quinta-feira, 21 de julho de 2016

Antologia Poética – Federico García Lorca – Resenha

Por Eric Silva

Em uma edição caprichada e bilíngue, Antologia Poética reúne alguns dos mais famosos poemas de Federico García Lorca, destilando toda a sua estilística e evocando a mais profunda taciturnidade da poesia do poeta e dramaturgo espanhol. 

Quem é nosso leitor há algum tempo sabe que este ano estamos homenageando a literatura espanhola, através da campanha do #AnoDaEspanha. O primeiro livro do nosso itinerário e grande inspirador da campanha foi a Sombra do Vento, do barcelonês Ruiz Carlos Zafón, mas ainda nos faltava decidir os próximos livros.

Por causa disso, selecionei alguns nomes de autores espanhóis e fui a biblioteca da Filarmônica 30 de Junho a procura de seus livros. Após expor a Sirleide, a bibliotecária, as minha intensões, ela me apresentou alguns livros, mas em sua maioria escritos literalmente em espanhol. Como não domino o idioma não havia como fazer a leitura de nenhum deles. Mas Sirleide recordou-se de que no acervo havia outro livro que poderia me servir e me apresentou Antologia Poética, uma coletânea organizada pela editora WMF Martins Fontes e com tradução de William Angel de Mello.

Confesso que não sou averso a poesia, mas também não sou fã. Mas Garcia Lorca era para mim um nome familiar, ecoante em minha memória, mas que, sinceramente, não me recordo onde ouvi falar dele pela primeira vez. Mas devido a isso e as escassas obras disponíveis me senti impelido a conhecê-lo mais de perto e aceitei a sugestão. Aventurar-me-ia pela poesia e assim daria a continuidade as leituras das obras espanholas.

Foi assim que de Barcelona (onde se passa a trama de A Sombra do Vento) iria conhecer a Andaluzia. Através da poesia regionalista do poeta espanhol iria conhecer novas paragens deste país fantástico que é a Espanha. E agora está aqui o produto deste passeio pela poesia de García Lorca. Mas vamos a resenha...

Resenha

Quando lemos a obra poética de García Lorca percebemos de imediato uma ligação muito forte de sua poesia com a Espanha, mais precisamente com a região de Andaluzia, uma comunidade autônoma espanhola que se situa ao sul do país e as margens do Atlântico e do Mar Mediterrâneo. Foi nesta região, no município Fuentes Vaqueros, província de Granada, onde nasceu o poeta e na sua obra muitos elementos daquele lugar se destacam.

Nessa poesia com referências tão regionais, Lorca faz menções a lugares da Andaluzia em alguns de seus poemas. É o caso de Andaluzas onde cita cidades como Sevilha, Granada e Córdoba, e faz referimentos a espaços e elementos naturais do lugar, a exemplo do “costado de Serra Morena” e do rio de Sevilha. Ao longo do livro outras cidades e regiões também são destacadas como Guadalquivir e Benameji, citados no poema Morte de Antoninho, o Cambório (Muerte de Antoñito el Camborio).

Também elementos culturais e humanos andaluzes são perceptíveis, como as constantes referências aos gitanos, principalmente, no poema Romance da Guarda Civil espanhola (Romance de la Guardia Civil española).

Gitanos é a forma como são chamados os ciganos espanhóis, cuja população se concentram especialmente na região da Andaluzia[1]. No poema citado, Lorca faz uma denúncia às comuns perseguições sofridas por estes povos, não só em seu país e em sua época, como em toda a Europa e ainda nos dias atuais. O poema é, assim, um ode ao que o autor chama de “cidade dos gitanos”, ao mesmo tempo em que narra sua invasão e destruição feitas pelo ataque da Guarda Civil espanhola:

(...)

A cidade, livre do medo,
multiplicava as suas portas.
Quarenta guardas-civis
entram nelas para o saque.
Os relógios pararam,
e o conhaque das garrafas
se disfarçou de novembro
para não infundir suspeitas.
Um vôo de gritos longos
se levantou nos cata-ventos.
Os sabres cortam as brisas
que os cascos atropelam.
Pelas ruas de penumbra
fogem as gitanas velhas
com os cavalos dormidos
e os vasos de moedas.
Pelas ruas empinadas
sobem as capas sinistras,
deixando para trás fugazes
remoinhos de tesouras.

