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domingo, 28 de fevereiro de 2021

[Especial Zafón] La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

 Por Eric Silva

28 de fevereiro de 2021, Ano da Itália

“Bienvenido a un nuevo libro – desgraciadamente el último – zafoniano”

(Émile de Rosiers Castellaine, La Ciudad de Vapor)

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Livro póstumo de Zafón, La Ciudad de Vapor em sua edição original. 

Reunião de todos os contos escritos pelo barcelonês Carlos Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) traz onze breve narrativas que resgatam as origens de personagens da quadrilogia que se inicia com o livro A Sombra do Vento, ampliando o universo literário da saga. Traçando uma linha histórica da cidade catalã de Barcelona, a cidade feita de vapor, desde a antiguidade até um futuro incerto e apocalíptico, a coletânea reúne narrativa carregadas de melancolia, tragédia e maldição, com personagens taciturnos, desgraçados e malditos, compondo um caleidoscópios de narrativas góticas, de formação, fantásticas, históricas e mesmo de terror, escritas com o melhor do estilo cinematográfico, poético e metafórico de Zafón.

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês, penúltima a ser resenhada para o Especial Zafón e última a ser publicada no mundo.

Sinopse do enredo

La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) é uma coletânea que reúne onze contos de Carlos Ruiz Zafón, três deles inéditos e os demais publicados de forma dispersa em diferentes publicações entre os anos de 2002 e 2012. Contos que ampliam o universo literário de sua mais importante obra, a quadrilogia d’O Cemitério dos Livros Esquecidos, além de apresentar personagens novos que não figuram na série e personagens reais cujas vidas são recriadas pela pena gótica e trágica do escritor barcelonês.

O conto que inaugura a obra, Blanca y el adiós, nos dá vislumbres da difícil infância de David Martín, um dos muitos gênios malditos e desafortunados da Zafón, no caso um escritor, que é também personagem principal do livro O Jogo do Anjo. Neste conto até então inédito, Zafón narra como o pequeno David conheceu a menina Blanca, uma garota rica que experienciava a dor causada pelos problemas familiares entre seus pais e que, pelo acaso de um encontro fortuito no calçadão de uma livraria, acaba conhecendo David e se tornando, mais tarde, a primeira musa inspiradora das narrativas fantásticas do garoto.

Além de Blanca y el adiós, no livro, Zafón dedica ainda um segundo contos ao personagem de O Jogo do Anjo. No desconcertante Sin nombre, o autor narra a história sombria e misteriosa do nascimento de David, bem como nos apresenta as várias incógnitas que giram entorno da identidade de sua mãe, uma garota desesperada que vaga pelas ruas cobertas de neve de uma Barcelona indiferente enquanto sente as dores do parto e busca auxilio.

Em Una señorita de Barcelona, Zafón conta a história soturna de Eduardo Sentís, um fotografo arruinado que herdara as dívidas de um negócio falido de seu patrão e que encontra como recurso de vida sua própria filha e o talento da menina para encarnar personalidades de pessoas mortas para dar pequenos golpes em familiares e amantes desesperados e enlutados.

Já em Rosa de Fuego, o escritor dá um recuo no tempo e retorna ao século XV para contar as origens da família Sempere e principalmente do Cemitério dos Livros Esquecidos, a colossal biblioteca secreta e importante personagem dos livros da série que leva seu nome. Neste conto, resenhado individualmente aqui no blog em dezembro de 2020, Zafón narra a história da chegada do hacedor de laberintos, Edmond de Luna, a uma Barcelona arrasada pela febre e de como o regresso do desfortunado engenheiro seria responsável por uma tragédia ainda maior que “habría de teñir el cielo de la ciudad de fuego y sangre”.

A temática das origens dos Sempere e do grandioso palácio de livros têm continuidade no quinto conto da coletânea, El Príncipe de Parnaso, também resenhado individualmente aqui no blog. Nesse conto Zafón avança pouco mais de um século em relação a Rosa de Fuego e recria de forma trágica, gótica e romântica a história da juventude de Miguel de Cervantes, escritor real e expoente da literatura clássica espanhola, para contar como este cai nas garras diabólicas de Andreas Corelli, outro personagem fundamental do livro O Jogo do Anjo.

Por sua vez, Leyenda de navidad toma emprestada a temática do natal para contar mais uma história (esta muito breve) de terror e de maldição. Em outro contexto, o tema frio e obscuro de um dia natalino na cidade catalã é novamente resgatada na história seguinte, Alicia, al alba, que narra o encontro de um jovem empregado de um bazar com uma misteriosa moça que tenta penhorar uma preciosa guirlanda de perolas e safiras durante os bombardeios da Guerra Civil Espanhola.

Na sequência, Hombres de gris, avança para o momento histórico espanhol seguinte, ou seja, para o contexto do regime franquista, e narra a história de um assassino de aluguel que retorna a Barcelona que abandonara muitos anos antes, a fim de cumprir a mais difícil de suas missões e salvaguardar a estrutura que sustenta o regime ditatorial de Franco.

Por fim, as três últimas narrativas são breves e versam sobre temas muito distintos entre si.

