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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Orlando e o Escudo da Coragem – Ana Lúcia Merege – Resenha


Por Eric Silva

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Orlando e o Escudo da Coragem é o mais novo infantojuvenil do universo de Athelgard, criação da escritora brasileira Ana Lúcia Merege. Em seu novo livro, Merege conta as aventuras de Orlando, um menino de 12 anos filho de um poderoso senhor de terras em Athelgard, que apesar de sua pouca idade enfrenta uma perigosa prova de coragem para mostrar o seu valor. Um livro criativo e sensível, com uma escrita acolhedora e uma narrativa que ensina o valor da coragem.

Sinopse

Orlando é o mais jovem dos filhos do thane[1] de Leighdale, um garoto esperto, gentil e corajoso de descendência élfica e com o dom da magia, mas que, no entanto, vive à sombra do seu meio-irmão mais velho, Lionel, conhecido por todos pela nobreza e bravura.

O garoto é tão honrado e capaz quanto seu irmão por quem ele tem uma grande admiração, mas ainda não conhece as próprias potencialidades. Em casa, todos implicam por ele insistir em treinar um falcão estrábico, o Vesgo, mas Orlando sabe que assim como ele o pequeno falcão possui potenciais inexplorados e por isso insiste no treinamento do falcão.

Entretanto chega o dia no qual, as potencialidades tanto do menino quanto as do falcão são postas à prova quando Lionel viaja para participar de um torneio e Orlando o acompanha como escudeiro. Naquela viagem às desconhecidas terras das Colinas Negras, por conta de uma série de mal-entendidos e confusões, o menino e seu falcão vivem uma grande e perigosa aventura na qual são testados e levados a mostrar os quão corajosos e capazes eram.

Resenha
Orlando, Lionel e um conto de cavalaria

Imagem: Eric Silva, 2018.
Orlando e o Escudo da Coragem possui uma série grande de personagens importantes, como Brian, que participa do torneio ao lado de Orlando, os caçadores Raylin e Ellak, e o senhor das Colinas Negras, Turnedil, mais a sua esposa, a Dama Elfrida. Porém destacarei apenas Orlando e seu irmão Lionel.

Orlando é um garoto repleto de qualidades positivas. Ele é amigável, aplicado, humilde e sensível, além de guardar em si acentuados graus de sabedoria, maturidade e senso de justiça. Isso tira, na visão de um adulto, um pouco da verossimilhança do personagem, mas para o público infantil ele é um símbolo de retidão e moralidade a ser seguido. Um garoto honesto e bom. Contudo, mesmo aí, o personagem se encaixa perfeitamente dentro das clássicas histórias de cavalaria, onde os cavaleiros tidos como justos eram, em sua maioria, exemplos de nobreza, cristandade e retidão de caráter.

É sem dúvida um personagem que possui seus medos e inseguranças sobretudo pela sua falta de experiência e pouca idade, entretanto ele busca a coragem para vencer seus medos e dar seu melhor.
Lionel é descrito como corajoso e habilidoso estando muito à frente de seu irmão menor, mas também é um bom irmão, atencioso e carinhoso. Defende-o, o estimula e incentiva, além de ensiná-lo, por isso, em lugar de competir com Lionel, Orlando sente admiração e não se importa profundamente de estar à sua sombra. São, em suma companheiros e bons irmãos.

Com precisamente 100 páginas Orlando e o Escudo da Coragem é uma pequena novela que se inspira nos antigos contos de cavalaria medievais. Como é especialidade da sua autora, trata-se de um livro cheio de magia e ensinamentos pensado para o público infantojuvenil, mas escrito com a qualidade de um livro sem faixa etária determinada.

Imagem: Eric Silva, 2018.
No blog da editora Draco[2], Merege conta que teve a ideia do livro depois que viu a imagem de um rapaz falcoeiro com o seu falcão, na imagem um falcão peregrino. Dali junto com o desejo de escrever mais livros voltados para o público infantojuvenil que usasse o universo de Athelgard como plano de fundo, a autora foi, durante o processo de escrita, compondo a narrativa de Orlando.
Para escrever seu livro Ana Lúcia buscou se aprofundar no universo da falcoaria, da cavalaria e dos torneios de justas. Em seu texto ela explica que a relação entre Orlando e seu meio-irmão Lionel foi inicialmente inspirada em “A Espada era a Lei”, e o tema em contos de cavalaria como “Sir Gawaine e o Cavaleiro Verde”. Daí nasceu a ideia de uma novela infantojuvenil inspirado nos romances de cavalaria e histórias de fantasia com a falcoaria, os torneiros medievais, o respeito as diferenças e a coragem como os principais temas abordados.

A falcoaria é uma prática antiga e hoje quase extinta que remota do período medieval. Trata-se da prática de caçar com falcões treinados para este fim. Era uma atividade comum entre a elite medieva e foi o esporte preferido de reis e senhores feudais da época[3]. Para amestrar as aves era necessário paciência e tempo e por isso é preciso escolher muito bem o animal e começar a treiná-la ainda filhote.

