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domingo, 5 de julho de 2020

A Espada que dá Vida – Yagyu Munenori – Resenha


Por Eric Silva
11 de abril de 2020

“Se os pensamentos estão dentro, suas tintas serão manifestadas fora”
(Yagyu Munenori)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Um tratado de esgrima, um texto clássico do zen-budismo e lições de vida, A Espada que dá Vida do espadachim japonês que viveu ativamente as primeiras décadas do xogunato Tokugawa, Yagyu Munenori, é um livro por sua filosofia desafiante, mas, ao mesmo tempo, repleto de valiosas reflexões sobre a mente humana.

Sinopse do livro

Espadachim e mestre de artes maciais fundador do ramo Yagyū Shinkage-ryu de Edo[1], Yagyu Munenori é considerado como o maior rival de Musashi, outro famoso espadachim japonês, ainda que nunca o tenha conhecido pessoalmente. Retentor direto da casa Tokugawa, e instrutor de espadas de três gerações sucessivas de xoguns: Ieyasu, Hidetada e Iemitsu. Contudo, mais do que um instrutor de artes marciais, Yagyu, foi também um importante conselheiro do xogunato Tokugawa e uma figura influente na vida do terceiro xogum, Iemitsu.

Na arte da espada, Yagyu foi um mestre de grande respeito e fama, tendo aperfeiçoado o estilo de espada de seu clã ao introduzir nele uma série de ideias e conceitos do zen-budismo. A Espada que dá Vida (Heihō kadensho – 兵法家伝書)[2] é o tratado de Yagyu através do qual ele passou às gerações seguintes de seu clã toda a filosofia de seu estilo de espada, uma reflexão sobre a Não Espada.

O tema central dessa obra, que ainda hoje é considerada como um texto clássico do zen, é a arte de utilizar a espada mais como instrumento de vida do que de morte, através de um controle sobre o oponente por meio da preparação espiritual para lutar, muito mais do que pela luta propriamente dita. Trata-se de um livro de estratégia que leva o seu leitor a refletir como vencer uma batalha sem necessariamente usar força ostensiva e evitando perda para todas as partes envolvidas. Um livro que extrapola o universo da esgrima, ainda que este seja seu tema central.

Resenha

Detalhe dos suportes (koshirae) para um par de espadas (daishō), período Edo.
Autor: Marie-Lan Nguyen. Wikimedia Commons.
Comecei a ler esse livro por conta de um aluno novo que ao saber da minha opção religiosa me pediu que lesse esse importante texto do kendō (剣道), arte marcial praticada por ele, mas que também é considerado um texto clássico da literatura zen, fortemente influenciado pelo pensamento do monge Takuan Soho, que era amigo próximo de Munenori. Por conta disso, A Espada que dá vida nos apresenta uma série de ideias filosóficas aplicáveis em muitos aspectos da vida cotidiana. Princípios que pode ser utilizado no convívio social, bem como nos negócios. Isso se deve porque a ideia central desse texto não é unicamente ensinar técnicas de manuseio da espada, mas ensinar um estilo de espada que considera que não é a derrotar o oponente a maior vitória que você pode conquistar, mas torná-lo seu parceiro, evitando o conflito.

Escrito no século XVII, A Espada que dá Vida, foi concebido em plena era de domínio do Xogunato Tokugawa, o Período Edo. Nessa época, o Japão vivia um momento político marcado tanto pelo forte isolamento político-econômico do país, como pelo controle rígido exercido pelos xoguns[3], generais que comandava o exército imperial, mas que a partir do século XII, haviam se tornado governantes de facto de todo o país[4].

Durante o período Edo, o Japão foi governado pelos xoguns da família Tokugawa, da qual foram membros Ieyasu, Hidetada e Iemitsu, os três primeiros xoguns da linhagem que governaria as terras nipônicas de 1603 até 1868. Foi durante o governo dos primeiros três xoguns que Yagyu Munenori (1571 – 1646) viveu grande parte de sua vida, e foi ao lado deles que o espadachim fez seu nome na história das artes marciais japonesas.

Yagyu era filho caçula de um espadachim de renome e aristocrata de um vale em Yamato[5], Yagyu Sekishusai Muneyoshi, e herdou deste os segredos de seu estilo de espadas, o Shinkage-ryu. Em certa ocasião, o futuro xogum, Ieyasu, convidou Sekishusai para visitá-lo em sua vila de Takagamine, fora da capital. Ieyasu queria conhecer a famosa técnica de Sekishusai de derrotar um homem armado usando apenas as mãos livres – a técnica da Não Espada.

