Por Eric Silva
Em uma edição caprichada e bilíngue, Antologia
Poética reúne alguns dos mais famosos poemas de Federico García Lorca,
destilando toda a sua estilística e evocando a mais profunda taciturnidade da
poesia do poeta e dramaturgo espanhol.
Quem é nosso leitor há algum tempo sabe que este ano estamos homenageando
a literatura espanhola, através da campanha do #AnoDaEspanha. O primeiro livro
do nosso itinerário e grande inspirador da campanha foi a Sombra do Vento, do barcelonês
Ruiz Carlos Zafón, mas ainda nos faltava decidir os próximos livros.
Por causa disso, selecionei alguns nomes de autores espanhóis e fui
a biblioteca da Filarmônica 30 de Junho a procura de seus livros. Após expor a Sirleide,
a bibliotecária, as minha intensões, ela me apresentou alguns livros, mas em
sua maioria escritos literalmente em espanhol. Como não domino o idioma não
havia como fazer a leitura de nenhum deles. Mas Sirleide recordou-se de que no
acervo havia outro livro que poderia me servir e me apresentou Antologia Poética, uma coletânea
organizada pela editora WMF Martins Fontes e com tradução de William Angel de
Mello.
Confesso que não sou averso a poesia, mas também não sou fã. Mas Garcia
Lorca era para mim um nome familiar, ecoante em minha memória, mas que,
sinceramente, não me recordo onde ouvi falar dele pela primeira vez. Mas devido
a isso e as escassas obras disponíveis me senti impelido a conhecê-lo mais de
perto e aceitei a sugestão. Aventurar-me-ia pela poesia e assim daria a
continuidade as leituras das obras espanholas.
Foi assim que de Barcelona (onde se passa a trama de A Sombra do
Vento) iria conhecer a Andaluzia. Através da poesia regionalista do poeta
espanhol iria conhecer novas paragens deste país fantástico que é a Espanha. E agora
está aqui o produto deste passeio pela poesia de García Lorca. Mas vamos a
resenha...
Resenha
Quando lemos a obra poética de García Lorca percebemos de imediato
uma ligação muito forte de sua poesia com a Espanha, mais precisamente com a
região de Andaluzia, uma comunidade autônoma espanhola que se situa ao sul do
país e as margens do Atlântico e do Mar Mediterrâneo. Foi nesta região, no
município Fuentes Vaqueros, província de Granada, onde nasceu o poeta e na sua
obra muitos elementos daquele lugar se destacam.
Nessa poesia com referências tão regionais, Lorca faz menções a
lugares da Andaluzia em alguns de seus poemas. É o caso de Andaluzas onde cita cidades como Sevilha, Granada e Córdoba, e faz
referimentos a espaços e elementos naturais do lugar, a exemplo do “costado de
Serra Morena” e do rio de Sevilha. Ao longo do livro outras cidades e regiões
também são destacadas como Guadalquivir e Benameji, citados no poema Morte de Antoninho, o Cambório (Muerte de Antoñito el Camborio).
Também elementos culturais e humanos andaluzes são perceptíveis,
como as constantes referências aos gitanos, principalmente, no poema Romance da Guarda Civil espanhola (Romance de la Guardia Civil española).
Gitanos é a forma como são chamados os ciganos espanhóis, cuja
população se concentram especialmente na região da Andaluzia[1].
No poema citado, Lorca faz uma denúncia às comuns perseguições sofridas por
estes povos, não só em seu país e em sua época, como em toda a Europa e ainda
nos dias atuais. O poema é, assim, um ode ao que o autor chama de “cidade dos
gitanos”, ao mesmo tempo em que narra sua invasão e destruição feitas pelo
ataque da Guarda Civil espanhola:
(...)
A cidade, livre do medo,
multiplicava as suas portas.
Quarenta guardas-civis
entram nelas para o saque.
Os relógios pararam,
e o conhaque das garrafas
se disfarçou de novembro
para não infundir suspeitas.
Um vôo de gritos longos
se levantou nos cata-ventos.
Os sabres cortam as brisas
que os cascos atropelam.
Pelas ruas de penumbra
fogem as gitanas velhas
com os cavalos dormidos
e os vasos de moedas.
Pelas ruas empinadas
sobem as capas sinistras,
deixando para trás fugazes
remoinhos de tesouras.
(...)
Em outros poemas Lorca faz novas
menções aos ciganos porém nenhum de forma tão destacada ou incisiva.
