domingo, 31 de janeiro de 2021

[Especial Zafón] El Príncipe de Parnaso (conto) - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

 Por Eric Silva

21 de fevereiro de 2021, Ano da Itália

“[...] Miguel de Cervantes, luz entre poetas, mendigo entre los hombres y Príncipe de Parnaso.”

(Carlos Ruiz Zafón, El Príncipe de Parnaso)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Capa da edição promocional da editora Planeta de Libros,
distribuída em 2012 na Espanha.

Sinopse do enredo

Barcelona, 1616.

Do alto da muralha que selava Barcelona, Antoni de Sempere, el facedor de libros, avista a chegada à cidade do cortejo fúnebre de seu amigo Cervantes, tendo ao seu lado a funesta figura de Andreas Corelli, o principal responsável pelas desventuras de seu amigo.

Corelli não havia envelhecido um único dia depois de todo o tempo que se passara desde a primeira vez que Cervantes e Francesca haviam chegado a Barcelona, em 1569, como dois fugitivos de terras italianas. E como já se era de esperar, o macabro arcanjo estava ali para testemunhar a ida de Cervantes ao túmulo após este ter finalmente escrito a obra-prima prometida ao funéreo editor.

É em meio ao incômodo diálogo com o perturbador Corelli que Sempere se entrega as suas recordações acerca de Miguel de Cervantes Saavedra e de como este, ao mesmo tempo, conhecera em seu exílio na Itália, a criatura mais bela já vista e assinara um pacto que seria razão de sua fama e de seu maior infortúnio. 

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês resenhada para o Especial Zafón.

Resenha

Publicado em 2012, El Príncipe de Parnaso é um conto de 35 páginas que foi oferecido pela editora Planeta, até onde sei, somente na Espanha, como uma cortesia aos compradores do romance de Zafón, El Prisionero del Cielo (O Prisioneiro do Céu) na ocasião de sua publicação. Por conta disso, assim como os demais contos do autor, não chegou a ser pulicado no Brasil e nem em língua portuguesa. Ele é também um dos onze contos que integram a coletânea póstuma do autor, La Ciudad de Vapor – que em breve será publicada no Brasil.

O conto é mais um dos que integram o universo da série d’O Cemitério dos Livros Esquecidos trazendo como personagens uma figura real – Miguel de Cervantes Saavedra, escritor espanhol dos séculos XVI e XVII e autor de Dom Quixote – dois antepassados de personagens da quadrilogia do Cemitério e Andreas Corelli, a figura sobrenatural que carimba sua presença em duas obras do autor:  As Luzes de Setembro e O Jogo do Anjo.

A história de El Príncipe de Parnaso se passa na Barcelona de meados da Idade Moderna, um pouco mais de um século depois dos fatos narrados em outro conto que integra o universo da série do Cemitério, Rosa de Fuego e que narra um pouco da origem da misteriosa biblioteca que funciona como eixo principal de todos os livros da série.

Neste segundo conto, Zafón desvia-se da história da secular biblioteca – ainda que a cite nos parágrafos que encerram a narrativa, [ALERTA DE SPOILER] sugerindo que Cervantes esteja secretamente sepultado dentro da colossal biblioteca –, e foca sua trama numa recriação da história de Miguel de Cervantes, mais exatamente de um episódio de sua mocidade quando este esteve vivendo em Roma após ter fugido de Madri.

Na biografia do autor espanhol, consta realmente que para evitar ter a mão direita decepada como punição por participar de um duelo, Cervantes fugiu para Roma em 1569[1]. Contudo, o relato de Zafón é obviamente ficcional – sobretudo quanto ao local real de sepultamento do escritor –, mas toma por base uma estadia real de Cervantes naquela que se tornaria séculos depois na capital da Itália atual.

Neste conto Zafón descreve um Cervantes em início de carreira, um tanto vacilante, bastante melancólico, tentando mostrar a sua arte para algum editor que quisesse publicá-la. Zafón desenha um jovem que já possui as marcas de um talento observável, mas pouco polido, ainda muito bruto e distante do horizonte onde estaria o escritor que se imortalizaria e teria sua obra conhecida em todos os cantos do planeta. Contudo, para alcançar esse horizonte distante o destino coloca no caminho de Cervantes o diabólico Corelli que conduzirá o jovem escritor para uma direção inesperada.

Em paralelo, a narrativa também conta a história de Francesca di Parma, uma pobre miserável, mas de grande beleza que tivera o infortúnio de ser abandonada bebê em baixo de uma ponte, sendo resgatada por uma família de facínoras e trapaceiros tão pobres quanto ela, mas que só não a descartaram de novo por terem visto em sua beleza uma forma de explorá-la e obter algum lucro. Prova disso é que ao surgir a oportunidade de conseguirem um grande lucro às custas da garota não hesitam em submetê-la a um destino cruel.

Zafón faz o encontro destas duas almas perdidas (ele real, ela fictícia) e tem-se um conto sobre amor e tragédia, com pitadas de terror e elementos fantásticos e góticos.

