domingo, 31 de maio de 2020

Uma Breve História da Ciência – William Bynum – Resenha

Por Eric Silva para os blogs Conhecer Tudo e Geographia Mundi

15 de maio de 2020

“A Ciência é especial. É a melhor forma que temos de descobrir coisas sobre o mundo e tudo o que faz parte dele – e isso nos inclui”.

(William Bynum)

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Em uma linguagem simples e didática, Bynum pega-nos pela mão para um passeio pela história da Ciência desde a antiguidade, quando as primeiras sociedades se estabeleceram às margens dos rios, até os tempos modernos com ascensão da tecnologia de informática. De forma clara, objetiva e concisa Uma Breve História da Ciência é um compêndio sobre a capacidade humana de criar e recriar a sua realidade ao produzir ciência.

Confira a resenha.

Resenha

Capa da edição de bolso com ilustrações de Tom Cuxbury

A espécie humana é curiosa e com grandes capacidades de refletir e questionar sobre sua realidade e seu mundo. Foram essas capacidades e essa curiosidade que somadas lhes permitiram não só observar os fenômenos naturais, mas buscar entendê-los e intervir sobre eles, criando conhecimentos. Foi a ciência que permitiu ao homem um maior controle da natureza e ser capaz de enormes feitos de engenharia, cultivar mesmo em condições desfavoráveis e buscar soluções para os males que dizimam as populações. Nas mãos de incontáveis homens e mulheres dedicados a decifrar o livro da vida e do universo, a ciência ajudou a moldar nosso mundo tanto para o bem como para o mal. 

Hoje, em plena pandemia global de Covid-19, o trabalho de milhares de cientistas espalhados pelos quatro cantos do planeta é a melhor possibilidade que a humanidade possui de conseguir chegar a uma superação da crise instalada. Um único vírus fez de 2020, um dos anos mais atípicos da história da humanidade, o ano em que países inteiros pararam e milhares morreram por todo planeta em decorrência do Sars-Cov-2, nome oficial do vírus causador da epidemia. E nessa equação o trabalho científico que pode levar a descoberta de medicamentos e tratamentos eficazes e a uma vacina que imunize a população é uma das poucas esperanças de refrear a pandemia antes que muitos outros milhares pereçam.

Em seu livro, Uma Breve História da Ciência, o professor britânico de história da medicina, William F. Bynum, permite com que compreendamos como a Ciência foi se tornando uma área fundamental na escrita da história da humanidade, para o domínio da espécie sobre o mundo e para dar respostas a uma imensidão de dúvidas e problemas que se interpuseram no caminho da humanidade. Uma busca por respostas trouxe o avanço técnico e tecnológico que conhecemos.

O texto de Bynum não objetiva fazer uma análise técnica e acadêmica sobre a trajetória da Ciência, mas dar ao leitor uma visão ampla de uma linha do tempo dessa história, pontuando os principais personagens que, cada qual no seu tempo, foram essenciais para o desenvolvimento de grandes áreas do conhecimento como medicina, biologia, física, química, geologia, paleontologia, entre outras. Nessa caminhada, Bynum esclarece-nos sobre as ideias e descobertas que, por exemplo, levaram o homem da descoberta da hereditariedade à decodificação do genoma humano, da ideia do átomo ao desenvolvimento da energia atômica, dos rudimentares conhecimentos sobre o corpo humano a busca de tratamentos para o câncer, e da descoberta da radioatividade à bomba atômica.

Numa linguagem simples, acessível e bem-humorada, em cada capítulo, Bynum fala do desenvolvimento de uma área da Ciência em uma determinada época, evidenciando os cientistas do período que se destacaram, suas ideias, influências e descobertas, bem como seus equívocos e as contribuições que deixam para os períodos seguintes. Nesse percurso instigante, que nunca chega a ser cansativo, Bynum tenta colocar em termos compreensíveis todo tipo de tema e de teoria científica (desde a astronomia babilônica às teorias da evolução e da física quântica). O autor vai elucidando de forma fluída como a ciência foi deixando de ser uma prática atrelada à magia e à religião, para se tornar uma atividade que privilegia o uso da razão e da objetividade.

Determinados capítulos são inteiramente dedicados a alguns dos nomes mais importantes da Ciência contando seus feitos, os desdobramentos de suas ideias e aspectos de suas vidas e personalidades. Cientistas como Hipócrates, considerado o pai da medicina, Galileu Galilei, Isaac Newton e Albert Einstein estão entre os principais destaques da obra.

A edição é ilustrada em estilo xilografia com arte de Tom Cuxbury. Foi publicado em formato pocket (livro de bolso) e tem uma constituição bem delicada, mas felizmente o livro também se encontra disponível em formato e-book caso você queira manter sua edição intacta, como eu.

Em si, o trabalho de Bynum não trata de nada novo, haja vista que outras dezenas de escritores se dedicaram a resumir a trajetória da ciência. Contudo estes autores quase sempre tiveram seus objetivos voltados a alcançar o público universitário. Diferentemente, Uma Breve História da Ciência se destaca por fazê-lo de uma forma leve e para todos os públicos. Livro que eu, como professor também de Iniciação Científica na minha escola, adoto para ensinar, porque nesse livro fantástico, acessível e conciso, centenas de ideias, mentes e vidas foram reunidas para contar a história de uma das maiores e mais importantes atividades humanas, sem a qual o mundo conhecido simplesmente não existiria: a Ciência.

A edição lida é da Editora L&PM, do ano de 2018 e possui 368 páginas.

Sobre o autor

William F. Bynum é Professor emérito do Wellcome Trust Center para a História da Medicina da University College de Londres. Colaborou frequentemente com Roy Porter, outro famoso historiador britânico conhecido por seu importante trabalho na história da medicina. É autor de outras obras como História da Medicina, Great Discoveries in Medicine e Medicine and the Five Senses.