Outra referência que percebi, bem
tênue na verdade, é a menção aos mouros, presente no poema Romance de Dom Boyso.
O tribunal de califa Abd ar-Rahman III. Califado de Córdoba |
Os mouros, também conhecidos como
mauritanos, mauros ou sarracenos[2] são, na verdade,
muçulmanos oriundos do norte do continente africano e que no século VIII
conquistaram grande parte da Península Ibérica[3]
empurrando os cristãos católicos para o norte da península. Ali estabeleceram o
próspero Califado de Córdova (ou Córdoba) e, durante o tempo em que mantiveram
o seu poder sobre a região, introduziram nela diversos elementos da cultura
islâmica que influenciaram fortemente a cultura ibérica, sobretudo, andaluza.
Principalmente na arquitetura, até hoje, encontramos elementos deixados por
estes povos.
No poema citado, o eu lírico criado
por Lorca se dirige a uma moça questionando se ela é moura ou judia, e esta,
por sua vez, refuta, dizendo que é cristã. Aí percebi uma forte influência das
crenças religiosas do autor. Desde a época das Guerras de Reconquistas, quando
os mouros foram expulsos da península Ibérica pelos reis católicos, estes povos
– judeus e mouros – eram vistos com maus olhos pelos cristãos, apesar de todos
eles professarem o monoteísmo e terem matrizes religiosas de uma mesma origem.
Não sei se Lorca nutria alguma antipatia
pelos povos citados, ou apenas reproduzia no seu poema algo do senso comum da
época e que sobrevivia através dos séculos. Contudo fica claro que para o eu
lírico e para a moça interpelada, ser mouro ou judeu era algo negativo, assim
como a identidade cristã é apontada como algo positivo:
Caminha Dom Boyso
manhãzinha fria
em terra de mouros
a buscar amiga.
Achou-a lavando
na fonte fria.
– Que fazes aí, moura,
filha de judia?
Deixa meu cavalo
beber água fria.
– Rebente o cavalo
e quem o trazia,
que eu não sou moura
nem filha de judia.
Sou uma cristã
que aqui estou cativa.
– Se fosses cristã
eu te levaria
e em panos de seda
te envolveria,
porém se és moura
eu te deixaria.
(...)
Não obstante, as referências da
poesia de García Lorca são mais amplas e temas como a vida no campo, a
proximidade com a natureza e a fé católica do poeta se mesclam a temas mais
sombrios como a morte, a solidão e a melancolia.
Sua
poesia cria uma atmosfera misteriosa, melancólica, surreal, algumas vezes
nebulosa, o que dificulta-nos visualizar a cena no carrossel de elementos
evocados pelo autor. E entre outras coisas, digo, que foi este o principal
motivo da poética de Lorca não ter chegado ao meu coração. O livro não me cativou, a sua poesia
não me conquistou, porque em muitos momentos ela não fazia sentido para mim. As
imagens invocadas as vezes me pareciam destoante com a proposta inicial do
poema e se embaralhavam sem combinar entre si. Corria as linhas e me sentia perdido no turbilhão, incapaz de compor em
minha mente o cenário que ele desejava expor.
O poeta |
Fico pensando se Lorca não foi
excessivamente influenciado pelo surrealismo de seu amigo Salvador Dalí, mas a
verdade é que foram poucos os poemas em que me encontrei e me senti engolido
pelo afã de sua alma, envolvido pela atmosfera por ele criada.
Dos poucos que realmente gostei, os
dois mais bonitos foram Os encontros de
um caracol aventureiro (Los
encuentros de un caracol aventureiro) e Manancial
(Manantial). O primeiro, particularmente, me chamou a atenção pela singeleza de
seu tema.
No poema, Lorca descreve as peripécias de um pequeno caracol que,
desejoso por conhecer o final da senda[4] onde se
encontrava, decidiu-se por aventurar-se por ela. Caminhando por entre o “bosque
de heras e de urtigas” o pequeno animal vai encontrando outros personagens ao
longo do caminho e tem com eles alguns diálogos bastante provocantes.
O primeiro encontro do caracol é com duas rãs velhas e mendicantes
– uma delas cega – que questionam-no de onde vinha e se acreditava na vida
eterna. O caracol, que em nada acreditava, lhe afirma que não sabia o que era.