Apesar de não ter um enredo grandioso e nem mesmo muito ambicioso, El Príncipe de Parnaso conserva o que há de melhor no estilo “zafoniano” de escrita: muitas e ricas construções estilísticas, cinematográficas e metafóricas, atmosfera gótica e soturna, ambientes decadentes, romance trágico, e, por fim, artistas frustrados, melancólicos, loucos ou à beira da insanidade. Toda a poética singular do autor se expressa nesse texto, o que dificultou bastante a minha leitura, haja vista que li o conto em sua língua materna.

Apesar de não ter um enredo tão instigante quanto os livros da série do qual faz parte El Príncipe de Parnaso me atrai por ser mais um vislumbre do estilo maduro de Zafón, e do qual senti muita falta nos livros juvenis da Trilogia da Névoa.

Como o texto é contado a partir de um flashback de Sempere – porém narrado em terceira pessoa – os fatos não são absolutamente contados em ordem cronológica. Pelo contrário, o conto começa no ano de 1616, recua 47 anos no passado até 1569, recua mais alguns meses, avança até 1610 e depois retorna a 1616. Para evitar confusões, cada capítulo – com exceção de dois – são datados e localizados geograficamente no título.

Esses constantes vão-e-vêm se dão porque o flashback de Sempere é também entrecortado por um relato do próprio Cervantes, porém narrado em terceira pessoa, e que numa taverna conta a história do tempo passado em Roma e de como acabara fugindo de lá com Francesca. O relato é feito a Sempere e também ao espirituoso, esperto (e inconveniente) Sancho Fermín de la Torre. E aqui temos um dado curiosos: para mim, que li agora 80% da obra de Zafón, é evidente que o nome do personagem Sancho foi escolhido a dedo para fazer referência a dois personagens icônicos. O primeiro deles é Fermín Romero de Torres, amigo, cúmplice e protetor do jovem Daniel desde os fatos narrados no livro A Sombra do Vento até o encerramento da série com O Labirinto dos Espíritos. O segundo personagem pertence ao Cervantes real: o simplório escudeiro de Don Quixote, Sancho Pança.

É perceptível que Zafón escolhe esse nome tão estranho e incomum com o intuito de sugestionar que Cervantes escolhera o nome do escudeiro de Don Quixote inspirando-se na triste figura que conhecera anos antes em Barcelona: um antepassado longínquo do moderno Fermín da Espanha franquista para quem o grande artista uma vez contara a sua história.

Oura referência, essa menos obvia, está no título. El Príncipe de Parnaso faz referência a um dos livros do Cervantes real, Viaje del Parnaso, uma das obras poéticas do autor e publicada em 1614. O termo Parnaso, por sua vez, faz referência ao monte grego Παρνασσός (Parnassos) que aparece na mitologia grega como lar das Musas e que por isso é associado ao lar da poesia, da música e do aprendizado[2]. Um paraíso da arte e das letras. Como grande escritor, Cervantes seria o príncipe de Parnaso.

Para concluir. Em termos de pontos forte e fracos, reitero que o melhor deste conto é a escrita, e sua fragilidade, o enredo. A ideia é original, apesar de que tornar personagens reais em fictícios não seja nenhuma novidade na literatura. Contudo, Zafón integra Cervantes com perfeição ao universo expandido de O Cemitério dos Livros Esquecidos.

Edição espanhola de A Cidade de Vapor

Algo que lamento muito e a mim causa espanto é que a editora Suma, na ocasião da publicação da edição brasileira de O Prisioneiro do Céu, não tenha seguido os passos da editora Planeta de Libros e publicado também aqui essa edição promocional, ou, no mínimo ter publicado o conto em versão epub gratuito como muitas editoras vem feito nos últimos anos com seus títulos mais populares. Já vi coleções (sagas, séries) que eu – da minha parte – dificilmente investiria esforço para ler, terem contos associados aos livros publicados na Amazon e mesmo no Google Play. A Suma perdeu esta oportunidade na época. Todavia, com o lançamento, na Espanha, de La Ciudad de Vapor, isso será corrigido, uma vez que El Príncipe de Parnaso figura entre os contos da coletânea.

É verdade que o conto não é tão instigante quanto a série, mas ganha pontos por nos dar mais um vislumbre dos ancestrais da mesma, assim como Zafón fizera em Rosa de Fuego porém este último destoa um pouco das narrativas centrais por seus elementos fantásticos que inexistem na quadrilogia e também no El Príncipe de Parnaso. Verdade seja dita, El Príncipe de Parnaso tem mais a ver com a série do que Rosa de Fuego.

Quanto ao desfecho, este não é particularmente surpreendente, porque já era do conhecimento do leitor desde as primeiras páginas. No entanto, os dois últimos parágrafos sugestionam mais algumas coisas acerca das origens da grande biblioteca. É neste breve ponto da trama que fica claro porquê, apesar de não focar na grande biblioteca de livros esquecidos, a edição promocional do conto traz em sua capa uma ilustração em ponta de lápis que sugere ser um vislumbre do Cemitério de Livros quando este estava em construção. Um empoeirado e secreto paraíso de livros que para sempre os fãs de Zafón procurarão pelas estreitas ruas da Barcelona antiga.