Na curtíssima narrativa de La mujer de vapor, Zafón fala de como um ex-detento não tendo onde morar passa suas noites em praça pública até ser convidado por uma moça para viver em um dos muitos apartamentos abandonados de um prédio condenado, e lá encontra a felicidade em meio a bons e improváveis vizinhos. Enquanto isso, em Gaudí em Manhattan, Zafón volta aos grandes personagens históricos da Espanha para contar sobre o misterioso projeto de um hotel planejado pelo arquiteto catalão Antoni Gaudí que deveria ter ser construído na ilha de Manhattan, o que jamais chegou a ser concretizado.

Por fim, La Ciudad de Vapor se encerra com a mais breve das narrativas da coletânea, Apocalipsis en dos minutos, no qual o narrador conta seus últimos momentos de vida antes do fim do mundo.

Resenha

Livro póstumo de Carlos Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor é também o último a ser publicado do autor barcelonês cuja obra literária conta agora com nove livros. A coletânea reúne narrativas curtas de um Zafón maduro e fortemente influenciado pela atmosfera com a qual ele revestira A Sombra do Vento, e cada vez mais distante daquele Zafón que escrevera a cinematográfica porém infantil Trilogia da Névoa.

Os contos reunidos em La Ciudad de Vapor não só resgatam as origens dos principais personagens da tetralogia como também recriam a Barcelona – desde sempre antiga – de A Sombra do Vento. Recriam a melancolia e a frieza de uma cidade ora mergulhada em neblina, ora recoberta de neve e gelo, mas sempre indiferente e impassível em relação aos dramas, às violências e às tragédias vividas por seus filhos. Uma cidade que abriga emudecida as muitas histórias que se interpõem e compõem o teatro e o palco do drama humano encenado por muitas vidas anônimas e públicas, mas todas elas marcadas pela dor, pela perda, pela miséria e, sobretudo, pela tragédia.

Não há um só conto desta obra que não carregue as marcas da tragédia, da crueldade ou então da decadência humana, tendo algumas poucas almas um fulgor que acalenta os perdidos, os malditos e os desgraçados que perfilam nas páginas do livro. Não é à toa que os cenários são quase sempre soturnos, noturnos, decadentes, cobertos de névoas, de neve e gelo ou chuvosos.

Como disse, neste conto a decadência e a corrupção humana estão por todo o livro, mas destacadamente em Una señorita de Barcelona. Nele Zafón relata o declínio de um pai que pouco hesita – em troca de dinheiro – em submeter sua única filha, ainda pequena, a fazer o papel de substituta da menina morta de uma família abastarda e enlutada. Mais tarde, o mesmo pai também não hesita em prostituir a filha feita moça e fazer dela seu ganha-pão. Uma garota que passa a viver narrativas que ela mesmo cria para iludir e roubar homens consumidos pela dor e pela perda, e que no processo se dilui na identidade de pessoas mortas como forma de preencher os vácuos e os vazios de sua própria vida.

Mas, mais do que um conto trágico, Una señorita de Barcelona também resgata, em escala menor, um estilo de escrita zafoniana que cria um caleidoscópio de histórias e tragédias pessoais que se cruzam e se entremeiam a partir do encontro de várias pessoas com passados melancólicos e desgraçados. Trata-se de um caleidoscópio de narrativas que Zafón explora intensamente em Marina e sobretudo na quadrilogia do Cemitério.

Dos contos, os mais breves são precisamente os mais potentes, surpreendentes e impactantes. É o caso de Sin nombre, o mais desconcertante de todos, o mais sombrio, cru e perfeito de toda a obra. Nele Zafón traz a vilania e podridão humana tenebrosamente potencializada por um elenco de personagens incógnitos e dentre os quais somente a criança recém-nascida possui um nome. Feroz, este é o melhor dos contos da obra e o anonimato de seus personagens amplifica seu caráter sombrio, porque aquilo que não tem nome a mim me parece também não ter rosto, o que é ainda mais sombrio.

Forte é também o desfecho surpreendente de La mujer de vapor bem como as cenas descritas nos parágrafos que encerra o enigmático Alicia, al alba. Este último é também outro conto melancólico, envolto em mistérios, em brumas e neves, o que ressaltou em mim a impressão de que Zafón tinha atração não só pela tragédia, mas pela falta de calidez do inverno, pelo não dito e pelos mistérios de um rosto feminino perdido no passado e marcado pela tristeza silenciosa.

Por fim, dos contos mais curtos, o menor de todos, Apocalipsis en dos minutos, é exatamente o que seu título anuncia: uma narrativa com um tempo narrativo tão curto e escrito em linhas tão breves que o próprio texto pode ser lido em dois minutos.

Digo que em conjunto são contos que, como elucida o editor Émile de Rosiers Castellane, trazem elementos de muito gêneros literários: os livros de formação (aprendizagem), os históricos, as obras góticas, os thrillers – sobretudo de terror –, as histórias românticas e o caleidoscópio de narrativas do qual falamos, ou, nas palavras de Castellane, “el relato dentro del relato”. Ao mesmo tempo, eles criam uma linha do tempo da história da mais importante cidade catalã, indo dos finais da Idade Média no trágico e fantástico Rosa de Fuego até o futuro impreciso porém igualmente trágico e (agora) apocalíptico de Apocalipsis en dos minutos.