No livro de Merege falcoaria e respeito às diferenças se encontram para falar da relação de Orlando com sua ave, o Vesgo. Orlando dedica seu tempo a uma ave estrábica e que provavelmente nunca aprenderia a caçar por conta da alta precisão na visão necessária às aves nessa prática. Contudo, ele não abandona nem despreza Vesgo pelas suas condições físicas e busca explorar seus potenciais ao máximo, jamais desistindo, e irrita-se quando sua ave é descriminada pelos adultos e pelos amigos do irmão.

Image: Eric Silva, 2018.
O tema do respeito às diferenças é marcante na narrativa desse livro e vai muito além da história de Orlando e seu falcão. Ela permeia as relações humanas com os elfos e as criaturas míticas e é um dos principais valores defendidos por Merege em sua obra.

O outro valor é a coragem que vem na trama ligada as grandes dificuldades enfrentadas pelos cavaleiros nos torneios medievais.

Os torneios medievais ou justas eram competições de cavalaria ou pelejas comuns entre os séculos XII ao XVI na Europa[4], e utilizadas como populares formas de diversão executada pelos nobres, mas que atraía também a atenção da população camponesa que assistia às competições.

Todas as provas aplicadas nestes torneios implicavam riscos aos seus participantes e por isso funcionavam também como treinamento e teste de coragem. Mas a coragem de que fala Merege não se resume a bravura, mas a coragem de fazer o que é certo e de ser justo sempre, e Orlando enfrenta suas provações buscando mostra que a coragem possui um significado mais largo e amplo do que a qualidade de não ter medo. O torneio idealizado por ela baliza e faz aflorar a essência dos competidores fazendo emergir os preconceitos e valores: arrogância, bravura, honestidade, compaixão, egoísmo, descriminação, tudo aflora em cada competidor e são jugadas pelos idealizadores da disputa com equidade e justiça.

Essas associações e ensinamentos são comuns na obra de Merege. A autora sempre busca através de suas histórias trazer ao leitor adulto e infantojuvenil algum tipo de aprendizado. Neste livro coragem significa ser justo, não buscar o caminho mais curto, respeitando as diferenças e o outro enquanto busca abrir seu caminho pela vida. Ser corajoso é nunca recuar diante da adversidade e lutar por justiça.

Por esses ensinamentos Orlando e o Escudo da Coragem é um livro que dialoga intensamente com os demais da coleção que compreende o universo ficcional criado pela autora, porque em todos ela encerra algum tipo de ensinamento e valor essencial ao crescimento pessoal das pessoas. Esse diálogo é ainda mais intenso com Anna e a Trilha Secreta, outro livro infantojuvenil sobre a necessidade de que trilhemos caminhos que nos leve ao autoconhecimento, a autocitação e ao respeito às diferenças.

Características gerais e apreciação crítica

Imagem: Eric Silva, 2018.
Uma talentosa contadora de histórias, a escrita de Merege é o ponto que mais me agrada em sua obra. Seja lá qual for a temática que ela escreva, esteja na forma de romances, novelas ou mesmo de contos, e independentemente de para quais públicos ela escreva, sua escrita sempre me dá uma sensação de conforto que poucos autores me causam.

Quando você penetra em seus cenários primorosamente construídos é como se estivesse realmente vivenciando aqueles cenários medievais, bosques e florestas. A linguagem é coerente e adequada, você compreende completamente a história ainda que ela faça referências a elementos e objetos de época que não são conhecidos do público geral. Trata-se de liberdade criativa ampla sem perder o rumo ou deixar o leitor confuso.

A narração é limpa e se limita ao essencial sem perder, porém, a beleza de um texto que te envolve e prende. O narrador não opina nem interfere na narrativa, mas lhe diz o suficiente para que você entenda que toda a peça cumpre o papel de te ensinar algo.

O livro é curto e dividido em 13 capítulos pequenos e por isso a leitura é rápida. Como o texto é fluido e muito bem construído você nem sente quando a história acaba. A linguagem é acessível e mesmo os termos técnicos e históricos não atrapalham o entendimento geral da narrativa, deixa apenas o leitor na curiosidade para saber o que é um jarl (“título usado na Era Viquingue e no início da Idade Média para designar o governador de uma região relativamente grande ou o braço-direito de um rei”)[5] ou um thane (título dado a um oficial do rei local)[6].

Os personagens são construídos conforme suas características e valores, mas como o objetivo da trama é fazer emergir o que está oculto bem poucos são os personagens planos, o que se destaca são os personagens que evoluem com a trama e se transformam. O principal deles é Brian, um dos principais competidores do torneio e que ao longo da história mostra muitas de suas facetas. Isso torna interessante a narrativa e instigante, porque os personagens deixam de ser previsíveis, e ainda que o desfecho da história o seja, não sabemos por quais caminhos a história passará antes de desembocar no resultado que o leitor espera.

