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domingo, 3 de janeiro de 2021

[Em Poucas Linhas] Soul – Resenha 7ª Arte

 

Por Eric Silva para a tag 7ª Arte


SINOPSE

Joe Gardner é um professor de música do ensino médio que sonhava em ser um músico de jazz, e finalmente teve a chance depois de impressionar outros músicos durante um ensaio aberto no Half Note Club. No entanto, um acidente faz com que sua alma seja separada de seu corpo e transportada para a “Escola da Vida”, um centro no qual as almas se desenvolvem e ganham paixões antes de serem transportadas para um recém-nascido. Joe deve trabalhar com almas em treinamento, como 22, uma alma com uma visão obscura da vida depois de ficar presa por anos na Escola da Vida, a fim de retornar à Terra

(Fonte: Wikipédia.org – modificado).

***

A Pixar novamente mostrou que apesar de ter sido absorvida pela Disney ainda contém em seu cerne alguma identidade própria, algo de original, de seu.

Soul é uma animação filosófica, existencialista e inspiradora. Foi criado para crianças, mas sua temática tão abstrata, questionadora e existencialista extrapola o mero propósito de entretenimento e resgata um questionamento fundante sobre o qual muitos filósofos e religiosos já se debruçaram: qual o significado (propósito) da vida?

Joe Gardner passou toda a sua vida obcecado com a ideia de que o seu propósito na vida era tocar piano como musicista de jazz, algo para o qual ele realmente tinha talento, mas que por diversas vezes fora recusado e nunca conseguira uma oportunidade concreta de viver de música e se tornar famoso. Quando finalmente a sorte parece lhe sorrir ele morre e tem seu sonho abortado. Extremamente frustrado por ter perdido a chance de realizar seu sonho ele faz de tudo para voltar a vida e vê em 22 – uma alma ainda não nascida, mas extremamente inteligente, instruída, autêntica, crítica e cética – a oportunidade de voltar à vida.

22 não via motivos para vir ao mundo e viver uma vida nele, porque não via significado nisso, nem nada que lhe atraísse, por isso que sempre que alguma alma (as mais brilhantes que já passaram pela Terra) tentava inspirar nela o que era necessário para que esse desejo de viver nascesse, era frustrada pela pequena alma.

Não estamos neste mundo por um propósito, diz o filme, estamos neste mundo para viver a vida. Este é o único e indiscutível propósito da vida: viver, nada mais. É algo no mínimo desesperador, mas, ao mesmo tempo, libertador. Contudo, Soul abre muitas portas para a divagação (assim como qualquer obra filosófica) e nos ajuda a questionar o nosso mundo. Esse mundo louco movido pelas leis do mercado que nos impõe como propósito de vida: viver para consumir, consumir para viver. Porque Soul explora – de forma ainda muito ingênua – um terreno perigoso e que nos inspira a ir além dele mesmo e dizer o que ele não disse: nos consumimos e nos destruímos de diferentes modos para obter e produzir coisas sem significado e valor intrínsecos (damos nosso tempo de vida em troca de coisas sem valor real).

Como assim?

Bem, nesse instante em que minhas ideias ainda estão caóticas em mim e se assentam pouco a pouco, o melhor exemplo que posso dar é a questão do trabalho.

O trabalho no mundo humano há muito que deixou de ser uma tarefa tão só para garantir ao corpo o que ele necessita para continuar vivendo, e se tornou a nossa própria vida. Não vivemos, trabalhamos.

Contudo, não trabalhamos unicamente para viver, mas para consumir ilusões. Ilusões que foram criadas para sustentar outras ilusões, ilusões de outras pessoas (poder, riqueza, fama, etc.). Vivemos em um mundo do ilusório, onde damos o nosso tempo – limitado e irrecuperável – não apenas para garantir a integridade de nossos corpos e assim continuar vivendo, mas para alimentar ilusões que são nossas ou que foram criadas para nós.

Vivemos para consumir e possuir objetos que na verdade não são necessários e só já muito tarde nos damos conta que nada daquilo que tanto perseguimos tinha um propósito em si mesmo, uma razão em si mesma. Somos nós que lhes damos significados (ou reproduzimos os significados dados por outrem), e somente nós podemos alterá-los.

