Por Eric Silva
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Uma história tocante, leve e gostosa de ler, que num tom
bem-humorado vai falando da vida cotidiana, de perdas e de desafios que
encontramos no caminho trilhado por cada um dos personagens. Esse é Relatos
de Um Gato Viajante (旅猫リポート), primeiro livro da
japonesa Hiro Arikawa (有川 浩) publicado no Brasil. Um livro que, através da voz
narrativa de um gato sarcástico, mas fiel ao seu amigo e dono, conta a história
de uma viagem pelo Japão e de retorno ao passado.
Confira a resenha do quarto
livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano
homenageia a literatura japonesa.
Sinopse
Nana (ナナ) era um autêntico gato de rua: esperto, caçador, livre e
destemido. Mas não apenas isso, era um felino sarcástico e senhor de sua
própria vontade. Foi dormindo em cima de uma van prata estacionada na rua,
quando ainda não possuía um nome, que conheceu Satoru Miyawaki (宮脇 悟), o dono da van. A amizade
começaria ali e se estreitaria muito devagar, à medida que Nana foi,
gradativamente, aceitando os mimos de Satoru e permitindo alguns tímidos afagos
em retribuição.
Todavia, seria um acidente
que uniria definitivamente os dois. Atropelado por um carro, Nana buscaria por
socorro próximo ao apartamento de Satoru e seria resgatado por ele, que além de
socorrê-lo, cuida de sua recuperação. Nesse processo, o rapaz, um gateiro
incorrigível, se afeiçoa ainda mais ao animal e o gato a ele. Ligados um ao
outro, o gato acaba por ficar com Satoru, que, em alusão ao rabo torto do
felino, lhe dá o nome de Nana, o número sete em japonês.
Nana e Satoru permanecem
juntos ao longo de cinco anos, mas, por razões
pessoais, Satoru não pode continuar cuidando do animal. Relatos de Um
Gato Viajante é a narrativa de uma viagem de despedida sob a perspectiva de
Nana. Os dois atravessam o Japão de sul a norte visitando pessoas do passado de
Satoru em busca de alguém que pudesse adotar o gato.
Resenha
Logo nas primeiras linhas, o livro de Hiro Arikawa faz
referência a obra Eu sou um gato, de
Natsume Soseki (夏目 漱石), um dos mais importantes escritores e filósofos do Japão
na era Meiji. Mas, ao contrário do personagem que dá título ao livro de estreia
de Soseki, o felino da história Arikawa não possui o dom da telepatia, mas é
dono de um nome feminino e de um humor sarcástico ímpar.
Trata-se um
livro de temas bastante cotidianos e universais, e, por isso, não espelha
apenas a realidade japonesa. Por outro lado, o livro de Arikawa faz um
breve retrato do Japão moderno, descrevendo alguns dos muitos estilos de vida
que são comuns aos nipônicos: pais ausentes que trabalham excessivamente,
adolescentes que vivem com autonomia, jovens que realizam trabalhos de meio
período para sustentar seus gastos pessoais, além de profissionais que, por
conta de seus trabalhos, vivem mudando de cidade.
Muito atual, a obra faz também uma rápida menção à última grande
crise econômica que afetou todo o mundo e gerou, entre outras consequências,
recessão e demissões no Japão. Essa realidade vivida pelos nipônicos não é
esquecida pela autora que faz menções às demissões cada vez mais comuns:
“Cerca de três anos já haviam se passado desde que Shusuke Sugi e a
esposa, Chikako, abriram uma pousada com esse slogan.
A oportunidade surgiu quando, por causa da recessão, a empresa onde
ele trabalhava fez um programa de demissão voluntária. A família de Chikako era
dona de um sítio de fruticultura, e justo naquela época havia uma pousada ao
lado à venda, por uma pechincha. Então, o casal comprou a pousada, já
mobiliada, para reabri-la.”
Contudo, essa
não é uma obra sobre problemas econômicos, mas sobre amizade, infância,
família, perdas e resignação. De forma leve, o livro fala de sentimentos,
ao mesmo tempo que demonstra como a vida pode ser difícil e marcada por perdas
e sofrimentos. Os dramas da vida são citados como se tudo pertencesse a um
passado longínquo. Mas, ao mesmo tempo, o eco do que se foi reverbera no
presente deixando marcas evidentes como arrependimentos, dúvidas, alguns
sentimentos remanescentes e nostalgia. No entanto, ao abordar questões como família e amizade, o livro também esboça um
retrato das relações interpessoais contemporâneas japonesas que, em alguns aspectos, são tão universais e, em outros,
bastante singulares e próprias da cultura do Japão, país onde as pessoas são
bem contidas quanto aos seus sentimentos e se tratam com bastante discrição e
reserva.