A edição é muito semelhante ao livro Anna e a Trilha Secreta e possui o mesmo desenho gráfico e diagramação. O livro é também ilustrado com os desenhos de Ericksama que além de bonitos são também delicados.

Novamente o que mais gostei em Orlando e o Escudo da Coragem é o que costumo gostar e me atrair na obra de Merege: os temas, cenários e a escrita aconchegante e gostosa de se ler. Não vejo pontos fracos em uma trama que foi pensado para o público infantil. Há alguns clichês e o uso de fórmulas já clássicas, mas isso é tudo e está totalmente condizente com o gênero e com o público a que o livro está dirigido. Ainda assim, Merege se sobressai com o seu talento e originalidade nos seus pontos mais fortes. Seus propósitos são claros: divertir, encantar e ensinar, e essas metas o livro cumpre com maestria.

A edição lida é da Editora Draco, do ano de 2018 e possui 100 páginas.

Sobre a autora

Nascida em 1969, na cidade do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Merege é romancista e bibliotecária. Possui mestrado em Ciência da Informação, pelo IBICT/UFRJ-ECO, tendo defendido, em 1999, sua dissertação intitulada O livro impresso: trajetória e contemporaneidade. É também formada em Biblioteconomia pela UNIRIO e, desde 1996, trabalha no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional, onde atua no trabalho com material original, fontes primárias, identificação de documentos e organização de exposições.

Seu primeiro romance publicado, O Caçador (2009), foi também o primeiro do gênero fantasia escrito pela autora que desde então vem se dedicando a organização de diversas coletâneas do gênero, além de contos e romances. Suas principais obras estão ligadas ao universo de Athelgard, criado pela escritora para ambientar sua mais recente trilogia que se inicia com o romance O Castelo das Águias e ganha sequência com os livros A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar, todos publicados pela editora paulista Draco.

Com vasta experiência com manuscritos e forte interesse pela história do período medieval, Merege foi responsável ainda, na mesma editora, pela organização das coletâneas Excalibur: histórias de reis, magos e távolas redondas e Medieval: Contos de uma era fantástica, este último em parceria com o escritor brasileiro Eduardo Kasse.

A escritora ainda ministra cursos e palestras em instituições e escolas.




[1] Título dado a um oficial do rei local (Wikipédia).
[2] https://blog.editoradraco.com/2018/07/como-escrevi-orlando-e-o-escudo-da-coragem/
[3] Enciclopédia Delta Júnior
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Torneio_medieval
[5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Jarl
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Thane_(Scotland)


quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Hilda Furacão – Roberto Drummond - Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Muitos anos depois da exibição da minissérie produzida pela Rede Globo de Televisão, retornamos a história original da prostituta mais famosa do país: Hilda Furacão, livro do brasileiro Roberto Drummond.

Misturando ficção e relato autobiográfico, Roberto recria a atmosfera social moralista-conservadora da época e a tensão política que agitava os últimos anos que antecederam o golpe militar de 1964. É com bastante humor que ameniza o teor crítico de sua narrativa, que o autor vai descrevendo uma Belo Horizonte dos sonhos, mas que também era palco de grandes conflitos, contradições e disputas, e que como tal era um reflexo do que ocorria no Brasil das décadas de 1950 e 1960.

Confira a resenha do penúltimo livro da campanha do #AnoDoBrasil, a segunda edição da Campanha Anual de Literatura do Conhecer tudo.

Sinopse

Em uma narrativa que mescla o romance proibido entre um frade e a prostituta mais cobiçada da capital mineira e o cenário político e social conservador que antecedeu o golpe militar de 1964, Hilda Furacão narra a história de três amigos e uma bela prostituta que chamou a atenção de toda a capital mineira. Os amigos são Roberto, um jovem jornalista comunista que se divide entre a causa e os desafios de quem começa no jornalismo; Aramel, um belo rapaz que sonha em tornar-se ator em Hollywood e livrar-se da vida de pobreza que vivia; e Malthus a quem todos chamavam de Santo, porque desde pequeno foi guiado pela mãe e pelo padre de Santana dos Feros a seguir a vida religiosa para alcançar uma pretensa santidade. E ela era Hilda, a Garota do Maiô Dourado, uma moça de família rica que desprezava todos os pedidos milionários de casamento e que por algum motivo desconhecido abandona tudo e muda-se para o quarto 304 do Maravilhoso Hotel, na zona boêmia da cidade para o desassossego de esposas, namoradas e mães de toda Belo Horizonte.

Ana Paula Arósio no papel de Hilda Furacão na minissérie homônima.
Resenha

A primeira vez que ouvi falar de Hilda Furacão nem imaginava que se tratava de um livro. Como a maioria dos brasileiros conheci a história da prostituta mais cobiçada de Minas Gerais através da minissérie produzida pela Rede Globo e exibida no ano de 1998.