Sekishusai foi ao encontro de Ieyasu acompanhado de Munenori, na ocasião com 22 anos, e lá explicaram ao xogum os princípios do Shinkage-ryu e o demostraram numa luta entre Sekishusai e Ieyasu.

Impressionado, Ieyasu pediu que o velho mestre se tornasse seu instrutor pessoal. Recusando educadamente, Sekishusai declarou que tinha uma idade já avançada e recomendou seu filho para o posto oferecido. Foi desse modo, que Munenori tornou-se instrutor de três xoguns da casa de Tokugawa, passando a ter também, com o tempo, uma forte influência política dentro do xogunato como conselheiro de Iemitsu, neto de Ieyasu. 

Por volta de 1632, Munenori concluiu o Heihō kadensho (A Espada que dá Vida), livro no qual ensinaria a prática da espada Shinkage-ryu e como seus princípios poderia ser aplicado em um nível macro à vida e também à política[6].

Filosofia, zen-budismo e artes marciais

Monge zen-budista japonês da escola Soto em meditação.
Autor: Marubatsu. Wikimedia Commons.
A Espada que dá vida é um livro difícil de descrever – tanto quanto está sendo complicado resenhá-lo. Essa dificuldade nasce porque ele não é só um livro de artes marciais, é também um livro de estratégia. Contudo além de um livro de estratégia, ele é também uma obra que mergulha na tradição zen, e como tal é repleto de ideias sofisticadas oriunda de uma filosofia cuja compreensão e aplicação podem ser muitas vezes bastante complexo, ainda que tudo pareça ser muito simples. Se não bastasse, além do zen, o livro também tem fortes influências confucionistas[7].

Sou zen-budista, e como tal posso atestar que a simplicidade do zen e de sua prática meditativa, o zazen, são apenas a superfície de um lago profundo no qual repousam conceitos que em certos momentos parecem muito simples de compreender, mas, em outros, parece flertar com o paradoxal porque exige de você enxergar além do aparente (muito além). A Espada que dá Vida é assim também, e lê-lo é um convite a meditar cada ideia antes de prosseguir com a leitura, o que desacelera bastante o ritmo desta leitura.

O zen é uma tradição religiosa associada ao Budismo do ramo mahayana, que foca, sobretudo, na prática, no zazen, ou seja, em sentar-se em meditação (em zen), acalmar a mente, e, nas palavras de Rodrigo Daien, “existir, ser uno com todas as coisas, ouvir os sons sem julgá-los, não fazer cogitações ou viagens para passado ou futuro”[8]. Parece simples, entretanto não é.
Mas como em toda tradição religiosa, há uma filosofia complexa que da base ao Zen: os ensinamentos do Dharma, a lei verdadeira ensinada pelo Buda histórico, Shakyamuni, ou Sidarta Gautama.

Após atingir a iluminação, o próprio Shakyamuni Buda buscava ensinar as quatro nobres verdades sobre o sofrimento de maneiras muito diversas, indo das formas mais simplificadas, às mais complexas, para que independente do grau de conhecimento e instrução de cada um, todos pudessem entender a mensagem do Dharma. Logo, apesar de muito evidentes, muitos ensinamentos de Buda podem ser dificílimos de compreender à primeira vista. Um livro que bebe dessa tradição, inevitavelmente, fará emergir algumas coisas bem complexas.

Mesmo para mim, que tenho uma certa familiaridade com o Zen e com o budismo (dentro do nível mais básico que um recém-convertido pode ter), houve momentos que ler A Espada que dá Vida foi ficar perdido com conceitos abstratos de uma filosofia muito diferente da nossa, mas que fala de nós e do nosso mundo com imensa precisão. Por diversas vezes prossegui na leitura em meio a névoas até alcançar um novo ponto onde as coisas voltassem a ser compreensivas no todo, mas é inegável que as palavras de Munenori, em vários momentos, têm um peso imenso e uma profundidade arrepiante.

O livro original é dividindo em três partes, nas quais Munenori vai mesclando as técnicas do Shinkage-ryu com a filosofia zen e as ideias confucionistas. No entanto, a edição lida também contém um longo prefácio (intitulado aqui como introdução), no qual o editor da tradução inglesa, William Scott Wilson, faz um apanhado geral da trajetória de vida de Munenori e das origens do estilo de espada por ele herdada e aperfeiçoada.