A edição lida foi distribuída gratuitamente como brinde pela editora Planeta na época do lançamento de El Prisionero del Cielo na Espanha. A edição é do ano de 2012 e possui 35 páginas. Como ele não é acessível no Brasil li numa versão em epub que encontrei na internet.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

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[1]https://super.abril.com.br/historia/o-cavaleiro-da-triste-figura/.

[2]MOUNT PARNASSUS. In: WIKIPÉDIA, The Free Encyclopedia. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Mount_Parnassus>. Acesso em: 15 jan. 2021.

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

[Especial Zafón] As Luzes de Setembro - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

Por Eric Silva para o Especial Zafón

24 de janeiro de 2021, Ano da Itália

“A solidão traça estranhos labirintos”

(Carlos Ruiz Zafón, As Luzes de Setembro)

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Capa da edição brasileira. Suma das Letras, 2013.

Uma bela comunidade litorânea da Normandia, um romance juvenil de verão e as sombras de um passado macabro e marcado pela dor e pela destruição.  As Luzes de Setembro (Las Luces de Septiembre) é o terceiro e último livro juvenil de Carlos Ruiz Zafón que integra a Trilogia da Névoa. Um romance para jovens com um enredo mediano, mas muito bem escrito, que como outros livros do autor é bastante cinematográfico, mas que também repete muitas fórmulas já exploradas nos dois livros que o precedem.

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês resenhada para o Especial Zafón.

Sinopse do enredo

Normandia, verão de 1937.

Após perder o marido e passar por dificuldades financeiras para sustentar a si e a seus dois filhos, Simone Sauvelle encontra num pequeno vilarejo na costa da Normandia uma oportunidade irrecusável para trabalhar como governanta de um imponente casarão. O salário era generoso e seu empregador, Lazarus Jann, também oferecia a possibilidade de se instalarem numa modesta residência construída no vértice do cabo do pequeno vilarejo, a Casa do Cabo. Mesmo que precisassem abandonar Paris, aquela era uma luz de salvação que permitiria a Simone garantir o sustento dos filhos, mas que também mudaria para sempre a vida de sua família.

Em meados de junho, Simone e seus filhos, Irene e Dorian, partem para Baía Azul, uma pequena comunidade pesqueira onde vivia o excêntrico inventor que empregaria Simone. Naquela costa Lazarus construíra um grande casarão repleta de máquinas e autômatos bizarros e maravilhosos e a qual dera o nome de Cravenmoore. Ali o inventor vivia recluso com sua esposa enferma e ao lado de sua fábrica de brinquedos fechada vários anos antes.

O vilarejo era tranquilo e a comunidade hospitaleira e, por isso, os Sauvelle não encontram dificuldades para se adaptar nem a casa nem ao lugar, sobretudo com a ajuda da animada e faladeira Hannah, a jovem cozinheira de Cravenmoore e que logo faz amizade com Irene e vai com ela a toda parte falando (até os mínimos detalhes) sobre tudo e sobre todos do lugar. É também através de Hannah que Irene conhece o primo da moça, o jovem Ismael, e seu veleiro, Kyaneos, com o qual o rapaz foge para o mar sempre que tem vontade.

Não demora muito para que os dois jovens se encantem um pelo outro e Ismael leve Irene para conhecer o farol e a costa em seu veleiro. Contudo, o clima de felicidade e de romance de verão dura pouco quando, numa certa manhã, Hannah é encontrada morta no bosque próximo à casa de Lazarus em circunstâncias misteriosas. Decididos a descobrir o mistério por trás da morte da moça os dois jovens acabam por desenterrar o passado assombrado e trágico de Cravenmoore e seus habitantes.

Resenha

Último livro da Trilogia da Névoa, série de livros juvenis independentes escritos pelo barcelonês Carlos Ruiz Zafón, As Luzes de Setembro é pouco mais do que a repetição das fórmulas empreendidas pelo autor nos dois romances que o antecederam.

A Trilogia da Névoa em ordem cronológica de publicação.


Assim como O Príncipe da Névoa e O Palácio da Meia-noite este é mais um livro que explora não somente as temáticas góticas e de mistério comuns a toda a obra do autor como também traz novamente o sobrenatural como elemento definidor da trama (uma criatura feita de sombras, um casarão imenso com inúmeros cômodos e cheio de autômatos sinistros). O plot do livro em essência segue a mesma fórmula dos demais da trilogia, mas resgata sobretudo aquela usada em O Príncipe da Névoa:

-        Uma localidade pequena e litorânea cuja principal marca é a presença de um farol;

-     Um casal adolescente recém-formado (ele apaixonado pelo mar, ela forasteira que acabara de mudar-se e com a família e um irmão menor que também protagoniza na história);

-       Um mistério tenebroso e trágico que envolve o passado de um morador da localidade e que emerge para pôr os protagonistas em risco de vida;

-        Um punhado de jovens inteligentes e proativos;

-        Lugares arruinados, amaldiçoados ou bucólicos;

-        O verão local como marca temporal e romântica (amor de verão);

-        Grandes cenas cinematográficas;

-    Uma criatura quase mitológica que tem sua origem em uma comunidade suburbana paupérrima da infância pobre de um dos personagens.

-        [ALERTA DE SPOILER] e um desfecho trágico.