 

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


domingo, 24 de maio de 2020

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários – Ana Lúcia Merege – Resenha


Por Eric Silva
24 de abril de 2020

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Realização com pareceria do Instituto Pegaí Leitura Grátis, a coletânea Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é mais uma das obras delicadas, singelas e muito bem escritas da escritora fluminense Ana Lúcia Merege que neste livro dá destaque à sabedoria, afetividade e experiências de personagens da terceira idade, pertencentes aos universos ficcionais criados pela autora.

Confira a resenha.

Sinopse do enredo

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é uma pequena coletânea de contos publicados com apoio do Instituto Pegaí e que, segundo prefácio da autora, faz parte de um projeto mais amplo denominado Heróis de prata. Nesse projeto a autora escreve uma série de contos de fantasia e ficção científica que daria destaque, nas palavras da própria Merege, a “protagonistas idosos ou, pelo menos, bem maduros, cuja experiência e amplitude de visão são determinantes para a resolução da trama”. Nesse primeiro livro há um destaque para a relação entre esses personagens e seus netos, com os quais contracenam.

Nos dois primeiros contos temos narrativas inspiradas no universo ficcional de fantasia medieval de Athelgard, principal cenário das obras da autora, enquanto os demais situam-se em outros dois universos criados por ela, o último deles compartilhado com o escritor Luiz Felipe Vasques.

Intitulado O espetáculo não pode parar, o primeiro conto é narrado em primeira pessoa e conta algumas das memórias de Zemel, um saltimbanco que se recorda de seu avô com quem aprendeu o ofício, além de relatar os desafios enfrentados por sua família para ganhar o sustento após seu avô sofrer um acidente. Em suas memórias de infância, Zemel conta como o acidente de seu avô, ocorrido durante um dos pequenos espetáculos que os dois faziam juntos, o deixou traumatizado e de como com sapiência o velho saltimbanco não permitiu que o amor do neto pela arte circense morresse.




O segundo conto, O eterno retorno, traz de volta a menina Anna e sua avó, a elfa Kyara, dois importantes personagens de outro livro infantojuvenil de Merege, Anna e a Trilha Secreta, publicado em 2015. Neste conto, Anna tem apenas nove anos e vive feliz com a avó que está ensinando-a a caçar. Contudo a menina, que possui mais sangue humano do que élfico, está cada vez mais curiosa sobre seu povo e pressiona para saber mais sobre o passado da avó, uma história dolorosa que Kyara receia revisitar.

Em De amor e eternidade, Merege revisita a série Contos da Clepsidra, ambientada na cidade de Cartago, no século III, e que em como protagonista o capitão fenício Balthazar de Tiro. Nesta narrativa, Balthazar, já envelhecido, vive com a família de um dos seus ex-tripulantes, família que o capitão adotou como sua e cujo futuro o preocupa bastante. Como de costume ele brinca com suas netas e lhes conta suas aventuras mágicas de viagens no tempo ao lado de outro dos tripulantes do seu navio, Lísias, o que faz emergir lembranças boas e tristes e preocupações relacionadas ao futuro.

Por fim, A era de Leonte, é um conto no estilo space opera[1] baseado no universo ficcional de Medistelara, “no qual as civilizações do antigo Mediterrâneo são transportadas para o espaço”, com destaque neste conto para os fenícios espaciais, os ken’amis, e sua Liga Mercantil, e para os heládicos[2], que na narrativa são donos de uma corporação de mineração chamada Caríbdes, que iniciou uma exploração de um valioso mineral no planeta Carsis.

Nesta narrativa, Merege conta uma história da personagem Elyssa de Quartag e seu neto adolescente, Hanno, um aprendiz de piloto. Elyssa vai ao distante planeta Carsis representando a poderosa Liga Mercantil para firmar um acordo de compensação financeira e comercial com os heládicos após estes começarem a exploração de minério no planeta. Ali, avó e neto percebem uma situação de exploração da mão de obra barata local, e a história encontra uma reviravolta inesperada por conta de uma especial movimentação de astros.

Resenha

Ana Lúcia é uma autora brasileira que venho acompanhando desde 2016, quando fiz a resenha de seu livro O Castelo das Águias. De 2016 para cá, já resenhei outras três obras da autora e um quarto livro no qual foi organizadora ao lado de Eduardo Kasse, autor da série Tempos de Sangue.

No início de 2019, ela me enviou Contos Fantásticos de Avós Extraordinários para que eu conhecesse seu último trabalho. Contudo, aquele ano foi tão difícil e conturbado para mim que acabei abandonando todas as atividades do blog e também a maioria das minhas leituras. Aquele também foi o ano que menos li.

Com o período de quarentena devido ao Covid-19, retomei minhas leituras, o blog e me recordei desse livro e, por isso, resolvi resenhá-lo, antes que minha rotina voltasse a ficar insana.

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é uma coletânea pequena, contando com apenas quatro contos que giram entorno de uma mesma temática: narrativas de aventuras (contos 2 e 4) ou de momentos cotidianos (contos 1 e 3) vividos por avós e netos e que levam esses últimos a beberem das experiências e sapiência de seus avós.

É uma obra infantojuvenil, mas sensível e madura, e que pode agradar outras faixas etárias pela qualidade da escrita da autora e de algumas narrativas que não são particularmente tão infantis.

Como é de seu costume, Merege utiliza novamente suas narrativas para trazer aos leitores mirins algumas lições de vida e, dessa vez, inova por dar destaque a um grupo etário que na sociedade moderna tem enfrentado um visível declínio de importância atribuída.

Serei mais claro.

Nesta sociedade de tantos avanços tecnológicos, de imediatismo exacerbado e de pragmatismo proeminente, a terceira idade vem sendo constantemente tratada como um estorvo para suas famílias, e visivelmente perdem importância no papel de matriarcas e patriarcas, de chefes de família, para os mais jovens. Em grande parte, esse grupo etário passa a ser visto, preconceituosamente, como ultrapassado e incapaz de ser útil numa sociedade tecnológica muito diferente da realidade vivida outrora pelos mesmos. Por conta desse fator, a importância que no passado era atribuída aos mesmos entra em declínio. Por outro lado, em relação a importância adquirida pelos mesmos em termo de vivências e experiências, essa não pode ser diminuída.

