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sexta-feira, 19 de outubro de 2018

[Coleção Vaga-lume] Zezinho, o Dono da Porquinha Preta – Jair Vitória – Resenha


Por Eric Silva para a Tag Coleção Vagalume

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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A coleção vaga-lume é um conjunto de livro infantojuvenil que inegavelmente marcos a história de vida de muitos leitores brasileiros. São poucos os adultos leitores que nunca tenham lido pelo menos um dos livros dessa vasta coleção que reúne alguns dos maiores nomes da literatura infantojuvenil brasileira das décadas de 80 e 90.

Eu pessoalmente tenho muitas destas leituras na minha bagagem de adolescência: A Vida Secreta de Jonas e O Brinquedo Misterioso, ambos de Luiz Galdino, os livros de Marcos Rey como O Mistério do Cinco Estrelas, Na Rota do Perigo e Sozinha no Mundo, além de A Serra dos Dois Meninos de Aristides Fraga Lima.  Sozinha no Mundo e o livro de Aristides são os meus prediletos na coleção.

Meu amor por essa coleção é tão grande que lanço hoje uma nova tag exclusiva para ela. Entre os muitos que li e dos que possuo em casa começo resenhando um que só apareceu aqui no blog através do resumo de um antigo aluno meu, mas que, ainda assim, rendeu até o hoje mais de 1600 acessos: Zezinho, o Dono da Porquinha Preta.

Sinopse

Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma novela infantojuvenil do escritor mineiro Jair Vitória. Nesse livro Jair narra as aventuras de um menino do campo, Zezinho, na sua luta para impedir que seu pai, um homem rústico e turrão, venda sua porquinha de estimação para um dos lavradores vizinhos.

Resenha
Enredo

Zezinho é um menino do interior acostumado a uma educação rígida e sem muito sentimentalismo. Seu pai, Odilo, é um homem rústico endurecido pela difícil vida do campo e pouco acostumado a demonstrações de afeto e carinho. Sempre muito severo e rígido, os filhos o temem e basta uma palavra sua para que os meninos o atendam de pronto por temor de algum castigo ou represália. Mesmo a esposa tem pouca influência sobre Odilo que normalmente faz o oposto aos seus conselhos apenas para contrariá-la e demonstrar poder.

Na narrativa contada por Jair Vitória, Odilo resolveu vender, Maninha, a porquinha preta de estimação do filho criada sempre próximo a casa desde que era uma leitoa. Maninha é muito dócil e está preste a ter sua primeira ninhada de porquinhos. Zezinho tem muito afeto pelo animal e cuidou da porca desde que ela era pequena, acostumando-a a ficar próxima dos humanos, atender seus chamados e aceitar afagos seus.

Quando, Valtério, o filho do lavrador vizinho, conta a Zezinho que seu pai comprará Maninha de Odilo o menino se revolta com o amigo, acusando-o de invejoso e ladrão. Mas a principal revolta do menino é saber que seu pai jamais voltaria atrás com a sua decisão e venderia a porquinha desconsiderando os sentimentos do filho pelo animal.

Tentando impedir a venda da porquinha escondendo-a nas grotas[1] da região e convencendo os lavradores a não comprarem Maninha, Zezinho se envolve em diversas confusões que atiçam a ira do pai.

Personagens realistas: as vivências do autor

Jair Vitória é um escritor que cresceu e se criou na zona rural mineira. Suas narrativas dialogam com suas vivências na roça e, por isso, costumeiramente estão ligadas a questões da vida e do campo como Botina Velha, o Escritor da Classe que fala das crianças que abandonam a escola para ajudar no trabalho da lavoura e A Terra que Machucou que aborda a questão da luta pela terra.

Os personagens criados por Jair são inspirados na realidade brasileira e no cotidiano das populações rurais de sua época, o que torna o livro não só essencialmente brasileiro, como realista. Seus personagens são críveis e poderiam muito bem terem existidos na realidade ou terem sido inspirados em pessoas reais.

Filho de lavradores, assim como Zezinho, Jair tirou de suas próprias vivências o material que inspirou a história, por isso a sua narrativa mesmo voltada para crianças e jovens adolescentes é repleta de sensibilidade e delicadeza e todos os seus elementos (cenários, linguagem, costumes e temas) são realistas e apontam para o seu conhecimento da vida e da criação do povo mais antigo das áreas rurais. Zezinho poderia ser o alter ego da criança que Jair foi na infância: uma criança travessa, mas sensível e inocente, muito ligada aos animais e corajosa no sentido de defender as criaturas por quem tem estima. Isso torna Zezinho, o dono da Porquinha Preta um livro sensível e delicado e até mesmo profundo.

