncer e muitos outros ficaram inválidos.

O “sarcófago” construído emergencialmente em aço e concreto para cobrir e isolar o reator hoje se encontra em estado avançado de deterioração o que cria o risco de um colapso da estrutura e o espalhamento de uma grande quantidade de poeira e resíduos radioativos (“200 toneladas de cório radioativo, 30 de poeira contaminada e 16 toneladas da soma de urânio e plutônio”[16]). Ante a este risco eminente o governo ucraniano, com o apoio de 21 países doadores, construiu uma nova estrutura de isolamento, o New Safe Confinement, uma estrutura de 108 metros de altura por 257 de largura e pesando 36 mil toneladas[17] que foi instalada, em 2016, sobre o reator 4.
Abaixo, no primeiro vídeo você pode conferir a instalação do novo “sarcófago” do reator 4, enquanto que no segundo vídeo, é possível se ter uma ideia da complexidade da construção dessa estrutura.

Novo sarcófago



Complexidade do projeto



As consequências

Além de inúmeras perdas humanas, materiais e afetivas, a mais nefasta e duradora consequência do acidente se revelaria nas gerações posteriores.

Após a liberação do material radioativo cresceram o número de doenças congênitas como má formação de órgãos e doenças cardiovasculares em crianças além do surgimento de mutações genéticas (KAPUSTINA, 2011)[18]. Além disso, houve absurdo aumento nos casos de câncer e de doenças da tireoide (idem, ibidem).

Por sua vez, as consequências psicológicas não são quantificáveis. Muitos dos depoimentos trazidos pelo livro de Svetlana pontuam algumas destas consequências no plano psicológico como nos trechos a seguir.

“Não adianta, as nossas crianças não sorriem. E em sonhos choram”.
“À nossa volta só se fala na morte. As crianças pensam na morte. Mas isso é algo que só deveria ser pensado no final da vida, e não no início dela”.

Nas regiões de maior contaminação, alimentos e animais ainda apresentam elevados níveis de radiação o que torna impraticável o seu consumo, e mesmo a cadeia alimentar selvagem foi atingida.


Durante as primeiras semanas após o acidente, o governo soviético, na época chefiado por Mikhail Gorbachev, tentou esconder do mundo a ocorrência do desastre. O desastre só seria revelado quando alguns países europeus identificaram o aumento anormal nos níveis de radioatividade em seus territórios, o que obrigou às autoridades locais a reconhecerem a ocorrência do acidente. Ainda hoje, em decorrência desta política de pouca transparência, as estatísticas de mortos e de pessoas contaminadas pela radiação são escassas e imprecisas revelando em sua maioria números bem menores do que a realidade.





[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/Rep%C3%BAblica_Socialista_Sovi%C3%A9tica_da_Ucr%C3%A2nia
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Usina_Nuclear_de_Chernobil
[3] https://es.wikipedia.org/wiki/Chern%C3%B3bil
[4] https://es.wikipedia.org/wiki/Chern%C3%B3bil
[5]http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/04/apesar-da-radiacao-mais-de-150-pessoas-ainda-moram-em-chernobyl.html
[6]http://www.bbc.com/portuguese/internacional/2016/04/160426_chernobyl_ucrania_aniversario_imagens_fd
[7]http://www.bbc.com/portuguese/internacional/2016/04/160426_chernobyl_ucrania_aniversario_imagens_fd
[8]https://gazetarussa.com.br/multimedia/inpictures/2017/04/27/pripyat-a-vida-pre-chernobyl-de-uma-cidade-atomica_751761
[9] http://www.infoescola.com/uniao-sovietica/pripyat/
[10]SOUSA, Rainer Gonçalves. Acidente de Chernobyl. Brasil Escola. Disponível em: http://brasilescola.uol.com.br/historia/chernobyl-acidente-nuclear.htm. Acesso em 26 de julho de 2017.
[11]PEDROLO, Caroline. Acidente da Usina Nuclear de Chernobyl. InfoEscola. Disponível em: http://www.infoescola.com/fisica/acidente-da-usina-nuclear-de-chernobyl/. Acesso em 26 de julho de 2017.
[12]http://www.bbc.com/portuguese/internacional/2016/04/160426_chernobyl_ucrania_aniversario_imagens_fd
[13]http://noticias.r7.com/internacional/noticias/saiba-mais-sobre-os-efeitos-da-radiacao-no-corpo-humano-20110412.html
[14]https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2016/04/26/ucrania-lembra-30-anos-de-chernobyl-e-rende-tributo-a-liquidadores.htm
[15]http://www.bbc.com/portuguese/internacional/2016/04/160426_chernobyl_ucrania_aniversario_imagens_fd
[16]http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2017/01/sarcofago-de-chernobyl-ganha-reforco-para-conter-poeira-radioativa.html
[17] op. cit.
[18] KAPUSTINA, Olga. Consequências da tragédia de Chernobyl persistem mesmo após 25 anos. DW, 2011. Disponível em: http://www.dw.com/pt-br/consequ%C3%AAncias-da-trag%C3%A9dia-de-chernobyl-persistem-mesmo-ap%C3%B3s-25-anos/a-14950218. Acesso em 26 de julho de 2017.

2 comentários:

  1. Oi, maravilhosa matéria! Também li o livro 'vozes de chernobyl', que é bastante impactante em algumas partes.
    www.sramaia.blogspot.com

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    1. Que bom que gostou. Semana que vem sai a resenha do livro. Obrigado pelo comentário.

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