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domingo, 17 de janeiro de 2021

Opinião | O Decamerão em tempos de quarentena: as pandemias de peste negra e Covid-19

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

17 de janeiro, Ano da Itália.

A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”.

(Albert Einstein)

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

Dizem os historiadores que aprendemos com o passado para entendermos não apenas o nosso presente como para projetar o futuro. De forma análoga diria eu que aprendemos com a ajuda da literatura a compreender nossa realidade através das experiências, descrições e relatos subjetivos e objetivos dos escritores e que estes imprimem em suas obras.

No caso do livro O Decamerão (ou Decameron), obra centenária do italiano Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), ambas as proposições podem ser consideradas como válidas e pude atestar a validade dessas afirmações quando li o livro em meados do ano passado, em plena quarentena contra a COVID-19.

Escrito em pleno curso da pandemia de Peste Negra que varreu o continente europeu entre os anos de 1347 e 1351, O Decamerão não é unicamente uma obra dedicada a falar do amor erótico, mas é também uma expressão vívida e potente do horror causado pela pestilência que vitimou um terço da população europeia.

Na primeira das dez jornadas que compõe o livro, Boccaccio dedica algumas das páginas de sua obra para fazer um relato dirigido aos leitores sobre os impactos da doença na cidade itálica de Florença, onde se desenvolve a história central da obra. Nesse breve relato que permeia quase uma dezena de páginas o autor – ainda muito impressionado com a violência da peste e com a forma como a esta havia modificado o comportamento e a vida dos florentinos – faz uma descrição abrangente no qual conta as origens, os danos e sintomáticas da doença, seus reflexos sobre o comportamento dos florentinos, as mudanças de hábitos, as crenças acerca da doença, as dificuldades de sepultamento, além de falar do abandono dos campos e dos animais pelos camponeses que morriam aos montes. Enfim, ele faz um panorama de como a doença se manifestava, mudava o comportamento daquela sociedade e de como consumia a vida de suas vítimas, aterrorizando os que ainda se mantinham sãos.

No contexto do momento em que li aquele relato foi inevitável para mim não lançar sobre a obra um olhar comparativo com a realidade de angustias, mortes e incertezas em que éramos forçados a viver na época de minha leitura e ainda nos dias atuais. E acho que aprendi mais sobre a vida humana em tempos de pandemia do que me limitando ao que via e ouvia no noticiário da TV.

A COVID-19 assustou o mundo, mas também o tornou mais nítido.

Como ainda não havíamos testemunhado, a misteriosa doença principiada na longínqua cidade chinesa de Wuhan parou mercados em escala global, forçou pessoas a mudarem suas formas de viver, trabalhar e se relacionar e tornou em um caos a rotina de governos e profissionais de saúde.

O coronavírus mostrou-se bom de briga e obrigou empresas e comércios a se adequarem a uma realidade nova e inesperada. Reuniu esforços médicos e científicos de centenas de lugares. Escancarou o egoísmo humano bem como destacou sua capacidade de empatia e solidariedade. Aproximou famílias, desfez casamentos, fomentou o feminicídio e a violência doméstica. Evidenciou desigualdades, aprofundou o desemprego, destruiu economias já irremediavelmente frágeis.

No campo do poder, fez máscaras politicas caírem e evidenciou quais eram os países e governos realmente preparados e com gestões competentes. Nunca ficara tão violentamente evidente quem eram aqueles que governavam com discursos vazios os seus belos castelos de areia prestes a ruir. Polarizados, testemunhamos incrédulos um bizarro show de mortes, irracionalidade e ódio gratuito fermentado por incertezas, teorias da conspiração, guerra política, divergências, retrocessos e medo.

Enfim, o futuro ainda é incerto e nebuloso, mas quando li O Decamerão senti que haviam certos padrões que se repetiam em nosso tempo atual – o famoso tempo circular –, bem como deixou evidente para mim a diferença que faz o nível técnico e científico de cada época para dar resposta a momentos de crise desta natureza.

PANDEMIAS SÃO SEMPRE MOMENTOS DE MEDO, IRRACIONALIDADE, DIVERGÊNCIAS E POLARIZAÇÃO

Como homem de seu tempo Boccaccio inicia sua exposição sobre os efeitos da Peste Negra colocando-a como desígnio e ira divina que se abatera sobre os homens para puni-los de sua iniquidade e expiar seus pecados. O discurso que é extremamente condizente com as crenças e mentalidade da época, não difere essencialmente dos discursos atuais de uma minoria barulhenta que (descrentes na ciência) constroem entorno da COVID-19 uma série de teorias conspiratórias, disseminam uma enxurrada de informações falsas, tratamentos supostamente miraculosos que vão de cloroquina a desinfetante e que atribuem o caos instaurado pela doença a uma suposta histeria coletiva e infundada.

O nome que posso dar ao que se dava na Europa de Boccaccio é desinformação fundada na única explicação disponível: a explicação religiosa. O nome que damos ao que é feito hoje (a despeito de todos os avanços científicos) é negacionismo fundamentado na ignorância e no fanatismo. Eis a primeira distinção histórica.

Mas em termos de semelhanças, quando lemos o relato de Boccaccio, vemos que o período da pandemia de peste foi ele também uma época de divisão de opiniões e de certa polaridade. Não se tratava, porém, de uma polaridade exatamente política como a nossa e nem tão radicalmente inflexível, mas acerca de como melhor proceder durante a pandemia. Essa polaridade dividia as pessoas e suas reações frente a doença em quatro categorias:

Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter.

Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. [...]

“[...] Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios.

Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; [...].

E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; [...].” 

É obvio que na nossa época a polaridade se dá em novos contextos. Não é sensato querer dizer que agimos hoje de forma equivalente, mas mesmo agora as opiniões estão divididas e polarizadas e as decisões tomadas por cada um, seguindo esta ou aquela visão, contribuíram e vem contribuindo para o aumento dos casos.