Zezinho teme o pai assim como os seus irmãos, mas é igualmente obstinado, e mesmo não fazendo frente ao pai diretamente usa de todos os recursos que lhe são possíveis para impedir a venda do animal. Jair dá ares de travesso a seu personagem principal, mas coração sensível e determinado. É um personagem difícil de ignorar e muito fácil de ser estimado pelo leitor. Jair acerta em sua fórmula para fazer uma história com personagens cativantes e cria um protagonista pelo qual você torce apesar de todas as brigas e traquinagens cometidas pelo menino ao longo da narrativa.

Por seu turno, Odilo, por seu caráter severo e turrão, acaba fazendo, dentro da narrativa, o papel de vilão que bate e briga à toa, do pai insensível e implicante. Trata-se da transposição para a literatura do imaginário adolescente que quando se vê contrariado pelos pais costuma pintá-los com ares de tirania e vilania.

A mãe é mais sensível e se entristece por ver a tristeza do filho, mas sabe que é impotente ante a teimosia do marido e, realista e pessimista, tenta apenas convencer o menino de desapegar-se do animal.

Os demais personagens, com exceção do menino Valtério, possuem participação muito secundária. Jair dedica um certo tempo na descrição psicológica de Odilo, mas não o faz em relação aos aspectos físicos. Os demais personagens ficam, em sua maioria, em segundo plano, enquanto personagens como o próprio Zezinho, seu irmão mais velho Orlando e o amigo Valtério são construídos ao longo da narrativa, sem uma preocupação de caracterizá-los profundamente. Seus detalhes vão sendo construídos ao longo da história.

Orlando é representado como o irmão mais velho que gosta de fazer troça do mais novo, em contraste com os caçulas da família que se demonstram sensíveis, prestativos e inocentes e buscam ao seu modo ajudar Zezinho ou pelo menos consolá-lo, mesmo que este não saiba reconhecer e aceitar o pequeno e inútil esforço dos irmãozinhos.

Valtério no imaginário de Zezinho é seu principal antagonista, porque seria ele o incitador da questão da venda da porquinha. Foi sua inveja e cobiça de ter uma porquinha mansa que incitou o pai, seo Martinho a querer comprar Maninha e, por sua vez, estimulou Odilo a vendê-la. Por isso, no imaginário simplista de criança injustiçada, primeiro pelo amigo que lhe traíra, e depois pelo pai que desconsiderava sua estima pelo animal, faz com que ele veja Valtério como inimigo invejoso que conta vantagem em poder, pela força do dinheiro, tomar-lhe a porquinha preta.

Um livro que fala de educação e de amor

Fotografia: Eric Silva, 2018.
O enredo do livro é simples, porém profundo. Zezinho, o dono da Porquinha Preta, é uma obra essencialmente pedagógica, a qual já utilizei muitas vezes em aulas de aperfeiçoamento da leitura.

Como educador formado em letras e que exerceu o magistério, Jair demonstra, em uma linguagem muito simples, que a melhor educação é aquela feita com diálogo e sem violência. Essas são as temáticas principais de seu livro: educação e amor.

Odilo é um homem rude que educa seus filhos com uma disciplina baseada no medo e na violência. A sensação transmitida pelo livro não é a de que seus filhos o respeitam porque o amam e admiram, mas porque o temem, porque temem um castigo do qual em algum momento já haviam sido submetidos.

“Zezinho saiu apressadamente. Ordem do pai era ORDEM de verdade. Não era brincadeira. Nem era pensar em contrariá-lo. Correu e foi ajudar o irmão no paiol”.

Ele não demonstra afeto pelos filhos e nem compreensão. Não age conforme um diálogo para entender as crianças e suas vontades para fazê-las compreender seus motivos e respeitarem a sua autoridade. Averso a qualquer conversa ele prefere demonstrar seu poder contrariando os desejos da esposa e dos filhos em vez de entrar em um consenso com os mesmos:

“Sabia que o pai sempre gostava de contrariar a mãe, mostrando que não aceitava opinião de ninguém em casa, mas talvez ela conseguisse alguma coisa”.

Em sua compreensão as vontades e desejos das crianças não deveriam ser ouvidas, muito menos atendidas, devem ser descartadas imperando apenas a palavra dele:

“Menino não tem querer. Menino não tem nada aqui em casa. Só tem a roupa que veste e a comida que come”.