O filme convida a pensar que cada um de nós temos paixões, talentos e objetivos, mas não devemos nos cegar por eles e deixar que eles tomem conta de nossas vidas, nos esquecendo do propósito real da vida (vivê-la).

Eu inverto a ideia dizendo que nossas paixões, talentos e objetivos são muitas vezes sufocados porque vivemos em um mundo que nos exige muito para viver nele, e, no final, não temos tempo para viver realmente.

Um mundo que categoriza a utilidade e o valor de cada talento destrói pessoas como Joe Gardner. Um mundo que torna o trabalho de cada um em algo sufocante, pesado e exaustivo mesmo quando você faz algo de que gosta também destrói vidas. Um mundo no qual mesmo a ideia de “viver realmente” se tornou uma coisa, um objeto mercadológico e voltado para o consumo, enfraquece (e empobrece) o viver. Viver é consumir, sugere a propaganda capitalista.

Enfim, eu viajei com o filme dirigido por Pete Docter que dá destaque a um personagem negro e determinado ao mesmo tempo que explora a cultura afrodescendente norte-americana, o mundo do jazz e do próprio soul (o título é uma brincadeira com os significados da palavra que é ao mesmo tempo “alma” e um gênero musical criado por essa mesma comunidade afro-americana).

Fala de temas bastante abstratos como vida pós-morte e “pré-vida” e brinca com isso, colocando no lugar dos anjos da cultura cristã, outros seres administradores e burocráticos de forma abstrata e curvilínea num estilo inspirado nos movimentos artísticos cubistas e de arte abstrata em geral (talvez com forte influência de Picasso), com identidades próprias e compartilhadas (todos, exceto um, se denominam com o mesmo nome) e que têm origem não mágico-mitológica, mas como “materialização” de forças naturais.

O mundo pré-vida de Soul com suas criaturas abstratas, seus tons tranquilos e formas simplificadas.


Os cenários exploram formas simples, com muitas cores em tons de azul, de lilás, de branco e de preto, e o mundo terreno em cores mais quentes e terrosas (tranquilidade e caos).

Como já era de se esperar, o filme explora bastante o jazz, o estilo musical pelo qual Gardner é apaixonado e traz peças musicais de muita originalidade, mas que causa estranhamento aos brasileiros desacostumados ao ritmo, como eu.

Em suma, um filme complexo, que flerta com o metafisico e que desafia o público infantil e também o adulto (que terá que responder perguntas difíceis sobre a morte, sobre a alma e a pós-vida). Melancólico em muitos aspectos e com personagens que tem passagens breves, mas que ainda assim foram muito bem definidos e com personalidades desenhadas de forma bem demarcadas. Um filme que também fala da escolha entre perseguir sonhos ou estabilidade e segurança, e que expõe os medos de uma mãe negra, preocupada e temerosa porque com seu salário de costureira teve que alimentar dois sonhadores: o esposo e o filho.

Enfim, a lição de soul é esta: a vida não tem significado em si mesma, somos nós que lhe damos um. Talvez você não enxergue no filme muita coisa do que eu disse aqui, mas pouco me importa. Soul é o tipo de filme que te provoca a ir muito além dele, e daqui eu retirei outra lição que ele não ensinou: o mundo que vivemos é criação humana e nós podemos recriá-lo se quisermos dar à vida significados melhores.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

7ª Arte: Kabei, Nossa Mãe (Kabei, our Mother) – Resenha


Por Eric Silva
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Em um tempo no qual a guerra e a perseguição ideológica faziam muitas vítimas e prisioneiros, uma mãe precisa dar tudo de si para manter sua família após a prisão injusta de seu marido. O que ela encontra pela frente é um Japão marcado pela privação e austeridade, por uma guerra sem sentido que manda centenas de jovens para os campos de batalha sem a certeza de retorno e por uma censura que por décadas perseguirá aqueles que se opõem a insanidade do conflito.

Bonito, raro e delicado, Kabei, nossa mãe, é um filme que traz todas as características que fazem o cinema japonês ser excelente. Confira a resenha.