(...)

Em outros poemas Lorca faz novas menções aos ciganos porém nenhum de forma tão destacada ou incisiva.
Outra referência que percebi, bem tênue na verdade, é a menção aos mouros, presente no poema Romance de Dom Boyso.
O tribunal de califa Abd ar-Rahman III. Califado de Córdoba
Os mouros, também conhecidos como mauritanos, mauros ou sarracenos[2] são, na verdade, muçulmanos oriundos do norte do continente africano e que no século VIII conquistaram grande parte da Península Ibérica[3] empurrando os cristãos católicos para o norte da península. Ali estabeleceram o próspero Califado de Córdova (ou Córdoba) e, durante o tempo em que mantiveram o seu poder sobre a região, introduziram nela diversos elementos da cultura islâmica que influenciaram fortemente a cultura ibérica, sobretudo, andaluza. Principalmente na arquitetura, até hoje, encontramos elementos deixados por estes povos.
No poema citado, o eu lírico criado por Lorca se dirige a uma moça questionando se ela é moura ou judia, e esta, por sua vez, refuta, dizendo que é cristã. Aí percebi uma forte influência das crenças religiosas do autor. Desde a época das Guerras de Reconquistas, quando os mouros foram expulsos da península Ibérica pelos reis católicos, estes povos – judeus e mouros – eram vistos com maus olhos pelos cristãos, apesar de todos eles professarem o monoteísmo e terem matrizes religiosas de uma mesma origem.
Não sei se Lorca nutria alguma antipatia pelos povos citados, ou apenas reproduzia no seu poema algo do senso comum da época e que sobrevivia através dos séculos. Contudo fica claro que para o eu lírico e para a moça interpelada, ser mouro ou judeu era algo negativo, assim como a identidade cristã é apontada como algo positivo:

Caminha Dom Boyso
manhãzinha fria
em terra de mouros
a buscar amiga.
Achou-a lavando
na fonte fria.
 – Que fazes aí, moura,
filha de judia?
Deixa meu cavalo
beber água fria.
 – Rebente o cavalo
e quem o trazia,
que eu não sou moura
nem filha de judia.
Sou uma cristã
que aqui estou cativa.

 – Se fosses cristã
eu te levaria
e em panos de seda
te envolveria,
porém se és moura
eu te deixaria.