O primeiro capítulo, “A Ponte do Sapato de Presente”, é o menor dos três e apresenta as técnicas fundamentais do estilo, bem como orienta seu treinamento. Além disso, esse capítulo aborda a importância da estratégia criada “ainda dentro dos limites do nosso território”, tendo o inimigo ainda longe, e também de entender nas artes márcias “os limites do território são a nossa mente”. Uma mente que deve ser livre de negligências e observadora dos movimentos e atividades do oponente, buscando falhas e planejando estratégias.

A parte seguinte, “A Espada que Traz Morte”, fala das estratégias e da postura a ser adotada pelo aprendiz do Shinkage-ryu, enfatiza o aspecto técnico mas dá um grande destaque ao aspecto mental, falando sobre o ch’i, a intensão, a ilusão como base das artes marciais, sobre a essência do atacar e do aguardar, assim como a relação entre a mente e os ritmos na luta.

Um ponto muito interessante deste capítulo é quando o livro trata do que Munenori chama de doença nas artes marciais.

Nas palavras de Munenori, pensar apenas em vitória ou em só usar as artes marcais, ou em demonstrar resultados nas mesmas é doença, e nos ensina a usar o pensamento para atingir o não pensar e usar a conexão para desconectar. Confusão, não? Mas trata-se de usar o pensamento para expulsar o mal, expulsar pensamentos usando pensamentos, e que leva ao não pensar. Me farei mais claro.

Imagine uma situação onde você se encontra dominado por pensamentos obsessivos relacionados a algo ou alguém. Uma frustração, uma insatisfação, uma dor. Sua mente está inquieta, dispersa, e você, doente. Mas através de outros pensamentos, de outra coisa que tome sua atenção e ocupe passageiramente sua mente você se libertará, tanto dos pensamentos obsessivos quanto daqueles que os substituíram, e alcançará o não pensar.

Nas artes marciais, quando você está obcecado pela vitória, a derrota pode ser a única realidade que você conhecerá, por isso, o não pensar te traz ao equilíbrio necessário para estar atento ao seu oponente e a sua própria espada e seu próprio corpo. A mente se equilibra, e ela é a senhora de seu corpo. Isso vale para a vida também.

Finalmente, em “A Espada que dá Vida”, é explorada a ideia da “não-espada” citada no começo da resenha e que foi demonstrada ao xogum. Além disso, o capítulo fala sobre como usar a distância na luta com espadas, posicionamentos a serem adotados, da importância de que a mente jamais fique parada numa ação já ocorrida. Além disso, outros conceitos filosóficos zen-budistas são discutidos como o conceito de apego, da existência e da não-existência, do falso vazio e do verdadeiro vazio, do potencial e da função e outras discussões sobre a mente e o corpo.

Enfim, A Espada que dá Vida é um livro que será muito interessante àqueles que praticam artes marciais, porque, mais do que ensinar técnicas de esgrima, a obra ensinará sobre a vida e como vivê-la de forma a evitar conflitos desnecessários. Para os budistas, será uma fonte de mais alguns ensinamentos. Já para os demais, ela também será uma fonte de conhecimento sobre a história de alguns importantes personagens da história do Japão. Ainda assim, pode ser uma leitura difícil e em vários momentos exaustiva. Eu mesmo tive muitas dificuldades de concentração e de prosseguir a leitura toda vez que me deparava com algum pensamento mais complexo. Foram 52 dias de leitura – ressaltando que meu trabalho também influiu no atraso da leitura.

Ademais, acrescento que a tradução é impecável e o texto original de Yagyu é conciso. A introdução achei excessivamente longa. Por fim, a edição tem uma capa muito elegante e foi produzida em papel em tom amarelado.

A edição lida é da Editora Cultrix, do ano de 2013 e possui 184 páginas.




[1]https://institutoguanyu.wordpress.com/2015/06/02/yagyu-munenori/
[2]https://en.wikipedia.org/wiki/A_Hereditary_Book_on_the_Art_of_War
[3]https://pt.wikipedia.org/wiki/Per%C3%ADodo_Edo
[4]https://pt.wikipedia.org/wiki/Xogum
[5]O texto não deixa claro se Yamato seria alguma das muitas cidades japonesas com esse nome ou se faz referência a antiga Província de Yamato, que atualmente corresponde à atual prefeitura de Nara em Honshū.
[6]https://en.wikipedia.org/wiki/Yagy%C5%AB_Munenori
[7]Referente às ideias de Confúcio (孔子551 a.C. – 479 a.C.), pensador e filósofo chinês do Período das Primaveras e Outonos. (Wikipédia)
[8]https://sobrebudismo.com.br/o-zen-e-enganadoramente-simples/

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A Catedral do Mar – Ildefonso Falcones – Resenha

Por Eric Silva

“Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.