Há os que minimizam a gravidade da doença e não seguem as medidas de proteção orientadas pelos médicos e autoridades sanitárias. Há aqueles que as seguem parcialmente e com perigosa flexibilidade e que para não se privar de seu lazer e divertimento, promovem ou participam de festas e aglomerações. E por fim, há os que de fato se isolaram em quarentena. Entretanto algo que chama a atenção é que, ao contrário do que ocorria no século XIV, hoje sambemos quais as medidas preventivas, então a divisão de opiniões tem caráter pura e simplesmente ideológica.

Várias centenas de manifestantes anti-lockdown se reuniram no Ohio Statehouse em 20 de abril. Wikimedia Commons.

Boccaccio relata que fora aquela época um período que se deu muita vazão a imaginação, as crendices (que direta ou indiretamente disseminam ideias falsas).

De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde.”

Coisa semelhante se dá nos dias atuais. De coisas que as pessoas ouvem falar, de casos particulares que presenciam ou de mera especulação ideológica nasceram dezenas de teorias absurdas.

Alguns afirmam que o coronavírus teria sido fabricado em laboratório por instituições farmacêuticas, outros que a pandemia seria parte de um plano maior envolvendo governos e países. Há quem acredite que as vacinas causam doenças graves e que conteriam de HIV à chips com o número da besta.

Contudo, uma das teorias mais comuns, é a de que os números de mortos e doentes seriam inflacionados, sobretudo pelos dirigentes de municípios, a fim de angariar recursos federais. Ainda que seja plausível pensar que algumas lideranças políticas nos milhares de municípios brasileiros tenham intenções corruptas, essa ideia é generalizada e propagandeada a fim de minimizar a gravidade da doença.

São ideias conspiratórias de base ideológica e que encontram no medo, na ignorância das pessoas ou na inflexibilidade de pensamento terreno fértil para se disseminar.  Elas se assemelham ao que acontecia na época de Boccaccio porque são frutos da ignorância das pessoas, da desinformação ou simplesmente porque são explicações que lhes agradam mais porque se harmonizam melhor com suas crenças e visões de mundo.

Outras duas semelhanças que encontrei entre os dois momentos históricos através das falas de Boccaccio estão relacionados a pobreza e as dificuldades de enterrar o grande número de mortos.

Boccaccio menciona que os pobres estavam entre as classes mais atingidas pela mortandade. Tal como agora, as classes mais baixas eram as mais atingidas e não podiam retirar-se das localidades de contágio e por isso adoeciam em grande quantidade.

Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção.

Em outras palavras, assim como agora, na Idade Média a desigualdade social também teve seus reflexos sobre o agravamento da pandemia de peste bubônica. No caso do Brasil, impossibilitados de trabalhar durante a quarentena o auxílio emergencial foi imprescindível para salvar milhões da fome e da extrema pobreza. Além disso o tamanho das casas de famílias mais humildes e numerosas também dificultou bastante (e em alguns casos não permitiu) qualquer tipo de isolamento social entre eles, ampliando os contágios. Mas mais do que isso, são inúmeros os casos de pessoas de comunidades pobres que não encontraram assistência médica quando doentes.

Gravura contemporânea de Marselha durante a Grande Peste em 1720. Conhecida como a Grande Peste de Marselha, essa epidemia de uma variação da Peste Negra matou cerca de 100 mil pessoas na cidade de Marselha, na França. Wikipedia Commons.

Quanto aos mortos, relata Boccaccio que:

“Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora [...], abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.”

Esqueletos numa vala comum de 1720 a 1721 em Martigues, França, renderam evidências moleculares do ramo orientalis de Yersinia pestis, o organismo responsável pela peste bubônica. A segunda pandemia de peste bubônica esteve ativa na Europa desde 1347, o início da peste negra, até 1750. Wikimedia Commons.


O número de mortos e contaminados pela COVID-19 está até então (e felizmente) em patamares extremamente menores do que os 70 a 200 milhões de mortos[1] que se estima que tenham morrido durante a Peste Negra, mas isso não impediu que em certas localidades faltassem cemitérios para enterrar o grande volume de mortos.

Em abril de 2020, a prefeitura de Manaus necessitou abrir valas comuns em cemitério para enterrar as vítimas de coronavírus[2]. Naquele mesmo mês Nova York vivia o drama de ter seus necrotérios lotados[3] e também passou a usar valas comuns na Ilha Hart para enterrar seus mortos[4].

A DIFERENÇA QUE A CIÊNCIA FAZ NA SALVAÇÃO DE VIDAS

Não obstante, de todos os aspectos que o relato de Boccaccio em O Decamerão me fez refletir, o principal está relacionado a diferença que o conhecimento e o avanço científico fazem hoje em nossas vidas.

Segundo o relato do escritor medieval, a semelhança do que governos, médicos e cientistas fazem na pandemia atual, algumas medidas sanitárias e de fechamento da cidade (fechamento de fronteiras) foram adotadas na Florença da época. O relato ainda deixa supor que até mesmo instruções foram dadas a população, entretanto, todas essas medidas se demonstraram infrutíferas, por razões que ele não explica em seu texto.

E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade [...]”.

 O autor também relata que na época faltava atendimento por conta da periculosidade da doença ou por falta de serviços oportunos, o que contribuiu para o aumento do número de mortos.

Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar.”

Mas, de todos os aspectos, a falta de conhecimento médico sobre a doença foi fator decisivo.

Tratava-se de uma enfermidade nova, desconhecida. Na época mão se sabia a origem da peste nem como esta passava aos seres humanos, por conta disso, também se desconhecia a forma mais eficaz de tratá-la e de evitar os surtos e propagações. Muitos médicos não passavam de charlatões e aqueles que de fato eram formados em medicina também se encontravam quase que de mãos atadas.

Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina: ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme, havendo, além dos cientistas, também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa, nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam, como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação”.

