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domingo, 31 de janeiro de 2021

[Especial Zafón] El Príncipe de Parnaso (conto) - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

 Por Eric Silva

21 de fevereiro de 2021, Ano da Itália

“[...] Miguel de Cervantes, luz entre poetas, mendigo entre los hombres y Príncipe de Parnaso.”

(Carlos Ruiz Zafón, El Príncipe de Parnaso)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Capa da edição promocional da editora Planeta de Libros,
distribuída em 2012 na Espanha.

Sinopse do enredo

Barcelona, 1616.

Do alto da muralha que selava Barcelona, Antoni de Sempere, el facedor de libros, avista a chegada à cidade do cortejo fúnebre de seu amigo Cervantes, tendo ao seu lado a funesta figura de Andreas Corelli, o principal responsável pelas desventuras de seu amigo.

Corelli não havia envelhecido um único dia depois de todo o tempo que se passara desde a primeira vez que Cervantes e Francesca haviam chegado a Barcelona, em 1569, como dois fugitivos de terras italianas. E como já se era de esperar, o macabro arcanjo estava ali para testemunhar a ida de Cervantes ao túmulo após este ter finalmente escrito a obra-prima prometida ao funéreo editor.

É em meio ao incômodo diálogo com o perturbador Corelli que Sempere se entrega as suas recordações acerca de Miguel de Cervantes Saavedra e de como este, ao mesmo tempo, conhecera em seu exílio na Itália, a criatura mais bela já vista e assinara um pacto que seria razão de sua fama e de seu maior infortúnio. 

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês resenhada para o Especial Zafón.

Resenha

Publicado em 2012, El Príncipe de Parnaso é um conto de 35 páginas que foi oferecido pela editora Planeta, até onde sei, somente na Espanha, como uma cortesia aos compradores do romance de Zafón, El Prisionero del Cielo (O Prisioneiro do Céu) na ocasião de sua publicação. Por conta disso, assim como os demais contos do autor, não chegou a ser pulicado no Brasil e nem em língua portuguesa. Ele é também um dos onze contos que integram a coletânea póstuma do autor, La Ciudad de Vapor – que em breve será publicada no Brasil.

O conto é mais um dos que integram o universo da série d’O Cemitério dos Livros Esquecidos trazendo como personagens uma figura real – Miguel de Cervantes Saavedra, escritor espanhol dos séculos XVI e XVII e autor de Dom Quixote – dois antepassados de personagens da quadrilogia do Cemitério e Andreas Corelli, a figura sobrenatural que carimba sua presença em duas obras do autor:  As Luzes de Setembro e O Jogo do Anjo.

A história de El Príncipe de Parnaso se passa na Barcelona de meados da Idade Moderna, um pouco mais de um século depois dos fatos narrados em outro conto que integra o universo da série do Cemitério, Rosa de Fuego e que narra um pouco da origem da misteriosa biblioteca que funciona como eixo principal de todos os livros da série.

Neste segundo conto, Zafón desvia-se da história da secular biblioteca – ainda que a cite nos parágrafos que encerram a narrativa, [ALERTA DE SPOILER] sugerindo que Cervantes esteja secretamente sepultado dentro da colossal biblioteca –, e foca sua trama numa recriação da história de Miguel de Cervantes, mais exatamente de um episódio de sua mocidade quando este esteve vivendo em Roma após ter fugido de Madri.

Na biografia do autor espanhol, consta realmente que para evitar ter a mão direita decepada como punição por participar de um duelo, Cervantes fugiu para Roma em 1569[1]. Contudo, o relato de Zafón é obviamente ficcional – sobretudo quanto ao local real de sepultamento do escritor –, mas toma por base uma estadia real de Cervantes naquela que se tornaria séculos depois na capital da Itália atual.

Neste conto Zafón descreve um Cervantes em início de carreira, um tanto vacilante, bastante melancólico, tentando mostrar a sua arte para algum editor que quisesse publicá-la. Zafón desenha um jovem que já possui as marcas de um talento observável, mas pouco polido, ainda muito bruto e distante do horizonte onde estaria o escritor que se imortalizaria e teria sua obra conhecida em todos os cantos do planeta. Contudo, para alcançar esse horizonte distante o destino coloca no caminho de Cervantes o diabólico Corelli que conduzirá o jovem escritor para uma direção inesperada.

Em paralelo, a narrativa também conta a história de Francesca di Parma, uma pobre miserável, mas de grande beleza que tivera o infortúnio de ser abandonada bebê em baixo de uma ponte, sendo resgatada por uma família de facínoras e trapaceiros tão pobres quanto ela, mas que só não a descartaram de novo por terem visto em sua beleza uma forma de explorá-la e obter algum lucro. Prova disso é que ao surgir a oportunidade de conseguirem um grande lucro às custas da garota não hesitam em submetê-la a um destino cruel.

Zafón faz o encontro destas duas almas perdidas (ele real, ela fictícia) e tem-se um conto sobre amor e tragédia, com pitadas de terror e elementos fantásticos e góticos.

Apesar de não ter um enredo grandioso e nem mesmo muito ambicioso, El Príncipe de Parnaso conserva o que há de melhor no estilo “zafoniano” de escrita: muitas e ricas construções estilísticas, cinematográficas e metafóricas, atmosfera gótica e soturna, ambientes decadentes, romance trágico, e, por fim, artistas frustrados, melancólicos, loucos ou à beira da insanidade. Toda a poética singular do autor se expressa nesse texto, o que dificultou bastante a minha leitura, haja vista que li o conto em sua língua materna.

Apesar de não ter um enredo tão instigante quanto os livros da série do qual faz parte El Príncipe de Parnaso me atrai por ser mais um vislumbre do estilo maduro de Zafón, e do qual senti muita falta nos livros juvenis da Trilogia da Névoa.

Como o texto é contado a partir de um flashback de Sempere – porém narrado em terceira pessoa – os fatos não são absolutamente contados em ordem cronológica. Pelo contrário, o conto começa no ano de 1616, recua 47 anos no passado até 1569, recua mais alguns meses, avança até 1610 e depois retorna a 1616. Para evitar confusões, cada capítulo – com exceção de dois – são datados e localizados geograficamente no título.

Esses constantes vão-e-vêm se dão porque o flashback de Sempere é também entrecortado por um relato do próprio Cervantes, porém narrado em terceira pessoa, e que numa taverna conta a história do tempo passado em Roma e de como acabara fugindo de lá com Francesca. O relato é feito a Sempere e também ao espirituoso, esperto (e inconveniente) Sancho Fermín de la Torre. E aqui temos um dado curiosos: para mim, que li agora 80% da obra de Zafón, é evidente que o nome do personagem Sancho foi escolhido a dedo para fazer referência a dois personagens icônicos. O primeiro deles é Fermín Romero de Torres, amigo, cúmplice e protetor do jovem Daniel desde os fatos narrados no livro A Sombra do Vento até o encerramento da série com O Labirinto dos Espíritos. O segundo personagem pertence ao Cervantes real: o simplório escudeiro de Don Quixote, Sancho Pança.