 

Tantas semelhanças entre os plots dos três livros – mas sobretudo com o primeiro deles – é explicado pelo próprio autor que chegou a afirmar que As Luzes de Setembro foi uma forma de “solucionar alguns elementos que não havia resolvido do jeito que gostaria em O Príncipe da Névoa”. De fato, ambos os livros são compostos com marcas temporais, atmosferas e cenários parecidos, além de uma mesma referência a névoa que dá nome a trilogia.

O que vai diferenciar esse roteiro dos demais são as circunstancias em que cada fato se dá. Os períodos históricos são um destes elementos. Muito próximos (1943, 1932 e 1937, respectivamente), mas em momentos um tanto distintos (período entre guerras e 2ª Guerra Mundial), mudando sensivelmente no caso do segundo livro por conta do seu deslocamento geográfico da Europa para o subcontinente asiático.

Mudam na trama também o passado dos personagens, o tipo de natureza do vilão principal bem como suas motivações e poderes, a função de alguns elementos dentro da narrativa (com destaque para o farol), a composição dos grupos familiares dos protagonistas e a função e destaque que cada um deles têm na trama com maior ou menor protagonismo. Além disso, nesta história a pequena comunidade litorânea que serve de ambientação ganha um nome e uma localização espacial um pouco mais definida.

Mas uma marca distintiva entre os romances que mais me chamou a atenção está no fato de que em As Luzes de Setembro o autor reforça ainda mais o caráter de terror da trama. Trata-se de algo que ele inicia em O Palácio da Meia-noite, porém já nos últimos capítulos. Ao contrário, em As Luzes de Setembro o terror e a tensão estão presente em mais da metade da peça, se insinuando tanto em pequenas coisas – a exemplo do pequeno autômato[E1]  em forma de anjo que se move sozinho e cujos olhos brilham na escuridão ao lado da cama do garoto Dorian –, até em momentos maiores como nas cenas de perseguição bastante cinematográficas e cheias de “efeitos especiais” envolvendo o casal jovem da trama. Além disso, os elementos de terror vão mudando aos poucos: de gatos estranhos, névoa e navios afundados, o autor segue para espetáculos incendiários, trens fantasmas e colossais estações ferroviárias arruinadas, e por fim, retorna à névoa acrescida de criaturas mecânicas que se movem sozinhas e doppelgänger.

Os personagens de As Luzes de Setembro seguem também quase as mesmas fórmulas com as quais foram construídos os protagonistas e personagens secundários dos dois livros anteriores. Por isso não sinto nenhuma vontade de alongar a resenha falando deles. Cito apenas que vejo em Ismael uma cópia quase idêntica de Roland de O Príncipe da Névoa; em Irene, uma Alicia que ganha protagonismo, que é mais família, mais sociável, madura e mais comunicativa, e, por fim, vejo em Dorian um Max que perde o faro investigativo, a força e o relevo na trama para concedê-los à irmã (troca de papéis), mas sem ficar de todo destituído do seu protagonismo. Quanto aos demais, acho-os tão fracos que não quero me deter neles.

A primeira aparição de Andreas Corelli?

Mas algo que me causou surpresa foi a participação (rápida, mas decisiva) em As Luzes de Setembro de um personagem do universo de O Cemitério dos Livros Esquecidos: o diabólico arcanjo Andreas Corelli[E2] .

Interpretação artística do personagem Andreas Corelli.
Artista: Bertus Dokter.


Corelli é um editor dotado de uma áurea e aparência sobre-humana e que gosta de fazer pactos com artistas malditos. Ele aparece pela primeira vez na série d’O Cemitério em seu segundo livro, O Jogo do Anjo, cuja trama é tão intrincada que nos faz duvidar da real existência de Corelli.

As razões da minha surpresa ao encontrar este personagem na trama do terceiro juvenil de Zafón são, na verdade, duas. A primeira delas é que este foi um fato atípico na trilogia. Em nenhum dos outros dois volumes Zafón faz com que enredos de séries diferentes se entrecruzem ou mesmo que um personagem transite entre os dois universos. O primeiro caso de fato não acontece em nenhum dos livros, mas o segundo acontece neste. Ainda assim, achei bastante coerente a inserção do personagem ao se levar em consideração sua natureza sobrenatural e que combina muito mais com a atmosfera fantástica, sobrenatural e de terror da Trilogia da Névoa. Muito mais do que com os livros de O Cemitério dos Livros Esquecidos, que tem uma pegada mais realista – mesmo em o Jogo do Anjo que nos faz crer ser Corelli uma alucinação do protagonista.

A segunda razão de minha surpresa está ligada a origem do personagem. Achava eu que Corelli, enquanto personagem, havia nascido em O Jogo do Anjo (2008) e depois transportado para outras tramas, a exemplo do conto El Príncipe de Parnaso. No entanto, tendo sido As Luzes de Setembro uma obra de 1995 – uma diferença temporal de 13 anos entre os dois livros – fica evidente que O Jogo do Anjo não foi a primeira aparição do personagem na obra de Zafón. Talvez o autor aproveitou no livro de 2008 um personagem de grande potencial, mas que fora pouco explorado em 1995. Digo talvez, porque há a possibilidade de que Corelli tenha aparecido em algum outro conto mais antigo do autor e isso só poderei comprovar quando tiver a oportunidade de ler La Ciudad de Vapor, ainda sem tradução no Brasil.