A peste bubônica é de origem bacteriana (bactéria Yersinia pestis), diferente da COVID-19 que é uma enfermidade viral (SARS-CoV-2). Mas, a semelhança daquela, a COVID-19 era no começo da pandemia quase que totalmente desconhecida, uma doença nova, e, mesmo com todo o nosso avanço técnico, foram precisos muitos meses para que médicos achassem os tratamentos mais eficazes e que cientistas pudessem desenvolver vacinas. Essa corrida contra o tempo abriu espaço para especulações de medicamentos supostamente eficazes, mas sem comprovação científica, a exemplo da hidroxicloroquina, sugerida pelo presidente dos EUA, Donald Trump, que chegou a falar também no uso de injeções de desinfetante[5]. A imprudência do chefe de estado americano chegou a repercutir e só na cidade de Nova York as autoridades de saúde da cidade receberam 30 chamados por ingestão de desinfetante nas dezoito horas que se seguiram a fala de Trump[6].

Mas a fala de Boccaccio deixa evidente como a ciência e os avanços médicos são fundamentais para minimizar o número de mortos quando novas doenças e com elevado grau de contaminação e mortes acaba por surgir no cenário mundial. Para nós que vivemos em uma época radicalmente diferente, sobretudo em termos de avanço técnico, mas com algumas tênues similitudes em relação a época em relação a comportamento social diante de situações de pandemia, devemos nos atentar para a relevância da ciência em nossa sobrevivência enquanto espécie e combater os pensamentos retrógrados e reducionistas que tentam descreditar a ciência.

A peste negra matou muito mais e era potencialmente mais mortal do que a COVID-19, mas foi o desconhecimento sobre as suas origens, acerca de tratamentos eficazes de combate e imunização e sobretudo a ausência de uma ciência médica desenvolvida para investigar em tempo hábil esses aspectos que fizeram daquela pandemia muito mais mortífera que a atual.

Se houvesse na época a integração e a facilidade de locomoção entre os vários continentes como existe hoje, ou mesmo os grandes fluxos de circulação de pessoas – que muito facilitam a propagação de agentes patogênicos como o coronavírus – os efeitos seriam ainda mais mortíferos. Ainda assim, um terço da população europeia sucumbiu.

Ademais, na época, se desconhecia a relação entre a peste, a pouca higiene urbana, ratos e suas pulgas (principais transmissores). O desconhecimento levou a explicações religiosas acerca de castigos divinos e mesmo teorias de que a contaminação se dava por via área (pelo ar) – a teoria do miasma. A importância da higiene só foi reconhecida séculos depois e o estabelecimento da ideia de quarentena em 1377, foi um avanço médico fundamental para o combate à doença[7]. A técnica até hoje se mostra fundamental e básica para evitar a propagação de epidemias.

Temos hoje a nosso favor um número vasto de conhecimentos acumulados e milhares de especialistas que trabalham em colaboração a nível internacional. É graças aos avanços científicos que tantas vacinas foram criadas em menos de um ano (tempo recorde) e que desde o começo da pandemia a população foi prontamente orientada quanto as principais formas de prevenção (máscaras, álcool em gel, higienização das mãos, medidas de isolamento social). Coisas assim eram inimagináveis na época de Boccaccio e custaram milhões de vidas. Ainda assim, muitas pessoas desacreditam a ciência, agem de forma negacionista e espalham desinformação, não só por ignorância, mas por alienação política e até religiosa.

Um aviador dos EUA recebendo uma vacina COVID-19. Wikimedia Commons.

Enfim, o que vem por aí nós não sabemos. Todavia concluo esse texto chegando a uma única e importante conclusão possível: o futuro pós-pandemia é imprevisível, mas certamente passaremos por uma mudança radical que nos levará a divisar novos horizontes formados pelo progresso em determinadas áreas e por terríveis retrocessos em outras.

Que nesse nosso caminhar relatos como o de Boccaccio em O Decamerão nos sirvam de lembrete para que não repitamos os erros do passado, afastemos de nós o negacionismo, a ignorância, as crendices e o fanatismo religioso, bem como as firmações sem fundamentação ou lastro científico, para que não experienciemos consequências tão desastrosas como aquelas que a Europa vivera no século XIV.

Você pode conferir a resenha de O Decamerão neste link.

Referência da edição de onde foram extraídas as citações

BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Tradução Ivone C. Benedetti. Porto Alegre, L&PM, 2013.

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Opinião | Nem só de pão carecem os pobres: impostos, acesso a livros e pobreza no Brasil

2021, o Ano da Itália no Conhecer Tudo – IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo.



[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_Negra

[2] https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/21/prefeitura-de-manaus-faz-valas-comuns-em-cemiterio-para-enterrar-vitimas-de-coronavirus-veja-video.ghtml

[3] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52224123

[4] https://oglobo.globo.com/mundo/nova-york-abre-valas-comuns-para-enterrar-mortos-por-coronavirus-24364067

[5] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/04/24/trump-sugere-luz-solar-e-injecao-de-desinfetante-para-tratar-coronavirus

[6] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/04/25/ny-tem-30-chamados-por-ingestao-de-desinfetante-melhor-prevencao-e-higiene.htm

[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_Negra#Causas 

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Opinião | Nem só de pão carecem os pobres: impostos, acesso a livros e pobreza no Brasil

 Por Eric Silva

Professor e blogueiro

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"Ele (Marcelo Freixo) está preocupado, naturalmente, com as classes mais baixas (ao questionar sobre a isenção para o livro). Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, atenderemos também. Agora, eu acredito que eles, num primeiro momento, quando fizeram o auxílio emergencial, estavam mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos

 (Paulo Guedes, durante reunião da comissão mista da reforma tributária – 05/08/2020)

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Há algum tempo venho querendo redigir alguns textos de opinião para o blog sobre temas que dizem respeito ao mundo literário. Coisa simples e sem muitas pretensões, mais para variar o conteúdo do blog do que realmente pelo desejo de opinar sobre determinadas questões. No entanto, a falta de tempo e os encargos de meu trabalho docente vieram frustrando minhas pretensões neste sentido e o projeto não saiu do papel. 