É perceptível que Zafón escolhe esse nome tão estranho e incomum com o intuito de sugestionar que Cervantes escolhera o nome do escudeiro de Don Quixote inspirando-se na triste figura que conhecera anos antes em Barcelona: um antepassado longínquo do moderno Fermín da Espanha franquista para quem o grande artista uma vez contara a sua história.

Oura referência, essa menos obvia, está no título. El Príncipe de Parnaso faz referência a um dos livros do Cervantes real, Viaje del Parnaso, uma das obras poéticas do autor e publicada em 1614. O termo Parnaso, por sua vez, faz referência ao monte grego Παρνασσός (Parnassos) que aparece na mitologia grega como lar das Musas e que por isso é associado ao lar da poesia, da música e do aprendizado[2]. Um paraíso da arte e das letras. Como grande escritor, Cervantes seria o príncipe de Parnaso.

Para concluir. Em termos de pontos forte e fracos, reitero que o melhor deste conto é a escrita, e sua fragilidade, o enredo. A ideia é original, apesar de que tornar personagens reais em fictícios não seja nenhuma novidade na literatura. Contudo, Zafón integra Cervantes com perfeição ao universo expandido de O Cemitério dos Livros Esquecidos.

Edição espanhola de A Cidade de Vapor

Algo que lamento muito e a mim causa espanto é que a editora Suma, na ocasião da publicação da edição brasileira de O Prisioneiro do Céu, não tenha seguido os passos da editora Planeta de Libros e publicado também aqui essa edição promocional, ou, no mínimo ter publicado o conto em versão epub gratuito como muitas editoras vem feito nos últimos anos com seus títulos mais populares. Já vi coleções (sagas, séries) que eu – da minha parte – dificilmente investiria esforço para ler, terem contos associados aos livros publicados na Amazon e mesmo no Google Play. A Suma perdeu esta oportunidade na época. Todavia, com o lançamento, na Espanha, de La Ciudad de Vapor, isso será corrigido, uma vez que El Príncipe de Parnaso figura entre os contos da coletânea.

É verdade que o conto não é tão instigante quanto a série, mas ganha pontos por nos dar mais um vislumbre dos ancestrais da mesma, assim como Zafón fizera em Rosa de Fuego porém este último destoa um pouco das narrativas centrais por seus elementos fantásticos que inexistem na quadrilogia e também no El Príncipe de Parnaso. Verdade seja dita, El Príncipe de Parnaso tem mais a ver com a série do que Rosa de Fuego.

Quanto ao desfecho, este não é particularmente surpreendente, porque já era do conhecimento do leitor desde as primeiras páginas. No entanto, os dois últimos parágrafos sugestionam mais algumas coisas acerca das origens da grande biblioteca. É neste breve ponto da trama que fica claro porquê, apesar de não focar na grande biblioteca de livros esquecidos, a edição promocional do conto traz em sua capa uma ilustração em ponta de lápis que sugere ser um vislumbre do Cemitério de Livros quando este estava em construção. Um empoeirado e secreto paraíso de livros que para sempre os fãs de Zafón procurarão pelas estreitas ruas da Barcelona antiga.

A edição lida foi distribuída gratuitamente como brinde pela editora Planeta na época do lançamento de El Prisionero del Cielo na Espanha. A edição é do ano de 2012 e possui 35 páginas. Como ele não é acessível no Brasil li numa versão em epub que encontrei na internet.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

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[1]https://super.abril.com.br/historia/o-cavaleiro-da-triste-figura/.

[2]MOUNT PARNASSUS. In: WIKIPÉDIA, The Free Encyclopedia. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Mount_Parnassus>. Acesso em: 15 jan. 2021.

 

domingo, 17 de janeiro de 2021

Opinião | O Decamerão em tempos de quarentena: as pandemias de peste negra e Covid-19

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

17 de janeiro, Ano da Itália.

A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”.

(Albert Einstein)

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Dizem os historiadores que aprendemos com o passado para entendermos não apenas o nosso presente como para projetar o futuro. De forma análoga diria eu que aprendemos com a ajuda da literatura a compreender nossa realidade através das experiências, descrições e relatos subjetivos e objetivos dos escritores e que estes imprimem em suas obras.

No caso do livro O Decamerão (ou Decameron), obra centenária do italiano Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), ambas as proposições podem ser consideradas como válidas e pude atestar a validade dessas afirmações quando li o livro em meados do ano passado, em plena quarentena contra a COVID-19.

Escrito em pleno curso da pandemia de Peste Negra que varreu o continente europeu entre os anos de 1347 e 1351, O Decamerão não é unicamente uma obra dedicada a falar do amor erótico, mas é também uma expressão vívida e potente do horror causado pela pestilência que vitimou um terço da população europeia.

Na primeira das dez jornadas que compõe o livro, Boccaccio dedica algumas das páginas de sua obra para fazer um relato dirigido aos leitores sobre os impactos da doença na cidade itálica de Florença, onde se desenvolve a história central da obra. Nesse breve relato que permeia quase uma dezena de páginas o autor – ainda muito impressionado com a violência da peste e com a forma como a esta havia modificado o comportamento e a vida dos florentinos – faz uma descrição abrangente no qual conta as origens, os danos e sintomáticas da doença, seus reflexos sobre o comportamento dos florentinos, as mudanças de hábitos, as crenças acerca da doença, as dificuldades de sepultamento, além de falar do abandono dos campos e dos animais pelos camponeses que morriam aos montes. Enfim, ele faz um panorama de como a doença se manifestava, mudava o comportamento daquela sociedade e de como consumia a vida de suas vítimas, aterrorizando os que ainda se mantinham sãos.

No contexto do momento em que li aquele relato foi inevitável para mim não lançar sobre a obra um olhar comparativo com a realidade de angustias, mortes e incertezas em que éramos forçados a viver na época de minha leitura e ainda nos dias atuais. E acho que aprendi mais sobre a vida humana em tempos de pandemia do que me limitando ao que via e ouvia no noticiário da TV.

A COVID-19 assustou o mundo, mas também o tornou mais nítido.

Como ainda não havíamos testemunhado, a misteriosa doença principiada na longínqua cidade chinesa de Wuhan parou mercados em escala global, forçou pessoas a mudarem suas formas de viver, trabalhar e se relacionar e tornou em um caos a rotina de governos e profissionais de saúde.

O coronavírus mostrou-se bom de briga e obrigou empresas e comércios a se adequarem a uma realidade nova e inesperada. Reuniu esforços médicos e científicos de centenas de lugares. Escancarou o egoísmo humano bem como destacou sua capacidade de empatia e solidariedade. Aproximou famílias, desfez casamentos, fomentou o feminicídio e a violência doméstica. Evidenciou desigualdades, aprofundou o desemprego, destruiu economias já irremediavelmente frágeis.