Trata-se de uma educação rígida, inflexível e violenta – simbólica e fisicamente falando – e que resulta, invariavelmente, em problemas futuros. Quase sempre este autoritarismo gera desobediência, o que de certa forma acontece com Zezinho.

Como educador e quase pai, acredito que o diálogo e a liberdade de expressão são caminhos mais promissores ainda que não perfeitos – não há educação perfeita –. Isso não significa que não haja autoridade. Autoridade é conquistada com respeito e admiração. O diálogo serve para esclarecer o posicionamento de ambos e o adulto tomando a sua concepção acerca do problema e o posicionamento da criança deve ponderar e saber quando dizer não e quando ser flexível, sempre tentando fazer a criança compreender as razões de suas decisões e a legitimidade das mesmas.

O que falta na relação de Odilo e sua família é essa flexibilidade e diálogo. Pelo contrário, ele prefere punir o erro com a violência em lugar do diálogo, dos combinados e das proibições e suas respectivas consequências quando são quebrados os acordos e imposições (punição não violenta). Essas são práticas que ensinam e impõem limites. Centrado em uma educação arcaica, Odilo prefere a agressão física:

E já foi tirando o cinturão. Quando via o pai puxando o correião daquele jeito, tremendo de raiva, a surra não era brincadeira. Ia ser fogo. O pai não perdoava. Fugir era uma coisa que não devia nem pensar. Só se fosse para nunca mais voltar em casa.

– Não, paizinho, vou capinar agora.

– Aqui o seu capinar, Zezinho.

A primeira lambada estalou nas pernas. Zezinho pulou e acudiu com as mãos. A segunda guascada atingiu as mãos dele e ara aliviar a dor, levou as mãos à boca. Mas o pai não cava tempo de ele acudir a dor. As lambadas eram rápidas e terríveis. A dor andava das costas às pernas.

O propósito de Jair Vitória é tecer uma crítica a esse modelo arcaico de disciplinamento, e no final mostra que seu resultado nem sempre é bom ou tem um resultado conforme o desejado. O que fica é a revolta:

Sentia o corpinho dolorido, macetado. Não estava gostando do mundo naquele momento. Toda vez que apanhava, passava a estar contra tudo.

“Mas a Maninha ele não vende. Se ele vender, eu mato ela. Dou veneno pra ela. Vou pegar aquele Valtério e dar um murro no nariz dele pra tirar sangue.”

Por isso, Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma leitura que também recomendaria aos pais como uma reflexão sobre educação.

Por outro lado, outro aspecto explorado pela narrativa é o amor. O amor do pai que falta aos filhos e o amor de Zezinho pelo animal de estimação. Isso de certa forma está também ligado ao tema de educação. Porque não existe educação verdadeira que deixe de lado o amor. É preciso amor para educar, porque se trata de uma tarefa árdua.  Do amor nasce a compreensão e a empatia em relação ao sofrimento do outro, mas é também do amor que nasce o desejo de lutar. O amor por Maninha fortalece Zezinho para que ele desafie os desejos do pai de vendê-la, mesmo com todo o medo que ele sente por aquele homem de figura imponente e ameaçadora.

Últimos comentários: narração, escrita e desfecho

Narrado em terceira pessoa e seguindo um tempo cronológico, Zezinho, o dono da Porquinha Preta é um livro de linguagem simples e escrita limpa, sem muitas metáforas ou recursos estilísticos que viessem a complicar a compreensão de seu principal público-alvo: crianças e jovens adolescentes.

Os diálogos e mesmo a narração aproveitam da linguagem simples do interior explorando muitos vocábulos regionais de uma linguagem popular que é mais próxima da realidade daquelas pessoas. Isso garante o realismo e a verossimilhança da narrativa. Contudo, é nos diálogos que essa particularidade fica mais visível. Imitando a forma regional de falar ou autor usa o coloquialismo para construir falas como: “Mas ele é mais grande que você, Zezinho” ou “É capaz que eu vou também”.

O narrador explorar alguns termos regionais, mas, por seu lado, garante todas as convenções da norma-padrão da língua, sem, no entanto, utilizar-se de um tom erudito ou rebuscado.

Em sua escrita, Jair mistura os pensamentos de Zezinho às falas do narrador ao ponto de narração, comentários e pensamentos narrados em discurso indireto virarem uma coisa só, numa forma de narração confortável e gostosa que flui tranquilamente e instiga a leitura.