O tempo passou, mas eis que nos últimos dias surgiram notícias de um novo imposto sobre o comércio de livros, o que vem me impelindo a iniciar esta série de textos, mesmo que a despeito de meus atuais problemas oculares que me fazem forçar as vistas na frente do computador. Trata-se de uma proposta de reforma tributária apresentada pelo governo atual e que terá impactos consideráveis sobre o mercado editorial e, claro, no bolso dos leitores. Diante disso e da mobilização crescente nas redes sociais em defesa do livro, decidi abordar o tema e expressar aos meus leitores o que penso sobre o assunto.

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O CONTEXTO ATUAL

É do conhecimento de todos que a pandemia de Covid-19 e as medidas de restrição e distanciamento social que foram essenciais para reduzir a mortandade (que no dia em que escrevo já chega a 848.084 no mundo, e a 122.596 no Brasil) tiveram profundos impactos não apenas no campo da saúde pública – que exigiu maiores gastos por parte dos governos – como também no campo econômico que teve grande parte do processo produtivo e de consumo paralisados.

Houve em decorrência desta crise global o aumento do desemprego, a falência de milhares de pequenos negócios, a diminuição da arrecadação e outras consequências que ainda demandarão tempo para serem amplamente conhecidas, sentidas e – sabe-se lá depois de quanto tempo – superadas. Uma situação que vem preocupando governos do mundo todo.

No Brasil, particularmente, os reflexos da crise também se deram no campo étnico, social e, principalmente, político. O Estado se viu obrigado a socorrer uma imensa população empobrecida de um país historicamente desigual através do pagamento de um Auxílio Emergencial, e sobretudo os Estados da União tiveram seus gastos aumentados no combate ao avanço da doença.

Não obstante, mais do que estes fatores, os problemas gerados pela epidemia chegaram no Brasil em um momento em que os dirigentes brasileiros haviam começado uma série reformas e se encaminhavam para iniciar a discussão de outra importante reforma, a tributária. Trata-se de Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que, caso sejam aprovadas, trarão impactos profundos no curto e no longo prazo não só para a cadeia produtiva (empresarial) e de prestação de serviços, como também sobre o bolso do cidadão comum, principalmente agora que, nas últimas semanas, a reforma está sendo palco para a proposição de medidas econômicas, no mínimo, discutíveis por parte da equipe econômica do atual governo, liderada pelo então ministro da economia, Paulo Guedes.

O que pretende a equipe econômica mediante sua proposta de reforma é, através da unificação de uma série de impostos, aumentar a arrecadação, taxando áreas que atualmente possuem isenção e reativando impostos considerados ruins a exemplo da CPMF, usando a crise atual como razão de fazê-lo. Se aprovada a proposta da equipe econômica nos termos em que esta se apresenta atualmente, os impactos serão profundos para diversos setores da economia e, entre eles, o setor editorial, talvez o mais prejudicado de todos.

REFORMA E CARGA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA

Já faz algum tempo que o poder legislativo junto ao executivo vem tentando – desde governos anteriores –discutir mudanças nas regras do complexo sistema tributário brasileiro, responsável por uma carga tributária[1] elevadíssima, causando impactos negativos não só para o setor produtivo, mas principalmente para o cidadão comum.

Segundo a advogada tributarista e professora de Direito Tributário, Ana Caroline Monguilod (2019[2]), o sistema tributário brasileiro é confuso e complexo, demandando das empresas brasileiras investimentos elevados em recursos e tempo na hora de fazerem o recolhimento dos impostos devidos. Além disso, afirma a especialista, a carga tributária brasileira, em 2019, equivalia a 33% do PIB brasileiro, sendo bastante elevado quando se comparado a países com níveis de desenvolvimento semelhantes ao nosso e chegando até mesmo a ser equivalente a carga tributária paga em países desenvolvidos.

Se não bastasse, ainda explica a tributarista, o sistema tributário brasileiro – que data do ano de 1965, quando aconteceu sua última reforma – se encontra obsoleto frente aos tempos atuais. De lá para cá, o setor de serviços ganhou maior participação na economia e o comércio online e de produtos digitais passou a se tornar parte de uma realidade que é por nós vivida, mas que está muito distante daquela dos anos 60. O resultado, explica, foram distorções na tributação e na arrecadação que pesam no bolso dos brasileiros, das empresas e afeta também o Estado.

Por conta destes fatores, uma reforma no sistema tributário é esperada com expectativa e até receio por parte do contribuinte brasileiro, podendo – a depender dos jogos políticos e de poder em Brasília – aliviar ou tornar ainda mais onerosa a contribuição para a máquina pública.

Um sistema financeiro eficiente e com menor carga tributária poderia, por exemplo, diminuir o preço de diversos bens de consumo bem como reduzir os valores elevadíssimos que pagamos em forma de imposto direto. No entanto, o objetivo desta reforma pretendida por nossos governantes, como explica o blog da Fundação Instituto de Administração[3], não objetiva aliviar diretamente o bolso dos contribuintes, haja vista que não se pretende reduzir os valores arrecadados, mas tornar o sistema mais simples e desburocratizar a gestão empresarial, o que, segundo os especialistas, no entanto, poderia nos beneficiar de forma indireta, através de uma maior promoção da igualdade social (reduzindo os impostos daqueles que possuem baixa renda e taxando grandes fortunas), reduzindo a carga tributária, sobretudo sobre o consumo, além de diminuir os custos administrativos daqueles que possuem algum empreendimento. No entanto, há anos que se tenta reformar o sistema tributário sem que o executivo e o legislativo cheguem a algum consenso.