No campo do poder, fez máscaras politicas caírem e evidenciou quais eram os países e governos realmente preparados e com gestões competentes. Nunca ficara tão violentamente evidente quem eram aqueles que governavam com discursos vazios os seus belos castelos de areia prestes a ruir. Polarizados, testemunhamos incrédulos um bizarro show de mortes, irracionalidade e ódio gratuito fermentado por incertezas, teorias da conspiração, guerra política, divergências, retrocessos e medo.

Enfim, o futuro ainda é incerto e nebuloso, mas quando li O Decamerão senti que haviam certos padrões que se repetiam em nosso tempo atual – o famoso tempo circular –, bem como deixou evidente para mim a diferença que faz o nível técnico e científico de cada época para dar resposta a momentos de crise desta natureza.

PANDEMIAS SÃO SEMPRE MOMENTOS DE MEDO, IRRACIONALIDADE, DIVERGÊNCIAS E POLARIZAÇÃO

Como homem de seu tempo Boccaccio inicia sua exposição sobre os efeitos da Peste Negra colocando-a como desígnio e ira divina que se abatera sobre os homens para puni-los de sua iniquidade e expiar seus pecados. O discurso que é extremamente condizente com as crenças e mentalidade da época, não difere essencialmente dos discursos atuais de uma minoria barulhenta que (descrentes na ciência) constroem entorno da COVID-19 uma série de teorias conspiratórias, disseminam uma enxurrada de informações falsas, tratamentos supostamente miraculosos que vão de cloroquina a desinfetante e que atribuem o caos instaurado pela doença a uma suposta histeria coletiva e infundada.

O nome que posso dar ao que se dava na Europa de Boccaccio é desinformação fundada na única explicação disponível: a explicação religiosa. O nome que damos ao que é feito hoje (a despeito de todos os avanços científicos) é negacionismo fundamentado na ignorância e no fanatismo. Eis a primeira distinção histórica.

Mas em termos de semelhanças, quando lemos o relato de Boccaccio, vemos que o período da pandemia de peste foi ele também uma época de divisão de opiniões e de certa polaridade. Não se tratava, porém, de uma polaridade exatamente política como a nossa e nem tão radicalmente inflexível, mas acerca de como melhor proceder durante a pandemia. Essa polaridade dividia as pessoas e suas reações frente a doença em quatro categorias:

Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter.

Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. [...]

“[...] Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios.

Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; [...].

E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; [...].” 

É obvio que na nossa época a polaridade se dá em novos contextos. Não é sensato querer dizer que agimos hoje de forma equivalente, mas mesmo agora as opiniões estão divididas e polarizadas e as decisões tomadas por cada um, seguindo esta ou aquela visão, contribuíram e vem contribuindo para o aumento dos casos.

Há os que minimizam a gravidade da doença e não seguem as medidas de proteção orientadas pelos médicos e autoridades sanitárias. Há aqueles que as seguem parcialmente e com perigosa flexibilidade e que para não se privar de seu lazer e divertimento, promovem ou participam de festas e aglomerações. E por fim, há os que de fato se isolaram em quarentena. Entretanto algo que chama a atenção é que, ao contrário do que ocorria no século XIV, hoje sambemos quais as medidas preventivas, então a divisão de opiniões tem caráter pura e simplesmente ideológica.

Várias centenas de manifestantes anti-lockdown se reuniram no Ohio Statehouse em 20 de abril. Wikimedia Commons.

Boccaccio relata que fora aquela época um período que se deu muita vazão a imaginação, as crendices (que direta ou indiretamente disseminam ideias falsas).

De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde.”

Coisa semelhante se dá nos dias atuais. De coisas que as pessoas ouvem falar, de casos particulares que presenciam ou de mera especulação ideológica nasceram dezenas de teorias absurdas.

Alguns afirmam que o coronavírus teria sido fabricado em laboratório por instituições farmacêuticas, outros que a pandemia seria parte de um plano maior envolvendo governos e países. Há quem acredite que as vacinas causam doenças graves e que conteriam de HIV à chips com o número da besta.

Contudo, uma das teorias mais comuns, é a de que os números de mortos e doentes seriam inflacionados, sobretudo pelos dirigentes de municípios, a fim de angariar recursos federais. Ainda que seja plausível pensar que algumas lideranças políticas nos milhares de municípios brasileiros tenham intenções corruptas, essa ideia é generalizada e propagandeada a fim de minimizar a gravidade da doença.

São ideias conspiratórias de base ideológica e que encontram no medo, na ignorância das pessoas ou na inflexibilidade de pensamento terreno fértil para se disseminar.  Elas se assemelham ao que acontecia na época de Boccaccio porque são frutos da ignorância das pessoas, da desinformação ou simplesmente porque são explicações que lhes agradam mais porque se harmonizam melhor com suas crenças e visões de mundo.

Outras duas semelhanças que encontrei entre os dois momentos históricos através das falas de Boccaccio estão relacionados a pobreza e as dificuldades de enterrar o grande número de mortos.

Boccaccio menciona que os pobres estavam entre as classes mais atingidas pela mortandade. Tal como agora, as classes mais baixas eram as mais atingidas e não podiam retirar-se das localidades de contágio e por isso adoeciam em grande quantidade.

Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção.

Em outras palavras, assim como agora, na Idade Média a desigualdade social também teve seus reflexos sobre o agravamento da pandemia de peste bubônica. No caso do Brasil, impossibilitados de trabalhar durante a quarentena o auxílio emergencial foi imprescindível para salvar milhões da fome e da extrema pobreza. Além disso o tamanho das casas de famílias mais humildes e numerosas também dificultou bastante (e em alguns casos não permitiu) qualquer tipo de isolamento social entre eles, ampliando os contágios. Mas mais do que isso, são inúmeros os casos de pessoas de comunidades pobres que não encontraram assistência médica quando doentes.

Gravura contemporânea de Marselha durante a Grande Peste em 1720. Conhecida como a Grande Peste de Marselha, essa epidemia de uma variação da Peste Negra matou cerca de 100 mil pessoas na cidade de Marselha, na França. Wikipedia Commons.

Quanto aos mortos, relata Boccaccio que:

“Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora [...], abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.”

Esqueletos numa vala comum de 1720 a 1721 em Martigues, França, renderam evidências moleculares do ramo orientalis de Yersinia pestis, o organismo responsável pela peste bubônica. A segunda pandemia de peste bubônica esteve ativa na Europa desde 1347, o início da peste negra, até 1750. Wikimedia Commons.


O número de mortos e contaminados pela COVID-19 está até então (e felizmente) em patamares extremamente menores do que os 70 a 200 milhões de mortos[1] que se estima que tenham morrido durante a Peste Negra, mas isso não impediu que em certas localidades faltassem cemitérios para enterrar o grande volume de mortos.

Em abril de 2020, a prefeitura de Manaus necessitou abrir valas comuns em cemitério para enterrar as vítimas de coronavírus[2]. Naquele mesmo mês Nova York vivia o drama de ter seus necrotérios lotados[3] e também passou a usar valas comuns na Ilha Hart para enterrar seus mortos[4].