O estilo cinematográfico e as construções metafóricas e estilísticas que tanto caracteriza a fase madura de Zafón estão lá também e representaram para mim – que li a obra em seu idioma materno – um desafio de tradução e compreensão linguística, semântica e metafórica. Através destas construções metafóricas e cinematográficas Barcelona se veste com mantos de fogo, de cinzas e de neve, neblina e vapor, justificando o título da coletânea e resgatando uma vez mais os cenários e contextos prediletos de um autor que flertava com o trágico e com o gótico e que gostava de desnudar as misérias humanas em narrativas repletas de aventuras, História, poesia e mistério.

Uma vez mais me despeço de meu escritor predileto, de suas tramas carregadas de mistérios e melancolias. Falta agora resenha apenas o livro Marina, e terei resenhado toda a sua obra.

Enfim, sigo ansioso pela publicação de La Ciudad de Vapor em português para que ele ocupe, junto aos seus irmãos, o espaço que lhe é de direito na minha estante.

A edição lida é digital da Editora Grupo Planeta, do ano de 2020 e possui, em sua edição física, 224 páginas.

***

Nota: os leitores que não foram iniciados no labiríntico e caleidoscópio universo do El Cementerio de los Libros Olvidados sugiro que leia primeiro a quadrilogia que começa com A Sombra do Vento e encerre com La Ciudad de Vapor. As narrativas farão mais sentido com estas referências.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

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terça-feira, 22 de setembro de 2020

[Especial Zafón] “La Ciudad de Vapor”: livro póstumo de Carlos Ruiz Zafón é anunciado para novembro

Por Eric Silva

21 de setembro de 2020

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Editora Planeta anuncia para novembro a publicação de uma coletânea de contos publicados e inéditos do escritor barcelonês.

La Ciudad de Vapor será publicado pela editora espanhola Planeta em novembro. 224 páginas. Imagem: Divulgação.

Após dois anos de luta, no dia 19 de junho deste ano, o escritor Carlos Ruiz Zafón perdeu a batalha contra um câncer e veio a falecer na cidade de Los Angeles, EUA, deixando aos seus leitores uma obra composta por oito romances publicados e uma série de contos e que o colocara na qualidade do escritor espanhol mais vendido no mundo.

A morte prematura do escritor fez supor que O Labirinto dos Espíritos, publicado na Espanha, em 2016, seria a última obra publicado do autor. Contudo, para a surpresa dos fãs, na última segunda feira (21), a editora espanhola Planeta anunciou a publicação de um livro póstumo de Zafón, com data prevista para o dia 17 de novembro ainda deste ano.

La Ciudad de Vapor, título escolhido para obra, é uma coletânea que reúne os contos publicados por Zafón em vida, além de outros textos do autor ainda inéditos. Trata-se de um copilado de onze narrativas breves, sete delas publicadas em jornais, revistas e edições especiais de suas próprias novelas e que, por isso, se encontram atualmente fora de circulação. Já as outras quatro narrativas, ainda inéditas, reúnem tanto personagens como situações presentes nos quatro romances da série O Cemitério dos Livros Esquecidos do qual fazem parte livros como A Sombra do Vento e O Prisioneiro do Céu.

Entre os contos já publicados e que farão parte da publicação anunciada se encontram Gaudí em Manhattan (2002) e Leyenda de Navidad (2003), ambos publicados no periódico La Vanguardia; La Mujer de Vapor e Alicia al Alba, ambos publicados no livro Barcelona Gothic, obra organizada por Libros de Vanguardia y Renfe em 2008.

Além destes, fazem parte também da coleção os contos Hombres de Gris (2008) e El Príncipe de Parnaso (2012) que foram publicados pela editora Planeta em edições promocionais. Por fim, há ainda o pequeno conto Rosa de Fuego, que apareceu na Magazine do periódico La Vanguardia em 2012. Estes dois últimos contos serão, em breve, resenhados aqui no blog dentro do projeto do Especial Zafón.

Apesar de só ter sido divulgado alguns meses após o falecimento do autor, o projeto do livro não é recente e foi discutido por Zafón e seu editor e amigo Emili Rosales, mas foi adiado com a piora do quadro clínico do escritor.

La Ciudad de Vapor, foi idealizado originalmente para ser uma homenagem aos leitores de A Sombra do Vento, mas será publicado como homenagem póstuma ao autor barcelonês.

O livro chegará às livrarias espanholas no dia 17 de novembro com uma edição também em catalão, segundo idioma da comunidade autônoma espanhola da Catalunha, onde se localiza a Barcelona eternizada pelos escritos de Zafón.

Não há previsão para uma edição brasileira.

Referências das informações coletadas

ALONSO, Begoña. Tu libro de otoño va a ser seguro 'La ciudad de vapor', la obra póstuma de Carlos Ruiz Zafón. Elle, [s.l.], 21 set. 2020. Disponível em: https://www.elle.com/es/living/ocio-cultura/a34092820/la-ciudad-de-vapor-cuentos-carlos-ruiz-zafon/. Acesso em: 21 set. 2020.

MORÁN, David. Los relatos inéditos de Carlos Ruiz Zafón verán la luz en «La ciudad de vapor». ABC, Barcelona, 21 set. 2020. Disponível em: https://www.abc.es/cultura/libros/abci-relatos-ineditos-carlos-ruiz-zafon-veran-ciudad-vapor-202009211109_noticia.html. Acesso em: 21 set. 2020.