Com este pequeno livro, Merege vem com o claro objetivo de mostrar a importância desses personagens mais velhos e falar dos impactos que a relação que se estabelece entre netos e avós tem para a formação do caráter das novas gerações. Sendo ele um livro voltado para crianças de 10 a 12 anos, Merege busca estimular um novo olhar nos pequenos para as gerações que os antecederam. Um olhar de respeito e de admiração.

O livro é escrito por Merege com sua linguagem costumeira que busca um meio termo entre um vocabulário culto e uma linguagem simplificada, e como sempre, a autora mostra que ainda é uma grande contadora de histórias. Esse seu estilo fica bastante proeminente no primeiro conto da série, no qual a autora nos traz um narrador jovem, mas maduro e sensível, de olhar observador e inteligente, e com ele escreve um texto com uma escrita imersiva e gostosa de ler.

Já disse em outras oportunidades que o ponto que me conquistou nas obras de Merege foi a sua escrita impecável, tecida com esmero e, por que não, com amor. Mesmo quando se trata de uma narrativa que eu goste menos, sou tão fascinado pela forma como ela escreve que me esqueço do resto. Além disso, a temática medieval me agrada bastante, sobretudo quando a autora foca no cotidiano medievo, como é o caso do conto O espetáculo não pode parar e do meu livro preferido de Merege, O Caçador.

Como um bibliomaníaco nerd e otaku ligado em História, em vida cotidiana e em cultura nacional e internacional, sou fã de narrativas ambientadas em cenários medievais, de slice-of-life (histórias centradas no dia a dia de pessoas comuns) e de obras artísticas que mostrem a riqueza cultural de uma época ou lugar. O espetáculo não pode parar me conquistou por esses elementos ao apresentar um personagem criança no limiar de adquirir a maturidade adulta, pertencente a um universo medievo, e cujo espírito, ainda jovem, foi forjado nas dificuldades de uma vida nômade e paupérrima. Trata-se do conto mais adulto da obra e que me lembrou da força do livro O Caçador.

Zemel, protagonista do conto, é ainda menino e junto com sua família vive migrando de cidade em cidade, o pai e o tio oferecendo seus serviços de ferreiro e de paneleiro, respectivamente, e o avó e o neto, fazendo pequenos espetáculos de saltimbancos para entreter camponeses e vilões[3] das povoações por onde passavam.

Contudo, a narrativa se dá quando o avô de Zemel sofre um acidente durante uma dessas apresentações e as coisas ficam mais difíceis para a família. Se não bastasse, o menino fica traumatizado com o ocorrido e tenta abandonar as artes circenses, em um momento crítico, no qual seu trabalho também é importante para a sobrevivência de todos. Nesse cenário, Thiers de Pwilrie, o avô da criança, tem que usar de inteligência, paciência e força de vontade para demover o neto e ao mesmo tempo garantir o pão. É um texto que traz uma lição de vida importante e que agrega muito do que gosto nesse tipo de literatura: drama, personagens realistas e vida cotidiana e cultural medieval.

Numa linha similar, ainda que fale de elfos, O eterno retorno foi também um conto que me agradou, um pouco menos do que o primeiro, mas que me fez recordar de narrativas anteriores envolvendo os mesmos personagens.

Uma das narrativas ambientadas na Floresta dos Teixos
Nas histórias envolvendo as tribos élficas da Floresta dos Teixos, Merege costuma nos mergulhar em cenários muito bonitos de florestas e bosques, e desde pequeno tenho particular fascínio por florestas, o que se consolidou com minha formação em Geografia. Por seu turno, esses contos e novelas sobre a infância da protagonista de O Castelo das Águias nos proporciona o contato com esses cenários. Além disso, Merege dá a estas narrativas povoadas por espíritos guardiões e xamãs uma pegada um tanto indígena que faz do seu trabalho bastante original ao somar fantasia e crenças similares às dos indígenas norte-americanos.

O tema de O eterno retorno é também bastante maduro. Na verdade, todo o livro se encontra nesse limiar entre uma obra para crianças e um tom de histórias mais sérias, e acredito que esse tom emana do peso da maturidade de seus protagonistas adultos. Neste conto em particular, Merege falam de dores do passado, e de forma meio velada remota às histórias de amores familiares marcados pela tragédia. Contudo, a autora não entra em todos os detalhes do que ocorreu no passado da protagonista Kyara, porque se trata de uma narrativa retirada de uma história maior que compõe os livros da série Athelgard.

Mesmo para quem não acompanha a obra da autora, o conto ainda assim fará sentido, porque Merege dá todos os elementos necessários para que ele seja lido de forma independente, mas tudo ali faz alusão a uma história mais ampla do qual nos foi permitido ver só uma parte. Isso me lembra, inclusive, que tenho que ler as duas obras de continuação de O Castelo das Águias.

Os contos seguintes foram os que menos me agradaram, ainda que eles tenham muita qualidade e, por isso, não me demorarei neles.

O terceiro conto, De amor e eternidade, traz um personagem de Merege com o qual eu ainda não tinha tido contato, o capitão fenício Balthazar. O conto é baseado em memórias do capitão que ele narra para duas de suas netas a fim de entretê-las.

Por conta dessa sua natureza de narrativa de memórias, é o conto, que na minha opinião, ficou mais deslocado, porque faz muitas referências às outras histórias escritas ou imaginadas pela autora. Merege novamente toma cuidado para fazer todas essas referências compreensíveis ao leitor e não prejudicar a leitura de quem não leu as aventuras da mocidade de Balthazar. Não obstante, o conto tem todo os elementos de um spin-off[4] e por conta disso, a sensação que o conto me deu foi de um leve deslocamento.  Acho que não tive essa mesma sensação com o segundo conto da coletânea tanto pelos motivos já citados, como também porque acompanho a trajetória da personagem Anna desde 2016.