A DIFERENÇA QUE A CIÊNCIA FAZ NA SALVAÇÃO DE VIDAS

Não obstante, de todos os aspectos que o relato de Boccaccio em O Decamerão me fez refletir, o principal está relacionado a diferença que o conhecimento e o avanço científico fazem hoje em nossas vidas.

Segundo o relato do escritor medieval, a semelhança do que governos, médicos e cientistas fazem na pandemia atual, algumas medidas sanitárias e de fechamento da cidade (fechamento de fronteiras) foram adotadas na Florença da época. O relato ainda deixa supor que até mesmo instruções foram dadas a população, entretanto, todas essas medidas se demonstraram infrutíferas, por razões que ele não explica em seu texto.

E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade [...]”.

 O autor também relata que na época faltava atendimento por conta da periculosidade da doença ou por falta de serviços oportunos, o que contribuiu para o aumento do número de mortos.

Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar.”

Mas, de todos os aspectos, a falta de conhecimento médico sobre a doença foi fator decisivo.

Tratava-se de uma enfermidade nova, desconhecida. Na época mão se sabia a origem da peste nem como esta passava aos seres humanos, por conta disso, também se desconhecia a forma mais eficaz de tratá-la e de evitar os surtos e propagações. Muitos médicos não passavam de charlatões e aqueles que de fato eram formados em medicina também se encontravam quase que de mãos atadas.

Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina: ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme, havendo, além dos cientistas, também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa, nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam, como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação”.

A peste bubônica é de origem bacteriana (bactéria Yersinia pestis), diferente da COVID-19 que é uma enfermidade viral (SARS-CoV-2). Mas, a semelhança daquela, a COVID-19 era no começo da pandemia quase que totalmente desconhecida, uma doença nova, e, mesmo com todo o nosso avanço técnico, foram precisos muitos meses para que médicos achassem os tratamentos mais eficazes e que cientistas pudessem desenvolver vacinas. Essa corrida contra o tempo abriu espaço para especulações de medicamentos supostamente eficazes, mas sem comprovação científica, a exemplo da hidroxicloroquina, sugerida pelo presidente dos EUA, Donald Trump, que chegou a falar também no uso de injeções de desinfetante[5]. A imprudência do chefe de estado americano chegou a repercutir e só na cidade de Nova York as autoridades de saúde da cidade receberam 30 chamados por ingestão de desinfetante nas dezoito horas que se seguiram a fala de Trump[6].

Mas a fala de Boccaccio deixa evidente como a ciência e os avanços médicos são fundamentais para minimizar o número de mortos quando novas doenças e com elevado grau de contaminação e mortes acaba por surgir no cenário mundial. Para nós que vivemos em uma época radicalmente diferente, sobretudo em termos de avanço técnico, mas com algumas tênues similitudes em relação a época em relação a comportamento social diante de situações de pandemia, devemos nos atentar para a relevância da ciência em nossa sobrevivência enquanto espécie e combater os pensamentos retrógrados e reducionistas que tentam descreditar a ciência.

A peste negra matou muito mais e era potencialmente mais mortal do que a COVID-19, mas foi o desconhecimento sobre as suas origens, acerca de tratamentos eficazes de combate e imunização e sobretudo a ausência de uma ciência médica desenvolvida para investigar em tempo hábil esses aspectos que fizeram daquela pandemia muito mais mortífera que a atual.

Se houvesse na época a integração e a facilidade de locomoção entre os vários continentes como existe hoje, ou mesmo os grandes fluxos de circulação de pessoas – que muito facilitam a propagação de agentes patogênicos como o coronavírus – os efeitos seriam ainda mais mortíferos. Ainda assim, um terço da população europeia sucumbiu.

Ademais, na época, se desconhecia a relação entre a peste, a pouca higiene urbana, ratos e suas pulgas (principais transmissores). O desconhecimento levou a explicações religiosas acerca de castigos divinos e mesmo teorias de que a contaminação se dava por via área (pelo ar) – a teoria do miasma. A importância da higiene só foi reconhecida séculos depois e o estabelecimento da ideia de quarentena em 1377, foi um avanço médico fundamental para o combate à doença[7]. A técnica até hoje se mostra fundamental e básica para evitar a propagação de epidemias.

Temos hoje a nosso favor um número vasto de conhecimentos acumulados e milhares de especialistas que trabalham em colaboração a nível internacional. É graças aos avanços científicos que tantas vacinas foram criadas em menos de um ano (tempo recorde) e que desde o começo da pandemia a população foi prontamente orientada quanto as principais formas de prevenção (máscaras, álcool em gel, higienização das mãos, medidas de isolamento social). Coisas assim eram inimagináveis na época de Boccaccio e custaram milhões de vidas. Ainda assim, muitas pessoas desacreditam a ciência, agem de forma negacionista e espalham desinformação, não só por ignorância, mas por alienação política e até religiosa.

Um aviador dos EUA recebendo uma vacina COVID-19. Wikimedia Commons.

Enfim, o que vem por aí nós não sabemos. Todavia concluo esse texto chegando a uma única e importante conclusão possível: o futuro pós-pandemia é imprevisível, mas certamente passaremos por uma mudança radical que nos levará a divisar novos horizontes formados pelo progresso em determinadas áreas e por terríveis retrocessos em outras.

Que nesse nosso caminhar relatos como o de Boccaccio em O Decamerão nos sirvam de lembrete para que não repitamos os erros do passado, afastemos de nós o negacionismo, a ignorância, as crendices e o fanatismo religioso, bem como as firmações sem fundamentação ou lastro científico, para que não experienciemos consequências tão desastrosas como aquelas que a Europa vivera no século XIV.

Você pode conferir a resenha de O Decamerão neste link.

Referência da edição de onde foram extraídas as citações

BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Tradução Ivone C. Benedetti. Porto Alegre, L&PM, 2013.

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2021, o Ano da Itália no Conhecer Tudo – IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo.



[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_Negra

[2] https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/21/prefeitura-de-manaus-faz-valas-comuns-em-cemiterio-para-enterrar-vitimas-de-coronavirus-veja-video.ghtml

[3] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52224123

[4] https://oglobo.globo.com/mundo/nova-york-abre-valas-comuns-para-enterrar-mortos-por-coronavirus-24364067

[5] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/04/24/trump-sugere-luz-solar-e-injecao-de-desinfetante-para-tratar-coronavirus

[6] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/04/25/ny-tem-30-chamados-por-ingestao-de-desinfetante-melhor-prevencao-e-higiene.htm

[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_Negra#Causas 

domingo, 10 de janeiro de 2021

O Decamerão - Giovanni Boccaccio - Resenha

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

10 de janeiro de 2021, Ano da Itália

“As palavras, quando recebidas através dos ouvidos do coração, possuem força muito maior do que muitos supõem; aos que se amam, quase todas as coisas se tornam possíveis”

(O Decamerão – Giovanni Boccaccio)

 

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Edição lida com tradução de Raul de Pollilo. Nova Fronteira, 2018.
Cercados pela desolação provocada pela peste bubônica (negra) que matara grande parte da população florentina e dizimara um terço da população europeia[1], dez jovens de classes abastadas afastam-se da cidade e por quinze dias se dedicam ao lazer e à narração de cem pequenas histórias contadas ao longo de dez jornadas (dias). Livro que influenciou grandes nomes das artes a exemplo de Vivaldi e Molière, O Decamerão não é apenas uma obra que marca a fundação da narrativa moderna[2], como um testemunho escrito com humor e muita ironia e que documenta uma época na história da Europa e um retrato cultural, cotidiano e social de uma sociedade que migrava do feudalismo em direção a consolidação da burguesia.