VILA-SANJUÁN, Sergio. El libro “La ciudad de vapor” rescatará los relatos inéditos de Carlos Ruiz Zafón. La Vanguardia, [s.l.], 21 set. 2020. Disponível em: https://www.lavanguardia.com/cultura/culturas/20200921/483582072849/ciudad-de-vapor-ruiz-zafon.html. Acesso em: 21 set. 2020.

 

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domingo, 24 de maio de 2020

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários – Ana Lúcia Merege – Resenha


Por Eric Silva
24 de abril de 2020

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Realização com pareceria do Instituto Pegaí Leitura Grátis, a coletânea Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é mais uma das obras delicadas, singelas e muito bem escritas da escritora fluminense Ana Lúcia Merege que neste livro dá destaque à sabedoria, afetividade e experiências de personagens da terceira idade, pertencentes aos universos ficcionais criados pela autora.

Confira a resenha.

Sinopse do enredo

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é uma pequena coletânea de contos publicados com apoio do Instituto Pegaí e que, segundo prefácio da autora, faz parte de um projeto mais amplo denominado Heróis de prata. Nesse projeto a autora escreve uma série de contos de fantasia e ficção científica que daria destaque, nas palavras da própria Merege, a “protagonistas idosos ou, pelo menos, bem maduros, cuja experiência e amplitude de visão são determinantes para a resolução da trama”. Nesse primeiro livro há um destaque para a relação entre esses personagens e seus netos, com os quais contracenam.

Nos dois primeiros contos temos narrativas inspiradas no universo ficcional de fantasia medieval de Athelgard, principal cenário das obras da autora, enquanto os demais situam-se em outros dois universos criados por ela, o último deles compartilhado com o escritor Luiz Felipe Vasques.

Intitulado O espetáculo não pode parar, o primeiro conto é narrado em primeira pessoa e conta algumas das memórias de Zemel, um saltimbanco que se recorda de seu avô com quem aprendeu o ofício, além de relatar os desafios enfrentados por sua família para ganhar o sustento após seu avô sofrer um acidente. Em suas memórias de infância, Zemel conta como o acidente de seu avô, ocorrido durante um dos pequenos espetáculos que os dois faziam juntos, o deixou traumatizado e de como com sapiência o velho saltimbanco não permitiu que o amor do neto pela arte circense morresse.




O segundo conto, O eterno retorno, traz de volta a menina Anna e sua avó, a elfa Kyara, dois importantes personagens de outro livro infantojuvenil de Merege, Anna e a Trilha Secreta, publicado em 2015. Neste conto, Anna tem apenas nove anos e vive feliz com a avó que está ensinando-a a caçar. Contudo a menina, que possui mais sangue humano do que élfico, está cada vez mais curiosa sobre seu povo e pressiona para saber mais sobre o passado da avó, uma história dolorosa que Kyara receia revisitar.

Em De amor e eternidade, Merege revisita a série Contos da Clepsidra, ambientada na cidade de Cartago, no século III, e que em como protagonista o capitão fenício Balthazar de Tiro. Nesta narrativa, Balthazar, já envelhecido, vive com a família de um dos seus ex-tripulantes, família que o capitão adotou como sua e cujo futuro o preocupa bastante. Como de costume ele brinca com suas netas e lhes conta suas aventuras mágicas de viagens no tempo ao lado de outro dos tripulantes do seu navio, Lísias, o que faz emergir lembranças boas e tristes e preocupações relacionadas ao futuro.

Por fim, A era de Leonte, é um conto no estilo space opera[1] baseado no universo ficcional de Medistelara, “no qual as civilizações do antigo Mediterrâneo são transportadas para o espaço”, com destaque neste conto para os fenícios espaciais, os ken’amis, e sua Liga Mercantil, e para os heládicos[2], que na narrativa são donos de uma corporação de mineração chamada Caríbdes, que iniciou uma exploração de um valioso mineral no planeta Carsis.

Nesta narrativa, Merege conta uma história da personagem Elyssa de Quartag e seu neto adolescente, Hanno, um aprendiz de piloto. Elyssa vai ao distante planeta Carsis representando a poderosa Liga Mercantil para firmar um acordo de compensação financeira e comercial com os heládicos após estes começarem a exploração de minério no planeta. Ali, avó e neto percebem uma situação de exploração da mão de obra barata local, e a história encontra uma reviravolta inesperada por conta de uma especial movimentação de astros.

Resenha

Ana Lúcia é uma autora brasileira que venho acompanhando desde 2016, quando fiz a resenha de seu livro O Castelo das Águias. De 2016 para cá, já resenhei outras três obras da autora e um quarto livro no qual foi organizadora ao lado de Eduardo Kasse, autor da série Tempos de Sangue.

No início de 2019, ela me enviou Contos Fantásticos de Avós Extraordinários para que eu conhecesse seu último trabalho. Contudo, aquele ano foi tão difícil e conturbado para mim que acabei abandonando todas as atividades do blog e também a maioria das minhas leituras. Aquele também foi o ano que menos li.

Com o período de quarentena devido ao Covid-19, retomei minhas leituras, o blog e me recordei desse livro e, por isso, resolvi resenhá-lo, antes que minha rotina voltasse a ficar insana.

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é uma coletânea pequena, contando com apenas quatro contos que giram entorno de uma mesma temática: narrativas de aventuras (contos 2 e 4) ou de momentos cotidianos (contos 1 e 3) vividos por avós e netos e que levam esses últimos a beberem das experiências e sapiência de seus avós.