No momento, duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) já se encontravam em tramitação no legislativo e, no dia 21 de julho, um Projeto de Lei foi encaminhada à Câmara pelo governo federal: a PL 3.887/2020[4]. Esta PL que propõe a unificação de dois dos principais tributos federais e cuja tributação é bastante complexa: o PIS/PASEP e a COFINS. Para ficar mais claro: o PIS/PASEP é um imposto destinado ao pagamento do seguro-desemprego, do abono salarial e participação na receita dos órgãos e entidades para os trabalhadores públicos e privados[5], e a COFINS é destinada sobretudo para a Saúde. As duas siglas não são desconhecidas do grande público e você pode encontrá-las, por exemplo, nas suas contas de água e de eletricidade, além disso, quase todos os anos se fala no saque do PIS/PASEP.

Em 2019, segundo reportagem de Camilla Veras Mota, para a BBC Brasil, o PIS/PASEP e a COFINS foram sozinhos responsáveis por uma arrecadação de R$ 325 bilhões. No entanto, a proposta do governo de unificação destes tributos daria origem a chamada Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) cuja alíquota proposta seria de 12% em um regime não cumulativo, porcentagem que foi considerada alta até mesmo pelos especialistas, segundo a mesma reportagem.

MAS ONDE ENTRA O MUNDO LITERÁRIO NESTA HISTÓRIA?

Se aprovada a alíquota da CBS, ela não só aumentará os preços de diversos serviços (setor mais atingido), elevando os custos, por exemplo, no pagamento de mensalidades escolares e universitárias (idem, ibidem), mas também terá um forte impacto sobre o mercado editorial que até então goza de algumas isenções fiscais. O projeto não só eliminaria a isenção tributária para livros, concedida no ano de 2004, como aplicaria para os mesmos a alíquota de taxação de 12%. Contudo, o sistema tributário que já é bastante complexo se somaria, neste caso, a complexidade da própria cadeia produtiva do livro que envolve não só a produção do bem físico (o livro) na gráfica, como também a prestação de serviço de vários agentes envolvidas (pessoal contratado pela editora, serviços gráficos e etc.). No final, o custo para o consumidor final aumentaria não em 12%, mas em 20% segundo afirmou Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias, em entrevistas para a edição brasileira da DW[6].

Em termos proporcionais, caso o aumento seja realmente de 20% no preço de capa dos livros (ou seja, o preço sugerido pela editora às livrarias e que pode ser reajustado por estas últimas), as obras que em média custam de R$ 30,00 a R$ 40,00, passariam a custar entre R$ 36,00 e R$ 48,00. Já obras mais caras, a exemplo das obras técnicas estrangeiras traduzidas e que superam a cifra dos R$ 100,00, e também de boxes de livros que custam, por exemplo, R$ 60,00, R$ 80,00, passariam a custar, respectivamente R$ 120,00, R$ 72,00 e R$ 96,00.

A proposta foi recebida com críticas dentro do mundo literário, tanto por parte dos leitores quanto pelo mercado editorial (editoras, autores, livrarias e outros livreiros) e foi responsável por alavancar as hashtags #EmDefesaDoLivro e #DefendaOLivro bem como campanhas que tentam expor os efeitos negativos não só sobre o setor como sobre a cultura caso seja aprovada a taxação.

O QUE ARGUMENTA O GOVERNO?

Os argumentos do governo para estender aos livros a alíquota proposta para o CBS, no entanto, não poderiam ser mais falaciosas e sínicas.

No dia 05 de agosto, durante reunião da comissão mista da reforma tributária, Paulo Guedes, o atual ministro da economia, foi questionado se sua proposta de reforma tributária se estenderia também a uma taxação sobre o comércio de livros. Na ocasião, Guedes defendeu que no Brasil o consumo de livros é feito pelas camadas sociais de maior renda e assim quis justificar que manter a isenção sobre os livros não se justificaria, porque estes possuem condições de pagar por seus livros ainda que mais caros.

Mais do que isso, afirmou o economista que para compensar os mais pobres seria mais efetivo que o governo promovesse doações de livros aos mesmos (o que ele não deixou claro como seria feito) e ampliasse o Bolsa Família – através da criação do Bolsa Renda, atual carro-chefe da gestão governamental. Além disso, o ministro completou sua fala sugerindo que os mais pobres estão mais preocupados em sobreviver (comprar comida, naturalmente) do que frequentar as livrarias que ele e os deputados presentes frequentavam e adquiriam livros.

Vamos dar o livro de graça para o mais frágil, para o mais pobre. Eu também, quando compro meu livro, preciso pagar meu imposto. Então, uma coisa é você focalizar a ajuda. A outra coisa é você, a título de ajudar os mais pobres, na verdade, isentar gente que pode pagar

"Ele (Marcelo Freixo) está preocupado, naturalmente, com as classes mais baixas (ao questionar sobre a isenção para o livro). Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, atenderemos também. Agora, eu acredito que eles, num primeiro momento, quando fizeram o auxílio emergencial, estavam mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos

O QUE PENSO DE TUDO ISSO

Em primeiro lugar, considero o posicionamento da equipe econômica tão equivocada quanto irracional. É certo que parcela significativa daqueles que consomem livros no Brasil fazem parte de classes sociais que podem custear os aumentos de preços, mas isso não significa que devemos ignorar que os leitores se encontram distribuídos num espectro de renda muito mais amplo.

Há na margem deste espectro um considerável número de pessoas para as quais a compra de um livro de R$ 30,00 ou R$ 40,00 significa um investimento (a palavra correta é esta) muito elevado. Ainda assim, são pessoas que movidas pela necessidade salutar de enriquecer-se culturalmente, adquirir conhecimento ou na busca de entretenimento usam de todas as estratégias para apertar o orçamento e comprar seus livros. Planejam a compra por meses, economizam, esperam feiras e bienais, liquidações, promoções e queimas de estoque ou correm atrás de cupons de desconto para adquirir seus livros por um preço mais acessível às suas condições. A pouco tempo atrás, eu mesmo fui uma destas pessoas. Tirava dos meus parcos R$ 400 de renda mensal uma parcela que ia juntando para comprar dois ou três livros numa Black Friday ou em outra promoção qualquer. Minha média era de quatro ou cinco livros comprados por ano e parte considerável de minhas economias eram sugadas pelos fretes.