Sinopse do enredo

Tóquio, 1940, durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial a vida da Família Nogami muda repentinamente quando o pai, Shigeru (Bandō Mitsugorō X), é preso pela força policial especial do Japão, a Tokkō, acusado de ter violado a Lei de Preservação da Paz com suas ideias comunistas.

Após sua prisão a vida de toda a família se torna muito difícil, e sua esposa, Kayo (Sayuri Yoshinaga), passa a trabalhar freneticamente como professora para manter a casa e criar as duas filhas, tendo como único apoio a irmã de Shigeru, Hisako (Rei Dan), e um dos ex-alunos dele, Yamazaki (Tadanobu Asano), que gradativamente vão se tornando imprescindíveis à família.

A prisão abala toda a família, mas sobretudo às duas meninas do casal. Além disso, as dificuldades para falar com Shigeru são enormes, a família passa por muitas humilhações e as condições da pressão são as piores possíveis, deteriorando rapidamente a qualidade de vida do professor.

O tempo passa, mas Shigeru não é liberado pela polícia. Enquanto isso a guerra avança e o país passa a viver momentos de austeridade, radicalismo patriótico e mesmo os homens com deficiências físicas são convocados para o front, mas Kayo ainda tenta com todos os seus esforços sustentar sua família e não desanimar apesar das diversidades, até que a trama encontra o seu desfecho com o fim da guerra, quando ocorre o desastre de Nagasaki e Hiroshima, quando o Japão derrotado pelos americanos se retira da Guerra.

Um drama familiar cru e sem muitos floreios ou poesia, mas, ainda assim, delicado e profundo, Kabei é um filme que fala de perseverança para enfrentar momentos difíceis e até mesmo desesperadores, nos quais a intransigência e ambição dos mais poderosos tira a liberdade individual e submete a todos a momentos de grande dificuldade.

Resenha

Contexto e personagens

Delicado, singelo e muito bem interpretado e dirigido, Kabei, nossa mãe é um filme que me deu muito trabalho conseguir: duas duras semanas de pesquisas em locadoras, streaming de filmes e downloads em sites duvidosos do exterior. Mas, no final, o esforço valeu à pena e assisti a um dos melhores filmes japoneses não-animado que já vi, tão digno quanto Dare mo Shiranai, outro filme japonês que resenhei recentemente no blog.


A Família Nogami

Apesar de pouco conhecido no Brasil, Kabei foi dirigido por Yôji Yamada, diretor da trilogia Samurai (Kakushi ken: Oni no tsume, Bushi no Ichibun e Tasogare Seibei) e de mais de 70 longas-metragens. O filme foi exibido nas salas de cinema japonesas no ano de 2008 e foi baseado no romance autobiográfico, Requiem For a Father, de Teruyo Nogami, que por muitos anos trabalhou com o diretor Akira Kurosawa, muitas vezes como supervisora de roteiro.

Com muita sensibilidade o filme aborda a situação do povo japonês durante a Segunda Guerra Mundial quando o Japão entra no conflito ao lado da Itália fascista e da Alemanha de Hitler. Os alistamentos forçados, o radicalismo patriótico e sobretudo a censura que perseguia os intelectuais de esquerda. Na época, em todo o território japonês havia sido imposta a Lei de Preservação da Paz que vigorava desde 1925[1]. Essa lei foi promulgada como forma de combater as ideias socialistas, comunistas e os anarquistas da época, mas, na prática, qualquer oposição política era enquadrada em sua normativa e punida com a prisão (pena máxima de dez), reeducação ou até mesmo a morte[2].

No ano de 1941, a lei se torna mais severa e até mesmo organizações religiosas passam a ser incluídas e cortes de apelação foram abolidas. Entre os anos de 1925 a 1945, mais de 70.000 pessoas foram presas e a lei só foi revogada com o fim da guerra pelas autoridades de ocupação dos Estados Unidos.

Na época em que esteve em vigor, foi criada especialmente para o cumprimento da Lei de Preservação da Paz uma seção de “Polícia do Pensamento” para monitorar atividades socialistas e comunistas, e uma seção estudantil para monitorar professores e estudantes universitários, além de “Promotores do Pensamento” especiais designados apenas para combater os chamados “Crimes do Pensamento[3].