(Ilha das Flores – Jorge Furtado)

Sétimo e último livro do nosso itinerário pela literaturaEspanhola, A Catedral do Mar, livro de estreia do barcelonês Ildefonso Falcones, é um romance intenso e uma verdadeira aula de História sobre a Idade Média. Com uma ampla diversidade de temas como a questão religiosa e a injustiça social no período, este é um livro intenso e épico que narra a vida conturbada de Arnau, desde os trágicos acontecimentos de sua concepção até os diversos desafios que a vida e a busca pela sobrevivência lhe impuseram. Um livro sobre fé, intrigas e injustiças, que fala da luta pela liberdade em um mundo marcado pela servidão e exploração dos camponeses que garantiam os privilégios de uma nobreza soberba e cruel.

Sinopse

A Barcelona do século XIV já era uma cidade próspera e orgulhosa para onde se dirigiam todos os anos muitos camponeses fugidos de seus senhores, atraídos pela promessa de liberdade oferecida pela grande cidade condal. Também ali, no bairro da Ribeira, os barceloneses mais humildes, à custa de seus esforços e da contribuição de mercadores e pessoas importantes da cidade, erigiam a imponente Catedral de Santa Maria del Mar, a conclamada igreja do povo. Uma grandiosa construção que seria paralela a intensa e conturbada história de um dos seus mais devotados filhos, Arnau Estanyol, que de estivador chegaria a se tornar barão.

Arnau era filho de um camponês que em busca de liberdade e fugido dos abusos de seu senhor feudal, se refugiara em Barcelona na esperança de tornar-se um cidadão livre. Ainda menino conhece a tirania dos nobres, a revolta, a pobreza e a fome, mas buscando sobreviver às injustiças de sua época torna-se estivador, palafreneiro, soldado e depois cambista. Vive uma vida fatigante, sempre à sombra de Santa Maria do Mar, mas marcada por aventuras que lhe conduziriam a um destino surpreendente e épico.

Resenha

A catedral de Santa Maria del Mar em ilustração de 1851
Quando encontrei este livro, já havia me decidido que encerraria a campanha do #AnoDaEspanha com o livro Marcelino Pão e Vinho, obra do espanhol José María Sánchez Silva. Mas A Catedral do Mar apareceu para mim antes que divulgasse minha decisão. Um romance histórico passado na Barcelona Medieval, a cidade espanhola que por mim é a mais querida, me deixou tentado a inserir mais um livro no itinerário. Depois de A Sombra do Vento, primeiro livro da campanha, este seria o meu retorno literário à Barcelona. Eu tinha vinte dias para ler suas 589 páginas e me dediquei a fazê-lo com afã, por sorte, a qualidade da narrativa fez tudo sozinha e terminei antes do prazo. Hoje lhes apresento aquela que foi uma das melhoras leituras que fiz no ano de 2016.

Bernat Estanyol era um simples camponês, mas que crescera ouvindo de seu pai as histórias de seus corajosos antepassados, que um dia foram livres das obrigações feudais e donos da terra. Porém seu pai, como todos os outros camponeses, nascera preso à terra dos nobres e sujeito a sua violência e exploração, e deixara a Bernat a mesma condição servil e o direito de uso da terra de onde tirava o sustento e o pagamento dos pesados impostos.

Na festa de seu casamento com a jovem Francesca, Bernat é surpreendido pela chegada do senhor das terras onde viviam, Llorenç de Bellera, que tomando parte na festa de seu servo, exige-lhe o direito de deitar-se com a noiva em sua primeira noite. Fruto da violência sofrida por Francesca nasceria Arnau por quem a moça não demonstrava nenhum afeto. Porém as perseguições de Llorenç se intensificam, e para salvar a vida de Arnau, Bernat foge do feudo levando consigo a criança. Acossado pelos homens de Bellera, Bernat vê como único refúgio possível a cidade de Barcelona que na época prometia cidadania e liberdade a todos que nela vivesse por um ano e um dia. Ali também poderia recorrer a única irmã, Guiamona, que vivia com o esposo em Barcelona e poderia abrigá-lo durante o tempo necessário para conseguir a cidadania barcelonesa.