(...)
Não obstante, as referências da poesia de García Lorca são mais amplas e temas como a vida no campo, a proximidade com a natureza e a fé católica do poeta se mesclam a temas mais sombrios como a morte, a solidão e a melancolia.
Sua poesia cria uma atmosfera misteriosa, melancólica, surreal, algumas vezes nebulosa, o que dificulta-nos visualizar a cena no carrossel de elementos evocados pelo autor. E entre outras coisas, digo, que foi este o principal motivo da poética de Lorca não ter chegado ao meu coração. O livro não me cativou, a sua poesia não me conquistou, porque em muitos momentos ela não fazia sentido para mim. As imagens invocadas as vezes me pareciam destoante com a proposta inicial do poema e se embaralhavam sem combinar entre si. Corria as linhas e me sentia perdido no turbilhão, incapaz de compor em minha mente o cenário que ele desejava expor.
O poeta
Fico pensando se Lorca não foi excessivamente influenciado pelo surrealismo de seu amigo Salvador Dalí, mas a verdade é que foram poucos os poemas em que me encontrei e me senti engolido pelo afã de sua alma, envolvido pela atmosfera por ele criada.
Dos poucos que realmente gostei, os dois mais bonitos foram Os encontros de um caracol aventureiro (Los encuentros de un caracol aventureiro) e Manancial (Manantial). O primeiro, particularmente, me chamou a atenção pela singeleza de seu tema.
No poema, Lorca descreve as peripécias de um pequeno caracol que, desejoso por conhecer o final da senda[4] onde se encontrava, decidiu-se por aventurar-se por ela. Caminhando por entre o “bosque de heras e de urtigas” o pequeno animal vai encontrando outros personagens ao longo do caminho e tem com eles alguns diálogos bastante provocantes.
O primeiro encontro do caracol é com duas rãs velhas e mendicantes – uma delas cega – que questionam-no de onde vinha e se acreditava na vida eterna. O caracol, que em nada acreditava, lhe afirma que não sabia o que era. Prontamente uma das rãs lhe afirma sua concepção do paraíso: "É viver sempre dentro da água mais serena, perto de uma terra florida que rico manjar sustenta". Após ouvi-la, o caracol se recorda de seu passado e afirma que, quando viva, sua avô dizia-lhe que quando morresse “iria para junto das folhas mais tenras das árvores mais altas”. Contudo, neste momento, as rãs se enfurecem e chamando a avó do caracol de herege, tentam impor a sua visão como verdadeira e depois partem sem mais nada lhe dizer. Entretanto, a surpresa do poema está, quando mais afrente, a mesma rã que tão veementemente defendeu a sua crença como a única verdadeira confessa a amiga que ela mesma não acreditava mais na vida eterna.
Acho esse trecho muito provocativo, porque Lorca traz à tona a discussão da imposição da fé, a crença maniqueísta[5] de que se sua filosofia é correta todas as outras são erradas e, por isso, se busca impor aos demais a tua crença, porque acreditas que se a tua é boa, todas as outras são más, mentirosas e enganosas. Mas o curioso é que muitas vezes a tua crença é também frágil e, no fundo, as incertezas da vida a abalam, e o que sobra é apenas um discurso vazio.
Outra coisa quem me chama atenção é que os paraísos imaginados são ali muito particulares e ainda ligados ao que cada animal, segundo sua espécie, imaginaria como maravilhosos. Um provável lago para as rãs e as ramagens e folhas macias para a avó do caracol. E isso me lembrou como as pessoas idealizam um bom futuro, ou seu paraíso, segundo os seus próprios gostos e natureza, o que torna impensável tentar impor ao outro um sonho que é unicamente seu.
Mas esse poema, um dos mais ricos e significativos que encontrei no livro de Lorca reserva outra reflexão muito instigante. Ainda na senda, o caracol encontra em seu caminho um grupo de formigas que arrastavam e agrediam uma de suas companheiras. Vendo aquilo o caracol as interrogam e se oferece como juiz para decidir a questão. Ao interpelar à formiga agredida o porquê de suas companheiras estarem a maltratá-la esta lhe responde triste e quase morta: “Eu vi as estrelas.” O diálogo que se dá ali em diante revela que as formigas que agrediam a companheira desconheciam o que eram as estrelas, e por isso acusavam-na de preguiçosa:

(...)

A formiga, meio morta,
diz muito tristemente:
“Eu vi as estrelas.”
“Que são as estrelas?”, dizem
as formiguinhas inquietas.
E o caracol pergunta,
pensativo: “Estrelas?”
“Sim” - repete a formiga-,
"vi as estrelas,
subi na árvore mais alta
que existe na alameda
e vi milhares de olhos
dentro de minhas trevas."
O caracol pergunta:
“Mas o que são as estrelas?”
"São luzes que levamos
sobre nossa cabeça."
"Nós não as vemos'',
as formigas comentam.
E o caracol: "Minha vista
só alcança as ervas."

As formigas exclamam,
movendo as suas antenas:
"Matar-te-emos; és
preguiçosa e perversa.
O trabalho é a tua lei."

“Eu vi as estrelas”,
diz a formiga ferida.
E o caracol sentencia:
"Deixai-a ir,
continuai as vossas tarefas.
É possível que, muito em breve,
já rendida, morra."

Pelo ar dulcífico,
cruzou uma abelha.
A formiga, agonizando,
cheira a tarde imensa,
e diz: "É a que vem
levar-me a uma estrela."

As demais formiguinhas
fogem ao vê-la morta.