Ilustração de Cirto Gerano que encerra o sexto capítulo.
As ilustrações de Cirto Genaro são bonitas e delicadas feitas com técnicas na ponta de lápis com delicadeza e realismo.

O desfecho é tocante e não desagrada, mas é um pouco abrupto e apressado. Mas independentemente de ter sido apressado e não desenvolver plenamente uma das cenas mais tocantes da história, ele entrega a narrativa deixando um questionamento sobre crescimento, amadurecimento e determinação, ressaltando até mesmo em suas últimas linhas o caráter pedagógico do livro.

A história de Zezinho não é minha preferida dentro da Coleção Vaga-lume, mas está entre os livros que mais admiro por ser muito bem escrito e trabalhado com carinho pelo seu escritor. É perceptível pela escrita de Jair o carinho e docilidade com o qual ele compôs sua narrativa e personagens, transformando uma historinha simples e até banal em um livro bonito e delicado, que busca ensinar seus leitores através de personagens cativantes e sem perder o realismo ou tornar-se por demasia infantil.

A edição lida é da Editora Ática, do ano de 1996 e possui 127 páginas.

Sobre o autor

Jair Vitória nasceu numa fazenda no município do Prata, Triângulo Mineiro, em 1943. Viveu seus primeiros sete anos na zona rural e só conheceu a cidade quando já era rapazinho.  Era filho de lavradores e estudou a maior parte do tempo na escola da zona rural. Parou de estudar três vezes para ajudar os pais na roça. Entretanto, o pai desejava ao filho um destino diferente do dele que não possuía nem o primário. Jair volta a estudar na roça até quando chegou à universidade. Trabalhou de datilógrafo e estudou à noite. Dedicou-se ao magistério e à literatura e formou-se em Letras, pela Universidade de São Paulo.

Seu primeiro livro publicado foi o livro de contos "Cuma-João".

Aposentado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, retornou ao Triângulo Mineiro, e, atualmente, vive na pequena cidade de Tupaciguara, onde escreve seus livros.





[1] Cavidade, na encosta de serra ou de morro, provocada por águas das chuvas, ou, em ribanceira de rio, por águas de enchentes (Houaiss, 2001)

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

[#MeusLivros] A Serra dos Dois Meninos - Aristides Fraga Lima - Resenha

Por Eric Silva, com um pouco de timidez, 
porque hoje abro minha vida pessoal para falar de meus livros


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Eu e A Serra dos Dois Meninos



A Serra dos Dois Meninos é o primeiro livro da minha infância que resenho aqui no blog. Na verdade, ele é da época da minha pré-adolescência, porque deveria ter entre 11 e 12 anos quando o tive em minhas mãos pela primeira vez. Mas escolhi começar por esta pequena narrativa que integra a famosa e fabulosa coleção Vagalume, devido a dois motivos: o primeiro deles é a minha identificação muito grande com a história. Trata-se de um enredo que diz muito de mim e de minha vida, muito mais hoje do que naquela época. Em segundo lugar, o escolhi para ser o primeiro pelo carinho que dedico ao meu volume, que conservo comigo por quase uma década e meia.

A Serra dos Dois Meninos não foi um livro escolhido ou um presente que ganhei de alguém. Não foi um daqueles muitos volumes de livraria que você passa horas tentando se decidir quais levar, e que por um título ou sinopse você faz a sua escolha. Não. Eu posso dizer que ele estava destinado a mim e eu a ele. Precisávamos um do outro e pacientemente ele esperou por alguém que lhe desse o valor e o carinho de que necessitava.

Nosso encontro se deu em um dos costumeiros dias frios do bairro de Brotas, quando eu e minha mãe voltávamos da missa. Caminhávamos sozinhos pela pequena e sinuosa ladeira em que terminava a rua da capela e falávamos amenidades. Lembro que, da minha parte, estava aliviado que o enfadonho ritual dos meus sábados e domingos havia acabado – a catequese e a missa dominical –, mas já não lembro do que ela falava. Isto está há muito perdido no tempo. Como sempre, eu estava mais atento aos meus passos do que ao que de fato ela dizia. E foi ai que, ainda alguns passos de distância, mirei algo que me chamou a atenção: descartado ao pé de um poste e com as folhas amareladas abertas para o céu, um livro jogado no chão. Adiantei-me e me curvei para pegá-lo. Estava limpo, mas bastante maltratado. Tinha as folhas envelhecidas, alguns riscos e nomes escritos aqui e ali, e também algumas folhas com as bordas destruídas pela ausência da capa que, me parecia, havia sido arrancada muito tempo antes.