É aí que se inicia a história épica de Arnau, o verdadeiro protagonista da trama, que cresce junto com a cidade, sendo testemunha e vítima das injustiças e atrocidades de uma época conduzida pela lei da tradição, da exploração e dos jogos de interesses, e governada pelo fanatismo, pelo ódio e pela nobreza indiferente a miséria por ela imposta ao restante da população.

Quem ler A Catedral do Mar logo percebe que esse livro é o retrato de uma época, mas que não se limita a falar apenas dela e conduz o seu leitor à reflexão acerca das nuanças da natureza humana por vezes soberba, injusta e mesquinha, mas igualmente capaz de nobreza e hombridade.

Inveja, intriga, soberba, ambição, preconceito e fanatismo, tudo está presente neste romance que transcursa cinco centenas de páginas sem jamais se tornar cansativo ou monótono. Mas o seu tema principal é, sem dúvida, a luta pela liberdade e contra as injustiças que os homens cometem uns contra os outros em nome de valores distorcidos pela conveniência dos interesses.
Em diversas passagens este livro me fez refletir, que não é o destino ou um plano divino que inflige ao homem o sofrimento, mas que é o homem o lobo do homem (homo homini lupus), como afirma a máxima do filósofo inglês Thomas Hobbes. Não são a Inquisição e os direitos feudais consequências da vontade divina ou por ela legitimadas, mas obra unicamente da vontade dos homens, que outorga para si o direito de infligir sofrimento ao outro em prol de seus próprios interesses.

O título do livro se deve a catedral gótica de Santa Maria del Mar, construída em Barcelona entre os anos de 1329 e 1383 a partir do projeto dos arquitetos Berenguer de Montagut e Ramón Despuig. A igreja do povo, como é chamada, levou meio século para ser concluída e foi construída, graças, sobretudo, ao trabalho devotado do povo mais humilde da cidade, sobretudo dos bastaixos, os descarregadores do porto de Barcelona que carregavam nas costas as pesadas pedras que serviram para a construção do templo. Em homenagem aos esforços e devoção destes trabalhadores diferentes insígnias dos bastaixos carregando as pedras da construção foram gravados na porta da catedral e existem até hoje.
Visão interna da Catedral. Wikimedia Commons.


No romance a construção da Catedral e a santa homenageada são importantes vetores na determinação da história dos personagens principais, como se fosse o tempo também um dos personagens da narrativa. Mas a construção de del Mar não é o único tema tratado pela história. Ao longo de suas páginas a obra de Ildelfonso vai perfilando um esboço da Idade Média, das relações servis e do poder da nobreza e da Igreja. Como poucos livros, A Catedral do Mar não segue a trilha das novelas cavaleirescas, que exaltam os feitos da nobreza forjando para época uma imagem que só cabe aos contos de fadas. Ao contrário, o livro de Idelfonso é uma sinopse das leis severas e das pesadas obrigações impostas aos camponeses, bem como aos cidadãos das poucas cidades livres da época, a exemplo de Barcelona, a principal cidade catalã do período. O livro é um esboço da perseguição religiosa aos judeus, da intolerância religiosa dos católicos e da intransigência dos Tribunais do Santo Ofício.

Acho que por ser advogado, o autor tenha dado um foco privilegiado às regras sociais, às leis injustas que privilegiavam a minoria bem-nascida e também as regras comerciárias da época. Porém não o fez como um livro didático que enumera lei e normas, mas as utilizou como pano de fundo para determinar o destino de seus personagens, influenciando suas decisões e os rumos de suas vidas. O episódio do estupro de Francesca é o principal exemplo disso, uma vez que fora legitimado pelo jus primae noctis ou o direito da primeira noite, uma antiga lei medieval que determinava que o senhor feudal tinha direito de desvirginar as noivas dos camponeses em sua primeira noite. Foi este episódio o grande desencadeado de toda a trama: o nascimento de Arnau, as dúvidas sobre sua paternidade, a fuga de Bernat meses depois e o destino humilhante de Francesca.

O trabalho de pesquisa histórica de Idelfonso é também um ponto imprescindível a se destacar. No final da edição, algumas páginas foram dedicadas pelo autor a explicação das suas inspirações para o livro e é ali que descobrimos que A Catedral do Mar é uma grande narrativa que mistura fatos históricos verídicos, pessoas e lugares reais com a capacidade imaginativa de seu autor.