Por sua vez, o último conto da série é um space-opera que se passa em um planeta ainda pouco conhecido e que possui um povo espiritualizado, singular e exótico em um contexto que me fez lembrar um pouco do filme Avatar e um pouco do livro A Chegada a Darkover, da autora estadunidense, Marion Zimmer Bradley.

A era de Leonte me lembra o livro de Bradley por se tratar de uma narrativa sobre viagens intergalácticas com a busca e a descobertas de novos planetas, no caso de Bradley, sobretudo para colonização, e no caso de Merege, para atividades mercantis. E me faz recordar de Avatar, porque além de ser uma narrativa sobre viagens intergalácticas, o conto trata da invasão humana em busca de recursos minerais e possui um povo espiritualizado e intimamente ligado aos fenômenos naturais de seu lugar de vivência.

Contudo, tenho uma crítica a como este conto foi desenvolvido. Acho que a história de Merege tinha potencial para ser mais do que um conto, e, pela escolha da autora em fazer uma narrativa mais breve, fez com que o desenvolvimento da história fosse apressado e a narrativa ficasse um tanto inverossímil em seu desfecho e clímax. O fato é que não gostei do desenvolvimento, e sobretudo do desfecho.

Se Merege explorasse mais as características desse povo tão peculiar e intrigante, de seu planeta e do minério que ali existia, descrevesse a chegada dos heládicos, os primeiros contatos, colocasse alguns conflitos, desenvolvesse mais profundamente os personagens, escrevesse paralelamente a história de Elyssa e Hanno, e chegasse ao desfecho no qual chegou só que de forma mais desenvolvida e detalhada, A era de Leonte daria, não um romance, mas uma novela interessante ao estilo de Bradley, de Arthur C. Clarke, de Frank Herbert ou de seu filho Brian Herbert.

Até mesmo o título, A era de Leonte, é bom para um livro independente. Contudo, na forma compacta em que foi concebida ele não me agradou muito. Por outro lado, o objetivo da autora com seu livro é claro e ela deseja alcançar um público mais jovem. O livro que eu enxergo em minha mente seria algo bem diferente e distante da proposta inicial.

Enfim, para encerrar, no todo, Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é um livro simples, mas sensível e original.

A edição lida é da Editora Draco, do ano de 2018 e possui 64 páginas.

Sobre o autor

Ana Lúcia Merege. Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional.
Nascida em 1969, na cidade do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Merege é romancista e bibliotecária. Possui mestrado em Ciência da Informação, pelo IBICT/UFRJ-ECO, tendo defendido, em 1999, sua dissertação intitulada O livro impresso: trajetória e contemporaneidade. É também formada em Biblioteconomia pela UNIRIO e, desde 1996, trabalha no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional, onde atua no trabalho com material original, fontes primárias, identificação de documentos e organização de exposições.
Seu primeiro romance publicado, O Caçador (2009), foi também o primeiro do gênero fantasia escrito pela autora que desde então vem se dedicando a organização de diversas coletâneas do gênero, além de contos e romances. Suas principais obras estão ligadas ao universo de Athelgard, criado pela escritora para ambientar sua trilogia que se inicia com o romance O Castelo das Águias e ganha sequência com os livros A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar, todos publicados pela editora paulista Draco. Pertence também ao universo de Athelgard o livro Anna e a Trilha Secreta, que faz um regresso à infância da principal personagem de O Castelo das Águias, além de Orlando e o Escudo da Coragem, outro infantojuvenil publicado pela autora em 2018.
Com vasta experiência com manuscritos e forte interesse pela história do período medieval, Merege foi responsável ainda, na mesma editora, pela organização das coletâneas Excalibur: histórias de reis, magos e távolas redondas e Medieval: Contos de uma era fantástica, este último em parceria com o escritor brasileiro Eduardo Kasse.




[1]Subgênero da ficção científica que enfatiza a aventura melodramática, as batalhas interplanetárias, o romance cavalheiresco e a tomada de riscos. Definido principalmente ou inteiramente no espaço sideral. (Wikipédia)
[2]Civilização heládica é um termo moderno usado para identificar uma sequência de períodos que caracterizaram a cultura do continente grego durante a idade do bronze. (Wikipédia)
[3]Vilão era, na Idade Média, uma pessoa que não pertencia à nobreza feudal, e que habitava urbanamente em vilas. (Wikipédia)
[4]Nos meios de comunicação, obra derivada, história derivada ou derivagem (em inglês: spin-off) é um programa de rádio, programa de televisão, videojogo, grupo musical ou qualquer obra narrativa criada por derivação, isto é, derivada de uma ou mais obras já existentes. Sua diferença com uma obra original é que a primeira se concentra, em particular, mais detalhadamente em apenas um aspecto (por exemplo, um tema especifico, personagem ou evento) ou modificando um pouco a história e seus aspectos originais.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

A Alma Trocada – Rosa Lobato de Faria – Resenha


Por Eric Silva
30 de março de 2020

“So if I'm losing a piece of me
Maybe I don't want heaven
(Troye Sivan)

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“Sim, eu era cobarde. Reconheço que era, que sou cobarde. Desenhava miniaturas, com vergonha de me expor. Parecia que a timidez de um desenho pequenino escondia o essencial do desenho. Uma forma subjectiva de prolongar a adolescência. Tudo em ponto pequeno. Só um desenhozinho. Uma brincadeira. E dizem que desenho bem. Já me convidaram para expor mas nunca aceitei porque todos iam perceber quem eu sou, um homem à procura de palavras jamais encontradas hidranja, plátano, arrabil, phisalis, um homem escondido atrás de si próprio, da mãe autoritária, da noiva feia.

[...]

E aqueles anos todos da adolescência à procura de mim, na angústia de perceber quem sou, a olhar os rapazes mais velhos às escondidas, a sentir-me diferente, a ter sonhos eróticos com as mãos do Tinito, a fingir conversas machas com os colegas, em busca da minha alma trocada.

Cobarde.”