(...)
Esta passagem do poema, foi para mim bastante reflexiva. É perceptível que a agressão não parte da razão da formiga ver estrelas, mas das outras serem incapazes de fazê-lo! A agressão parte contra aquilo que é diferente! Sentindo-se incomodadas por não compreenderem a companheira, de não serem elas também capazes de ver e entender o que são as estrelas – porque estão concentradas de mais apenas em seu trabalho – a consideram-na como estranha, como alguém que se exime da tarefa a ser desempenhada pelo conjunto e quem sabe também como subversiva. A consequência disso tudo é a violência. A violência surge, assim, quando alguém é incapaz de compreender e aceitar o outro em suas individualidades. A intolerância e a não-aceitação conduz a barbárie.
O segundo poema que me chamou a atenção, Manancial, o fez pela beleza estética e imaginativa criada pelo poeta, e, também, por ter sido bastante nítido para mim além de muito profundo.
Esse poema apresenta como temática o campo e nele García Lorca descreve toda a paisagem ao redor do manancial que dá nome. Ao longo dos versos o poeta vai criando uma atmosfera ao mesmo tempo agradável – assim como em um dia quente na campina – misterioso e mítico.
 Nessa atmosfera o poeta se queixa de não poder compreender a canção do manancial e conversa com Deus arrependido de seus pecados e expondo suas dúvidas acerca dos segredos das águas e da noite. E é nesse momento que o poema chaga em sua parte mais bela, quando algo mágico acontece e o eu lírico se converte em árvore ao fundir-se com um choupo:

(...)

Mas eu sinto na água
algo que me estremece ..., como um vento
que agita as ramagens de minha alma.

Sê árvore!
(Disse uma voz à distância.)

E houve uma torrente de luzeiros
sobre o céu sem mancha.
Eu me incrustei no choupo centenário
com tristeza e com ânsia.
Qual Dafne varonil que foge medrosa
de um Apolo de sombra e de nostalgia.
Meu espírito fundiu-se com as folhas
e foi meu sangue seiva.
Em untuosa resina converteu-se
a fonte de minhas lágrimas.
O coração foi-se com as raízes,
e minha paixão humana,
fazendo feridas na rude carne,
fugaz me abandonava.

Ante o largo crepúsculo de inverno
eu torcia os ramos
gozando dos ritmos ignorados
entre a brisa gelada.

Senti sobre meus braços doces ninhos,
acariciar de asas,
e senti mil abelhas campesinas
que em meus dedos zumbiam.
Tinha uma colméia de ouro vivo
nas velhas entranhas!
A paisagem e a terra se perderam,
só o céu restava,
e escutei o débil ruído dos astros
e o respirar das montanhas.

(...)

A forma como essa passagem foi escrita me chamou bastante atenção pela sua beleza e magia. Mas, enfim, como já afirmei, excluso estes dois poemas, Lorca não conseguiu alcançar meu coração e me envolver de fato com a sua poesia. Considero os seus poemas com a temática campestre melhores do que os demais que possuem uma lobreguidão e melancolia maior, ou que a profusão de elementos tornam a poesia confusa e sobrecarregada de elementos destoantes entre si.

Contudo, a edição da WMF Martins Fontes é bastante interessante. Bilíngue, ela nos permite ler os poemas ao mesmo tempo em português e em sua língua materna, comparando original e tradução. Para quem domina ambos idiomas uma experiência incrível e para que não o domina – como eu – um aprendizado. Acho que deveriam haver mais livros bilíngues como este, principalmente de poesia, em que o vocabulário é bastante rico. Seria uma forma agradável de aprender um novo idioma.

A edição lida é de 2001, da editora WMF Martins Fontes e possui 301 páginas.

Para que vocês conheçam um pouquinho da Andaluzia recolhemos na internet este vídeo que faz um pequeno tour pela região. Infelizmente não encontramos uma resolução melhor, mas este foi o melhor vídeo encontrado.



Obrigado pela atenção.
Eric Silva dos Santos


[1] A Espanha comporta uma população cigana de entre 500 mil e 800 mil pessoas, cuja maioria se concentra na região da Andaluza, onde a integração cultural entre ciganos e espanhóis se dá de forma mais intensa (BUKALSKA, Patrycja. O país dos ciganos felizes. Disponível em: http://www.voxeurop.eu/pt/content/article/332281-o-pais-dos-ciganos-felizes).
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Mouros
[3] Península onde hoje se situam Portugal e Espanha
[4]Caminho estreito usado pelos pedestres ou pelo gado de tamanho pequeno (HOUAISS, 2001).
[5]O maniqueísmo é entendido como “qualquer visão do mundo que o divide em poderes opostos e incompatíveis” (HOUAISS, 2001).

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