É uma obra infantojuvenil, mas sensível e madura, e que pode agradar outras faixas etárias pela qualidade da escrita da autora e de algumas narrativas que não são particularmente tão infantis.

Como é de seu costume, Merege utiliza novamente suas narrativas para trazer aos leitores mirins algumas lições de vida e, dessa vez, inova por dar destaque a um grupo etário que na sociedade moderna tem enfrentado um visível declínio de importância atribuída.

Serei mais claro.

Nesta sociedade de tantos avanços tecnológicos, de imediatismo exacerbado e de pragmatismo proeminente, a terceira idade vem sendo constantemente tratada como um estorvo para suas famílias, e visivelmente perdem importância no papel de matriarcas e patriarcas, de chefes de família, para os mais jovens. Em grande parte, esse grupo etário passa a ser visto, preconceituosamente, como ultrapassado e incapaz de ser útil numa sociedade tecnológica muito diferente da realidade vivida outrora pelos mesmos. Por conta desse fator, a importância que no passado era atribuída aos mesmos entra em declínio. Por outro lado, em relação a importância adquirida pelos mesmos em termo de vivências e experiências, essa não pode ser diminuída.

Com este pequeno livro, Merege vem com o claro objetivo de mostrar a importância desses personagens mais velhos e falar dos impactos que a relação que se estabelece entre netos e avós tem para a formação do caráter das novas gerações. Sendo ele um livro voltado para crianças de 10 a 12 anos, Merege busca estimular um novo olhar nos pequenos para as gerações que os antecederam. Um olhar de respeito e de admiração.

O livro é escrito por Merege com sua linguagem costumeira que busca um meio termo entre um vocabulário culto e uma linguagem simplificada, e como sempre, a autora mostra que ainda é uma grande contadora de histórias. Esse seu estilo fica bastante proeminente no primeiro conto da série, no qual a autora nos traz um narrador jovem, mas maduro e sensível, de olhar observador e inteligente, e com ele escreve um texto com uma escrita imersiva e gostosa de ler.

Já disse em outras oportunidades que o ponto que me conquistou nas obras de Merege foi a sua escrita impecável, tecida com esmero e, por que não, com amor. Mesmo quando se trata de uma narrativa que eu goste menos, sou tão fascinado pela forma como ela escreve que me esqueço do resto. Além disso, a temática medieval me agrada bastante, sobretudo quando a autora foca no cotidiano medievo, como é o caso do conto O espetáculo não pode parar e do meu livro preferido de Merege, O Caçador.

Como um bibliomaníaco nerd e otaku ligado em História, em vida cotidiana e em cultura nacional e internacional, sou fã de narrativas ambientadas em cenários medievais, de slice-of-life (histórias centradas no dia a dia de pessoas comuns) e de obras artísticas que mostrem a riqueza cultural de uma época ou lugar. O espetáculo não pode parar me conquistou por esses elementos ao apresentar um personagem criança no limiar de adquirir a maturidade adulta, pertencente a um universo medievo, e cujo espírito, ainda jovem, foi forjado nas dificuldades de uma vida nômade e paupérrima. Trata-se do conto mais adulto da obra e que me lembrou da força do livro O Caçador.

Zemel, protagonista do conto, é ainda menino e junto com sua família vive migrando de cidade em cidade, o pai e o tio oferecendo seus serviços de ferreiro e de paneleiro, respectivamente, e o avó e o neto, fazendo pequenos espetáculos de saltimbancos para entreter camponeses e vilões[3] das povoações por onde passavam.

Contudo, a narrativa se dá quando o avô de Zemel sofre um acidente durante uma dessas apresentações e as coisas ficam mais difíceis para a família. Se não bastasse, o menino fica traumatizado com o ocorrido e tenta abandonar as artes circenses, em um momento crítico, no qual seu trabalho também é importante para a sobrevivência de todos. Nesse cenário, Thiers de Pwilrie, o avô da criança, tem que usar de inteligência, paciência e força de vontade para demover o neto e ao mesmo tempo garantir o pão. É um texto que traz uma lição de vida importante e que agrega muito do que gosto nesse tipo de literatura: drama, personagens realistas e vida cotidiana e cultural medieval.

Numa linha similar, ainda que fale de elfos, O eterno retorno foi também um conto que me agradou, um pouco menos do que o primeiro, mas que me fez recordar de narrativas anteriores envolvendo os mesmos personagens.

Uma das narrativas ambientadas na Floresta dos Teixos
Nas histórias envolvendo as tribos élficas da Floresta dos Teixos, Merege costuma nos mergulhar em cenários muito bonitos de florestas e bosques, e desde pequeno tenho particular fascínio por florestas, o que se consolidou com minha formação em Geografia. Por seu turno, esses contos e novelas sobre a infância da protagonista de O Castelo das Águias nos proporciona o contato com esses cenários. Além disso, Merege dá a estas narrativas povoadas por espíritos guardiões e xamãs uma pegada um tanto indígena que faz do seu trabalho bastante original ao somar fantasia e crenças similares às dos indígenas norte-americanos.

O tema de O eterno retorno é também bastante maduro. Na verdade, todo o livro se encontra nesse limiar entre uma obra para crianças e um tom de histórias mais sérias, e acredito que esse tom emana do peso da maturidade de seus protagonistas adultos. Neste conto em particular, Merege falam de dores do passado, e de forma meio velada remota às histórias de amores familiares marcados pela tragédia. Contudo, a autora não entra em todos os detalhes do que ocorreu no passado da protagonista Kyara, porque se trata de uma narrativa retirada de uma história maior que compõe os livros da série Athelgard.