Confira a resenha do primeiro livro da IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que no ano de 2021 homenageia a literatura italiana.


Sinopse do enredo

1348, Florença, Itália.

Em pleno auge da pandemia de peste bubônica, comumente conhecida como Peste Negra, a cidade de Florença, na região da Toscana, padecia os horrores da doença misteriosa que não só dizimava sua população, tornando a cidade florentina um grande cemitério e uma zona de repulsão demográfica, como subvertia e recriava os hábitos e costumes dos florentinos sobreviventes.

Em meio ao cenário de morte e desolação, um grupo de sete jovens de Florença e provenientes de respeitadas famílias se reúnem na igreja de Santa Maria Novella [E1] e começam a debater, sob a liderança da mais velha, Pampineia, acerca do infortúnio que se abatera sobre Florença e suas famílias, e decidem deixarem a cidade, por sugestão da moça, e pelo intervalo de alguns dias se instalarem com seus criados em uma propriedade fora dos limites urbanos. No entanto, para concretizar seu intento e salvaguardar suas honras, as sete moças pedem a três rapazes conhecidos e namorados de três delas para que as acompanhem em tal retiro enquanto este durasse.

Na Igreja de Santa Maria Novella os jovens reunidas decidem deixar Florença. fonte: Wikimedia Commons.

Igualmente desejosos de deixar para trás a cidade e sua pestilência, os três rapazes aceitam o convite e no dia seguinte os dez jovens e seu séquito de criados deixam Florença em direção a uma requintada propriedade rural desocupada, mas arrumada e provida com uma excelente adega e ali se instalam por alguns dias.

Confortavelmente instalados e fartamente providos de viveres, os jovens e moças dedicam uma quinzena de dias a passeios, conversas, cantos e danças. No entanto, a principal atividade dos jovens é reunirem-se ao entardecer para narrarem histórias de amor e aventura com temas na maioria das vezes pré-definidos por um rei ou rainha escolhido dentre eles e que era igualmente responsável da governança dos criados, da casa e do grupo. Assim, a cada dia e sob a governança de um rei ou rainha de reinado único são contadas 10 narrativas que formam uma jornada, num total final de dez jornadas e cem contos.

Quando finalmente findam as dez jornadas completas de novelar, no décimo quinto dia de retiro, todos regressam à cidade, encerrando a obra de Boccaccio.

Resenha

Escrito entre os anos de 1348 e 1353[3], O Decamerão (ou Príncipe Galeotto) é uma das mais importantes obras literárias italianas e também da literatura mundial, sendo considerada uma obra que marca a fundação da narrativa (em prosa) moderna, além e ser considerada o magnum opus (obra-prima) do escritor e poeta florentino Giovanni Boccaccio (1313-1375).

O título da obra tem origem no grego e significa “dez dias” ou “dez jornadas” em alusão aos dez dias nos quais os dez protagonistas-narradores se dedicam a novelar sobre o amor. No curso desses dez dias, as sete moças (Pampineia, Fiammetta, Filomena, Emilia, Laurinha, Neifile e Elisa) e os três rapazes (Pânfilo, Filostrato e Dioneio) se dedicam a relatar dez contos cada um que vão do erótico ao trágico, tomando por base casos – reais ou não – de amor, de honra e de vilania, contos de sagacidade, piadas e lições de vida, perfazendo, ao todo, cem contos contados uma dezena por dia e por cada um dos dez novelistas alternadamente.

Jovens contadores de histórias do Decameron em uma pintura de John William Waterhouse, A Tale from Decameron, 1916, Lady Lever Art Gallery, Liverpool. Fonte: Wikimedia Commons.


Quando resolvi incluir O Decamerão entre os livros que leria para essa edição da Campanha Anual de Literatura, o CALCT, o fiz dentre uma farta oferta de títulos por se tratar de um clássico importante da literatura universal, mas o pouco que eu sabia da obra não me estimulava a sua leitura – nem o investimento financeiro em uma edição tão cara e luxuosa.

Não sou particular apreciador de histórias eróticas e tenho minhas implicâncias com os romances de amor, e na época o pouco que sabia de O Decamerão dizia de uma obra cheia de erotismo que me fez associá-lo, talvez a obra de Marques de Sade, mas no sentido de serem narrativas libertinas e de caráter hedonista. Como tenho também certas reservas quanto ao hedonismo tanto como filosofia quanto como princípio de vida, tendo sido este um dos motivos de não ter apreciado parte dos personagens de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Esse pesa contra um Decamerão que eu ainda não tinha lido.

Pode até parecer um certo moralismo da minha parte (não que eu me abstenha de preservar certos princípios e valores morais), mas se trata de questão de gosto literário pessoal. Por isso, eu tinha dúvidas se valeria a pena adquirir O Decamerão e fazer o esforço de percorrer suas dez centenas de páginas (1005 págs.). Contudo, o livro se revelou algo não exatamente como me fora descrito o senso comum. É certo que O Decamerão está repleto de histórias de traições conjugais bem-sucedidas, mas para além disso, as narrativas possuem mais o irônico e o cômico do que algo de cunho erótico. Pelo contrário, se os personagens são adúlteros, espertalhões, hipócritas de toda natureza, religiosos libertinos e pessoas pouco dadas a respeitar votos conjugais ou religiosos, por outro lado, o autor e sobretudo os dez novelistas mantêm um impecável decoro, com condutas irrepreensíveis, não entrando em detalhes desnecessários ou lançando mão de expressões chulas e de baixo calão para referenciar práticas sexuais (nenhuma delas sadistas) de seus personagens.

O Decamerão não era o que falavam dele, logo minhas referências eram tão ignorantes sobre a obra quanto eu, ou se baseavam em adaptações que destacavam/explicitavam de forma mais aberta o erotismo existente no conteúdo narrativo da obra. Ainda assim, ler a obra de Boccaccio foi tarefa cansativa e, por vezes, tediosa.