Cena da prisão de Shigeru

Kabei, nossa mãe é um retrato simultâneo do Japão intransigente e difícil da Segunda Guerra e da perseguição ferrenha aos socialistas e opositores do governo autoritário, sobretudo daqueles contrários à guerra contra a China.

Shigeru Nogami, a quem a família chamava carinhosamente de Tobei, era um professor universitário reconhecido, mas que fazia forte oposição à guerra. Por conta de suas ideias, ele não conseguia que seus livros fossem aprovados pela censura e sua família começava a passar por dificuldades financeiras. Mas além de censurado, suas ideias o levam à cadeia quando no início do ano de 1940 ele é preso pela Tokkō, a polícia especial, fundada especificamente para investigar e controlar grupos políticos e ideologias consideradas subversivas[4]. Sua prisão se torna um motivo de vergonha para seu sogro, chefe de polícia da capital da província de Yamaguchi, e deixa sua esposa, Kayo, em profundas dificuldades financeiras e com problemas com a própria família, ou seja, com o pai.

Kayo, que as crianças chamam de Kabei, apelido ao qual o título do filme faz referência, é uma mulher forte e perseverante, mas de constituição física frágil. Com a ajuda da cunhada, mas sobretudo de Yamazaki ela luta pela sobrevivência da família e para conseguir cuidar do marido preso. A interpretação de Sayuri Yoshinaga é suave e delicada, expressando com originalidade e vivacidade cada uma das emoções vividas por sua personagem. Ela é, junto com a personagem de Yamazaki, o coração da história e um exemplo de hombridade, delicadeza e determinação silenciosa.

Por sua vez, Yamazaki é um jovem estudante, muito formal, meio desajeitado e sem nenhuma condição financeira, como denotam suas meias furadas e seus sapatos rotos. Ele se oferece para ajudar a família Nogami em tudo quanto for possível, e gradativamente vai se tornando um importante pilar e uma pessoa imprescindível para Kayo e suas filhas, uma figura masculina, de presença frequente e de ajuda sincera. A pouca felicidade que a família passa a ter depois da prisão de Shigeru é oportunizada por sua presença e gradualmente aquela se torna também a sua família.

A atuação das suas meninas, Hatsuko Nogami (Mirai Shida), apelidada de "Hatsubei", e de Teruyo Nogami (Miku Satō), a pequena e esfomeada "Terubei", também foram enriquecedoras e imprescindíveis para a composição da curva dramática da história.

Crítica

O filme como um todo é uma produção simples e claramente com baixo orçamento, mas a sua delicadeza lhe dá uma qualidade relevante e sobressalente. Não há nenhum aspecto da trama ou da produção da película que não tenha me agradado.

Dramático sem ser piegas

Como meus leitores já sabem, costumo ignorar detalhes como figurinos, maquiagens e trilhas sonoras. É uma falha minha, mas não costumo pensar em detalhes como esse. Em Kabei, o que mais me chamou a atenção foi a dramaticidade da narrativa que possui aquele traço típico dos japoneses de interpretações contidas, mas profundas e verossímeis, e, também, o contexto histórico que descrevia anteriormente. Ainda assim, a singeleza dos cenários, dos objetos e da cenografia é evidente e se sobressai chamando nossa atenção, além de ser condizente com os tempos austeros que o Japão vivia. Notamos pelos cenários e até figurinos a ambivalência dos costumes orientais tradicionais – sobretudo nas roupas utilizadas por Kayo e Shigeru, como em todo o estilo de sua casa – e a inserção da cultura ocidental que pouco a pouco penetrava no estilo de vida japonês e ganhava raízes profundas.

Não há aspecto do filme que eu não tenha gostado, nem da trama ou da interpretação de seus atores. O que me irritou bastante foi, no entanto, a grande dificuldade de conseguir o filme e legendas apropriadas.

Os diálogos são muito bem construídos e transmitem para a tela os sentimentos de suas personagens de forma com que quem assiste fica imerso na narrativa e nos dramas vividos pelas personagens. Como já disse as interpretações são contidas, como é típico dos japoneses, e evita o dramalhão comum a outras escolas de cinema tipicamente ocidentais.