Para compor suas personagens e as tramas por elas vividas, Idelfonso se dedicou por anos a uma apurada pesquisa histórica em documentos do acervo do Ateneu Barcelonês, um importante centro cultural de Barcelona que já foi tema de uma de nossas postagens [link]. O resultado foi uma narrativa de dimensões épicas que a cada capítulo reserva ao leitor uma nova surpresa, alguma nova complicação e outros panoramas da época e da vida de seus contemporâneos.

Mas mais do que um panorama da idade média ou da vida na Barcelona medieval, A Catedral do Mar abriga um séquito de personagens surpreendentes e pulsantes. Pessoas simples do povo, da elite soberba, do alto e do baixo clero, meretrizes, escravos e judeus. Mas de todos os que figuram o elenco da narrativa, o personagem mais cativante é o próprio Arnau.

Ainda criança Arnau já demonstrava sua simplicidade, a retidão de seu caráter e um coração sincero e determinado. É comovente a coragem e a determinação do garoto quando ainda adolescente passa a trabalhar como bastaix do porto, carregando nas costas os pesados fardos que eram descarregados das embarcações ou para elas encaminhados, além das enormes pedras que serviriam à construção da Catedral e que eram carregadas por todos os bastaixos. É como bastaix que Arnau vive alguns de seus anos mais duros, porém felizes.
Gravura de bastaix gravado nas portas da Catedral de Santa Maria do Mar, Barcelona. Foto: Tom B.

O trabalho de um bastaix era difícil e fatigante, mas eram todos eles trabalhadores unidos que aceitavam de bom grado as dores de seu trabalho e orgulhavam-se da catedral que ajudavam a construir. Arnau, que tinha pelos bastaix uma grande admiração e amava a Virgem del Mar como sua própria mãe, foi recebido pelos bastaixos como um irmão, e ao lado deles conseguia sustento para si e para o irmão adotivo, Joan, quando o pai lhes falta. Mas a vida lhe reservaria muitas reviravoltas e novos desafios que o levariam a uma posição muito diferente da qual poderia um dia imaginar. Mas ao contrário de muitos, nem a dureza da vida, nem as injustiças que sofrera e nem aquelas que ainda sofreria, não tornaram Arnau um homem amargo ou frio. Ao contrário, sua personalidade não se dilui, nem sua inclinação à humildade e a justiça. Um personagem admirável sem deixar de ser, no entanto, um humano que erra, que tem suas fraquezas e seus momentos de covardia e hesitação.

Ainda mais surpreendente é como, ao longo de sua vida, Arnau vai se envolvendo nas situações mais complicadas, sobrevivendo à morte do pai, à guerra e à peste até encontrar seu desfecho. Por isso ele me fez lembrar de outro personagem muito famoso da literatura clássica universal: Jean Valjean, o protagonista de Os Miseráveis, livro do francês Victor Hugo. Como Arnau, Jean passa por diversos desafios em sua vida enfrentando a ambição e a injustiça daqueles que se interpõem em seu caminho. Os Miseráveis é também um livro centrado na história de vida de seu personagem principal e ao mesmo tempo é o retrato de uma época. Um livro também fantástico e épico.

Após 10 anos da publicação de A Catedral do Mar na Espanha, em agosto deste ano Idelfonso lançou, pela editora espanhola Grijalbo, o livro Los herederos de la tierra, que dá prosseguimento aos acontecimentos narrados na Barcelona Medieval de Arnau Estanyol. O livro ainda não tem previsão de publicação no Brasil.

Em conclusão, para os que não gostam de história talvez as descrições históricas da narrativa pareçam cansativas, mas para mim que amo história, que sou fascinado pela Idade Média e que tenho um amor platônico por Barcelona, este livro terá para sempre um lugar de honra na estante, junto com A Sombra do Vento e Os Miseráveis.


A edição lida é da Editora Rocco, do ano de 2007 e possui 589 páginas.



quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Marcelino Pão e Vinho – José María Sánchez-Silva – Resenha

Por Eric Silva
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“O menino foi dando a volta até colocar-se debaixo do seu olhar. Jesus estava muito fraco e a barba caía-lhe aos borbotões sobre o peito; tinha as faces encovadas e seu olhar despertava muita pena em Marcelino. Marcelino vira muitas vezes Jesus, mas sempre pintado no quadro do altar da capela ou em crucifixos pequenos, como se fossem de brinquedo, nos rosários dos frades. Mas nunca havia visto um “de verdade” como agora, com todo o corpo nu e que se podia contornar com os braços, havendo espaço por trás. Então, tocando-lhe as pernas magras e duras, ergueu os olhos para o Senhor e disse-lhe, sem rodeios:— Você tem cara de fome!