Obviamente, ainda no auge dos meus sete anos, pouco me lembro da telenovela que na época era proibida para a minha idade, mas nunca me esqueci de como a beleza e sensualidade de Ana Paula Arósio, intérprete da protagonista, fascinava qualquer garoto, eu entre eles. Embalados pela voz morna de Nana Caymmi cantando Resposta ao Tempo muitos de nós nos apaixonamos pela beleza da personagem e sobretudo de sua intérprete. Quase vinte anos depois, meio sem querer esbarrei com o livro que inspirou a série na biblioteca da filarmônica 30 de Junho e não tive dúvidas, precisava lê-lo.


Aramel, interpretado por Thiago Lacerda na minissérie da Rede Globo.
Livro de Roberto Francis Drummond, Hilda Furacão conta muitas histórias de uma Belo Horizonte que ficou no passado dos últimos anos antes do golpe militar de 1964. Narrado pelo próprio autor, neste livro Roberto conta sua história e a de dois de seus melhores amigos: Aramel (o Belo) que aspirava alcançar a carreira de ator em Hollywood e enquanto não conseguia seu intento trabalhava como Dom Juan de aluguel para um grande magnata belo-horizontino; Malthus (o Santo), que tornou-se frade dominicano para alcançar o sonho de tornar-se santo, e que em seus momentos de dúvidas se consolava com a geleia de jabuticaba feito por sua mãe. O terceiro a compor o trio seria o próprio narrador, jornalista e comunista que na época sonhava em ter sua própria Sierra Maestra. De maneiras diferentes no caminho dos dois últimos estaria Hilda Furacão.

Filha de uma família tradicional e rica, desde a sua adolescência, Hilda era conhecida, em Belo Horizonte, como a Garota do Maiô Dourado, sendo alvo das paixões de vários rapazes. Contudo, no dia 1 de abril de 1959, a moça resolve abandonar tudo, sai de casa e passa a ocupar o quarto 304 do Maravilhoso Hotel, na rua Guaicurus, Zona Boêmia da capital mineira, onde habitavam prostitutas, boêmios e travestis.

Ali, a Garota do Maiô Dourado que antes frequentava a piscina do Minas Tênis Clube torna-se a Hilda Furacão, a mais desejada e disputada prostituta da cidade. Logo sua fama de levar os homens a “subir pelas paredes” ganha toda a cidade, fazendo crescer a fila na porta do quarto 304. Contudo, a real razão da moça ter abandonado tudo para seguir a vida de meretriz continuava um mistério que muitos desejavam desvendar, entre eles Roberto, que recebera a missão de escrever uma matéria sobre ela no jornal onde trabalhava.

O surgimento de Hilda Furacão coincide com uma grande manifestação popular para acabar com os prostíbulos da Zona Boêmia, transferindo os seus habitantes, bares, bordéis e hotéis para uma área periférica, onde seria construída a chamada Cidade das Camélias.

O projeto, que ainda precisava ser votado na câmara, dividia opiniões e pós em confronto, de um lado, os defensores da Zona Boêmia, sobretudo os habitantes do Maravilhoso Hotel – entre eles Hilda, a prostituta Maria Tomba-Homem e o travesti Cintura Fina –, e, de outro, a Sociedade Defensora da Moral e dos Bons-Costumes, liderados pela moralista Loló Ventura.

Frei Malthus interpretado por  Rodrigo Santoro na minissérie da Rede Globo
Na disputa entre defensores e contrários ao projeto da Cidade das Camélias, Frei Malthus entra ao lado do movimento de Loló Ventura prometendo exorcizar Hilda Furacão, contudo o efeito não é o esperado e os destinos dos dois acabam irremediavelmente ligados.

Contudo, ao contrário do que se pode pensar, Hilda Furacão não é o principal foco do livro que leva seu nome. Em lugar disso, o livro mistura realidade e ficção centrando-se na história de seu próprio autor e narrador.

Contando sua história desde Santana dos Ferros quando morrera seu pai, até suas aventuras como jornalista já na cidade de Belo Horizonte, Roberto traz a si mesmo como personagem ativo e envolvido em quase tudo o que acontecia naqueles tempos na capital mineira. Desta forma, todo o livro está povoado por muitas passagens autobiográficas que se confundem com a parte ficcional da história, além de muitos personagens reais que são inseridos na trama ou servem de base para a criação dos mesmos.

Maior exemplo dessa mistura de ficção e realidade é a personagem principal, inspirada na história de juventude da prostituta Hilda Maia Valentim, conhecida na zona boêmia de Belo Horizonte como Hilda Furacão, mas que ao mesmo tempo foi enriquecida com vários elementos ficcionais que a ampliaram e a adequaram à narrativa.

Em sua narrativa Roberto pinta um Hilda forte e determinada, uma mulher que se faz admirável não apenas pela sua beleza e sensualidade, mas igualmente pela força de seu espírito. O que torna um pouco cansativo na história é a insistência do autor em afirmar ser um mistério Hilda ter tornado-se uma prostituta, quando a própria narrativa deixa claras as suas motivações e que se resumiam a pura superstição. Talvez quando você ler também compreenda do que quero falar.