Não havia em mim nenhum preconceito ou nojo. Não havia em mim nenhum desprezo pelo seu estado. O que eu sentir era que se ele estava ali descartado, abandonado a própria sorte, e eu o tinha achado era porque ele me pertencia. Cabia a mim lhe dar zelo e um lugar resguardado da chuva e do calor. Ele deveria (e iria) ocupar um lugar entre os demais da minha coleção de didáticos.

Minha desgastada e
mal-tratada edição do livro
Corri os olhos rapidamente pelo seu título e retomei a marcha seguindo mainha com meu achado nas mãos. Ela em nenhum momento se opôs ao meu novo amigo e eu não o descartaria mesmo que ela pedisse. Para minha alegria mainha sempre compreendeu meu amor e compulsão pelos livros, mesmo hoje quando já não tenho espaço para guardá-los e continuo a adquiri-los.

Chegando a casa da Clião Arouca, pensei como protegeria as primeira e as últimas páginas que, devido ao deszelo dos antigos donos, já se consumiam. Arranquei então uma capa de uma revista e com fita adesiva improvisei a capa que até hoje o protege. Como em minha mente toda capa deveria ter o título de seu livro escrevi com uma letra que julguei caprichada o nome da obra e de seu autor e fiquei orgulhoso de meu trabalho, porque agora ele estava protegido e poderia enfim ser manuseado.

Não lembro se comecei sua leitura de imediato, mas é bem provável que não. Devo ter me detido apenas a lhe dar os primeiros socorros, olhar suas ilustrações e buscar um lugar na caixa de livros em que ele pudesse ficar sem que sua nova capa fosse arrancada ou amassada. O quarto era pequeno e não havia prateleira para meus livros, de modo que todos ficavam em caixas de papelão. Contudo independente de tê-lo lido de imediato ou não, me recordo de que quando o fiz aquela história me prendeu de tal forma que nunca a esqueci em seus detalhes, nem de suas ilustrações muito bem feitas. É por isso que agora divido com vocês essa história e também minhas impressões do enredo do meu pequeno amigo, o livro de Aristides Fraga Lima.

Sinopse

Depois de ter adquirido a fazenda Gravatá, Seu Domingos resolve levar a esposa e os filhos para conhecer a propriedade e um pouco da vida sertaneja.

A fazenda ficava em meio a caatinga do sertão baiano e ali abrigava três grandes e misteriosas serras que chama a atenção de todos, mas onde ninguém mais além das suçuaranas viviam.

Os dias que se passam e a família se integra rapidamente com a realidade da vida no campo, sobretudo Ricardo e Maneca, os dois escoteiros filhos mais novos de Dona Mariana e Seu Domingos.  A simplicidade e curiosidade dos dois meninos conquistam facilmente a amizade dos vaqueiros da região com os quais passam a conviver com muita proximidade. Com os vaqueiros Maneca e Ricardo também aprendem bastante sobre a lida com o gado e sobre os mistérios e perigos existentes na caatinga e sobretudo nas três serras imponentes.

Contudo, todas as histórias dos vaqueiros e dos caçadores Alexandre e Zé Pequeno sobre as serras só servem para avivar nos dois meninos o desejo irresistível de explorá-las o que decidem fazer um dia ao saírem escondidos de casa. Mas o que parecia ser fácil para dois escoteiros se mostraria por demais perigoso devido a mata traiçoeira das serras e ao perigo eminente do ataque das onças que ali viviam. Perdidos em meio a caatinga densa os meninos precisam de todo o seu conhecimento para saírem vivos daquela aventura no sertão da Bahia.

Resenha

Como a maioria dos leitores brasileiros sabem, a coleção vaga-lume da editora Ática esteve presente na vida e na infância de milhares de brasileiros. Muitos de seus volumes são até hoje lido pelas crianças do país todo e algumas desta obras ainda tem conservam muito destaque como referências da leitura infanto-juvenil nacional como é o caso de Escaravelho do Diabo, livro de Lúcia Machado de Almeida, e que este ano foi adaptado para o cinema.  A Serra dos dois Meninos não é a história mais conhecida da coleção, mas é a mais preciosa para mim, juntamente com Sozinha no Mundo, do autor Edmundo Donato que escreve o livro com o pseudônimo de Marcos Rey. Os motivos são vários, como já elencados no começo do texto, mas hoje a história tem para mim um significado novo.