Apesar de baseada em fatos reais a trama é bastante viva e se alimenta do absurdo de uma época onde a censura e falta de liberdade de pensamento, bem como a guerra consumia vidas e destruía famílias de forma indiferente e cruel. Desta forma o tom geral de um roteiro que é que ainda que real é instigante é de uma melancolia que se alterna com pequenos momentos de humor e descontração, ao mesmo tempo que descreve um período importante na história do Japão.


Destaque para os olhos
A câmera de Yamada explora bastante as emoções em enquadramentos que destacam sobretudo os olhos dos atores. Mas o que mais se sobressai são os planos mais amplos que colocam em um só enquadramento todos os personagens, mostrando-os como um conjunto unido, inseparável, o que nos transmite a sensação de uma família que não deseja ser separada, mas estar sempre junta, e cujo desejo maior é se reunir com o pai preso. Por fim, há também outros ângulos da câmera de Yamada, sobretudo aqueles ângulos a partir de cantos e cômodos da casa, que capturam cenas do cotidiano como alguém que espia, por uma porta aberta, a intimidade de uma refeição, na qual a presença do pai é apenas uma fotografia para qual as meninas insistem de oferecer o jantar.

Mas se a câmera e seus ângulos me chamaram a atenção, também as cores e a iluminação destacam nesse filme. As cores quase sempre em tons neutros de bege, cinza e branco se mesclam aos tons escuros que realçam a melancolia daqueles dias de incerteza. Mas, contraditoriamente, Kabei é um filme de muita luz e cenários claros o que não permite que a desesperança contagie o telespectador que espera do filme um desfecho propício, ou quem sabe um final feliz.


Enquadramento a partir de cantos da casa
Enfim, Kabei é um filme de altíssima qualidade narrativa, um drama que não é piegas, mas, ainda assim, comovente e delicado. Seus personagens muito bem construídos são cativantes e no enredo cumprem papéis fundamentais e bem demarcados. Ele atinge todas as expectativas e tem todas as nuances que normalmente encontro nos dramas japoneses: interpretações contidas, narrativas delicadas, dramatizações sem dramalhão e um certo humor muito bem dosado que surge somente no momento que é mais propício para ele.

O desfecho pode não agradar quem espera um final feliz, mas é realista – lembremos que o filme é baseado numa história real –, ainda assim, tem sua poesia e me agradou bastante, assim como me comoveu. Ele nos faz lembrar que a vida não é justa e está longe de ser perfeita, mas, ao mesmo tempo, traz uma mensagem de perseverança, ao nos lembrar que tempos difíceis passam e a vida prossegue seu curso inexorável.

Kabei, nossa mãe é de fato um bom filme, que valeu a pena o esforço de conseguir e traz, em si, o melhor que o cinema japonês tem a oferecer: dramas singelos e delicados, que mostram o quão frágil é a existência humana.

A película é uma produção dos estúdios Shochiku e entrou em cartaz no ano de 2008. Tem duração de 133 minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:

Trailer


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[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Tokubetsu_K%C5%8Dt%C5%8D_Keisatsu

domingo, 2 de dezembro de 2018

7ª Arte: Koe no Katachi – Resenha


Por Eric Silva

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Sensível e comovente, Koe no Katachi (聲の形, lit. "A Voz do Silêncio") é um longa-metragem de animação japonesa que com uma profunda delicadeza aborda a questões sérias como a surdez, o bullying e o suicídio. Um filme com um enredo universal, mas que fala precisamente da realidade japonesa no que diz respeito ao drama do suicídio.

Sinopse

Shōko Nishimiya (西宮硝子) é uma menina com deficiência auditiva – baixa audição – que sofre bullying de um grupo de colegas ao entrar para uma escola de ensino regular. Atormentada pelo assédio de um dos garotos particularmente mais travesso, Shōya Ishida (石田将也), ela vive um inferno particular ainda que tente com todas as forças fazer o seu melhor e ser amiga de todos.
Ishida não consegue compreender nem aceitar a condição de Nishimiya e começa a assediá-la quebrando seus aparelhos auditivos, dando-lhe sustos, destruindo seu material escolar, até chegar ao ponto de ferir seus ouvidos, o que causa a revolta da família da menina que pouco depois sai da escola.