Sinopse do enredo

Penúltimo livro publicado em vida pela escritora portuguesa, Rosa Lobato de Faria, A Alma Trocada (2007) conta a história de Teófilo, um rapaz português já feito homem e formado como professor de francês, mas que enfrenta o difícil processo de aceitação de sua própria orientação sexual e de si mesmo.

Nascido em uma família cheia de regras e demagogias, mas sem nenhum afeto sincero, Teófilo sempre se sentiu deslocado e que algo lhe faltava, que sua alma havia sido trocada. Foi ainda adolescente, com o Tinito, afilhado de sua avó, que Teófilo descobriu que se sentia diferente em relação aos outros rapazes e mal imaginava que daquele dia em diante Tinito seria sua maior fraqueza.

Contudo, a descoberta da sua sexualidade só trouxe a Teófilo angústias e sofrimento. O peso do preconceito dos pais e sobretudo da mãe, que desconfiava, o fizera covarde, “um homem escondido atrás de si próprio” e, por conta disso, escondia-se de si mesmo, olhando os outros rapazes sempre às escondidas, fingindo-se heterossexual para os colegas e evitando aqueles que julgava ter sua mesma opção sexual, ainda que desejasse com eles trocar sentimentos, descobertas, mágoas e desesperos. Desse modo Teófilo foi crescendo, completamente incompatível com seus pais, a procura de entender a si mesmo, achando que uma parte de si foi lhe arrancada, e se deixando levar pelas decisões autoritárias da mãe, até quando se descobriu noivo de Raquel, uma espécie de afilhada da mãe, que além de rica era órfã.

No entanto, tudo muda na vida do rapaz quando ele conhece Hugo, e farto de tudo decide assumir-se e desfazer o noivado. É neste exato momento de sua vida que Teófilo passa a percorrer o trecho mais penoso do seu caminho.

Resenha

Infográfico com resumo da nossa resenha. Clique para ampliar.
Elaboração: Eric Silva
Orientação sexual não é uma escolha, porque, se fosse ninguém escolheria o caminho mais difícil”. Essa é uma frase tirada da sinopse oficial do livro, mas que bem resume a ideia central deste que foi um dos últimos livros escritos por Rosa Lobato.

Por mais aberta que tenha se tornado a sociedade moderna, a orientação sexual ainda é um tabu para muitas pessoas e a homofobia é ainda a causa mortis de milhares de pessoas do grupo LGBTQ+. Contudo, são as violências silenciosas as que mais deixam marcas nessa parcela da população. Sentimento de inadequação, preconceito, humilhação, negação, falta de apoio e rejeição familiar são realidades vividas por milhões de homens e mulheres que se reconhecem como tendo uma orientação sexual diferente do heterossexualismo. Por isso, não ser heterossexual é das coisas mais difíceis que um ser humano pode enfrentar na vida. Assumir-se não precisaria ser, mas é um ato de bravura.

Mas a frase citada acima, revela algo que é bastante ignorado pela maioria das pessoas: não existe “opção sexual”, porque ninguém escolhe por quem sente atração, e orientação sexual é exatamente isso: a direção ou a inclinação do desejo afetivo e erótico de cada pessoa[1]. Ela é resultante de um conjunto de influências de ordem bio-psico-socio-culturais[2] pelo qual todos nós passamos (sejamos héteros, homos, bis, etc.) e que acaba por nos inclinar para esta ou aquela orientação sexual. Por isso, não existe opção. Ninguém escolhe sexualidade. É justamente o que acontece com Teófilo, o protagonista e narrador de A Alma Trocada.

O menino Teófilo era um garoto sem muita orientação e sem muito afeto vindo dos pais, porque deles só conhecia regras e proibições. Cresce sem entender quem é, sem entender suas preferências, acreditando estar incompleto, que há algo de errado consigo, que quando nasceu sua alma foi trocada pela de outra pessoa (daí vem o título do livro). Para tudo isso contribuiu a personalidade dos pais e em certa medida também a convivência com a agregada, Raquel.

A mãe, cheia de melindres e falsos pudores, era hipócrita, autoritária e abusiva. Queria determinar a vida do filho em todos os aspectos, casá-lo antes que alguém percebesse suas inclinações homossexuais. Na visão traçada pelo narrador, ela o odiava ou ao menos o desprezava, porque, segundo conta, morria de remorso pelo filho ter sido concebido no exato momento que, no Alentejo[3], morria o avô da futura criança.

Como o meu avô se passou desta para melhor com a sua segunda pataleta à meia-noite e quinze, é de supor que a minha mãe, tão cumpridora dos seus deveres de esposa, estivesse de perna aberta a receber no seu casto seio a semente de mim na hora em que seu pai desencarnou.

Contudo, dona Generosa, como se chamava, tinha particular amor por Raquel, a menina rica que ficara órfã depois de um acidente automobilístico e só tinha aqueles dois amigos dos pais para abrigá-la. Raquel passou a viver com a família desde então, tornou-se quase filha de Generosa, que por sua vez “cozinhou” o casamento dela com seu filho.

Raquel não era apaixonada por Teófilo e nem tinha muita estima por ele também, mas era feia e só tinha ao seu favor a fortuna deixada pelos pais. Aturava Teófilo, mas contraditoriamente soube ser vingativa após este desfazer o noivado.

O pai, economista, foi outro que não deu a devida atenção que Teófilo precisava para resolver seus conflitos internos. Simplesmente era indiferente ao filho e já o considerava “arquivo morto”, como se refere o próprio Teófilo, ou envergonhava-se de não ter um filho “viril” e por isso o ignorava.

“O meu pai reduz-se ao silêncio. Nem responde a estes desabafos da minha mãe. Já me deve ter arrumado no arquivo morto. Quando contribuiu para a compra do apartamento, das duas, uma: ou teve esperança que essa minha decisão de comprar casa fosse um sintoma das atitudes viris que se seguiriam ou viu nela uma forma de me afastar da família. Vá lá ser paneleiro para o raio que o parta, deve ter pensado. E artista e escritor e a puta que o pariu, desculpa Generosa, mas já que dizes que ele não é teu filho...”