Representação da paisagem nordestina
e do trabalho com o gado
A narrativa do livro se passa em uma localidade próxima ao município baiano de Adustina em uma propriedade em meio a caatinga nordestina. Eu também hoje moro em uma cidade do sertão baiano, pertencente ao domínio das caatingas[1] e dentro do polígono das secas. Sou soteropolitano como Maneca e Ricardo, mas me sinto sertanejo. Por essa vivência em uma cidade sertaneja do interior, hoje, identifico na história muitos dos elementos que existem também na localidade onde moro. A forma própria de falar que Fraga Lima fez questão de destacar em seu enredo com expressões como “esfalfado”, “malhada”, “pega”, “trempe”, “ferra” e “obrigação”, vejo-a presente ainda em muitas pessoas que vivem no campo e que ainda estão ligadas a terra e a criação de gado. Não são os mesmos termos, mas a mesma forma de falar e que vai aos poucos se perdendo.

Outra coisa que chama atenção é o destaque que o autor dá a simplicidade e a amizade gratuita que as pessoas do campo dedicam aos vizinhos, a comunidade.  É certo que a história de Lima vê um campo ainda romantizado, como um lugar bucólico, ignorando as profundas mudanças que estes espaços vem sofrendo. Mas uma coisa é verídica, a generosidade e simplicidade dessas pessoas ainda estão vivas. Porém, hoje me incomoda a forma como o autor se refere a estas pessoas como “homens rudes”, “mentes rudes e simples”. São expressões que generalizam e diminuem as capacidades dessas pessoas, que são bastante inteligentes, detentoras de um conhecimento da natureza, do trabalho do campo, da vida comunitária e da luta pelo direito da terra. Capacidades e conhecimentos que surpreendem até aos mais versados doutores universitários.

Neste retorno à Serra dos dois Meninos foi impossível não o comparar aos tempos atuais. Quem hoje vive em plena explosão de um mundo conectado em redes, era do celular e das tecnologias de comunicação e lê este livro, estranha a curiosidade e o encantamento de dois meninos da cidade pela vida do campo. Atualmente, muito conectados e “urbanizados”, os jovens, em sua maioria, possuem completa aversão ao campo, visto por eles como atrasado. Porém, na época em que a história foi concebida, os tempos eram outros e um pouco distantes deste universo tecnológico, distrativo, volta e meia entorpecente. Para o jovem da cidade o campo era um universo novo, um mundo a ser explorado, desbravado, e isso é bem ilustrado por Maneca e Ricardo. A força do distinto, da novidade, do contraste com a vida urbana era sedutora, e os dois irmãos foram seduzidos por ela.

Em relação a narrativa, fica claro o foco nos personagens Maneca e Ricardo. Os meninos são bastante cativantes, tanto dentro quanto fora da narrativa. Pela simplicidade os dois encantam os vaqueiros, mas pela cumplicidade, companheirismo e amizade forte entre os dois também conquistam o leitor que torce para que a aventura dos dois não acabe em tragédia. Além disso chama a atenção como os personagens conseguem empregar muito bem seus conhecimentos de escoteirismo para sobreviverem às adversidades da caatinga fechada e, até hoje, me surpreende a forma encontrada pelos dois para dormirem no meio da mata estando fora do alcance das onças e também como fazem para preparar os ovos de jacu mesmo sem uma panela por perto. É uma história que para mim ainda tem grande parte do encanto que tivera há vinte anos atrás quando li pela primeira vez, e é justamente no tempo em que os dois meninos se encontram perdidos na mata que está o ponto alto do livro.

A Serra dos dois Meninos contém um dos conjuntos
de ilustrações mais bem desenhados da coleção
Vagalume, trabalho de Paulo César Pereira
Porém, a história possui ainda alguns pontos que hoje me perturbam. A primeira dela são as personalidades tão parecidas dos irmãos. Os dois meninos apresentam personalidades muito próximas, diferindo, tenuamente, pelo caráter ligeiramente mais adulto do mais velho deles. Fora isso é como se os dois dividissem um mesmo ego, uma mesma personalidade. Isso descaracteriza um pouco as personagens como pessoas que encerram em si suas próprias individualidades. Mas essa não é a única crítica que tenho em relação ao desenvolvimento das personagens do livro.