Em consequência de suas ações, a mãe de Ishida tem um prejuízo financeiro e o rapaz passa a ser hostilizado pelos colegas e desprezado por seus pares, o que o torna tímido e antissocial. Sua dificuldade de se relacionar com as pessoas é tão grande que ele passa a ignorar os sons do seu entorno e não consegue encarar os rostos de seus colegas. Anos depois, farto das atitudes de desprezo dos antigos amigos e dos colegas, Ishida tenta cometer suicídio, mas desiste no último segundo, tomando a atitude de tentar consertar seus erros cometidos no passado e viver uma vida nova.

Resenha

Baseado em um mangá homônimo, Koe no Katachi (2016) é um drama romântico, obra do diretor Naoko Yamada (K-On!) e escrito por Reiko Yoshida (Waka Okami wa Shōgakusei!)[1]. O filme tem uma trama universal pintado com as cores da realidade japonesa, país com elevadíssimo índice de suicídio. A ideia, porém é delicada, romântica, dramática e comovente.

Esta animação está entre meus longas animados favoritos e tenho por ele um carinho de fundo sentimental, por razões muito pessoais. Yamada faz um trabalho excepcional e singelo com uma trama simples, mas com cores complexas e profundas. O filme é sereno como carpas nadando em água cristalina e repleta de luz, mas seu caráter multitemático e a importância de seus temas o faz profundo como um poço.

Os diálogos são inteligentes e, por vezes, profundos. Uma de minhas falas preferidas é do personagem Tomohiro Nagatsuka (永束友宏), primeiro amigo que Ishida faz no novo colégio, após salvá-lo de um valentão. Na cena, Nagatsuka explica a Ishida porque se tornou seu amigo e num tom divertido e brincalhão diz uma das frases mais belas do filme: “amizade está além da lógica e das palavras.

O filme não possui tom de humor, mas uma curva dramática suave e constante que envolve seu expectador e emociona, sobretudo em seu clímax, parte mais dramática, chocante e comovente de todo o filme.

Na parte técnica, Koe no Katachi é um filme que explora sobretudo o uso da câmera e uma paleta de cores bem claras e luminosas que pintam cenários singelos em sua maioria urbanos, mas também do rio local, principal cenário natural da história. Esses elementos juntos com uma trilha sonora que se harmoniza com os humores de cada cena enchem a tela de delicadeza, beleza e simplicidade.

Muita luz e cores claras.
Os cenários de Koe no Katachi não tem a mesma beleza estética de outra animação japonesa que assisti recentemente, Your Name, mas, ainda assim, é um filme belo e bem desenhado, algo bem dentro do padrão de qualidade da maioria dos animes japoneses. A luminosidade das cenas é fantástica entregando um filme claro que condiz com sua delicadeza.

A câmera sempre busca alternar diferentes ângulos produzindo efeitos bonitos e delicados. Longshots, planos de detalhes e contra-plongées são os enquadramentos mais bem explorados, indo do distante passamos para o muito próximo, e por vezes esse próximo capta apenas gestos ou detalhes: uma parte do corpo como mão, pés e braços, um jarro de flores, flores tremulando ao vento, pequenos furtos que caem de uma árvore ou a imagem singela de carpas nadando no rio.

A música de Kensuke Ushio não tem nada de especial, mas sustenta o equilíbrio entre câmera, cenário e cena, indo de alguns ritmos mais rápidos e agitados a outros muito tranquilos, em sua maioria tranquilos.

Porém, são os personagens os pontos mais fortes do filme. Muito diversas suas “atuações” demonstram as mais diferentes facetas dos sentimentos humanos como culpa, gentileza, raiva, preconceito, arrependimento, amor, agressividade, arrogância, perdão e vulnerabilidade. Sem dúvida são personagens bem-feitos, complexos, redondos e críveis, cada qual com sua própria “humanidade” e trazem uma mensagem positiva frente a vida e sobre o valor do arrependimento sincero e do perdão.