Um gato sarcástico e
seu dono: os personagens principais
Nana e Satoru são indiscutivelmente os personagens mais
importantes da trama, mas suas histórias são contadas intercaladamente ou
simultaneamente a dos amigos de Satoru, o que dá a sensação de um protagonismo
móvel, ou compartilhado.
Nana é um gato bastante rabugento e algumas vezes beira a
megalomania. Seu forte senso de fidelidade e companheirismo, quando somados aos
seus comentários e observações sarcásticas sobre o comportamento humano, dão ao
personagem um ar cativante, e reserva à história um tom de humor leve e
inteligente.
Ele acha seu nome estranho e feminino, mas, sobre protestos, acaba
cedendo à vontade do dono. É o tipo do personagem que mobiliza a história,
quebra momentos monótonos e até mesmos os tristes, tornando o tom geral da
narrativa mais dinâmico e variado.
Satoru, por sua vez, é a paciência, resignação e preocupação em
formas humanas. Desde a infância se mostra como um amigo fiel e paciente. Um garoto corajoso que enfrenta os desafios
que a vida lhe impusera sem, no entanto, se queixar ou demonstrar autopiedade.
Sempre muito reservado, Satoru a todo o momento se demonstra aberto a ajudar
seus amigos, mas não costumava dividir com eles os seus sofrimentos,
demonstrando resignação quanto ao seu destino e um desejo forte de não
incomodar os outros com seus problemas.
Com Nana, Satoru se revela um dono zeloso e preocupado, sempre
buscando assegurar o bem-estar de seu companheiro. Mudar-se para um prédio que
aceitasse animais, buscar garantir o conforto de Nana durante toda a viagem,
desistir várias vezes de confiá-lo a alguém quando percebia que aquele não era o
melhor lugar para deixar o felino, são algumas das ações empreendidas pelo
personagem e que demonstram seu zelo pelo amigo.
Contudo, se muito do zelo extremado do personagem é típico de
sua personalidade, também é igualmente decorrente aos problemas do passado. Quando
ainda era menino, Satoru foi obrigado a se separar de seu primeiro animal de
estimação, o gato Hachi (八). A
experiência traumática e o fato de Nana lembra seu antigo gato acabam por
ampliar ainda mais o afeto do rapaz pelo animal.
Outros personagens importantes compõem o pequeno, mas marcante
elenco do livro: Kosuke Sawada (澤田 幸介), amigo de infância de Satoru, Daigo Yoshimine (吉峯 大吾), o amigo do
começo da adolescência, Shusuke Sugi (杉 修介) e Chikako Sakita(杉 千佳子), o casal de amigos do fim da adolescência e início do
período universitário, e, por fim, a tia de Satoru, Noriko Kashima (香島 法子).
Apreciação crítica
O livro de Hiro Arikawa é narrado sob o ponto de vista de duas
perspectivas, com duas vozes narrativas intercaladas. A primeira e principal
delas é a do inteligente e sarcástico Nana. Quando não está ele próprio
narrando todo o capítulo, a voz de Nana interfere na segunda voz de narração e
dá a narrativa um tom humorado e cheio de críticas, comentários e perspectivas
próprias que vão da “rabugentisse” gostosa dos gatos ao carinho velado de um
animal amoroso e amigo fiel.
O outro narrador é onisciente e se encarrega de narrar tanto
fatos do presente que não foram presenciados por Nana ou Satoru, como os fatos
passados que, em flashbacks, vão
narrando o passado de Satoru, as pessoas que cruzaram o seu caminho e as
histórias que marcaram profundamente sua vida.
O livro, como sugere o título, está dividido em relatos, cada
um deles contando a história de um novo encontro de Nana e Satoru com uma nova
pessoa do passado do rapaz, até que se alcança o último relato, que narra o
final da viagem empreendida pelos dois. No
fim, todo o conjunto do livro se torna o relato delicado e comovente de duas
viagens simultâneas: uma ao redor do
Japão, indo de Tóquio à Sapporo, e a
outra, em regresso ao passado, num longo recordar de acontecimentos e
pessoas importantes que transpuseram, mexeram ou mudaram o destino de Satoru.
Trata-se de uma história que o rapaz vai dividindo com seu
gato a partir de suas recordações com os amigos. Enquanto isso, os dois
presenciam paisagens triviais e cotidianas pelo caminho, mas que se tornam momentos
sublimes de contemplação do mundo e da vida, lembranças para serem guardadas e
servirem de elo com o passado.