Os demais personagens da narrativa possuem marcas muito próprias, apesar de achar que Aramel podia ter sido melhor desenvolvido e ter tido sua personalidade mais acentuada na narrativa. Porém, o personagem mais vivo e vibrante na história é, sem dúvidas, o próprio Roberto. Conhecemos cada parte de sua personalidade, seus sonhos e anseios são demonstrados com proximidade, bem como seus pensamentos. Nem mesmo Santo, que na minha modesta opinião se mostra um homem fraco e vacilante, ou mesmo Hilda Furacão, são tão bem caracterizados e aprofundados quanto o narrador da história.

Narração e temáticas

Roberto (personagem) interpretado por Danton Mello na minissérie da Rede Globo
Através de sua narração muito pouco preocupada com a linearidade da narrativa, Roberto vai contando o que ocorre com cada personagem da trama, as aventuras amorosas dos amigos, as rusgas e agitações políticas, as articulações comunistas e dos conservadores de direita. Essa falta de linearidade se manifesta quando, na sua narração, ele vai pulando de um fato para outro, de uma lembrança a outra, criando hiatos entre um acontecimento e seus desdobramentos, apenas para criar expectativas. Um jeito muito próprio de contar história, que usa de uma linguagem informal e muito próxima do leitor, enredando-o com o seu bom humor e até mesmo com essa sua falta de objetividade. Assim todas as histórias que conta encontra sua vez e se entremeiam com a sua própria história.

Mais do que uma história romântica de um amor impossível entre um religioso e uma prostituta, Hilda Furacão é um livro que aborda diversas questões que descrevem o cenário social moralista e conservador das elites brasileiras bem como os fortes sentimentos anticomunistas do período que antecedeu ao golpe militar de 1964.

Roberto Drummond (autor), foi jornalista e escritor brasileiro.
Faleceu em Belo Horizonte, no dia 21 de junho de 2002
O fanatismo religioso e a moralidade conservadora tem um lugar de grande destaque na história e são representados sobretudo na disputa entre defensores e contrários ao projeto das cidades das Camélias bem como no episódio do Adão Nu, ocorrido em Santana dos Ferros e que se torna um escândalo na cidade.

No primeiro caso, vemos como as mulheres de famílias tradicionais de Belo Horizonte se empenham para que o projeto fosse aprovado e um processo de segregação socioespacial fosse feito, afastando para o subúrbio a população da área boêmia que atraía maridos e filhos para os bailes e as “mulheres de vida fácil”[1]. Tamanho era o fanatismo misturado com o sentimento de ameaça que as mulheres da zona boemia, e sobretudo Hilda, representavam, que o grupo, liderado pela tradicional e moralista Loló Ventura, viam em Hilda Furacão a própria imagem do mal encarnado na forma de mulher, julgando-a possuída. Ideia essa que contagiou até mesmo Malthus que quase nada sabia da mulher que prometera a Loló Ventura exorcizar.

No segundo caso, o autor descreve a polêmica criada quando a igreja de Santana dos Ferros recebe um painel de uma cena do livro de gêneses na qual adão foi representado completamente nu. Um episódio que consternou a maioria das beatas da cidade e sobretudo uma das tias de Roberto que daquele dia em diante só entrava na igreja de costas para não ver as “vergonhas” do primeiro homem. O autor aborda estas questões com um misto de comédia que suaviza a crítica que ele faz nas entre linhas a uma falsa moralidade que encontrava no campo religioso uma grande vasão.

Militares da Força Pública, atual polícia militar, protegendo
 o Palácio Guanabara, no rio de Janeiro, 
durante o Golpe Militar de 64.
Imagem: Wikimedia Commons.
O outro ponto abordado pelo livro são os sentimentos anticomunistas vigentes na época, quando a elite de direita tradicionalista via nos partidos e grupos de esquerda, bem como na presidência de Jânio Quadros, mas sobretudo no governo de João Goulart, uma ameaça à soberania nacional, ao capitalismo e a democracia liberal.

Comunista e militante, Roberto fala de seus sonhos de resistência, de fazer no Brasil uma revolução socialista, de ter sua própria Serra Maestra[2] e, nesse ínterim, relata as dificuldades de manter em segredo o movimento, de conduzir suas ações e treinamentos e principalmente a moralidade ferrenha existente também dentro do partido, a moralidade socialista tão rigorosa quanto aquela defendida pelos capitalistas da época.

De toda forma o cenário político da época é um dos principais panos de fundo da narrativa que comenta fatos do momento político do país como as reformas de base e a disputa entre direita e esquerda durante os governos de Quadros e Goulart.

O livro termina com a eclosão do movimento golpista empreendido pelos militares e que contava com o apoio dos partidos de direita. Desse modo, o destino dos personagens principais coincidem com o dia seguinte ao golpe que deu início à Ditadura Militar no Brasil, ironicamente concluído em 1º de abril, Dia da mentira. Contudo o desfecho da narrativa não foi exatamente o que eu esperava, marcado por muitos desencontros e deixando um ar de história inconclusa.