Um outro ponto que só emergiu agora, depois de reler o livro com um novo olhar mais maduro e vivido, foi a forma como as personagens femininas são demasiadamente secundarizadas na narrativa, algumas delas deixadas totalmente a parte. O autor, concentrado nos dois meninos, em seu pai e nos vaqueiros, esquece-se de desenvolver alguns personagens. As filhas do fazendeiro, a empregada – esta desaparece da narrativa depois de ser citada no primeiro capítulo – e mesmo Dona Mariana, esposa de seu Domingos, é muito deixada a parte na narrativa. Isso hoje me incomoda porque dá a história um ar um tanto machista que, creio eu, não tenha sido a intensão do autor. Além disso ficamos com um leque muito grande de personagens coadjuvantes que são esquecidos ao longo da história.

Mas fora estes pontos que consideram negativos na história, A Serra dos Dois Meninos é uma narrativa que ainda hoje prende minha atenção, assim como da primeira vez. Ainda criança ficava fascinado com suas ilustrações desenhadas com esmero e realismo por Paulo César Pereira, esboçando aqui e ali, na paisagem, as características físicas do sertão baiano, da sua flora e geomorfologia, bem como do trabalho com o gado. Elementos que não se encerram nas ilustrações, mas que povoam toda a narrativa.

Hoje estas imagens possuem ainda mais significado, porque as vejo com um novo olhar, o de geógrafo que lê na paisagem as características do lugar. Também hoje estimo muito mais o resgate cultural que é feito pela obra de Aristides ao dar um grande foco ao trabalho do vaqueiro, à difícil lida com o gado e às tradições que se amontam em volta dessa profissão tão desvalorizada.

Enfim, ainda hoje conservo por este livro uma estima muito grande. Ele faz parte de mim e, mesmo que minimamente, eu não seria o mesmo se nossos caminhos não tivessem se cruzados. Um encontro que já havia sido decidido muito antes daquela tarde fria no bairro de Brotas.

A edição lida, com 110 páginas, é da editora Ática, do ano de 1984 e é parte integrante da Coleção Vagalume.





[1] Domínio morfoclimáticos das caatingas, segundo a classificação do geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Tonico - José Rezende Filho - Resenha

Por Eric Silva, dedicado à Lewie Jhony.

Já não me lembro como este livro chegou às minhas mãos, mas de uma coisa eu tenho certeza, assim como Meu Pé de Laranja Lima de José Mauro de Vasconcelos, Tonico de José Rezende Filho foi e ainda é uma narrativa que mexe muito comigo, seja por que este livro é um triste retrato da realidade de muitas crianças brasileiras, seja porque o sofrimento e as quimeras de uma criança me tocam muito.

José Rezende Filho escreve uma breve novela onde cabe todo o desejo, sonhos e incertezas de um personagem que poderia ser só mais uma criancinha mimada e teimosa, mas que se mostra alguém ansioso pela independência.

Tonico, um garoto de 13 anos (quase 14), pertence a uma família pobre do subúrbio ferroviário do Rio de Janeiro. Ele acabou de perder o pai, o que o fez do dia pra noite o homem da casa, mas tempos difíceis despontam no horizonte. Sua vida muda de uma hora para outra e o garoto, cujas únicas preocupações eram estudar e brincar, é cobrado a se tornar um pequeno trabalhador.

O tio tenta reorganizar a vida da família da irmã dentro das suas possibilidades parcas e, na impossibilidade dele mesmo ajuda-los financeiramente, vê como única saída que o sobrinho mais velho passe para a escola noturna e comece a trabalhar para ajudar a mãe e a avó no sustento da casa.  

Incialmente, Tonico se sente eufórico diante dessa nova realidade de trabalhar, ganhar seu próprio dinheiro e ajudar a família de cinco pessoas (ele, duas irmãs, mãe e avó), contudo, trabalhar na loja do seu Duda ou na farmácia do Seu Fonseca não estavam no seu ideário. Tonico, que ainda se equilibrava sobre o fino fio que separa a infância despreocupada da maturidade cheia de responsabilidades, desejava trabalhar e ser útil a casa, mas não estava disposto a sacrificar sua liberdade e por isso não sabia como lidar com toda aquela situação. Ora desejava sua vida de volta, ora sentia que necessitava ajudar a família, necessitava vestir as calças do “homem da casa” assim como lhe falara o tio.  Mas, por outro lado, também queria ser independente, queria ser livre. É na cadência desses sentimentos que o garoto enxerga na vida de Carniça, outro pequeno trabalhador, a possibilidade de conquistar seus sonhos.