Mas para além destes aspectos, o governo também ignora que no Brasil há poucas possibilidades de acesso à leitura e um dos motivos disso é o número pequeno de bibliotecas públicas (principalmente em consideração a outros países) que poderiam atender a demanda dos leitores mais pobres.

Segundo levantamento do portal G1[7], feito em 2014 a partir de dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, haviam 6.148 bibliotecas públicas no Brasil, na época, uma para cada 33 mil brasileiros. Índice extremamente pequeno e que não havia mudado em cinco anos segundo a mesma reportagem. Para se ter uma noção da pequenez deste número, segundo o site Educa+ Brasil, na República Tcheca, a proporção é de uma biblioteca para cada 1.970 habitantes[8].

Além do número pequeno, soma-se a isso, a má distribuição destas bibliotecas pelo território nacional e as centenas de cidades que não contam com um único espaço deste tipo e quando contam, nem sempre é um espaço que atenda a uma ampla diversidade de leitores. Minha cidade é um exemplo disso. Temos duas bibliotecas públicas, ambas universitárias, voltadas (por razões óbvias) para o público universitário, com acervo de obras literárias (ficcionais) limitadíssimo, com recursos parcos para ampliação do acervo e com restrições de uso para preservá-lo (os livros não saem da biblioteca). Coube a iniciativa privada – uma filarmônica no caso de minha cidade – oferecer acesso às obras que as duas universidades públicas não dispõem. Uma biblioteca pequena, mantida por doações, por parcas verbas de alguns raros programas públicos para ampliação do acervo e pelas mensalidades dos estudantes de música da instituição – que mantém igualmente o prédio, as contas e os salários de funcionários e professores.

Minha segunda contra-argumentação ao que depõe Guedes, vai no sentido de que o Governo cria com esta proposta uma armadilha para o próprio Estado.

Através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), bem como do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), o governo federal é um dos maiores compradores de livros, sobretudo, didáticos, do país. Com o aumento dos preços no setor editorial o Estado arcará com despesas maiores na aquisição de livros para os estudantes das escolas públicas, para montagem e manutenção das bibliotecas das mesmas. Todavia, não me surpreenderia se ambos os programas fossem reformulados com o objetivo de oferecer menos livros, com um período mais logo sem renovação das edições distribuídas ou até com o fim do PNBE (no contexto mais grave até mesmo do PNLD), haja vista que, em agosto de 2019, o MEC (Ministério da Educação) já havia feito cortes de R$ 348 milhões na verba destinada a compra de livros[9].

Segundo a linha de lógica, seja no cenário de redução da aquisição de livros didáticos por parte do governo ou do aumento da despesa com esta aquisição, como e quando o governo federal destinaria verbas para a compra e doação de livros aos obres como afirmou Guedes? De onde sairia o dinheiro? O discurso do ministro me parece demagogia.

NO QUE TANGE À QUESTÃO ECONÔMICA E DE MERCADO

Minha terceira contra-argumentação versa sobre a situação de fragilidade do mercado editorial brasileiro.

Segundo reportagem da DW supracitada, o mercado editorial no Brasil encolheu mais de 20% nos últimos dez anos com perdas de R$ 1,4 bilhão, o que seria consequência, afirma a reportagem, “[...] das transformações digitais e agravado pela recessão econômica iniciada em 2015”. Além disso, a situação se viu agravada com a falência e pedido de recuperação judicial de duas gigantes do setor: as livrarias Saraiva e Cultura. O impacto foi enorme e nos últimos anos ambas as empresas fecharam dezenas de suas livrarias físicas por todo o país, obrigando as editoras a investirem em estratégias como a venda direta para os consumidores através de seus sites.

Se não bastasse este cenário negativo, no contexto mais recente, em conformidade com as medidas de contenção da pandemia de Covid-19, livrarias físicas foram fechadas por todo o território. O resultado foi mais perda de faturamento – 47% em abril deste ano em comparação com o mesmo período em 2019 (idem, ibidem).

No Brasil, o consumo de livros é limitado, por um lado, pelo preço do livro, que está acima do poder aquisitivo de muitos, e de outro, por uma cultura alimentada e alicerçada por uma política de desvalorização da leitura, fazendo com que os consumidores assíduos de livros não sejam suficientes para garantir e impulsionar as vendas no setor. O resultado são tiragens menores e preços elevados. O menor número de livraras físicas também aumenta as compras online em lojas virtuais acrescentando aos encargos a despesa (quase sempre elevada) com frete, o que desestimula o consumo por parte de muitas pessoas.

O aumento do preço de capa por conta da taxação proposta aumentaria consideravelmente o valor despendido pelo consumidor, desestimulando o consumo, tornando mais grave a crise do setor.

Reitero ainda que, sendo o governo federal um dos maiores compradores de livros, caso haja cortes ou redução de verbas para aquisição de didáticos, a situação se tornará mais grave.

Se vivemos em um momento econômico delicado, considero estranho e até irracional (para variar!) sufocar um mercado que já estava demasiadamente comprometido e em situação difícil há vários anos.

Além de tudo o que mencionei, há que se lembrar que a proposta de CBS com alíquota de 12% feita pelo governo incide sobre bens, mas também sobre serviços. Disto feito, se o preço do frete for ajustado para cima pelas transportadoras, comprar pela internet se tornará ainda mais oneroso, o que afetaria, por um lado, os varejistas que apostaram no e-commerce e, de outro, os leitores (como eu) que moram em cidades pequenas do interior desassistidas de sebos, livrarias e até de bibliotecas públicas.

O CENÁRIO PODE SER AINDA PIOR?

Não sou economista, mas venho tentando entender outra proposta dentro da reforma tributária do governo que, no meu entendimento, contribuirá também para agravar o cenário já descrito: a criação de uma nova CPMF. Como o assunto vem sendo discutido à parte do tema da taxação dos livros, não tenho muitas referências que respondam minhas dúvidas e conjecturas, por isso, a partir de agora o que farei será mais um exercício de indagações lógicas do que de afirmações em si.