Quando enfim Teófilo se assume, o pai é o primeiro a escorraçá-lo da família, com tanto ou mais desprezo que Generosa:

“[...] Quase duas semanas depois a Raquel telefonou-me a dizer que o meu pai queria falar comigo. No escritório. É claro que não ia querer que eu conspurcasse o sacrossanto lar onde se fornica de luz apagada. (Uma vez por ano? Duas? Nenhuma?) Lá fui.
Foi uma conversa suja. Não exactamente uma conversa, mais um monólogo em que me proibia de entrar lã em casa, de tentar ver a minha mãe que estava de cama na sequência de um ataque cardíaco e sobretudo quis deixar bem claro que o dinheiro que pusera na compra do meu apartamento passava a ser um empréstimo, do qual exigia um pagamento mensal. ”

Mas voltando ao protagonista e narrador...

Paisagem típica da região do Alentejo, Portugal,
onde se passa parte da narrativa. Wikimedia Commons.
O Teófilo adulto é poético, mas confuso e vacilante. Ainda procura se conhecer e se entender, ainda acredita ter tido uma parte de si furtada e que suas relações são pecados. A falta de apoio e amor familiar lhe fez se tornar avesso aos pais e sobretudo a Raquel. Afeto ele só encontra em Hugo, o tranquilo e paciente namorado que Teófilo no início da história insiste em manter em segredo por medo de se assumir; na avó materna, a amorosa e compreensiva Jacinta, única que abre sua casa para abrigar o neto em sua fase mais difícil; na empregada da mesma, Maria, sempre muito solícita e dedicada aos patrões; e em Tinito, o afilhado e empregado (espécie de faz-tudo) de Jacinta, descendente de ciganos, abandonado pelos pais ainda criança, mas que se tornou um homem atraente, sem-vergonha e xucro, além da principal perdição de Teófilo.

Rua típica da região do Alentejo, Portugal,
onde se passa parte da narrativa. Wikimedia Commons.
É só com o tempo e com os impulsos da vida (empurrões, na verdade) que Teófilo vai se emancipando. Revela sua orientação sexual para a noiva, desfazendo o noivado, e rompe com os pais que não aceitam sua posição. Abandona a casa, o que lhe causa um alívio imediato, e vai se redescobrindo na vida com Hugo e nas idas ao monte[4] (propriedade rural) da avó na região do Alentejo , onde Tinito atormenta seus dias. Passa também a se dedicar a escrita de um livro e a aproveitar a vida tranquila ao lado de Hugo. É essa nova fase que toma a maior parte do enredo da narrativa, é nela também uma série de complicações e até situações aflitivas e conflitivas começam a aparecer.

A Alma Trocada foi o meu primeiro contato sério com a literatura portuguesa. Achei que o faria com Saramago, mas ainda estou adiando esse encontro. E para minha surpresa meu primeiro contato com a literatura lusitana foi com um romance moderno e atual, que aborda uma importante questão contemporânea e que convida a reflexão acerca dos desafios e tabus que os grupos LGBTQ+ de todo o planeta enfrentam diariamente em suas vidas particulares, em um mundo que ainda resiste à diversidade.

O trabalho linguístico de Rosa Lobato neste livro não é dos mais fácil de ler. Os pensamentos e comentários do narrador se misturam as descrições e narrações dos fatos tornando confusa algumas passagens – principal crítica negativa que vi nas poucas resenhas disponíveis na internet. Somam-se a esses fatores: a barreira da língua (o português lusitano consegue ser bem distinto do nosso em muitos momentos) e abarreira cultural, haja vista que o livro faz referências a muitas tradições lusitanas e a outros elementos de variados gêneros que são desconhecidos dos brasileiros. Isso acaba por tornar a leitura um tanto cansativa, principalmente em partes mais paradas ou monótonas do enredo.

Os personagens são bem ecléticos. Em sua maioria bem descritos e aprofundados pelo narrador. Outros são marcantes e intenso como Tinito. Há também os mais coadjuvantes como Hugo e Maria, além da família vizinha do casal gay que se integra não só à trama como também à vida dos protagonistas.

O livro é pequeno (188 páginas), mas a leitura não se faz muito fluida e rápida pelo trabalho linguístico já citado. Contudo é uma obra que alterna momentos intenso e monótonos, deixando a coisa bastante equilibrada em alguns momentos, e mais arrastada em outros.

Sugiro a leitura para quem gosta da temática e para quem quer saber um pouco mais sobre os desafios enfrentados pela comunidade LGBTQ+. Mas mais do que isso esse é um livro sensível que fala sobre identidade, sobre a busca da definição de uma identidade, a de Teófilo, identidade essa que, obviamente, excede e não se limita a sua orientação homossexual.

Acredito que você leitor também será desafiado, em primeira instância, pela linguagem lusitana e pela escrita de Rosa Lobato. Em segunda instância, desafiado a repensar muito do que sabe ou imagina saber sobre a comunidade gay. Eu, da minha parte, estou às voltas para conseguir Os Pássaros de Seda, outro livro de Rosa com temática bem distinta, mas que atiçou a minha curiosidade.

A edição lida é da Editora ASA, do ano de 2007 e possui 188 páginas.

Sobre o autor

Rosa Maria de Bettencourt Rodrigues Lobato de Faria nasceu em Lisboa, Portugal, em 20 de abril de 1932. Foi uma atriz, escritora, romancista, poetisa, contista, dramaturga e guionista de novelas e séries portuguesa.

Depois de ter sido dona de casa e empregada numa loja de eletrodomésticos, teve a sua primeira experiência como atriz por volta dos 40 anos, quando participou no filme Perdido por Cem... (1973).
Na escrita, ganhou projeção como letrista de canções, depois de obter, já nos anos 90, o primeiro lugar no Festival RTP da Canção com Amor de Água Fresca (1992), interpretado por Dina.