Um enredo mediano muito bem escrito

No que diz respeito a escrita, Zafón continua impecável. Linguagem leve, mas elegante. Texto fluido e bem estruturado. Prosaico até onde precisa ser, sem destituir o texto de poética e das construções estilísticas (metafóricas) corriqueiras em sua obra.

Na narração ele aproveita a estatura narrativa de O Palácio da Meia-noite alternando entre narradores-personagens – que se manifestam em cartas trocadas entre o casal da trama após a ocorrência dos fatos narrados e que ajudam a dar uma noção de continuidade –, e um narrador predominante em terceira pessoa. Assim como no caso supracitado, os narradores-personagens possuem uma nostalgia quase poética em seus brevíssimos discursos (apenas dois, um para iniciar – Ismael – e outro para encerrar o livro – Irene).

O livro foi para mim uma experiência bem mediana e nada em particular me chamou a atenção para que eu gostasse um pouco mais da trama ou do enredo em geral.

No que diz respeito as ideias do autor para o enredo do livro, achei-as bem medianas, mas talvez porque eu esperasse muito mais de Zafón do que ele de fato entregou nesta obra e nas demais que compõe a série. Essa minha queixa já é antiga.

Apesar de gostar e achar original a inserção dos autômatos na trama, algo que até então só havia visto no filme A Invenção de Hugo Cabret (2011) e sem o elemento de terror, não achei As Luzes de Setembro tão criativo, mas uma junção de elementos já nas obras do autor, somado a algumas histórias já muito exploradas pela literatura em geral: amores de verão, artistas (cientistas) loucos, doppelgänger, diários/escritos deixados por pessoas já mortas e/ou desconhecidas, problemas familiares trágicos na infância, etc.

Um automato é uma máquina ou robô desenvolvido para operar automaticamente. A maioria deles possuem estruturas mecânicas sofisticadíssimas e que lhes permitem realizar uma tarefa simples. Na foto, o automato desenhista do filme A Invenção de Hugo Cabret, 2011.


O que eu vejo ganhar força neste livro são os conhecidos elementos cinematográficos que autor explora bastante em O Palácio da Meia-noite e que parecem ter fechado um pouco os buracos deixados pela leve sensação de falta de enredo que o livro me deixou.

As construções cinematográficas são boas e Zafón não se perde nesta que é uma das mais destacadas marcas de seu trabalho literário e que, acredito eu, é resultado e influência dos anos em que o autor trabalhou como roteirista (o autor ainda conta no prefácio que escreveu As Luzes de Setembro tendo a sua janela a vista da Melrose Avenue bem como das letras de Hollywood em sua colina).

Quanto aos pontos negativos, acho que eu resumiria da seguinte maneira: um enredo mediano muito bem escrito, que não empolga, que é bastante previsível em algumas partes e que no final você nem gosta nem desgosta. Em outras palavras, o fim da descida que começara em O Príncipe da Névoa. Isso, no entanto, não me surpreende muito, porque é comum que sagas – mesmo aquelas de livros independentes – percam fôlego com o avanço dos volumes porque vão se esgotando os recursos ou as temáticas.

E o que dizer do desfecho? Basicamente o mesmo que já disse no parágrafo a cima: mediano. Não surpreende porque já era previsível, mas é um pouco menos trágico (sem deixar de sê-lo, no entanto). Acredito que o que dá um up no fim do livro é a carta de Irene à Ismael que dá uma noção de continuidade na narrativa selando de vez o enredo.

A edição lida é da Editora Suma das Letras, com tradução de Eliana Aguiar. Do ano de 2013 e possui 232 páginas. O título original em espanhol é Las Luces de Septiembre.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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domingo, 17 de janeiro de 2021

Opinião | O Decamerão em tempos de quarentena: as pandemias de peste negra e Covid-19

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

17 de janeiro, Ano da Itália.

A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”.

(Albert Einstein)

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

Dizem os historiadores que aprendemos com o passado para entendermos não apenas o nosso presente como para projetar o futuro. De forma análoga diria eu que aprendemos com a ajuda da literatura a compreender nossa realidade através das experiências, descrições e relatos subjetivos e objetivos dos escritores e que estes imprimem em suas obras.

No caso do livro O Decamerão (ou Decameron), obra centenária do italiano Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), ambas as proposições podem ser consideradas como válidas e pude atestar a validade dessas afirmações quando li o livro em meados do ano passado, em plena quarentena contra a COVID-19.

Escrito em pleno curso da pandemia de Peste Negra que varreu o continente europeu entre os anos de 1347 e 1351, O Decamerão não é unicamente uma obra dedicada a falar do amor erótico, mas é também uma expressão vívida e potente do horror causado pela pestilência que vitimou um terço da população europeia.