O livro e a minissérie: comparações inevitáveis

Abertura da minissérie da globo exibida em 1998 e inspirada no livro de Roberto Drummond. 
Fazer comparações ente a minissérie e o livro foram inevitáveis. E apesar de achar que muito da narrativa foi preservado, foram nítidas as mudanças feitas para adequar um livro de quase 300 páginas ao que se esperava de uma série de 32 capítulos. Criação de novos personagens, aprofundamento de outros que bem pouco apreciam, além de um espaço maior para acontecimentos narrados de forma breve por Drummond, a fim de não estender a narrativas, foram as mudanças mais claras feitas na história original.

Outra mudança está na linearidade. Para não confundir o espectador, sobretudo aqueles que não havia lido o livro que inspirou a série, a Globo preferiu contar a história de Hilda de forma cronológica, quebrando com a total falta de linearidade do original. Assim, o roteiro deixou mais fácil não só a compreensão das discussões políticas acerca dos governos de Juscelino, Quadros e Goulart e, por fim, da eclosão da Ditadura, como também da evolução de seus personagens na trama.

Outro aspecto que notei é que o livro é muito menos focado na história romântica de Hilda e Santo do que a minissérie. Hilda Furacão tem mais traços de livro histórico e político do que de fato de uma história de amor. Em muitos momentos o casal protagonista fica apagado na narrativa enquanto se desenrola as aventuras do jornalista em sua causa socialista e em meio as agitações políticas da época. Mesmo sem apagar o conteúdo político da narrativa, a minissérie procurou dar destaque aquilo que chamaria mais atenção do povão acostumado às novelas globais: um amor proibido dividido entre o desejo e o medo do pecado.

Por fim, o humor característico do narrador é outro elemento que senti falta na minissérie, mas percebi que ele foi conservado nas cenas cômicas que se desenrolava na pequena cidade de Santana dos Ferros.

Em conclusão, Hilda Furacão é um livro muito bem-humorado, que fala dos bastidores de uma época no qual a tensão entre a elite de direita e tradicionalista e os movimentos trabalhistas (de esquerda) se encaminhava para o Golpe de 1964. Trata-se também de uma obra que desnuda, de um lado, os últimos anos de uma era de grande participação política por parte da população, representados por Roberto, e, de outro, os anos de ouro da boemia, representados por Hilda Furacão e pelas pessoas da Rua Guaicurus. Enfim, um livro bom.

A edição lida é da Geração Editorial, do ano de 2008 e possui 295 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

Prévia do Google Books






[1] Apesar de empregá-lo na resenha considero o termo uma grande inverdade, posto que o próprio livro dá rápidas demonstrações de quantos desafios eram enfrentados todos os dias pelas prostitutas e transexuais da zona boêmia.
[2] O autor faz referência as montanhas de Sierra Maestra, em Cuba, onde o socialista e rebelde Fidel Castro e seus seguidores, na época, contrários ao então ditador Fulgêncio Batista, se esconderam e mantiveram seu quartel-general militar. O lugar é ainda hoje considerado um marco na história da Revolução cubana realizada no ano de 1959.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

O Tigre na Sombra – Lya Luft - Resenha

Por Eric Silva

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“Quem sabe a verdadeira vida é dentro do espelho, e tudo aqui fora é sonho”
(Lya Luft, em entrevista para o programa Sempre Um Papo)

Uma história trivial com todo um jeito próprio de se contada, um encontro entre prosa e poesia, entre realidade e fantasia. O Tigre na Sombra, romance da escritora Lya Luft, é o oitavo livro da campanha do #AnoDoBrasil. Um romance breve e bastante profundo, e que apesar de ser um livro de trama corriqueira e cotidiana, não deixou de me encantar pelo lirismo e profundidade da escrita da autora.

Confira a resenha do oitavo livro da campanha anual de literatura que nesse ano homenageia a literatura do Brasil.


Sinopse

Em O tigre na sombra, a autora brasileira Lya Luft retorna a prosa e ao tema dos dramas humanos. Mesclando prosa e poesia conta a história de Dôda, uma menina com uma perna mais curta, que enfrenta todos os dilemas de uma família onde os sentimentos e afetos se dão e se distribuem de forma desequilibrada. Apesar de tudo Dôda é dona de uma imaginação fértil que se torna em muitos momentos o seu refúgio da realidade difícil de sua família. É sob seu olhar que miscigena fantasia e realidade vamos conhecendo os dramas de cada personagem e dela mesma, assim como acompanhamos seu crescimento e entrada para vida adulta.