A Peste e os personagens-narradores

Esboçando um panorama do caos criado pela Peste Negra, O Decamerão começa de uma forma que me interessou bastante por ambientar seu leitor em um contexto histórico-social de forma precisa, ampla e elucidativa, mas de forma concisa. Como o autor escrevia em pleno período de pandemia de peste bubônica (olha que coincidência eu lê-lo durante a pandemia de COVID-19), Boccaccio aproveita o triste e desolador cenário da Peste como inspiração para a base narrativa da trama e já imaginando a necessidade de situar os possíveis leitores da posterioridade, faz um panorama profundo e detalhado dos impactos da peste sobre as práticas e relações sociais em Florença, abordando hábitos antigos abandonados e os novos hábitos adquiridos em razão das circunstâncias, os comportamentos, as crenças acerca da doença, as dificuldades de sepultamento, a forma como a doença se manifestava e consumia a vida de suas vítimas e o abandono dos campos e dos animais pelos camponeses, amplamente vitimados por aquele mal.

Por ser testemunha ocular dos fatos, a descrição de Boccaccio possui um peso e potência que as vezes faltam até nos livros de história. Por conta disso a obra pode ser considerada além de um marco na literatura, um documento histórico sobre a Peste Negra de alto valor, sobretudo para entender as dimensões sociais e culturais que a pandemia teve sobre estas. E é em meio a este cenário confuso marcado pela morte e pelo miasma de muitos mortos é que o autor insere seus protagonistas que servem na trama como uma lufada de frescor e vida.

As sete moças e os três rapazes que compõem o grupo de novelistas são jovens solteiros de famílias com posição social elevada, mas que nem por isso escaparam de ter membros de suas famílias vitimados pela peste. No entanto, apesar da situação caótica, os dez decidem isolarem-se com alguns criados sobreviventes de modo a aproveitarem um pouco de divertimento e lazer em lugar afastado, o que se explica tanto pela juventude dos dez como pela incerteza de sobreviverem àquilo tudo.

Quanto ao desenho psicológico Boccaccio não desenvolve esses personagens com particular profundidade, mas algumas características deles são bastante evidentes, marcantes e os individualizam.

Entre as mulheres, cujas idades vão de 18 a 28 anos, Pampineia é a mais velha e a responsável por propor o retiro. Ela é a mais destacada dos novelistas. Cheia de iniciativa, a moça tem um gênio decidido e conta com bastante protagonismo. O que ela propõe ao grupo até certo ponto era imprudente e um pouco indecoroso para a época, mas ela o faz mesmo assim, motivo pelo qual Boccaccio faz questão de destacar a seriedade, honradez, bons costumes, dignidade e nobreza não só do grupo, mas principalmente das moças.

Depois de Pampineia temos Filomena, que é descrita como “sensatíssima” pelo autor e como “otimista” por alguns críticos. Ela é uma das poucas a se opor ao plano inicial de Pampineia – que não incluía os três rapazes – alegando que as mulheres não sabem conviver ou se governarem “sem a previdência de algum homem”. Trata-se de uma visão bastante sexista e patriarcal, mas típica da época e para a posição social das moças, e que queria expressar a insensatez de que elas empreendessem aquela viagem sem algum homem para acompanhá-las. A questão é resolvida quando os três rapazes chegam a igreja e são convidados por Pampineia a acompanhá-las.

Contudo, a posição machista não é única de Filomena, mas também compartilhada por outra personagem, Elisa, que é descrita pela versão espanhola da Wikipédia como “docta [culta] y prudente”, mas “de uma dignidade no exenta [não isenta] de aristocracia[4] – o que condiz com seu pensamento mais conservador.

As outras moças, por sua vez, se destacam por qualidades diversas: Neifile pela beleza; Fiammetta pela inteligência, beleza e determinação; Emilia pelo narcisismo e egocentrismo, e Laurinha pelo senso de justiça e submissão ao gênero masculino[5].

Quanto aos rapazes, que se encontravam enamorados de algumas daquelas moças, eram todos muito corteses e solícitos. Filostrato é o mais melancólico e com uma personalidade que se inclina para preferir narrativas trágicas. Pânfilo é dentre os jovens o mais sábio, bem resolvido e centrado[6]. E, por fim, Dioneio que é um jovem de natureza transgressora[7], bastante jocoso e conta em Decamerão as novelas mais despudoradas e obscenas.

Nas narrativas que são contadas pelos dez jovens desfilam centenas de personagens dos mais diferentes humores e caráteres, mas seria impossível falar de todos. Considero, porém, que a muitos deles têm peso e importância muito superiores aos dez narradores e se sobressaem dentro do livro, bem como acontece com alguns personagens de As Mil e Uma Noites que resenharei em breve no projeto #MeusLivros.

Apreciação crítica das narrativas e da obra em seu conjunto

Decamerão e Mil e Uma Noites: comparações inevitáveis

Digo sem sombra de dúvidas que gosto de obras com esquemas sherazadianos, a exemplo de A Chave Estrela, de Primo Levi, que resenharei em breve no projeto e As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, resenhado em 2019. As Mil e Uma Noites, então, é meu favorito e o precursor desse modo de narrar onde pequenas novelas são narradas em sequência por uma ou mais personagens-narradoras e se intercalam, povoando a obra de personagens e histórias.

Em geral não gosto de coletâneas de contos, mas contraditoriamente, gosto de livros com este esquema que já vi alguns críticos chamarem de sherazadiano, em alusão a protagonista d’As Mil e Uma Noites. Acredito que minha predileção por estes livros em detrimento das coletâneas mais comuns de contos, se deva a existência neles de uma narrativa que funciona como plano de fundo.

No caso de O Decamerão não tive a mesma identificação. O número de novelas é excessivo e com uma brevidade que não permite identificação com os personagens. Mesmo com os dez narradores essa identificação é bastante limitada, haja vista que eles não são profundamente desenvolvidos ao longo do livro. Com o tempo, ler O Decamerão se tornou cansativo. Em As Mil e Uma Noites isso não acontece, porque o número de narrativas é menor e algumas narrativas chegam a ser bastante longas como, por exemplo, a história dos “três calândares, filhos de rei” e as histórias de “Simbá, o marujo”, dentre outras.

Outra coisa que diferencia o livro de Boccaccio da obra icônica árabe situa-se no plano temático destas obras, que ora se aproximam bastante e ora se afastam completamente. Enquanto uma marca das narrativas de As Mil e Uma Noites são as crueldades e sofrimentos atrozes aos quais alguns personagens são submetidos, este não é um tema predileto de Boccaccio ainda que apareça em algumas novelas.

Situações fantásticas e criaturas sobrenaturais bem como complexas tramas de acontecimentos e infortúnios em série e interconectados que dão em resultados surpreendentes (narrativas rocambolescas) são duas outras marcas de As Mil e Uma Noites que são bem menos exploradas em O Decamerão. Até onde me recordo apenas uma novela aborda fatos sobrenaturais e poucos personagens são submetidos a “desventuras em série”.

O conto de Nastagio degli Onesti, pintado por Sandro Botticelli. Único conto com tema sobrenatural. Fonte: Wikimedia Commons.