Mesmo para quem não acompanha a obra da autora, o conto ainda assim fará sentido, porque Merege dá todos os elementos necessários para que ele seja lido de forma independente, mas tudo ali faz alusão a uma história mais ampla do qual nos foi permitido ver só uma parte. Isso me lembra, inclusive, que tenho que ler as duas obras de continuação de O Castelo das Águias.

Os contos seguintes foram os que menos me agradaram, ainda que eles tenham muita qualidade e, por isso, não me demorarei neles.

O terceiro conto, De amor e eternidade, traz um personagem de Merege com o qual eu ainda não tinha tido contato, o capitão fenício Balthazar. O conto é baseado em memórias do capitão que ele narra para duas de suas netas a fim de entretê-las.

Por conta dessa sua natureza de narrativa de memórias, é o conto, que na minha opinião, ficou mais deslocado, porque faz muitas referências às outras histórias escritas ou imaginadas pela autora. Merege novamente toma cuidado para fazer todas essas referências compreensíveis ao leitor e não prejudicar a leitura de quem não leu as aventuras da mocidade de Balthazar. Não obstante, o conto tem todo os elementos de um spin-off[4] e por conta disso, a sensação que o conto me deu foi de um leve deslocamento.  Acho que não tive essa mesma sensação com o segundo conto da coletânea tanto pelos motivos já citados, como também porque acompanho a trajetória da personagem Anna desde 2016.

Por sua vez, o último conto da série é um space-opera que se passa em um planeta ainda pouco conhecido e que possui um povo espiritualizado, singular e exótico em um contexto que me fez lembrar um pouco do filme Avatar e um pouco do livro A Chegada a Darkover, da autora estadunidense, Marion Zimmer Bradley.

A era de Leonte me lembra o livro de Bradley por se tratar de uma narrativa sobre viagens intergalácticas com a busca e a descobertas de novos planetas, no caso de Bradley, sobretudo para colonização, e no caso de Merege, para atividades mercantis. E me faz recordar de Avatar, porque além de ser uma narrativa sobre viagens intergalácticas, o conto trata da invasão humana em busca de recursos minerais e possui um povo espiritualizado e intimamente ligado aos fenômenos naturais de seu lugar de vivência.

Contudo, tenho uma crítica a como este conto foi desenvolvido. Acho que a história de Merege tinha potencial para ser mais do que um conto, e, pela escolha da autora em fazer uma narrativa mais breve, fez com que o desenvolvimento da história fosse apressado e a narrativa ficasse um tanto inverossímil em seu desfecho e clímax. O fato é que não gostei do desenvolvimento, e sobretudo do desfecho.

Se Merege explorasse mais as características desse povo tão peculiar e intrigante, de seu planeta e do minério que ali existia, descrevesse a chegada dos heládicos, os primeiros contatos, colocasse alguns conflitos, desenvolvesse mais profundamente os personagens, escrevesse paralelamente a história de Elyssa e Hanno, e chegasse ao desfecho no qual chegou só que de forma mais desenvolvida e detalhada, A era de Leonte daria, não um romance, mas uma novela interessante ao estilo de Bradley, de Arthur C. Clarke, de Frank Herbert ou de seu filho Brian Herbert.

Até mesmo o título, A era de Leonte, é bom para um livro independente. Contudo, na forma compacta em que foi concebida ele não me agradou muito. Por outro lado, o objetivo da autora com seu livro é claro e ela deseja alcançar um público mais jovem. O livro que eu enxergo em minha mente seria algo bem diferente e distante da proposta inicial.

Enfim, para encerrar, no todo, Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é um livro simples, mas sensível e original.

A edição lida é da Editora Draco, do ano de 2018 e possui 64 páginas.

Sobre o autor

Ana Lúcia Merege. Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional.
Nascida em 1969, na cidade do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Merege é romancista e bibliotecária. Possui mestrado em Ciência da Informação, pelo IBICT/UFRJ-ECO, tendo defendido, em 1999, sua dissertação intitulada O livro impresso: trajetória e contemporaneidade. É também formada em Biblioteconomia pela UNIRIO e, desde 1996, trabalha no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional, onde atua no trabalho com material original, fontes primárias, identificação de documentos e organização de exposições.
Seu primeiro romance publicado, O Caçador (2009), foi também o primeiro do gênero fantasia escrito pela autora que desde então vem se dedicando a organização de diversas coletâneas do gênero, além de contos e romances. Suas principais obras estão ligadas ao universo de Athelgard, criado pela escritora para ambientar sua trilogia que se inicia com o romance O Castelo das Águias e ganha sequência com os livros A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar, todos publicados pela editora paulista Draco. Pertence também ao universo de Athelgard o livro Anna e a Trilha Secreta, que faz um regresso à infância da principal personagem de O Castelo das Águias, além de Orlando e o Escudo da Coragem, outro infantojuvenil publicado pela autora em 2018.
Com vasta experiência com manuscritos e forte interesse pela história do período medieval, Merege foi responsável ainda, na mesma editora, pela organização das coletâneas Excalibur: histórias de reis, magos e távolas redondas e Medieval: Contos de uma era fantástica, este último em parceria com o escritor brasileiro Eduardo Kasse.