Além da alíquota de 12% de CBS, Guedes vem falando também em um imposto sobre transações financeiras eletrônicas, que, segundo reportagem da DW[10] incidiria, por exemplo, sobre compras de bens em sites e sobre transações bancárias digitais – o que incluiria uma série de formas de pagamentos digitais.

O objetivo do governo seria arrecadar fundos para a folha de pagamento do Estado e também financiar o novo programa social do governo que substituirá não só o Bolsa Família como vários outros programas sociais, e que vem sendo chamado de Renda Brasil.

Sobre este novo imposto em que Guedes vem insistindo, lanço alguns questionamentos no campo do mercado editorial e livreiro.

Se essa proposta (ainda obscura) de tributação sobre pagamentos incidirá sobre operações financeiras digitais, não significa que teremos que pagar mais um imposto sempre que fizermos uma compra online? Não seria também tributado um pagamento feito por via digital por meio de cartões, boletos e transferências diretas? Partindo daí: comprar livros por meio de livrarias online não se tornará ainda mais caro quando somado a isso a taxação já discutida? O e-commerce não ficaria ainda mais custoso tanto para adquirir livros físicos quanto e-books?

E já que citei os polêmicos e-books: em geral quem compra esta modalidade de publicação o faz porque dispensa a necessidade de transporte (logo de pagamento de frete), pela rapidez com o qual tem a leitura em mãos, por economia ou ainda por falta de espaço físico em casa. Mas ainda valeria a pena comprá-los pelo primeiro motivo? Penso que não, porque pesam contra eles o fato de que a diferença de preço entre livros físicos e digitais costuma não ser grande (as vezes nem compensa) e, além disso, eles também serão reajustados com a taxação dos 12%.

Enfim, quem compra livros online pagará pela taxação de CBS no preço de capa, pagar impostos pela compra em meio eletrônico e também no pagamento realizado por meio de alguma transação financeira digital. Estou equivocado?

OS POBRES NECESSITAM DE MAIS DO QUE SOMENTE PÃO!

Por fim, o posicionamento do governo acerca da relação entre pobreza e consumo de livros me inclina a pensar que nossos dirigentes consideram que os pobres não carecem de acesso à leitura, que livros não são necessários a eles, à construção de sua cidadania e do intelecto dos mesmos. Faz pensar, sobretudo, que não sendo “essenciais” não figurariam como necessidades reais para os mesmos. Um discurso falacioso e que alimenta não só a ignorância como contribui para a manutenção de uma ampla massa de manobra iletrada, inculta e perfeita para ganhos eleitoreiros.

Parto do princípio de que os pobres não costumam ler mais do que leem (sim, nós lemos, caro ministro!) principalmente por conta de dois fatores. O primeiro é porque não há estímulo e disso advém muitas razões:

1.      As políticas no sentido de estimular a leitura são poucas, de pequeno alcance e em geral pouco eficientes;

2.      As mídias audiovisuais como cinema e televisão exigem menor esforço e são vistas como mais atraentes;

3.      Nas escolas o hábito da leitura não é cultivado apropriadamente. Lê-se por obrigação e quase exclusivamente obras cuja linguagem exige um capital cultural elevadíssimo e escasso entre os jovens, ainda mais quando se trata daqueles provenientes das camadas mais humildes da população. O incentivo e consolidação do habito de leitura exige um avanço gradativo no grau de complexidade tanto linguística como temática que quase nunca é respeitado;

4.      A taxa de analfabetismo ainda é expressiva no Brasil, cerca de 6,6%, em 2019[11]. Se não bastasse, entre os que oficialmente são considerados alfabetizados há os analfabetos funcionais, ou seja, não compreendem o que leem, são meros “decodificadores de palavras”. Em 2018, segundo o Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf), 29% da população brasileira era formada por analfabetos funcionais[12]. Majoritariamente, os dois grupos (analfabetos de fato e analfabetos funcionais) são formados por pessoas das classes mais humildes;

5.      O habito de leitura sofre forte influência familiar e se ninguém no núcleo familiar tem este hábito, torna-se mais difícil que os filhos o adquiram.

A outra questão que limitam o número de leitores entre as classes mais pobres é o acesso. Livros são caros para que os mesmos adquiram com frequência; não são custeados pelo governo – exceto os didáticos das escolas públicas –, e o número de bibliotecas públicas é pequeno e mal distribuído. Soma-se a isso o pequeno poder aquisitivo frente aos gastos essenciais primários.

Somo a estes dados outra questão: grande parte da tributação no Brasil é sobre o consumo, isso significa que pagamos impostos em cada produto ou serviço seja ele essencial ou não. Isso encarece, por exemplo, a cesta básica. Segundo a Valor Investe[13], em 2019, 17,24% do valor cobrado no preço do feijão era referente a impostos, o mesmo para o Arroz (17,24%) e um valor próximo para o Pão Francês (16,86%).  As contas de água e energia elétrica possuíam porcentagens ainda maiores: 24,02% e 48,28%, respectivamente. O que sobra aos mais pobres para comprar livros, mesmo entre aqueles assistidos pelos benefícios de programas de transferência de renda como o Bolsa Família? Pouquíssimo!

A leitura é importante para formação dos indivíduos e deveria ser estimulada, pois ajuda a desenvolver o cognitivo sobretudo dos jovens, a compreensão da semântica e a ampliar o vocabulário. Ela ainda estimula a imaginação, a criatividade, inspira e politiza, e é uma porta de acesso à informação e à cultura nacional e universal. Todos estes elementos são amplamente benéficos e mais, ajudam na formação crítica e intelectual dos indivíduos preparando-os para vida.

Por estes fatores, digo que os pobres não têm só fome de pão, mas igualmente de acesso à cultura que vem histórica e sistematicamente sendo negado aos mesmos. Entre os mais empobrecidos que compreendem a importância da leitura (fiz parte deste grupo até o início do ano de 2019 quando finalmente me tornei assalariado) são, por força dos fatores que elenquei, impedidos de saciar sua fome intelectual. Já os outros, os que não chegaram a valorizar o habito da leitura, expressiva maioria não foi iniciada ou devidamente incentivada a adquirir o costume de ler.