Prontamente uma das rãs lhe afirma sua concepção do paraíso: "É viver sempre dentro da água mais serena,
perto de uma terra florida que rico manjar sustenta". Após ouvi-la, o
caracol se recorda de seu passado e afirma que, quando viva, sua avô dizia-lhe
que quando morresse “iria para junto das
folhas mais tenras das árvores mais altas”. Contudo, neste momento, as rãs
se enfurecem e chamando a avó do caracol de herege, tentam impor a sua visão
como verdadeira e depois partem sem mais nada lhe dizer. Entretanto, a surpresa
do poema está, quando mais afrente, a mesma rã que tão veementemente defendeu a
sua crença como a única verdadeira confessa a amiga que ela mesma não
acreditava mais na vida eterna.
Acho esse trecho muito provocativo, porque Lorca traz à tona a
discussão da imposição da fé, a crença maniqueísta[5] de que
se sua filosofia é correta todas as outras são erradas e, por isso, se busca
impor aos demais a tua crença, porque acreditas que se a tua é boa, todas as
outras são más, mentirosas e enganosas. Mas o curioso é que muitas vezes a tua
crença é também frágil e, no fundo, as incertezas da vida a abalam, e o que
sobra é apenas um discurso vazio.
Outra coisa quem me chama atenção é que os paraísos imaginados são
ali muito particulares e ainda ligados ao que cada animal, segundo sua espécie,
imaginaria como maravilhosos. Um provável lago para as rãs e as ramagens e
folhas macias para a avó do caracol. E isso me lembrou como as pessoas idealizam um bom futuro, ou seu
paraíso, segundo os seus próprios gostos e natureza, o que torna impensável
tentar impor ao outro um sonho que é unicamente seu.
Mas esse poema, um dos mais
ricos e significativos que encontrei no livro de Lorca reserva outra
reflexão muito instigante. Ainda na senda, o caracol encontra em seu caminho um
grupo de formigas que arrastavam e agrediam uma de suas companheiras. Vendo
aquilo o caracol as interrogam e se oferece como juiz para decidir a questão.
Ao interpelar à formiga agredida o porquê de suas companheiras estarem a
maltratá-la esta lhe responde triste e quase morta: “Eu vi as estrelas.” O
diálogo que se dá ali em diante revela que as formigas que agrediam a
companheira desconheciam o que eram as estrelas, e por isso acusavam-na de
preguiçosa:
(...)
A
formiga, meio morta,
diz
muito tristemente:
“Eu
vi as estrelas.”
“Que
são as estrelas?”, dizem
as
formiguinhas inquietas.
E
o caracol pergunta,
pensativo:
“Estrelas?”
“Sim”
- repete a formiga-,
"vi
as estrelas,
subi
na árvore mais alta
que
existe na alameda
e
vi milhares de olhos
dentro
de minhas trevas."
O
caracol pergunta:
“Mas
o que são as estrelas?”
"São
luzes que levamos
sobre
nossa cabeça."
"Nós
não as vemos'',
as
formigas comentam.
E
o caracol: "Minha vista
só
alcança as ervas."
As
formigas exclamam,
movendo
as suas antenas:
"Matar-te-emos;
és
preguiçosa
e perversa.
O
trabalho é a tua lei."
“Eu
vi as estrelas”,
diz
a formiga ferida.
E
o caracol sentencia:
"Deixai-a
ir,
continuai
as vossas tarefas.
É
possível que, muito em breve,
já
rendida, morra."
Pelo
ar dulcífico,
cruzou
uma abelha.
A
formiga, agonizando,
cheira
a tarde imensa,
e
diz: "É a que vem
levar-me
a uma estrela."
As
demais formiguinhas
fogem
ao vê-la morta.
(...)
Esta passagem do poema, foi para mim bastante reflexiva. É perceptível que a agressão não parte da
razão da formiga ver estrelas, mas das outras serem incapazes de fazê-lo! A
agressão parte contra aquilo que é diferente! Sentindo-se incomodadas por não
compreenderem a companheira, de não serem elas também capazes de ver e entender
o que são as estrelas – porque estão concentradas de mais apenas em seu
trabalho – a consideram-na como estranha, como alguém que se exime da tarefa a
ser desempenhada pelo conjunto e quem sabe também como subversiva. A
consequência disso tudo é a violência. A violência surge, assim, quando alguém
é incapaz de compreender e aceitar o outro em suas individualidades. A intolerância e a não-aceitação conduz a
barbárie.