[1]Subgênero da ficção científica que enfatiza a aventura melodramática, as batalhas interplanetárias, o romance cavalheiresco e a tomada de riscos. Definido principalmente ou inteiramente no espaço sideral. (Wikipédia)
[2]Civilização heládica é um termo moderno usado para identificar uma sequência de períodos que caracterizaram a cultura do continente grego durante a idade do bronze. (Wikipédia)
[3]Vilão era, na Idade Média, uma pessoa que não pertencia à nobreza feudal, e que habitava urbanamente em vilas. (Wikipédia)
[4]Nos meios de comunicação, obra derivada, história derivada ou derivagem (em inglês: spin-off) é um programa de rádio, programa de televisão, videojogo, grupo musical ou qualquer obra narrativa criada por derivação, isto é, derivada de uma ou mais obras já existentes. Sua diferença com uma obra original é que a primeira se concentra, em particular, mais detalhadamente em apenas um aspecto (por exemplo, um tema especifico, personagem ou evento) ou modificando um pouco a história e seus aspectos originais.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

A Vida Secreta do Senhor de Musashi e Kuzu – Junichiro Tanizaki – Resenha


Por Eric Silva

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Um samurai com uma perversão sádica e necrófila e um escritor que parte em uma jornada em busca de inspiração, A Vida Secreta do Senhor de Musashi é a reunião de duas novelas que inicialmente chama à atenção por uma temática muito peculiar e provocativa, mas que no final não impressiona.

Confira a resenha do décimo livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que em 2018 homenageia literatura japonesa.

Um livro, dois enredos distintos

Retratando duas épocas distintas da história do Japão, as duas novelas que compõem esse livro possuem tons e temáticas bastante distintos ainda que abordem a cultura de um mesmo país.

A primeira novela, que dá nome ao livro, relata a história de Terukatsu, o filho de um poderoso senhor de terras, que na infância foi conhecido por Hôshimaru e, na idade adulta, chegaria a suceder seu pai como o senhor de Musashi.

A Vida Secreta do Senhor de Musashi começa contando como, ainda na infância, Hôshimaru havia perdido sua inocência e adquirido uma certa inclinação sexual sadista.

Quando ainda era criança seu pai, Terukuni, selou um acordo político de paz com Tsukuma Ikkansai, senhor do castelo de Ojika. Nos termos desse acordo, Terukuni entregou seu filho mais velho e herdeiro, de apenas seis anos, como refém de Ikkansai. Hôshimaru foi então separado de sua família e levado ao castelo de Ojika, onde viveu por dez anos recebendo instrução em literatura e artes marciais para que se tornasse um samurai.

É nesse período que o castelo de Ojika é cercado por tropas inimigas e após semanas de cerco ameaça é tomado pelos inimigos. Por ser ainda menino e incapaz de lutar, Hôshimaru fica isolado com as mulheres e outras crianças no interior do castelo enquanto a guerra não é decidida. Inconformado por não poder participar das lutas, o menino fica curioso acerca das batalhas que acontecia fora dos muros do castelo até que ele encontra a oportunidade de presenciar um dos mais importantes rituais de guerra da cultura japonesa da época: o trato das cabeças decapitadas dos inimigos vencidos em batalha.

Ajudado por uma das mulheres que cuidavam das cabeças recolhidas pelos guerreiros de Ikkansai, Hôshimaru foge até um sótão isolado do castelo e lá assiste a um grupo de mulheres, entre elas uma linda jovem, que lavavam, penteavam e maquiavam as cabeças decapitadas. Maravilhado com aquele ritual e sobretudo com o zelo extremado com o qual a mais jovem das mulheres tratava as cabeças dos samurais, o menino desperta para sua sexualidade e tem o gatilho para o desenvolvimento de um fetiche sexual sádico e necrófilo que o acompanhará pelo restante da vida e que, de modo direto, influirá na sua personalidade, nas suas ações depois de adulto e nas suas decisões enquanto guerreiro e senhor feudal.

Por usa vez, na segunda novela, Kuzu, Junichiro Tanizaki conta a história da jornada de dois amigos à remota povoação que dá nome à história. O narrador de Kuzu é um escritor que busca inspiração para seu novo livro e decide partir em uma viagem à região de Yoshino, em Yamato, onde poderia resgatar informações sobre a vida de uma importante figura da história medieval japonesa: o Imperador Celestial. Com ele viaja um antigo amigo que busca alguns parentes e com eles as origens e a história de sua mãe falecida ainda muito jovem. Juntos eles seguem uma jornada de encontros e reencontros com o passado. A história gira entorno dessa busca dos dois personagens ao passo que se concilia com elementos da história e da cultura secular japonesa.

Resenha

Capa da edição lida. Imagem produzida por Eric Silva, em dezembro de 2018.
À primeira vista A Vida Secreta do Senhor de Musashi e Kuzu podem parecer duas narrativas bastante distintas, apesar de escritos pelas mesmas mãos. Essa sensação é em decorrência das temáticas muito diferentes e discrepantes. Contudo notei várias semelhanças no estilo de suas narrativas. A primeira delas foi a forma documental com o qual se dá a narração.