Na primeira das dez jornadas que compõe o livro, Boccaccio dedica algumas das páginas de sua obra para fazer um relato dirigido aos leitores sobre os impactos da doença na cidade itálica de Florença, onde se desenvolve a história central da obra. Nesse breve relato que permeia quase uma dezena de páginas o autor – ainda muito impressionado com a violência da peste e com a forma como a esta havia modificado o comportamento e a vida dos florentinos – faz uma descrição abrangente no qual conta as origens, os danos e sintomáticas da doença, seus reflexos sobre o comportamento dos florentinos, as mudanças de hábitos, as crenças acerca da doença, as dificuldades de sepultamento, além de falar do abandono dos campos e dos animais pelos camponeses que morriam aos montes. Enfim, ele faz um panorama de como a doença se manifestava, mudava o comportamento daquela sociedade e de como consumia a vida de suas vítimas, aterrorizando os que ainda se mantinham sãos.

No contexto do momento em que li aquele relato foi inevitável para mim não lançar sobre a obra um olhar comparativo com a realidade de angustias, mortes e incertezas em que éramos forçados a viver na época de minha leitura e ainda nos dias atuais. E acho que aprendi mais sobre a vida humana em tempos de pandemia do que me limitando ao que via e ouvia no noticiário da TV.

A COVID-19 assustou o mundo, mas também o tornou mais nítido.

Como ainda não havíamos testemunhado, a misteriosa doença principiada na longínqua cidade chinesa de Wuhan parou mercados em escala global, forçou pessoas a mudarem suas formas de viver, trabalhar e se relacionar e tornou em um caos a rotina de governos e profissionais de saúde.

O coronavírus mostrou-se bom de briga e obrigou empresas e comércios a se adequarem a uma realidade nova e inesperada. Reuniu esforços médicos e científicos de centenas de lugares. Escancarou o egoísmo humano bem como destacou sua capacidade de empatia e solidariedade. Aproximou famílias, desfez casamentos, fomentou o feminicídio e a violência doméstica. Evidenciou desigualdades, aprofundou o desemprego, destruiu economias já irremediavelmente frágeis.

No campo do poder, fez máscaras politicas caírem e evidenciou quais eram os países e governos realmente preparados e com gestões competentes. Nunca ficara tão violentamente evidente quem eram aqueles que governavam com discursos vazios os seus belos castelos de areia prestes a ruir. Polarizados, testemunhamos incrédulos um bizarro show de mortes, irracionalidade e ódio gratuito fermentado por incertezas, teorias da conspiração, guerra política, divergências, retrocessos e medo.

Enfim, o futuro ainda é incerto e nebuloso, mas quando li O Decamerão senti que haviam certos padrões que se repetiam em nosso tempo atual – o famoso tempo circular –, bem como deixou evidente para mim a diferença que faz o nível técnico e científico de cada época para dar resposta a momentos de crise desta natureza.

PANDEMIAS SÃO SEMPRE MOMENTOS DE MEDO, IRRACIONALIDADE, DIVERGÊNCIAS E POLARIZAÇÃO

Como homem de seu tempo Boccaccio inicia sua exposição sobre os efeitos da Peste Negra colocando-a como desígnio e ira divina que se abatera sobre os homens para puni-los de sua iniquidade e expiar seus pecados. O discurso que é extremamente condizente com as crenças e mentalidade da época, não difere essencialmente dos discursos atuais de uma minoria barulhenta que (descrentes na ciência) constroem entorno da COVID-19 uma série de teorias conspiratórias, disseminam uma enxurrada de informações falsas, tratamentos supostamente miraculosos que vão de cloroquina a desinfetante e que atribuem o caos instaurado pela doença a uma suposta histeria coletiva e infundada.

O nome que posso dar ao que se dava na Europa de Boccaccio é desinformação fundada na única explicação disponível: a explicação religiosa. O nome que damos ao que é feito hoje (a despeito de todos os avanços científicos) é negacionismo fundamentado na ignorância e no fanatismo. Eis a primeira distinção histórica.

Mas em termos de semelhanças, quando lemos o relato de Boccaccio, vemos que o período da pandemia de peste foi ele também uma época de divisão de opiniões e de certa polaridade. Não se tratava, porém, de uma polaridade exatamente política como a nossa e nem tão radicalmente inflexível, mas acerca de como melhor proceder durante a pandemia. Essa polaridade dividia as pessoas e suas reações frente a doença em quatro categorias:

Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter.

Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. [...]

“[...] Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios.

Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; [...].

E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; [...].” 

É obvio que na nossa época a polaridade se dá em novos contextos. Não é sensato querer dizer que agimos hoje de forma equivalente, mas mesmo agora as opiniões estão divididas e polarizadas e as decisões tomadas por cada um, seguindo esta ou aquela visão, contribuíram e vem contribuindo para o aumento dos casos.

Há os que minimizam a gravidade da doença e não seguem as medidas de proteção orientadas pelos médicos e autoridades sanitárias. Há aqueles que as seguem parcialmente e com perigosa flexibilidade e que para não se privar de seu lazer e divertimento, promovem ou participam de festas e aglomerações. E por fim, há os que de fato se isolaram em quarentena. Entretanto algo que chama a atenção é que, ao contrário do que ocorria no século XIV, hoje sambemos quais as medidas preventivas, então a divisão de opiniões tem caráter pura e simplesmente ideológica.