O segundo poema que me chamou a atenção, Manancial, o fez pela beleza estética e imaginativa criada pelo
poeta, e, também, por ter sido bastante nítido para mim além de muito profundo.
Esse poema apresenta como temática o campo e nele García Lorca
descreve toda a paisagem ao redor do manancial que dá nome. Ao longo dos versos
o poeta vai criando uma atmosfera ao mesmo tempo agradável – assim como em um
dia quente na campina – misterioso e mítico.
Nessa atmosfera o poeta se
queixa de não poder compreender a canção do manancial e conversa com Deus
arrependido de seus pecados e expondo suas dúvidas acerca dos segredos das
águas e da noite. E é nesse momento que o poema chaga em sua parte mais bela,
quando algo mágico acontece e o eu lírico se converte em árvore ao fundir-se
com um choupo:
(...)
Mas eu
sinto na água
algo que
me estremece ..., como um vento
que
agita as ramagens de minha alma.
Sê
árvore!
(Disse
uma voz à distância.)
E houve
uma torrente de luzeiros
sobre o
céu sem mancha.
Eu me
incrustei no choupo centenário
com
tristeza e com ânsia.
Qual
Dafne varonil que foge medrosa
de um
Apolo de sombra e de nostalgia.
Meu
espírito fundiu-se com as folhas
e foi
meu sangue seiva.
Em
untuosa resina converteu-se
a fonte
de minhas lágrimas.
O
coração foi-se com as raízes,
e minha
paixão humana,
fazendo
feridas na rude carne,
fugaz me
abandonava.
Ante o
largo crepúsculo de inverno
eu
torcia os ramos
gozando
dos ritmos ignorados
entre a
brisa gelada.
Senti
sobre meus braços doces ninhos,
acariciar
de asas,
e senti
mil abelhas campesinas
que em
meus dedos zumbiam.
Tinha
uma colméia de ouro vivo
nas
velhas entranhas!
A
paisagem e a terra se perderam,
só o céu
restava,
e
escutei o débil ruído dos astros
e o
respirar das montanhas.
(...)
A forma como essa passagem foi escrita me chamou bastante atenção
pela sua beleza e magia. Mas, enfim, como já afirmei, excluso estes dois
poemas, Lorca não conseguiu alcançar meu coração e me envolver de fato com a
sua poesia. Considero os seus poemas com a temática campestre melhores do que
os demais que possuem uma lobreguidão e melancolia maior, ou que a profusão de
elementos tornam a poesia confusa e sobrecarregada de elementos destoantes
entre si.
Contudo, a edição da WMF Martins Fontes é bastante interessante.
Bilíngue, ela nos permite ler os poemas ao mesmo tempo em português e em sua
língua materna, comparando original e tradução. Para quem domina ambos idiomas
uma experiência incrível e para que não o domina – como eu – um aprendizado.
Acho que deveriam haver mais livros bilíngues como este, principalmente de poesia,
em que o vocabulário é bastante rico. Seria uma forma agradável de aprender um
novo idioma.
A edição lida é de 2001, da editora WMF Martins Fontes e possui
301 páginas.
Para que vocês conheçam um pouquinho da Andaluzia recolhemos na internet este vídeo que faz um pequeno tour pela região. Infelizmente não encontramos uma resolução melhor, mas este foi o melhor vídeo encontrado.
Para que vocês conheçam um pouquinho da Andaluzia recolhemos na internet este vídeo que faz um pequeno tour pela região. Infelizmente não encontramos uma resolução melhor, mas este foi o melhor vídeo encontrado.
Obrigado pela atenção.
Eric Silva dos Santos
Postagens Relacionadas
[1] A
Espanha comporta uma população cigana de entre 500 mil e 800 mil pessoas, cuja
maioria se concentra na região da Andaluza, onde a integração cultural entre
ciganos e espanhóis se dá de forma mais intensa (BUKALSKA, Patrycja. O país dos ciganos felizes. Disponível
em: http://www.voxeurop.eu/pt/content/article/332281-o-pais-dos-ciganos-felizes).
[2]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Mouros
[3]
Península onde hoje se situam Portugal e Espanha
[4]Caminho
estreito usado pelos pedestres ou pelo gado de tamanho pequeno (HOUAISS, 2001).
[5]O
maniqueísmo é entendido como “qualquer visão do mundo que o divide em poderes
opostos e incompatíveis” (HOUAISS, 2001).
Nenhum comentário:
Postar um comentário