As novelas de Boccaccio tem como principais marcas as aventuras amorosas ou trágicas, o escárnio, a ironia, as críticas jocosas, as burlas bem e malsucedidas e as engenhosidades empreendidas pelos enamorados e adúlteros a fim de estar e ter com seus amantes, enganando e passando para trás seus cônjuges e muitas vezes logrando êxito em alcançar suas pretensões, saindo impunemente de tais situações, mesmo quando descobertos, e, por vezes, até mesmo fazendo com que a situação ficasse a seu favor.

O amor – sobretudo erótico – e a infidelidade conjugal aparecem também em As Mil e Uma Noites e é inclusive o tema que desencadeia a trama principal e leva o Califa a casar-se com Sherazade. Contudo, em cada obra a infidelidade é tratada de uma forma diferente, e no caso d’ As Mil e Uma Noites, em geral, os infiéis pagam elevado preço por sua infidelidade (quase sempre com a vida), o que demonstra a pouquíssima flexibilidade dos autores daqueles “contos árabes”[8] em relação ao tema, tendo-o tratado de forma mais moralista, ou seja, conforme a moral de sua época. Boccaccio é mais flexível e aberto e me pareceu um pouco menos apegado à moralidade de seus contemporâneos.

Já o amor erótico – quando aparece – nem sempre é tratado em As Mil e Uma Noites como uma relação carnal entre dois seres humanos, mas igualmente entre um homem e uma bela criatura/entidade pagã. O casamento é bastante valorizado e por vezes se dá por questões práticas.

Alguns dos aspectos que mais me agradaram em As Mil e Uma Noites são as marcas fantásticas e rocambolescas presentes em quase totalidade do livro, sem falar no multiculturalismo da obra que abarca narrativas de diferentes povos do Oriente médio e da Ásia. Por conta disso, os momentos que mais me agradaram em O Decamerão foram quando o autor utilizou de tais elementos e de alguma forma se aproximou da obra árabe.

As narrativas de burlas não me chamaram a atenção nem as poucas histórias de cavalaria, mas sobretudo me cansaram os contos de questões conjugais. Não se trata, porém, de um falso moralismo da minha parte, mas de uma exploração demasiadamente frequente de uma mesma temática.

Principal temática abordada nas narrativas de O Decamerão, o amor erótico foi quase sempre explorado em conjunto com infidelidades conjugais, sobretudo levados a cabo por intento das mulheres ou de algum rapaz que encontra numa mulher eco para dispô-la como amante (ressalto que a moral da época via na mulher um sexo inclinado a corromper-se e a levar o homem a corromper-se também). Tamanho é o número de novelas com este tema que me cansei delas e até pulei algumas.

No entanto, há um ponto a se destacar. Boccaccio também trata do amor erótico entre indivíduos e membros do clero de ambos os sexos. Ele expõe vários casos de religiosos que rompiam secretamente seus votos de castidade e que usavam de artimanhas das mais engenhosas para viverem vidas libertinas e desviantes, incitando mulheres de suas paróquias a se associarem a eles. Em uma das histórias há também o envolvimento amoroso de freiras com um rapaz do povo. Por isso, não é de surpreender que a obra tenha causado polêmica, críticas e censura na época tendo até sido colocado no Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica[9].

Mas o curioso de O Decamerão é que Boccaccio, apesar de abordar temas tão polêmicos e delicados, faz questão de manter uma separação moral entre os personagens das narrativas e seus narradores a quem o escritor atribuiu uma qualidade de honestidade com moral alargada[10].

Não obstante, em O Decamerão é possível se ter noção sobretudo da mentalidade da época, no qual, por exemplo, se julgava que o homem era de natureza mais nobre e estável que a mulher. Uma ideia que tinha como aporte de sustentação a interpretação do texto bíblico do Gêneses, no qual o homem foi feito primeiro, a partir do barro, e a mulher, um tempo depois e de uma parte pouco nobre do corpo do primeiro homem: a costela. Logo, a mulher – na visão religiosa da época – era inferior e deveria se submeter ao homem como parte menor dele. Mas além disso, a interpretação do mesmo livro tomava a transgressão de Eva ao comer do fruto proibido e induzir Adão a também fazê-lo como base para a defesa da tese de ser a mulher fonte de corrupção do homem e de si mesma, como já mencionado. Boccaccio, contudo, transgrede essa ordem ao compor uma obra que exalta o feminino e que dedica às mulheres.

Sobre a escrita, a linguagem e o estilo

No que diz respeito a linguagem, surpreendeu-me a facilidade com o qual é possível ler esta que é uma obra com quase 670 anos de idade. Não que sua escrita seja simplória, mas o trabalho de tradução de Raul de Polillo é impecável. Ajuda também o fato de que Boccaccio inclina-se mais para uma linguagem prosaica do que poética. Ainda que use de muita retórica para articular certos pensamentos, na minha opinião não abusa das metáforas, dos jogos de palavras ou de construções estilísticas complexas.

No entanto, O Decamerão é um clássico em todos os sentidos, mas sobretudo no sentido temporal que se costuma atribuir à palavra, e por mais que quase sempre as traduções mais modernas suavizem alguns elementos estamos falando de uma obra de quase sete séculos atrás e isso deixa notável as diferenças em discursos, em ideias e ideologia, mas sobretudo em espaço dedicado à descrições, críticas e reflexões filosóficas ou políticas. É comum que os autores clássicos exagerem em um ou mais destes aspectos.

Apesar de muito dinâmico quando as narrativas de fato começam, o autor e seus narradores reservam espaços consideráveis a divagações e discursos sobre os temas que servem de base às histórias na forma de preâmbulos cansativos e até tediosos. Além disso, por ser um livro muito bem colocado em seu contexto histórico e ter grande influência da obra do também italiano Dante Alighieri (1265 d.C. – 1321 d.C.), O Decamerão faz referências a uma enorme quantidade de personagens reais de grande relevância para a história local, bem como de personagens de destaque na sociedade florentina da época. Além deles, o livro faz referências a figuras reais e fictícias retiradas ou citadas na Divina Comédia de Dante, o que acabou por fazer das notas explicativas de rodapé um elemento fundamental e constante, sobretudo no início de cada novela, quando os personagens envolvidos eram apresentados. Não obstante essas constantes idas às notas acabam por quebrar o ritmo de leitura.

O que aprendi com O Decamerão

Agora, me desviando de uma análise técnica, gostaria de ressaltar que aprendi muito com esta leitura.

Toda obra literária é uma possibilidade de aprendizagem e com O Decamerão aprendi duas coisas diferentes. A primeira delas está relacionada às respostas e aos comportamentos humanos em situação de pandemias e grandes surtos com elevada mortalidade. Aprendi como as pandemias se assemelham e se diferenciam em contextos históricos distintos.

A segunda diz respeito aos olhares ora romantizados, ora dicotômicos ou ainda demonizadores que lançamos sobre o passado, quase sempre para reafirmarmos ou justificarmos posturas, ideias e concepções de mundo afirmadas e assumidas no presente. Ou ainda, somente para nos diferenciarmos de nossos antepassados quando na verdade somos em essência de natureza tão similar, apesar dos contextos distintos e de uma ou outra conquista ou avanço real e necessário que tenhamos feitos.