Resenha

Quando, procurando nas prateleiras da Biblioteca da Filarmônica um livro para ler, me deparei com O Tigre na Sombra. Quando o retirei da prateleira vi que era da mesma autora de um dos meus dicionários e isso me deixou curioso porque não sabia que era autora de romances, mas, na verdade, foi o título exótico que me chamou a atenção me fazendo recordar a longínqua Índia onde vivem os imponentes Tigres-de-Bengala. Só depois li a sinopse e me decidi a ter esse primeiro contato com a autora. Um contato interessante, uma experiência nova, pouco convencional, eu diria, mas não o suficiente para me fazer fã de Lya. Necessito de mais de sua narrativa-poesia para isso.

A despeito das imagens que o título me fez recordar, o tema do livro de Lya Luft nada tem a ver com a Índia, muito menos com os poderosos animais que lhe dão título e que na narrativa tem presença tênue ficando no campo do simbolismo e da metáfora. O tigre desta narrativa que, por sua vez, se integra com a poesia de forma muito bonita, existia apenas na tênue fronteira entre a imaginação e a realidade vivida por uma criança que se sentia pouco amada pela mãe e carregava o estigma de um pequena “deficiência” física: uma perna mais curta. Essa criança é Dolores, “nome escuro, de sombra e pranto, cheio de ôôôs lúgubres”, mas que por causa da irmã, Dália, passou a ser chamada de Dôda.

Dôda era uma menina cuja imaginação e sagacidade parecia não ter fronteiras. Via coisas que ninguém mais via, criava um tigre de olhos azuis no quintal. Via a si mesma no espelho como outra garota, a Dolores, que tinha a vida que ela sonhara ter. Uma imaginação que era alimentada pela sua avô delicada, mas pouco convencional que sempre lhe dizia: “Realidade? Bobagem. Cada um inventa a sua”.

Quando criança, Dôda sofria muito com o desafeto da mãe egoísta e cheia de sonhos de grandeza, mas que descontava no marido passivo suas frustrações por sua pobreza. Com as filhas não era diferente, de Dália e de Dôda, a caçula, sempre exigiu demais. Da mais velha que fosse a filha perfeita e a outra que não a envergonhe com suas limitações. Via a caçula como a deficiente, a limitada, limitação que a envergonhava, e a mais velha como a bonita, a que tinha futuro. Nada fez de bom e que não alimentasse o ressentimento das duas filhas, sentimentos que as meninas levariam também para a vida adulta.

Contado pelo olhar de Dôda a família retratada por Lya é marcada por diversos problemas além do desafeto, como o alcoolismo e a traição. Ao longo do livro a menina vai narrando seu relacionamento conturbado com a mãe, seu amor pela Vovinha que era tão diferente da filha única e que com o avô era o porto seguro de Dôda. Fala de seu relacionamento com a irmã e do pai passivo e incapaz de pôr limites aos excessos de sua esposa. Uma narração que se alonga até a idade adulta da personagem mostrando os desdobramentos daquelas relações sobre o psicológico das meninas e seus reflexos na maturidade. [SPOILER] mostrando como gradativamente Dôda abandona suas fantasias e passa a viver uma vida iludida.

Opinião e divagações

Aqui no blog eu tenho uma regra de respeito absoluto ao trabalho de qualquer autor que eu resenhe (veja os 13 mandamentos do bom leitor), logo nenhuma das resenhas que vão a público são daqueles livros que detestei, que eu tenho muitas ressalvas ou que simplesmente não gostei e não tenho nada de bom para falar. Livros assim eu prefiro não resenhar, não trazendo a público a minha opinião. Então quando eu dedico uma resenha aqui pode ser que o livro não tenha me interessado, mas nele há de algo de positivo, de instigante e que considero necessário dividir. Por esse motivo, por exemplo, algumas vezes evito parcerias.

Quando definitivamente não gosto de uma história e não tenho nada de positivo para falar sobre ela costumo deixar apenas um comentário para os meus amigos no Skoob e não faço resenha para o blog. Se quiserem me seguir lá vejam meu perfil.

Por isso costumo dividir os autores que resenho em três grupos principais: aqueles que me encantam pela sua escrita, pela originalidade e beleza da forma como manipulam e escolhem as palavras; os autores que me encantam pela originalidade da narrativa, com histórias que realmente prendem o leitor seja pela inteligência, seja pela criatividade e beleza de suas histórias; e, por fim, aqueles autores que de fato me encantam porque carregam ambas as características. Esses últimos são de fato aqueles de grande e genuíno talento no MEU ponto de vista.

A autora
Por enquanto Lya está no primeiro grupo. Não que O Tigre na Sombra seja um mal livro, ele não é, mas porque sua narrativa é cotidiana demais para o meu gosto que prefere as grandes tragédias, o histórico, o épico, o futurista, o misterioso e o fantástico. Por ser um livro do e sobre o cotidiano e as relações humanas, não podemos esperar grandes reviravoltas na trama. Além do mais, o corriqueiro me cansa e me dá enfado, talvez por isso poucos clássicos da nossa literatura me atraiam.