Várias centenas de manifestantes anti-lockdown se reuniram no Ohio Statehouse em 20 de abril. Wikimedia Commons.

Boccaccio relata que fora aquela época um período que se deu muita vazão a imaginação, as crendices (que direta ou indiretamente disseminam ideias falsas).

De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde.”

Coisa semelhante se dá nos dias atuais. De coisas que as pessoas ouvem falar, de casos particulares que presenciam ou de mera especulação ideológica nasceram dezenas de teorias absurdas.

Alguns afirmam que o coronavírus teria sido fabricado em laboratório por instituições farmacêuticas, outros que a pandemia seria parte de um plano maior envolvendo governos e países. Há quem acredite que as vacinas causam doenças graves e que conteriam de HIV à chips com o número da besta.

Contudo, uma das teorias mais comuns, é a de que os números de mortos e doentes seriam inflacionados, sobretudo pelos dirigentes de municípios, a fim de angariar recursos federais. Ainda que seja plausível pensar que algumas lideranças políticas nos milhares de municípios brasileiros tenham intenções corruptas, essa ideia é generalizada e propagandeada a fim de minimizar a gravidade da doença.

São ideias conspiratórias de base ideológica e que encontram no medo, na ignorância das pessoas ou na inflexibilidade de pensamento terreno fértil para se disseminar.  Elas se assemelham ao que acontecia na época de Boccaccio porque são frutos da ignorância das pessoas, da desinformação ou simplesmente porque são explicações que lhes agradam mais porque se harmonizam melhor com suas crenças e visões de mundo.

Outras duas semelhanças que encontrei entre os dois momentos históricos através das falas de Boccaccio estão relacionados a pobreza e as dificuldades de enterrar o grande número de mortos.

Boccaccio menciona que os pobres estavam entre as classes mais atingidas pela mortandade. Tal como agora, as classes mais baixas eram as mais atingidas e não podiam retirar-se das localidades de contágio e por isso adoeciam em grande quantidade.

Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção.

Em outras palavras, assim como agora, na Idade Média a desigualdade social também teve seus reflexos sobre o agravamento da pandemia de peste bubônica. No caso do Brasil, impossibilitados de trabalhar durante a quarentena o auxílio emergencial foi imprescindível para salvar milhões da fome e da extrema pobreza. Além disso o tamanho das casas de famílias mais humildes e numerosas também dificultou bastante (e em alguns casos não permitiu) qualquer tipo de isolamento social entre eles, ampliando os contágios. Mas mais do que isso, são inúmeros os casos de pessoas de comunidades pobres que não encontraram assistência médica quando doentes.

Gravura contemporânea de Marselha durante a Grande Peste em 1720. Conhecida como a Grande Peste de Marselha, essa epidemia de uma variação da Peste Negra matou cerca de 100 mil pessoas na cidade de Marselha, na França. Wikipedia Commons.

Quanto aos mortos, relata Boccaccio que:

“Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora [...], abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.”

Esqueletos numa vala comum de 1720 a 1721 em Martigues, França, renderam evidências moleculares do ramo orientalis de Yersinia pestis, o organismo responsável pela peste bubônica. A segunda pandemia de peste bubônica esteve ativa na Europa desde 1347, o início da peste negra, até 1750. Wikimedia Commons.


O número de mortos e contaminados pela COVID-19 está até então (e felizmente) em patamares extremamente menores do que os 70 a 200 milhões de mortos[1] que se estima que tenham morrido durante a Peste Negra, mas isso não impediu que em certas localidades faltassem cemitérios para enterrar o grande volume de mortos.

Em abril de 2020, a prefeitura de Manaus necessitou abrir valas comuns em cemitério para enterrar as vítimas de coronavírus[2]. Naquele mesmo mês Nova York vivia o drama de ter seus necrotérios lotados[3] e também passou a usar valas comuns na Ilha Hart para enterrar seus mortos[4].

A DIFERENÇA QUE A CIÊNCIA FAZ NA SALVAÇÃO DE VIDAS

Não obstante, de todos os aspectos que o relato de Boccaccio em O Decamerão me fez refletir, o principal está relacionado a diferença que o conhecimento e o avanço científico fazem hoje em nossas vidas.

Segundo o relato do escritor medieval, a semelhança do que governos, médicos e cientistas fazem na pandemia atual, algumas medidas sanitárias e de fechamento da cidade (fechamento de fronteiras) foram adotadas na Florença da época. O relato ainda deixa supor que até mesmo instruções foram dadas a população, entretanto, todas essas medidas se demonstraram infrutíferas, por razões que ele não explica em seu texto.

E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade [...]”.

 O autor também relata que na época faltava atendimento por conta da periculosidade da doença ou por falta de serviços oportunos, o que contribuiu para o aumento do número de mortos.

Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar.”

Mas, de todos os aspectos, a falta de conhecimento médico sobre a doença foi fator decisivo.

Tratava-se de uma enfermidade nova, desconhecida. Na época mão se sabia a origem da peste nem como esta passava aos seres humanos, por conta disso, também se desconhecia a forma mais eficaz de tratá-la e de evitar os surtos e propagações. Muitos médicos não passavam de charlatões e aqueles que de fato eram formados em medicina também se encontravam quase que de mãos atadas.

Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina: ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme, havendo, além dos cientistas, também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa, nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam, como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação”.

A peste bubônica é de origem bacteriana (bactéria Yersinia pestis), diferente da COVID-19 que é uma enfermidade viral (SARS-CoV-2). Mas, a semelhança daquela, a COVID-19 era no começo da pandemia quase que totalmente desconhecida, uma doença nova, e, mesmo com todo o nosso avanço técnico, foram precisos muitos meses para que médicos achassem os tratamentos mais eficazes e que cientistas pudessem desenvolver vacinas. Essa corrida contra o tempo abriu espaço para especulações de medicamentos supostamente eficazes, mas sem comprovação científica, a exemplo da hidroxicloroquina, sugerida pelo presidente dos EUA, Donald Trump, que chegou a falar também no uso de injeções de desinfetante[5]. A imprudência do chefe de estado americano chegou a repercutir e só na cidade de Nova York as autoridades de saúde da cidade receberam 30 chamados por ingestão de desinfetante nas dezoito horas que se seguiram a fala de Trump[6].

Mas a fala de Boccaccio deixa evidente como a ciência e os avanços médicos são fundamentais para minimizar o número de mortos quando novas doenças e com elevado grau de contaminação e mortes acaba por surgir no cenário mundial. Para nós que vivemos em uma época radicalmente diferente, sobretudo em termos de avanço técnico, mas com algumas tênues similitudes em relação a época em relação a comportamento social diante de situações de pandemia, devemos nos atentar para a relevância da ciência em nossa sobrevivência enquanto espécie e combater os pensamentos retrógrados e reducionistas que tentam descreditar a ciência.

A peste negra matou muito mais e era potencialmente mais mortal do que a COVID-19, mas foi o desconhecimento sobre as suas origens, acerca de tratamentos eficazes de combate e imunização e sobretudo a ausência de uma ciência médica desenvolvida para investigar em tempo hábil esses aspectos que fizeram daquela pandemia muito mais mortífera que a atual.

Se houvesse na época a integração e a facilidade de locomoção entre os vários continentes como existe hoje, ou mesmo os grandes fluxos de circulação de pessoas – que muito facilitam a propagação de agentes patogênicos como o coronavírus – os efeitos seriam ainda mais mortíferos. Ainda assim, um terço da população europeia sucumbiu.

Ademais, na época, se desconhecia a relação entre a peste, a pouca higiene urbana, ratos e suas pulgas (principais transmissores). O desconhecimento levou a explicações religiosas acerca de castigos divinos e mesmo teorias de que a contaminação se dava por via área (pelo ar) – a teoria do miasma. A importância da higiene só foi reconhecida séculos depois e o estabelecimento da ideia de quarentena em 1377, foi um avanço médico fundamental para o combate à doença[7]. A técnica até hoje se mostra fundamental e básica para evitar a propagação de epidemias.

Temos hoje a nosso favor um número vasto de conhecimentos acumulados e milhares de especialistas que trabalham em colaboração a nível internacional. É graças aos avanços científicos que tantas vacinas foram criadas em menos de um ano (tempo recorde) e que desde o começo da pandemia a população foi prontamente orientada quanto as principais formas de prevenção (máscaras, álcool em gel, higienização das mãos, medidas de isolamento social). Coisas assim eram inimagináveis na época de Boccaccio e custaram milhões de vidas. Ainda assim, muitas pessoas desacreditam a ciência, agem de forma negacionista e espalham desinformação, não só por ignorância, mas por alienação política e até religiosa.

Um aviador dos EUA recebendo uma vacina COVID-19. Wikimedia Commons.

Enfim, o que vem por aí nós não sabemos. Todavia concluo esse texto chegando a uma única e importante conclusão possível: o futuro pós-pandemia é imprevisível, mas certamente passaremos por uma mudança radical que nos levará a divisar novos horizontes formados pelo progresso em determinadas áreas e por terríveis retrocessos em outras.

Que nesse nosso caminhar relatos como o de Boccaccio em O Decamerão nos sirvam de lembrete para que não repitamos os erros do passado, afastemos de nós o negacionismo, a ignorância, as crendices e o fanatismo religioso, bem como as firmações sem fundamentação ou lastro científico, para que não experienciemos consequências tão desastrosas como aquelas que a Europa vivera no século XIV.

Você pode conferir a resenha de O Decamerão neste link.

Referência da edição de onde foram extraídas as citações

BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Tradução Ivone C. Benedetti. Porto Alegre, L&PM, 2013.

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[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_Negra

[2] https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/21/prefeitura-de-manaus-faz-valas-comuns-em-cemiterio-para-enterrar-vitimas-de-coronavirus-veja-video.ghtml

[3] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52224123

[4] https://oglobo.globo.com/mundo/nova-york-abre-valas-comuns-para-enterrar-mortos-por-coronavirus-24364067

[5] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/04/24/trump-sugere-luz-solar-e-injecao-de-desinfetante-para-tratar-coronavirus

[6] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/04/25/ny-tem-30-chamados-por-ingestao-de-desinfetante-melhor-prevencao-e-higiene.htm

[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_Negra#Causas 

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