Sexto livro da Campanha 2016 #AnoDaEspanha, Marcelino Pão e Vinho é um pequeno e delicado livro religioso publicado na Espanha em 1953 e de autoria do escritor José María Sánchez-Silva. Nesta que foi sua obra mais conhecida, Sánchez-Silva conta a história de Marcelino, um menino inteligente, carinhoso e bastante travesso que tendo sido abandonado na porta de um convento franciscano foi criado e educado por doze frades que ali viviam. Numa narrativa singela mas carregada de significados, Sánchez-Silva traz uma história comovente e que cumpre também um claro papel de ensinar às crianças um pouco da crença e dos valores católicos.

Sinopse

Em um pequeno vilarejo do interior da Espanha fazia alguns anos que frades franciscanos haviam erguido, para que lhes servisse de abrigo, um pequeno e humilde convento. O pequeno prédio havia sido construído por eles mesmos a partir das ruínas de uma granja cedidas aos mesmos pela prefeitura para que ali os religiosos residissem da forma que melhor lhes provessem.

Na humildade de seu lar, os franciscanos viviam e realizavam suas obrigações religiosas, sobrevivendo das esmolas que recebiam, pois como lhes impunham os preceitos da Ordem, não podiam conservar bens próprios, devendo viver da caridade cristã. Mas eis que na manhã em que nascia um novo século, os frades despertaram com uma surpresa em sua porta que mudariam suas vidas e também de todo o vilarejo: uma criança que ali fora abandonada enrolada em uma trouxa, o pequeno Marcelino.

Após batizarem a criança e tendo sido em vão os esforços de encontrar responsáveis para ela, os religiosos decidem conservar o menino entre eles e criarem-no da melhor forma possível que a já humilde vida franciscana permitisse. É em meio aos frades que Marcelino crescerá levado e algumas vezes maldoso com os animais, mas com um destino que já mais ninguém poderia supor.

Resenha

Lembro que quando eu era criança havia visto algumas vezes na televisão um desenho sobre um menino travesso que vivia entre frades franciscanos e que aprontava grandes confusões no pequeno convento onde moravam, brincando com os animais e pregando peças nos religiosos. Naquela época Marcelino Pão e Vinho não me chamou muita atenção e, mesmo sendo um catequizando, um desenho religioso me causavam mais tédio do que interesse. Coisas da infância, porque quando já era um pouco maior acordava cedo aos domingos para assistir os desenhos bíblicos que passavam na televisão.

Contudo, jamais tinha suposto que voltaria a falar de Marcelino Pão e Vinho, obra do escritor espanhol José María Sánchez-Silva. Só esse ano, com a campanha do #AnoDaEspanha, descobri que aquele desenho, que na infância não havia me cativado, não era só mais uma obra voltada para o público infantil, mas a adaptação de uma obra espanhola de sucesso que nascera como livro e que depois fora adaptada para a TV e o cinema.

Marcelino Pão e Vinho é uma narrativa simples e delicada onde claramente se vê a intensão de Sánchez-Silva em transmitir às crianças as crenças e os dogmas da fé católica, ensinar-lhes sobre a vida e sobre a religião. 

A Plaza Major, na cidade de La Alberca, foi um dos cenário
da adpatação filmica do livro Marcelino Pão e Vinho. Criative Commons.
Marcelino é um menino arteiro, que passa seus dias a fazer diversas travessuras com os frades, brincando com seu amigo imaginário, Manuel, e fazendo maldades com os pequenos animais que encontra no terreiro do convento. Mas em todas as suas ações não existe uma maldade deliberada, mas apenas as traquinagens de uma criança solitária, que vivendo dentro de uma casa de adultos onde todos tinham tantos deveres a cumprir, buscava distrair-se do modo que podia. Tinha certeza que era amado e os frades procuravam lhe ser atenciosos, mas ainda faltava ao menino a referência de uma mãe, e a companhia de outras crianças.

[SPOILERS em itálico] Porém, tudo muda para Marcelino quando ele encontra no sótão do convento a imagem de um Cristo crucificado. Marcelino que nunca tinha visto uma representação tão grande de Cristo começa a falar com a imagem que lhe responde suas perguntas e desce da cruz para conversar e lhe contar histórias. Bastante comovido com as condições de penúria em que encontrara Jesus, o menino decide, todos os dias, leva-lhe, em segredo, algum alimento, principalmente o pão e o vinho que Jesus comia com agradecimento.