Carniça é um garoto negro que desde os seis anos ganha a vida trabalhando vendendo jornais de trem em trem e engraxando sapatos na Zona Sul do Rio de Janeiro. Vivia pelas ruas, dormia no deposito de jornais, comia em pensões e quando queria voltava para casa onde morava com a mãe e dividia com ela o dinheiro que conseguia. Apesar de tudo, Carniça era livre, algumas vezes conseguia reunir em um único dia 30 cruzeiros, fazia o que queria e “não tinham hora para nada. A vida, boa ou má, já lhes pertencia”. A mãe de Tonico detestava o garoto, mas Tonico o idolatrava como um modelo e esse modelo de vida tão novo, tão excitante, tão aventureiro e livre seduz o menino que passa a planejar sua fuga de casa para trabalhar pelas ruas como o amigo de futebol.  

Tonico é um livro que nos leva à realidade das famílias pobres do nosso país que diante da necessidade são obrigadas a colocar suas crianças para trabalharem expondo-as a todo tipo de risco. Os trabalhos que o tio de Tonico arruma para ele são leves, o garoto poderia ser considerado apenas como um aprendiz, no entanto os mesmos obrigavam o garoto a estudar a noite e ter uma rotina exaustiva. No outro lado, a vida de Carniça é ainda mais perigosa e insalubre. Além de não estudar seu trabalho é altamente degradante no sentido em que está exposto a todo tipo de violência e doenças.

Carniça é o modelo perfeito da criança pobre que vive em situação de rua, ou seja, trabalha nas ruas para adquirir seu sustento, contudo ainda mantem laços com a família. Mas a liberdade que esta vida proporciona a quem a vive é o que atrai Tonico, que sem nenhum conhecimento prático sobre tudo a que ele estará exposto, não sabe o quanto difícil e perigoso é aventurar-se na vida de uma pequeno trabalhador das ruas.

Convido-os a descobrir os desafios enfrentados por Tonico que confrontar-se com sua família para ir em busca de seus sonhos de liberdade. O livro possui uma leitura fluída e rápida, de uma narrativa onde o psicológico de cada personagem é muito bem costurado. Um livro sensível cujo personagem principal vive o conflitante desafio de crescer.

A edição lida possui 94 páginas, ilustrada, é do ano de 1993, e é pertencente a Coleção Vaga-Lume da editora Ática – uma coleção altamente recomendável e uma das responsáveis pela minha iniciação no mundo da leitura (cresci lendo-a). Minha avaliação pessoal: Muito Bom.


PS.: A História de Tonico possui uma continuação no livro Tonico e Carniça de Assis Brasil e José Rezende Filho. Esse livro foi pensado por Rezende Filho, mas infelizmente o autor faleceu sem concretiza-lo. Seu amigo pessoal Assis Brasil, então decidiu-se reunir as anotações e ideias de Rezende Filho e concluiu ele mesmo a história, nos presenteando com mais uma ventura do pequeno Tonico. Esse livro é inédito pra mim, mas assim que eu o conseguir compartilho com vocês minhas impressões. Até lá. 



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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Zezinho, o dono da porquinha preta

Estou abrindo espaço para os resumos de meus alunos, acerca dos livros que eles estão lendo. Como muito ainda estão aprendendo a técnica do resumo alguns textos podem apresentar imperfeições. O resumo abaixo é de meu aluno Mateus, que está cursando o 6º ano sobre o infanto-juvenil de Jair Vitória, Zezinho, o dono da porquinha preta.


"Quando Zezinho estava jogando bola recebeu a noticia desagradável que a porquinha ia ser morta pelo pai.  Zezinho corre para casa já gritando pela porquinha o pai dele havia falado que era para ele tirar a porquinha de dentro de casa, pensava em fazer um chiqueiro para maninha, mas o pai dele queria vender a porquinha de qualquer jeito pro seu Martinho. Zezinho falou com a mãe para convencer o pai, mas ele gostava de contrariar ela, mostrando que não aceita opinião de ninguém. Zezinho ia conversar com o seu Martinho, para não comprar a porquinha, mas não o encontrou. Como o chiqueiro ou imitação de chiqueiro já estava pronto resolveu levar a porquinha e esconde-la, mas na mesma noite a porquinha corre o risco de morrer afogada e ele sem poder fazer nada fica em casa aflito. No dia seguinte foge da escola e encontra a porquinha. Ao longo da história se envolve em muitas outras confusões a ultima foi fugir com a porquinha de barco nesse período teve uma enchente e o pai preocupado vai procura-lo. Quando o achou lhe deu um abraço de afeto e carinho e decide não vender mais a porquinha". 

Mateus


Capa do Livro Zezinho, o dono da porquinha preta, de  Jair Vitória

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