Melancólica e terna, cativante como criança travessa de sorriso bonito, a protagonista de Lya me conquistou nas primeiras páginas, mas pouco a pouco as coisas mudam, se tornam mais amarguradas, mais acres, perde a direção, ou melhor, mudam de curso e com ele o meu interesse. Não sei explicar, mas ao chegar no final do livro bem pouco da trama ainda me interessava e provavelmente essa resenha só foi escrita meses depois porque não sabia ao certo o que falar do livro.

Afirmo que Lya aborda com talento os dramas familiares da rejeição, do alcoolismo, dos relacionamentos fracassados e das infelicidades da vida ao exemplo da depressão e das situações traumáticas que marcam as pessoas, as modificam. Confesso, por outro lado, que dramas familiares não me chamam atenção, não se estes forem bastante temperados com trivialidades. Não obstante, não deixei de me encantar pelo lirismo e profundidade da escrita da autora que me fizeram divagar um pouco.

No caso do lirismo, percebi como a autora desfia o cotidiano de forma poética e com propriedade vai falando dos muitos problemas que se interpõem entre os membros da família. Poesia se intercala e se integra com prosa, num ritmo todo único e em alguns parágrafos nos são dados vislumbres do futuro na narrativa. O resultado final é de uma originalidade ímpar:


No fundo do corredor
um espelho em pé é uma casa
de vidro;
um espelho deitado é um mar,
abismo.
Em ambos algo me observa
lambendo calmamente as patas.

Ele é a vida e a morte,
reais
ou com disfarces bizarros:
quem se importa com a verdade?
Ela é sempre invenção de alguém.

(E os olhos do meu tigre
são azuis.)

Um homem tira o revólver da prateleira mais alta e coloca embaixo do travesseiro. E pensa antes de adormecer: Eu preciso ser alguém.
Uma mulher abre os olhos no escuro e pensa: Eu preciso encontrar alguém.
Uma mãe recebe nos braços seu bebê recém-nascido e não entende por que o rostinho dele está coberto por gaze.
Uma menina sonha que tem duas perninhas iguais.



Por sua vez, quanto a profundidade ela está sobretudo na reflexão dos personagens.

Dôda é uma personagem dividida entre a realidade e a fantasia, seu principal refúgio do desamor da mãe. Mas ao mesmo tempo ela é um personagem maduro que reflete bastante sobre a vida, dando voz a autora.

Algo que gostei muito na personagem e em sua avó foi esse jeito de deixar-se levar pelas fantasias, aceita-las como um real possível, e a realidade como algo vindo de nós e que forjamos. É um livro bastante subjetivo, mas que nos faz refletir, por exemplo, como são muitas as pessoas no mundo reprimidas pela necessidade de se ajustar, e tantas outras exprimidas na busca por um refúgio que lhe sirva como válvula de escape ou como armadura de autodefesa.

Não acho que a imaginação precise ser uma atitude de fuga, considero-a, primeira e primordialmente, como algo inerente ao espírito humano. Não é necessário ser alienado para se ter imaginação, nem acredito que todo alienado seja capaz de sonhar acordado. Imaginar não supõe ser irracional, racionalidade não inviabiliza o imaginar. O projeto humano de felicidade e igualdade, por exemplo, pressupõe a capacidade de imaginar uma outra maneira de se viver e se organizar em sociedade, é preciso isso para saber qual realidade se pretende construir. Assim nascem as utopias e por todas essas coisas é que meu ser pesquisador, educador e cientista não contradiz ou se opõe ao meu eu leitor e apreciador de fantasias.

Outra divagação que o livro de Lya me trouxe é sobre como as vezes idealizamos demais as pessoas e a vida e nos esquecemos que cada um tem seus próprios sonhos e desejos. Me fez pensar de como as nossas expectativas para com o outro podem representar grilões pesados demais e difíceis de romper. A mãe fez isso com Dália e [SPOILER] arruinou a sua vida.

Fez-me pensar também de como somos aquilo que recebemos das pessoas. De como nos construímos do amor, da indiferença, da presença e da ausência dos outros. Somos uma caleidoscópio, ou melhor, um mosaico de sentimentos aflorados da experiência e do contato com o outro. Se seremos mais imaginativos, felizes, desiludidos, amargurados ou complexados, se iremos nos revestir de uma couraça que nos proteja do mundo ou se vamos nos entregar a ele e ao sabor da fortuna[1], isso dependerá enormemente de quem foram as pessoas que nos cercaram, e com o qual nos relacionamos e trocamos experiências.

De todo modo, tenha eu ou não gostado da trama da narrativa de O Tigre na Sombra – algo que só agora consigo ver como muito pouco relevante – a verdade é que esse é um livro que nos faz pensar e ir além dele e isso já é mais do que suficiente. Vale a pena lê-lo.

A edição lida é da Editora Record, do ano de 2012 e possui 128 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books e um vídeo da autora falando sobre seu livro.

Quer saber mais sobre a autora? Confira nossa postagem sobre os autores que estamos lendo na campanha (CliqueAqui).

Video


Prévia do Google Books









[1] Sorte, destino.

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