[SPOILERS] Com o tempo Marcelino vai mantendo escondido dos frades seu novo amigo, até que estes mesmos desconfiam da comida que some e das escapadelas do menino, até o dia em que Jesus resolve atender um pedido de Marcelino e reuni-lo com a mãe no céu. Os frades que, por detrás das frestas da porta do sótão, observavam a conversa entre o menino e a imagem deram tudo aquilo por milagre quando a imagem tomou em seu colo o menino e o conduziu ao sono eterno.

[SPOILERS] O restante do enredo centra-se na viagem de Marcelino pelo céu ao lado de seu Anjo da Guarda em busca de se reencontrar com sua mãe. A medida que caminham pelas várias paisagens do paraíso e conversam, em flashbacks, o autor vai contando algumas das traquinagens do menino quando ainda estava vivo. Também vai sendo narrado o que acontecia aos frades na Terra após a morte de Marcelino e de como as circunstancias como esta aconteceu ter sido tomada pelas pessoas como um sinal de um milagre divino. Nessas passagens vamos ficando sabendo de que forma Marcelino havia sido abandonado e o que acontecera aos seus pais, bem como o destino do convento onde por tantos anos o menino havia vivido.

Vista frontal da Capela de El Cristo Caloco que serviu de
cenário para a versão filmica do livro. Critive Commons.
Trata-se de uma narrativa curta e bastante singela, apesar de muito bem narrada, mas que emociona seus leitores pela delicadeza de sua história e pelo destino comovente dado a criança. Esta delicadeza se expressa no ato dos frades em abrigarem a criança, no carinho que tinham pelo menino, na forma como lhe ensinavam sobre o mundo e sobre a fé e até mesmo nas travessuras de Marcelino e na forma como este buscava fugir do castigo. [SPOILERS em itálico] Mesmo a forma como Marcelino deixa o mundo e a maneira como o menino nomeia cada frade com alusão aos papéis que cada um possuíam no convento (Frei Papinha, Frei Dodói, Frei Porta, Frei Blém-Blém), mesmo aí podemos sentir a delicadeza da história de Marcelino Pão e Vinho. Um livro que não fala só de religião – ainda que esse seja o foco majoritário – mas também, de amor, de abandono, da infância, da morte, do respeito aos animais e das pequenas maldades e traquinagens infantis que não enxergam maiores consequências em seus atos. São estes elementos que deixam claro o caráter educativo-religioso do livro.

[SPOILERS] Uma coisa que acho válida ressaltar é que mesmo com a morte de Marcelino, de forma tão inesperada e até abrupta, em minha leitura não tive aquela sensação de perda que o leitor sente quando no enredo um personagem morre. Não sofri. Acho que a caminhada de Marcelino ao lado do anjo, afasta da narrativa a imagem da morte como sendo o fim de tudo. Ao contrário ela evoca a ideia de continuidade, da morte como apenas uma passagem para uma outra vida melhor e mais plena. Acho que esta era a ideia inicial de Sánchez-Silva: falar da morte como algo que não se deve lamentar, mas como uma passagem.

O livro foi publicado por Sánchez-Silva no ano de 1953 e um ano depois a trama foi adaptada para o cinema pelo diretor húngaro Ladislao Vajda, sendo um dos maiores êxitos do cinema espanhol[1]. No papel do travesso Marcelino atuou, aos 8 anos de idade, o ator espanhol Pablito Calvo. Como em seu livro Sánchez-Silva não revela o nome do vilarejo que serve de cenário a trama, no filme Vajda usa como cenários a pequena cidade espanhola de La Alberca, localizada na província de Salamanca, e a capela do Cristo Caloco em El Espinar, província de Segóvia, onde é criada toda a atmosfera do pequeno convento franciscano[2].

Por fim, gostaria de deixar uma nota pessoal como comentário final. Coincidência ou não, durante a semana em que estive lendo este livro, meu vizinho, que é muito religioso, passou as manhãs ouvindo canções de canto gregoriano, muito comuns entre os monges franciscanos. Engraçado que eu nunca tinha ouvido ele escutar este tipo de música, o que me deixou bastante curioso. Nem imagina ele que, enquanto ouvia suas canções, eu lia a história de Marcelino e dos frades que em um gesto de amor e compaixão se dedicaram a sua criação.

A edição lida é da Editora Record, do ano de 2005 e possui 176 páginas. Abaixo deixo um trecho do filme de Ladislao Vajda que entrou em cartaz, na Espanha, no ano de 1954.

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