Em ambas as novelas Tanizaki traz um narrador que é também um investigador do passado. Tanto o narrador observador de A Vida Secreta do Senhor de Musashi quanto o narrador personagem de Kuzu contam suas histórias com um profundo tom jornalístico que enfatiza bastante as peculiaridades culturais e históricas dos momentos históricos por eles pesquisados.

O narrador da primeira novela se apoia em escritos de pessoas próximas do senhor de Musashi para narrar sua história. Ele interpreta os escritos o compara e aí reconstrói o mosaico da vida sexual e particular do protagonista. Enquanto isso, o narrador de Kuzu mescla documentação histórica com história pessoal sua e de seu amigo, mas ainda aí há um profundo tom de resgate e de documentação do passado.

Outro aspecto foi a ênfase grande nos aspectos culturais de cada época. Muitas referências às artes literárias e guerreiras, às fábulas e à cultura são feitas pelo escritor, com maior destaque para Kuzu.

Contudo o conteúdo de A Vida Secreta do Senhor de Musashi é mais inquietante, ainda que não seja um texto apelativo ou demasiadamente pesado. Não é uma abordagem pornográfica e muito menos sensacionalista, mas que ainda assim mexe com muitos tabus. Por sua vez, Kuzu tem uma temática bem mais leve e monótona – na verdade achei todo o livro monótono. 

Por ser profundamente ligado a elementos culturais do Japão, esse segundo conto exige do leitor conhecimentos profundos sobre a literatura, a história japonesa, do seu folclore e de seu teatro tradicional. Confesso que me senti perdido na leitura dessa novela, que além de enfadonha é cheia de citações e referências a coisas que simplesmente desconheço e cuja ausência de notas de rodapé contribuíram para me manter na ignorância. Por isso, não consegui me concentrar na leitura que foi mais maquinal e mecânica do que imaginei que seria ao começar as primeiras páginas.

A escrita de Tanizaki não é atrativa, metafórica ou lírica e poética, ainda que seja firme e fluida. Mesmo Kuzu com a beleza de seus cenários poderia ser um conto belo e poético, mas foi seco e sem beleza.

Objetivamente, nada nos dois contos me chamou muito a atenção. O caráter jornalístico das novelas foi o que mais me desestimulou durante a narrativa com as constantes intromissões e análises do narrador da primeira novela, bem como com a insistência do narrador de Kuzu em fazer milhares de referências e inferências a aspectos da história japonesa e de sua arte.

Quando li Beleza e Tristeza de Yasurai Kawabata me incomodou um pouco as constantes e massivas referências ao mundo das artes e que davam base a trama, mas consegui tolerá-las sem prejuízo da minha compreensão da narrativa. Em grande parte, a escrita limpa de Kawabata e a construção dos personagens e do drama entorno do qual gira a trama tenham contribuído enormemente para manter minha atenção. Contudo, o mesmo não se deu com os escritos de Tanizaki. De certo modo a falta de sabor como o qual a segunda metade da primeira novela se desenvolve foi o gatilho para que eu não tivesse mais paciência para compreender Kuzu de uma forma mais global. Confesso que só os últimos capítulos foram para mim mais significativos e inteligíveis, porém o desfecho dessa segunda novela foi tão fraco e decepcionante que me arrependi do tempo gasto em sua leitura.

Aprendi um pouco mais da história dos samurais e das guerras e conflitos medievais da história japonesa e mesmo o rito das cabeças decapitadas me pareceu interessante. Por isso, e somente por isso valeu a pena ler A Vida Secreta do Senhor de Musashi, mas a história vai se tornando maçante e o texto não possui uma beleza estética que me impressionasse.

Ademais, os personagens, ainda que bem descritos e desenvolvidos, não impressionam nem cativam. Só Hôshimaru intriga por suas ações e inclinações morais, mas ele sozinho não é o suficiente para impedir que a trama se torne chata em grande parte do seu desenvolvimento. Não senti nenhum humor na trama nem um sentimento forte o suficiente para reduzir o forte tom jornalístico da primeira trama. Kuzu ainda suaviza esse seu caráter do meio para o final da trama, mas não salva por completo a peça.

A edição lida é da Editora Companhia das Letras, do ano de 2009 e possui 218 páginas.

Sobre o autor

Junichiro Tanizaki (谷崎 潤一郎) nasceu em 24 de julho de 1886, em Tóquio. É um dos maiores autores da literatura japonesa moderna e o mais popular romancista japonês depois de Natsume Soseki.

Estudou literatura japonesa na Universidade Imperial de Tóquio e com influências de Poe, Baudelaire e Oscar Wilde, começou a escrever desde cedo.  Publicou seu primeiro trabalho em 1909, numa revista literária que ajudou a fundar.

A partir de 1923, deixou-se absorver pela cultura de seu país e abandonou a inclinação ocidentalizante, vivendo nesse momento uma crise intelectual e emocional que contribuiu decisivamente para torná-lo um dos nomes centrais da literatura japonesa do século XX. O centro dos seus interesses é a preservação da língua e da cultura tradicional do Japão.

Em 1949, recebeu o prêmio Imperial de Literatura. Dentre suas principais obras estão Amor insensato (1924), Voragem (1928), Há quem prefira urtigas (1930), A chave (1956) e Diário de um velho louco (Estação Liberdade, 2002).

Morreu em 30 de julho de 1965, um ano após ter sido o primeiro autor japonês eleito membro honorário da American Academy and Institute of Arts and Letters.



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