Foi também nos anos 1990 que surgiu como autora de romances — estreou-se com O Pranto de Lúcifer (1995), seguindo-se, a um ritmo de uma publicação por ano, os títulos Os Pássaros de Seda (1996), Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), Romance de Cordélia (1998), O Prenúncio das Águas (1999) — ganhador do Prêmio Máxima de Literatura em 2000 — A Trança de Inês (2001) e, subsequentemente, O Sétimo Véu (2003), Os Linhos da Avó (2004) e A Flor do Sal (2005).

Faleceu em Lisboa, no dia 2 de fevereiro de 2010, aos 77 anos, vítima de uma anemia,

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.




[1]Disponível em: <http://www.adolescencia.org.br/site-pt-br/orientacao-sexual>. Acesso em: 30 de março de 2020.
[2]ABDO, Carmita. Não é opção, é orientação. O Globo: São Paulo, 2014. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/nao-opcao-orientacao-13546739>. Acesso em: 30 de março de 2020.
[3]Região do centro-sul de Portugal.
[4]Monte é um regionalismo português que significaria uma propriedade rural na região do Alentejo. (O mesmo que HERDADE), ou ainda o conjunto das casas de uma herdade no Alentejo, geralmente numa elevação, onde se situa a moradia e outras dependências. (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). 

domingo, 3 de maio de 2020

O Código Perdido – Kevin Emerson – Resenha


Por Eric Silva
29 de março de 2020

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Um amor jovem nascido durante um acampamento para adolescentes, localizado naquele que era um dos últimos refúgios da humanidade. Um mundo colapsado por mudanças climáticas que comprometeram a sobrevivência no planeta. Conspirações, mentiras, mutações e uma profecia milenar. Esses são alguns dos ingredientes que compõe a trama teen de O Código Perdido, primeiro volume da trilogia Os Atlantes.

Sinopse do enredo

Um livro que mistura questões ambientais sobre mudanças climáticas e fantasia mitológica num mundo distópico, O Código Perdido, narra a história de como Owen Parker, um menino de condições financeiras muito baixas e que vivia numa das regiões mais insalubres do mundo, foi parar em um estranho acampamento para adolescentes, em um dos últimos lugares da Terra ainda protegido e em condições mais ou menos favoráveis a vida.

No mundo em que a série de Kevin Emerson se ambienta, as mudanças climáticas e o aquecimento global provocaram o colapso do planeta e pouquíssimas áreas não se tornaram completamente desérticas e inabitáveis, caso da maior parte da América do Norte. Além disso, o degelo rápido das calotas polares decorrente do aumento das temperaturas mundiais fez com que os níveis dos oceanos se elevassem e devorassem as regiões costeiras e com elas as antigas tecnópolis de Nova York, Xangai e Dubai.

Grande parte da população mundial não sobreviveu aos deslocamentos em massa, às guerras e ao caos que se seguiram ao cataclismo. Daqueles que restaram, a maioria passou a viver nas estreitas faixas de terra das Zonas Habitáveis, em lugares completamente insalubres, escondendo-se em abrigos subterrâneos onde ainda lhes restavam alguns recursos tecnológicos vindos da pujante era pré-Ascenção.

Somente alguns poucos privilegiados – que ponderam pagar por isso – passaram a viver nos cinco domos Éden, grandes estruturas controladas pela poderosa Corporação Éden capazes de abrigar em seus interiores pequenos bosques, lagos e cidades, e nos quais as pessoas podiam continuar vivendo como tinham vivido no passado.

Porém, mesmo os domos já demonstravam desgaste e era uma questão de tempo até que se tornassem insustentáveis e também colapsassem. A corporação sabe disso, ainda que tente esconder, e corre contra o tempo e usa dos meios mais sórdidos para encontrar uma solução que garanta sua própria sobrevivência.

É em um desses domos que funciona todos os anos o aparentemente inofensivo Acampamento Éden, onde Owen descobrirá, após se afogar por quase dez minutos, que não é uma pessoa normal. Desse dia em diante, o garoto se verá no difícil desafio de desvendar os mistérios que cercam sua descendência extremamente peculiar e que está modificando seu corpo e sua natureza, mas que é a chave para evitar o fim da raça humana. Para isso, ele precisará escapar das garras da Corporação Éden que aparenta um perverso interesse nos conhecimentos ancestrais que o menino descobre possuir (o código perdido). E para esta aventura ele conta com a ajuda de Lily, uma garota encantadora e misteriosa.

Resenha

Li O Código Perdido ano passado durante as férias e logo me esqueci dele.

Quem leu a sinopse do enredo provavelmente deve estar pensando agora que se trata de mais uma narrativa teen de ficção-científica envolvendo conspirações e um mundo pós-cataclismo que será salvo por um grupo de adolescentes cheios de adrenalina, espertos e exalando feromônio[1]. Bem, tem bastante disso, mas não se trata só disso.

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O que posso dizer é que o livro de Kevin é uma salada de frutas que mistura distopia, ficção-científica, mutação genética, conscientização para questões ambientais sérias, romance e dramas jovens e – o mais inusitado – fantasia mitológica atlante. Todo esse conjunto vem em um único pacote, no máximo, bem costurado e com alguns insights inteligentes e criativos, porém com uma narrativa bastante clichê e cheia de lugares comuns.

O que acabei de escrever pode soar bastante contraditório – o que não foge muito da minha natureza pessoal –, mas a verdade é que minha relação com esse livro foi também bastante contraditória. Ele não é suficientemente ruim para que eu diga que é perda total, nem suficientemente bom e instigante para que eu o considere como um dos meus favoritos dentro de seu gênero.

Seus personagens não me cativaram e sua narrativa não é nem marcadamente criativa, nem desprovida de originalidade. A escrita é boa e o desencadeamento lógico das coisas é até certo ponto bastante verossímil. Ainda assim, ele não me apetece. Tanto que não lerei os próximos livros da série – apesar que ler apenas o primeiro volume de uma série já tenha se tornado um hobby meu.