A título de conclusão afirmo ainda que a proposta proferida pelo ministro da economia Paulo Guedes afetam a todos, mesmo os mais pobres, haja vista que, como já expliquei, a maior parte da tributação no Brasil incide sobre o consumo, um tipo de tributação regressiva, ou seja, que desconsidera as condições sociais do contribuinte, tributando igualmente ricos e pobres, o que já é um custo mais elevado para estes últimos em termos relativos – uma porcentagem maior de sua renda é comprometida ao adquirir bens, mesmos os mais básicos como alimentos. As novas tributações são também sobre o consumo e onerarão ainda mais – e de forma indiscriminada – ricos e pobres.

O governo usa como contra-argumentação frases e lógicas sínicas e cheias de demagogia como a que inicia esse texto e que fora proferida por Guedes. Ela encerra em si a ideia de que a fome de cultura é coisa que só dá em ricos e que aos pobres basta o alimento e alguns livros doados pelo governo. Mesmo nesse último ponto, levanto ainda outra questão: em um governo de posição ideológica tão inflexível e reacionária, que tipo de livros seriam doados aos mais carentes? Qual seria o seu conteúdo?

Tudo o que consigo enxergar nesta neblina das operações complexas que compõem o sistema tributário, de sua reforma, dos jogos de poder e de interesses eleitoreiros, é que as consequências para o mundo das letras não serão nada boas. E como os leitores não se cercearão do acesso aos livros, prevejo ainda mais uma consequência negativa para o mercado editorial: o aumento considerável da pirataria de e-books, já amplamente praticada nos últimos dez anos e que ajudará a afundar mais alguns centímetros o mercado editorial.

Nesse país onde o Estado vem histórica e sistematicamente negando o acesso à cultura, para os mais pobres, este acesso vem sendo cada vez menor, insatisfatório, ilegal ou nulo. As consequências, no fim, é uma população empobrecida não só de bens materiais como também de conhecimento, servindo de massa de manobra ou de bode expiatório para discursos demagogos e para pretensões que só beneficiam aqueles que se encontram no poder.

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[1] “Relação entre o total dos tributos arrecadados pelo governo de um país e o produto interno bruto (PIB)” (CARGA TRIBUTÁRIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2018. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Carga_tribut%C3%A1ria&oldid=53152958>. Acesso em: 29 ago. 2020).

[2] MONGUILOD, Ana Carolina. [Entrevista concedida a] Juliana Rangel. UM BRASIL. O Complexo Sistema Tributário brasileiro. 2019. (32 m 22 s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fy90D1jgjaA. Acesso em: 29 ago. 2020.

[3] FUNDAÇÃO INSTITUTO DE ADMINISTRAÇÃO. Reforma Tributária: Tudo que você precisa saber. Fundação Instituto de Administração, [s. l.], [s/d]. Disponível em: https://fia.com.br/blog/reforma-tributaria/. Acesso em: 30 ago. 2020.

[4] MOTA, Camilla Veras. Como a reforma tributária pode afetar seu bolso. São Paulo, BBC, 6 ago. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53617286. Acesso em: 30 ago. 2020.

[5] PIS/PASEP. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=PIS/PASEP&oldid=58998429>. Acesso em: 30 ago. 2020.

 [6] COMO a taxação de livros pode afetar os mais pobres. DW, [s.l.], [s/d]. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/como-a-taxa%C3%A7%C3%A3o-de-livros-pode-afetar-os-mais-pobres/a-54619040. Acesso em: 30 ago. 2020.

[7]REIS, Thiago. Brasil tem uma biblioteca pública para cada 33 mil habitantes. G1, São Paulo, 02 nov. 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/11/brasil-tem-uma-biblioteca-publica-para-cada-33-mil-habitantes.html. Aceso em: 01 set. 2020.

[8] MARIA, Bárbara. O número de bibliotecas no Brasil é baixo comparado a outros países. Educa+ Brasil, [s.l.], 16 jul 2018. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/noticias/o-numero-de-bibliotecas-no-brasil-e-baixo-comparado-a-outros-paises. Aceso em: 01 set. 2020.

[9] HARTMANN, Marcel. MEC decide congelar R$ 348 milhões em compra de livros para escolas. Gauchazh, [s.l.], 07/08/2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2019/08/mec-decide-congelar-r-348-milhoes-em-compra-de-livros-para-escolas-cjz1kw1u6006a01qm00pzpi3s.html#:~:text=Obrigado%20no%20fim%20de%20julho,para%20escolas%20da%20educa%C3%A7%C3%A3o%20b%C3%A1sica. Acesso em: 01 set. 2020.

[10] LINDER, Larissa. Nova CPMF agravaria desigualdade social, afirmam economistas. DW, [s.l.], 18 ago. 2020. Disponível em: https://p.dw.com/p/3h7JW. Acesso em: 01 set. 2020.

[11] TOKARNIA, Mariana. Analfabetismo cai, mas Brasil ainda tem 11 milhões sem ler e escrever. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 15 jul. 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-07/taxa-cai-levemente-mas-brasil-ainda-tem-11-milhoes-de-analfabetos. Acesso em: 01 set. 2020.

[12] BRASIL tem cerca de 38 milhões de analfabetos funcionais. Correio do Povo, [s.l.], 05 ago. 2018. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/ensino/brasil-tem-cerca-de-38-milh%C3%B5es-de-analfabetos-funcionais-1.268788. Acesso em: 01 set. 2020.

[13] FILGUEIRAS, Isabel. Você sabe quanto paga de imposto em cada produto? Valor Investe, São Paulo, 02 set. 2019. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2019/09/02/voce-sabe-quanto-paga-de-imposto-em-cada-produto.ghtml. Acesso em: 01 set. 2020.

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