Arikawa não se
preocupa em tecer uma narrativa nem complexa nem inusitada ou inverossímil. Sua aposta é
em uma narrativa simples e cotidiana, com dramas (pequenos e grandes) que podem
ser comuns a vida de qualquer um: pais ausentes e pouco afetuosos, relações
desgastadas, amizades, separação, perdas e orfandade. Mas apostar no cotidiano não significa que seu livro é pobre em
movimento ou pouco estimulante. A
escritora japonesa rompe com o enfadonho com uma escrita impecável, atual e
bem-humorada sem se tornar banal ou cansativa. Nana com sua personalidade
marcante transforma a atmosfera do livro, tornando interessante o que poderia
ser apenas a história de um homem que perdeu muitas coisas ao longo da vida,
mas que nunca deixou de olhar a beleza das coisas ou ter uma atitude positiva.
É um livro muito fácil de ler, com uma linguagem limpa e
acessível. O texto é muito fluido e a narrativa bem estruturada entrono dos
fatos narrados por Nana e os flashbacks
que contam progressivamente passagens da infância e da mocidade de Satoru. Mas é o bom humor de Nana, aliado a uma
tradução impecável e uma escrita tão bem-feita quanto divertida, que fazem a história
instigante e nem um pouco cansativa.
Arikawa cria
um livro com algum relevo e profundidade, mesmo tratando de um tema bastante
universal e desgastado. Ela nos faz conhecer lentamente os seus
personagens, envolve-nos com seus dramas, medos, fragilidades e personalidades
e gradativamente faz com que nos simpatizemos com eles, com que se torne
significativos e maiores do que a narrativa em si.
Enfim, gostei desse livro como um todo: escrita, narrativa,
personagens e narração. Porém, não digo que Relatos
de um Gato Viajante se tornou um dos meus livros preferidos, pois sua
narrativa não traz nada de novo ou de surpreendente. Já li, mas sobretudo
assisti, muitas histórias semelhantes, especialmente em animes japoneses que
tratam do dia a dia do povo nipônico e os dramas pessoais de seus
protagonistas. Ainda que tenha me
comovido bastante em sua reta final, o livro está para mim mais como uma
leitura agradável, divertida e de fácil digestão, do que uma obra marcante e
profunda que você procura ter sempre à mão. O caso é que se trata de um bom livro, delicado e sereno, cuja
narrativa não possui pontos fracos relevantes, mas que também não se destaca
como uma obra-prima.
O desfecho é fechado e foi, para mim, uma surpresa que me
comoveu bastante. Chegou até mesmo a influiu no meu humor durante todo o dia,
me deixando pensativo e um pouco melancólico. Porém, para os mais perspicazes o
final do livro é fácil de ser lido nas entrelinhas e não causa grandes
assombros. Mas de qualquer forma, este é um livro que certamente agrada muitos
e diferentes tipos de leitores, mesmo os que não são, como eu, fanáticos por
gatos.
Em conclusão,
é um livro delicado, verossímil e sentimental. Pelo sucesso alcançado em terras
nipônicas, foi adaptado para o cinema, em filme do diretor Koichiro Miki que
entrará em cartaz no dia 26 de outubro deste ano no Japão[1]. Um livro que fala de
sentimentos, de amizade e de perdas. Uma história que fala de amor e respeito
aos animais e de como esta parceria entre animais e pessoas pode ser consoladora
e fundamental à vida, tanto quanto as relações interpessoais. Uma leitura leve,
agradável e cheia de humanidade.
A edição lida é da Editora
Alfaguara, do ano de 2017 e possui 256 páginas.
Sobre
o autor
Hiro Arikawa (有川 浩) nasceu em 1972 em Kochi, no Japão. Seus romances são best-sellers no país e muitos deles já foram adaptados tanto para a TV japonesa, quanto para o cinema.
Frequentemente escreve sobre as
Forças de Autodefesa do Japão (JSDF) e seus três primeiros romances sobre esse
ramo são conhecidos como Jieitai
Sanbusaku (A Trilogia SDF). Em
2003, ganhou o décimo prêmio Dengeki
Novel de novos escritores pelo seu romance Shio no Machi: Wish on My Precious,
primeiro volume da série.
No Brasil, seu único livro publicado é Relatos de Um Gato Viajante, lançado originalmente no Japão em 2011.
Confira quem são os outros
autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.
Abaixo você pode conferir
uma prévia do livro disponível no Google Books.
Preview do Google Books
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