Diria eu que os elementos menos originais do livro são, em primeiro lugar, o fato de ser um livro distópico, cujo mundo foi virado de cabeça para baixo por questões ambientais, provocando sérios problemas para a continuação da humanidade. Parece-me que esse é um tema que está bastante em voga no gênero, aparecendo em livros como O Conto da Aia, Feios, Divergente, Maze Runner, etc. por isso está ficando desgastado.

Em segundo lugar, há muitos elementos clichês que destoam com o clima de desespero mundial que acontece fora do domo. Os principais deles são: um acampamento de verão para adolescentes, os dramas adolescentes, que parecem se tornar universais na literatura, e os amores de verão embalados pelo eterno clima de férias.

Para quem não tem paciência de vencer a maior parte da narrativa aquele acampamento parece algo inverossímil e destoante com a proposta do próprio livro, que se pretende ser uma distopia de um mundo em colapso. Obviamente que o clima de férias criado pelo acampamento foi cunhado propositadamente pelo autor, que inclusive já foi monitor de acampamentos antes de se dedicar à literatura.

A clara intenção de Kevin era mostrar mais explicitamente as contradições entre o estilo de vida daqueles que viviam dentro do domo Éden, protegidos da radiação solar e dos intemperes do novo clima, e a forma como viviam os desafortunados habitantes do exterior.

Owen, por exemplo, como personagem principal da história e um dos poucos garotos vindos de fora do domo, serve à narrativa como um contraponto entre como pensa as pessoas de dentro e de fora dos domos. Esse deveria ser, na verdade, o seu principal papel nos primeiros 2/3 da narrativa. Contudo, em muitos momentos, ele está mais preocupado com seus próprios problemas juvenis e corriqueiros, só mudando sua postura de forma mais marcante quando os problemas dentro do domo se mostrem cada vez mais explícitos.

Mas já que citei o protagonista, falemos dele e de outros personagens.

Owen é um daqueles adolescentes apagados, sem muita personalidade, ingênuo, deslocado e desprezado pelo rebanho, além de ser cheios das neuras e dos hormônios comuns a idade dele.

Ele vive com seu pai em uma região inóspita, onde as pessoas são obrigadas a viver nos subterrâneos, uma vida de muitos desafios, mas que na minha modesta opinião, infelizmente, não imprimiu tanto relevo quanto era possível a personalidade do jovem. Digo isso, porque minha impressão dele é que na maior parte da primeira metade da história ele está mais preocupado em parecer interessante para a garota mais cobiçada do acampamento e também se manter fora do caminho do valentão da história, o Sanguessuga.

Owen é para mim mais um adolescente qualquer do século XXI, mas que parece ter sido jogado em outra época sem que houvesse o perfeito encaixe entre a personalidade e o período histórico – ainda que Kevin tenha feito enormes esforços para isso. Ele é crítico e curioso, elemento que acaba por equilibrar um pouco o personagem, mas isso não foi o suficiente para que ele se tornasse cativante. A única coisa que achei interessante nele foi o seu senso de humor que geram algumas autorreflexões, além, é claro, da forma como ele passa a conversar com seu próprio corpo como se por dentro de si houvesse uma equipe de pequenos operadores responsáveis pelo funcionamento da “máquina Owen”.

Outros personagens da narrativa também merecem meu destaque.

O primeiro é o grupo dos jovens mais descolados do acampamento: Lilly, Aliah, Evan e Marco.

Eles formam uma espécie de grupo de elite, os Conselheiros em Treinamento (CET). Mais velhos do que os demais campistas eles são responsáveis por guiar os mais novos em várias das atividades realizadas no acampamento. O problema é que eles também são bastante clichês não tendo conseguido superar os estereótipos comuns aos jovens atléticos ditos “populares” das escolas estadunidenses, e que, lamentavelmente, servem de modelos a algumas centenas de livros, filmes e séries produzidos naquele país. Lilly, talvez é a única no grupo que parece se transformar na história.

Lilly, como uma das protagonistas da narrativa, é narrada como uma jovem bonita e atraente – apenas – mas no decorrer da narrativa ganha algum relevo ao se mostrar bastante humana, ética, forte, determinada e inteligente. Diria que de todos é o melhor personagem. Infelizmente os demais parceiros de seu grupo não apresentam grandes evoluções.

Quanto a ala vilã da história, Sanguessuga e seu pequeno bando de valentões seguem a mesma linha dos CETs e são clichês ao ponto de não merecerem grandes destaques. O mesmo se aplica ao dúbio e nenhum pouco confiável, Paul, o estranho e enigmático diretor do acampamento.

Apesar do tamanho (352 páginas), a leitura desse livro é fácil e rápida, e se você está preocupado só com o entretenimento e não com a profundidade dos personagens ou com a originalidade da narrativa, bem, ele é uma boa opção para se ler no final de semana, mas não vá com muitas expectativas.

Enfim, digo que O Código Perdido é um livro que me distraiu durante os dias monótonos das férias, mas não é um livro que eu leria de novo ou que tenha me motivado a continuar a leitura da saga. Claro que nas minhas críticas pesa também a minha particular antipatia pela maioria das histórias teens. E aí você pergunta: porque você leu então? E eu respondo simplesmente: não julgue o livro sem ter lido. ;)

A edição lida é da Editora Fantasy Casa da Palavra, do ano de 2015 e possui 352 páginas.

Sobre o autor

Estadunidense, Kevin Emerson cresceu em Connecticut e agora vive em Seattle com sua esposa e seus dois filhos. Antes de se dedicar a literatura, foi banqueiro, monitor de acampamento e professor de escola primária. Hoje, além de escritor é também músico e faz parte do The Board of Education, uma banda que apresenta músicas educacionais para crianças. Kevin também é voluntário no 826 Seattle, um braço do 826 National, uma instituição sem fins lucrativos que ensina jovens de 6 a 18 anos, fundada pelo escritor Dave Eggers.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.




[1] Substâncias químicas produzidas para fora do corpo que, ao serem disseminadas, promovem determinadas reações dentre outros indivíduos de uma mesma espécie (Wikipédia)

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