Falarei por hora só da segunda observação e serei breve.

Percebo que é uma tendência humana, a depender do contexto, o desejo de romantizar ou demonizar o passado.

Quando é do nosso agrado envolvemos o passado com uma aura de nostalgia e exaltamos os valores e a decência perdida, bem como aspectos de um dado estilo de vida que se perdeu. Vemos isso nos discursos conservadores tanto quanto na literatura e no cinema, como nos livros e histórias de cavalaria com seus nobres e valorosos cavaleiros que empunham suas armas em nome de um ideal. Trata-se de uma forma de negar as imperfeições do passado para suscitar um desejo de regressar a uma ordem anterior, mas que, no entanto, só existiu da forma como é evocada no imaginário dos próprios nostálgicos.

Todavia quando é do nosso agrado fazemos o justo contrário e sublinhamos com tintas escarlates as barbaridades e violências físicas ou mesmo simbólicas que as muitas gerações passadas foram capazes de levar a efeito. E nisso reconheço um movimento contrário ao saudosismo dos conservadores, mas que não necessariamente é positivo, porque enquanto aqueles exaltam o passado para denegrir o presente, estes denigrem o passado e põem o presente em um pedestal como se esta fosse uma era de esclarecidos e de um grau de desenvolvimento cultural superior. No entanto, ao contrário do que diz essa forma de pensar, as atuais gerações empreendem violências tão mordazes quanto as do passado, porém de formas muitas vezes mais eficazes, silenciosas, sutis e indiretas.

O resultado destes dois movimentos contrários é que nossa visão do passado acaba sempre sendo turva, distorcida e incompleta, bastante distante de abarcar a complexidade das teias sociais e históricas e da diversidade cultural e geográfica das sociedades passadas.

Ler O Decamerão foi para mim importante porque me deu uma visão de que nós, em nossa vida privada e em nossas tumultuadas relações interpessoais e amorosas, não somos tão diferentes dos homens medievos do século 14 e contemporâneos de Boccaccio. É por isso que não há motivo para afirmarmos, por exemplo, que nossa sociedade é moralmente degenerada em comparação com um suposto passado luminoso e de moralidade, quando na verdade, o que antes era feito às escondidas e com mil artifícios para ocultá-lo, hoje simplesmente é feito de forma aberta e mais transparente.

Evoluímos? Regredimos? Ou em essência ainda somos os mesmos?

Por fim, a primorosa edição da Nova Fronteira

Não costumo tecer elogios a questões editoriais, mas em relação a edição lida, tenho somente elogios a fazer.

Edição lida. Fotografia: Eric Silva, 2021.


A Nova Fronteira dividiu o imenso livro de Boccaccio em dois tomos de capa dura e fez com eles um lindo box. Achei a diagramação escolhida para a oba belíssima tanto pelos floreios que enfeitam as páginas, como pelas iluminuras que iniciam cada história devolvendo ao livro seu ar de obra medieval. A fonte e o papel usado também tornam agradável a leitura e o fato das notas aparecerem no rodapé da página nos garante a economia de um tempo que seria desperdiçado caso as notas explicativas se encontrassem no final do livro como em algumas obras similares.

As capas dos dois volumes são impecáveis e com cores chamativas e contrastantes que – a contrassenso – não me desagradaram.

Também achei certeira a escolha por dividir a obra em dois volumes. Livros grandes como este são mais susceptíveis a danificar a costura e a colagem dos cadernos bem como deixa vincos na lombada. A opção de dividir o livro em dois e confeccioná-lo em capa dura diminuem estes efeitos e ajudam a conservar melhor o livro.

Ou seja, não vejo pontos negativos numa edição que além de tudo isso conta com uma tradução de excelente qualidade – como já afirmei.

Concluindo...

E enfim, para concluir essa resenha imensa, afirmo que posso não ter me tornado fã da obra de Boccaccio, mas ela tem seus pontos positivos. Lê-lo pôs por terra a visão preconceituosa que eu tinha da obra e me ajudou a ver a Idade Média sob novos ângulos, de uma “história da vida privada”.

Gostei sobretudo da abordagem que o autor faz dos anos da peste e isso me ajudou a compreender melhor nosso momento histórico ao fazer um paralelo com a atual pandemia de COVID-19, mas da qual falarei semana que vem. Em outras palavras, O Decamerão pode ter sido para mim um tanto cansativo, mas foi igualmente relevante e substancial para estes dois momentos históricos tão distintos.

A edição lida é da Editora Nova Fronteira, em dois tomos, de 2018. A tradução é de Raul de Polillo, com introdução de Edoardo Bizzarri. Ao todo são 1005 páginas. O título original em italiano é Il Decamerone.

Sobre o autor

Giovanni Boccaccio nasceu em Paris, no dia 16 de junho de 1313 e começou a escrever suas primeiras histórias aos sete anos, quando aprendera a ler e a escrever.

Em 1327, começa a estudar comércio e finanças e ingressa na universidade para fazer Direito Canônico, mas dedica todo o seu tempo à atividade literária.

Em 1350, em Florença, faz amizade com Francesco Petrarca e junto com Dante, formam uma grande tríade poética da Itália renascentista. Naquele mesmo ano é nomeado embaixador do governo florentino na cidade de Ravena e passa a viajar em missão diplomática por toda a Itália a serviço de Florença.

Publica O Decamerão em 1353, sua obra-prima. Em 1373 começa uma série de conferências sobre a Divina Comédia de Dante, mas dois anos depois adoece e falece em Certaldo, Itália, no dia 21 de dezembro de 1375.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: mapa.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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[1] O que foi a peste negra e quanta gente ela matou? Mundo Estranho, [s.l.], 4 jul. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-peste-negra-e-quanta-gente-ela-matou/. Acesso em: 03 jan. 2021.

[2] CAVALLARI, Doris. Decamerão. [Entrevista concedida a] Ederson Granetto.  Literatura Fundamental/UNIVESPtv, São Paulo, [s/d]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cqCTE_IfeOo. Acesso em: 03 jan. 2021.

[3] DECAMERÃO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Decamer%C3%A3o&oldid=59701159>. Acesso em: 03 jan. 2020.

[4]DECAMERÓN. In: Wikipedia, La enciclopedia libre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://es.wikipedia.org/w/index.php?title=Decamer%C3%B3n&oldid=131917997>. Acesso em: 03 jan. 2020.

[5] Idem.

[6] CAVALLARI, op. cit.

[7] DECAMERÓN, op. cit.

[8] Na verdade, só uma parcela dos contos que compõem As Mil e Uma Noites são de origem árabe. Há ali também contos provenientes do folclore indiano, persa e até mesmo chinês.

[9]  DECAMERON. In: Wikipedia, L'enciclopedia libera. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: https://it.wikipedia.org/wiki/Decameron. Acesso em: 05 jan. 2020.

[10] CAVALLARI, op. cit.

 


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