Elenco principal
Nishimiya é uma garota gentil e sensível que sinceramente deseja ser amiga de todos e se relacionar bem com seus colegas de sala. Ela é, sem dúvidas, uma protagonista que intriga e encanta o expectador tanto quanto Ishida que se transforma ao longo da trama se tornando mais gentil e preocupado com as pessoas. Ele era travesso e insensível no começo da história, mas se torna alguém triste e reflexivo, mas, ao mesmo tempo, alguém que vem dando tudo de si para se tornar alguém melhor. O romance que parece se desenvolver entre os dois não é foco do filme, o que o torna algo bastante delicado. Mas os dois são responsáveis pelas cenas mais tensas e difíceis da obra.

Os protagonistas podem até parecer monótonos, mas é o conjunto com as personalidades mais ativas dos outros personagens que fazem o filme. Personalidades como da determinada Yuzuru Nishimiya (西宮結絃), irmã mais nova de Shoko; da arrogante de Naoka Ueno (植野直花), colega de Ishida e Shoko quando eram do fundamental; ou a atitude egoísta de outra das colegas da época, Miki Kawai (川井みき) que sempre se fazia de vítima quando, na verdade, por omissão, também tinha parcela de culpa no bullying cometido contra Shoko. O choque entre essas personalidades contrastantes e as mudanças que elas vivem ao longo da trama tornam mais tensa, real e profunda a história.

Multitemático: a surdez, o bullying e a questão do suicídio.

Apesar de seu um drama romântico, o romantismo da trama é bem suave e fica em segundo plano, não se sobressaindo em relação a temas mais pesados como o bullying e o suicídio. Koe no Katachi é um filme multitemático e que perfeitamente enquadrado em seu contexto histórico e local. O tema da surdez é o ponto de apoio da trama cujo título (em português, A voz do silêncio) faz referência.

A surdez é uma condição que ao longo da história foi vista de forma preconceituosa. No passado, os surdos não eram vistos como pessoas. O grande valor que era dado a oralidade fazia com que o olhar da sociedade tirasse dessas pessoas a sua humanidade, puramente pela incapacidade dos mesmos de falar.

Na Idade Média, por exemplo, os surdos não podiam ser herdeiros de sua família e para contornar essa situação algumas famílias abastadas pagavam preceptores que fossem capazes de ensiná-los a falar. A Igreja Católica por muito tempo teve um importante papel nesse processo discriminatório já que sua surdez fugia do padrão de “a imagem e semelhança de Deus”.

Na História, houve períodos em que a linguagem de sinais foi desenvolvida para permitir a comunicação dessas pessoas, e, em outras, ela foi vista como maléfica e por conta disso muito surdos foram obrigados a aprender a falar, a usar a oralidade a partir até mesmo de métodos perversos e completamente ineficientes.

Enfim, ao longo de séculos a surdez foi colocada em uma condição de discriminação e os surdos colocados em uma posição submissa. Hoje muita coisa mudou, mas os surdos ainda não se encontram realmente incluídos na sociedade. Os Estados ainda não vêm preparando a sociedade para socializar normalmente com os surdos e facilitar a comunicação com os mesmos. O preconceito sobrevive e pouco é feito para combatê-lo. Mas esse preconceito, quando se dá nas escolas, dá margem a outro problema da sociedade moderna: o bullying.


Cena de bullying cometido por Ishida contra Shoko.
O bullying é um fenômeno que nasce da incapacidade das pessoas de aceitaram o que é diferente e numa atitude de demonstração de poder cometem atos de violência psicológica e até física contra aqueles que não se encaixam num determinado padrão social. É também uma atitude de tentativa de se sobressair socialmente través de brincadeiras que divertem alguns em detrimento de outros, no caso da vítima.

A condição de surdo é algo que despertou em Ishida essa incapacidade de aceitação. Ele considerava a atitude e as necessidades de Shoko incômodas, achava, ainda mais perturbadoras suas tentativas de socializar e fazer amizades, sempre perdoando ou fingindo não perceber as maldades de seus colegas, as brincadeiras cruéis e as agressões. Ela buscava fazer o seu melhor e integrar-se naquele conjunto como uma igual. Suas atitudes eram positivas, humildes e resignadas, mesmo quando ela tinha tudo para se lamentar ou sentir raiva. A personalidade tão diferente de Shoko desperta o ódio de Ishida, porque ele era incapaz de entendê-la e se demonstrou igualmente incapaz de fazer o mesmo quando foi sua vez de estar do outro lado e ser a vítima do bullying, tentando recorrer ao suicídio.

O suicídio é outra temática muito bem explorada pela trama do filme. O Japão é conhecido por possuir uma elevada taxa de suicídios se comparado a muitos países.

Tentativa de suícidio de Ishida
Segundo uma reportagem da BBC Brasil, de 2015[2], mais de 25 mil pessoas cometeram suicídio no Japão, numa média de 70 por dia, sendo que o suicídio é a principal causa de morte entre os homens japoneses com idades entre 20 e 40 anos.

Como afirma essa reportagem, o principal fator dos suicídios é o isolamento que antecede a depressão e o próprio suicídio. Acredita-se que o suicídio em nome da honra que historicamente foi cometido pelos samurais ("seppuku") e pelos jovens pilotos "kamikazes" da Segunda Grande Guerra seria um dos motivos principais para a elevada frequência com a qual os japoneses tiram a própria vida. Ou seja, eles encaram o suicídio “como uma forma de assumir responsabilidade por alguma coisa". Mas essa não seria a razão tratada pelo filme, e sim o sofrimento pessoal.

A reportagem da BBC esclarece que no caso dos jovens japoneses a perda da esperança e a incapacidade de pedir ajuda são os principais motivos para se matarem. As crises financeiras se demonstraram como fator estimulador, uma vez que a realidade trabalhista e econômica se tornou bastante difícil e desfavorável com "condições precárias de emprego".

No caso de Ishida e Shoko o sofrimento pessoal causado pelo bullying os levaram a uma condição de desespero e inconformidade. Sentir-se socialmente deslocado e isolado fragilizou a vontade de ambos em tentarem se manter vivos. O suicídio se apresenta então como possibilidade real de amenizar o sofrimento pessoal. A própria estrutura social os impelem a isso:

"Esta é uma sociedade muito orientada por regras. Jovens são moldados para se encaixar em nichos existentes. Não há como alguém expressar seus sentimentos verdadeiros. Se são pressionados por seu chefe ou se deprimem, alguns acham que a única saída é morrer."[3]

Esse é o caso dos personagens do filme, que apesar de jovens não se sentem adequados e são incapazes de pedir ajuda, pois a cultura os impelem a resolver sozinhos os seus problemas. Levá-los a outras pessoas significaria ser inconveniente e incômodo.

A reportagem ainda esclarece que “o Japão é famoso por uma condição conhecida como "hikkimori", um tipo de isolamento social grave”, que seria alimentado pela tecnologia que incentiva esse isolamento. Por se tratarem de jovens com “muito conhecimento, mas pouca experiência de vida”, pessoas como Ishida e Shoko “não sabem como expressar suas emoções", as guardam para si e chegam a um extremo de inferno pessoal. Se isso não bastasse, aponta a reportagem, os sistemas de tratamento para os que sofrem de depressão são ruins e a doença mal compreendida, o que inviabiliza um tratamento adequado e eficiente. O sofrimento dessas pessoas chega a uma condição insuportável e a morte se torna algo bem mais atraente.

A mensagem trazida pelo filme é a de que lutemos para dar o melhor de nós mesmos tentando preservar a esperança na vida. Que busquemos ajuda e nos relacionar melhor. Ele ainda busca demonstrar os resultados nefastos do bullying e combatê-lo, trazendo uma mensagem de respeito às diferenças e as deficiências físicas.

Enfim, é um filme delicado e inspirador que joga uma reflexão sobre eventos e questões contemporâneas tanto japonesas como universais, promovendo uma discussão relevante e tecendo uma mensagem positiva que atinge em cheio seus expectadores. Um filme que cumpriu minhas expectativas e que já assisti diversas vezes por ser especial, educativo e louvável seja pela beleza de sua narrativa ou pela importante contribuição social que ele faz.

A película é uma produção dos estúdios Kyoto Animation, e entrou em cartaz no ano de 2016. Tem duração de 130 minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:



Trailer








[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Koe_no_Katachi_(filme)
[2] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb
[3] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb

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