segunda-feira, 27 de novembro de 2017

7ª Arte: Que Horas Ela Volta? – Resenha

Um filme que daria um bom livro

Por Eric Silva


Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Filme brasileiro escrito e dirigido pela paulista Anna Muylaert, Que Horas Ela Volta? é uma obra de enredo simples, mas que faz emergir um retrato social e cotidiano muito fiel do trabalho doméstico no Brasil e, paralelamente, da migração nordestina para a capital paulista. Um cotidiano que por vezes é marcado por humilhações e desrespeito aos direitos trabalhistas e que já foi, em parte, a minha realidade e também de minha mãe. Por isso, essa resenha terá um tom bastante pessoal.

Enredo

Em Que Horas Ela Volta?, Muylaert conta a história de Val (Regina Casé), uma pernambucana que deixou sua terra e uma filha ainda pequena, Jéssica (Camila Márdila), para tentar a vida como empregada doméstica na cidade de São Paulo.

Por mais de dez anos, a nordestina trabalhou como babá e empregada doméstica na casa de Bárbara (Karine Teles) e José Carlos (Lourenço Mutarelli). Nesse tempo ajudou na criação de Fabinho (Michel Joelsas), filho único do casal de classe alta, estabelecendo com o menino um laço emocional muito forte. Em contrapartida, durante isso Val se viu privada da convivência com a própria filha que só via quando viajava de férias ao Pernambuco, participando muito pouco do crescimento da menina.
Além disso, na convivência próxima com pessoas de classe muito alta, a pernambucana aprende a obedecer uma série de convenções que por elas foram estabelecidas para separar patrões e empregados e impor a estes últimos certos limites de intimidade.

A trama do filme se passa justamente quando, uma década depois, Jéssica resolve ir morar com a mãe para tentar ingressar no concorrido curso de arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU).

Por exigência dos patrões ou por necessidade – o filme não esclarece – Val desde o início passou a viver no trabalho, ocupando o espaço diminuto de um quarto da área de serviço, onde também armazenava todas as suas coisas.

Mesmo com todos os anos de serviço nunca chegou a ter uma casa própria. Em conta disso, Val se vê obrigada a levar a filha para seu trabalho, enquanto buscava uma casa que pudessem alugar. Contudo, a chegada da inteligente e audaciosa Jéssica traz uma série de problemas para mãe.

Ignorando qualquer convenção que lhe dissesse qual o seu suposto lugar ou qual a maneira como se portar dentro da casa dos patrões de sua mãe, Jéssica acaba por atrair não só a ira de Bárbara, como também as atenções dos homens da casa, e, pouco a pouco, com suas atitudes expansivas e de insubmissão às regras sociais ali impostas vai mudando a forma de pensar e de ver o mundo da própria Val.

Os Personagens e seus papéis

Que Horas Ela Volta? possui personagens bem particulares, mas que, ao mesmo tempo, caminham por uma linha tênue que separa o estereótipo e a representação social de diferentes grupos. Ainda assim, cada personagem que figura a narrativa cumpre o papel de representar no conjunto o teatro social brasileiro, seus principais personagens, suas distorções e convenções.

Val tomando um pouco de sol, após terminar a lavagem da roupa da casa.
Val é uma pessoa divertida, expansiva e desengonçada, como a caracteriza Adriano Senkevics[1] do Ensaio de Gêneros, mas, ao mesmo tempo, ela carrega no olhar o peso dos anos e da rotina de trabalho além de um sofrimento silencioso que nasceu da distância que se interpôs entre ela e sua única filha Jéssica.

Como profissional é o tipo da empregada dedicada ao que faz, que se sente próxima dos patrões, mas sem deixar de manter um certo distanciamento respeitoso, não se permitindo ser íntima demais ou tomar liberdades que não condigam com sua posição de empregada. Nos seus gestos, palavras e atitudes humildes, sobretudo quando se desculpa por algo, é notória uma submissão pouco velada. Val é para mim como aquele personagem que vive em suspensão, em um eterno estado de transição que nasce da dualidade entre ser íntima e não o ser e nem permitir-se ser inteiramente, nem a todo momento e nem com qualquer um.

Em seu papel social dentro da trama Val ainda representa a coluna mestra que permite a tantas famílias de classe média a reproduzir seu status quo: enquanto os pais trabalham e gozam de seus privilégios de classe, é ela quem de fato cria as crianças e garante o funcionamento da casa. Dela depende toda a família, nos mais diferentes níveis, sem que, no entanto, saia de sua posição socialmente estabelecida.

Jéssica e Bárbara em uma das cenas onde a patroa da Val
busca deixar claro qual é a posição de Jéssica em sua casa. 
Jéssica, por sua vez, é o posto da mãe, em seu olhar, que Val define como de uma superioridade que “olha tudo parecendo o presidente da república”, arde uma determinação silenciosa, mas mal velada, ora por um ar de tédio ou de curiosidade, ora por um gesto mais expansivo e alegre. É um olhar crítico que explode em provocações e que alerta a mãe sobre a sua condição de subalternidade, expondo a falsidade das relações imbuídas no “ser parte da família”. É por ter ciência dessa falsidade que Jéssica não se diminui enquanto pessoa, preserva seu orgulho, aplica-se em seus estudos para ascender socialmente e, principalmente, transgrede qualquer regra social que lhe seja imposta ou a diminua à condição “de cidadã de segunda classe”. Por isso é um personagem que divide opiniões, porque mexe em uma ferida mal curada e aberta desde que foi declarada a abolição da escravatura.

Ao mesmo tempo, Jéssica é uma estudante aplicada, porque vê nos estudos a possibilidade de um futuro melhor e nisso ela é também um contraponto a Fabinho. O rapaz, ao contrário dela, já tinha tudo e o seu ingresso na faculdade representava garantir o status quo da família no futuro.

Quanto a família para quem Val trabalha, cada um cumpre representar uma parcela de uma classe que no Brasil é cercada de privilégios, detém o poder econômico e historicamente vem ditando as regras sociais dentro da sociedade brasileira.

José Carlos e Jéssica em cena na qual ele apresenta seu trabalho como pintor. 
José Carlos é o rico excêntrico que tendo enriquecido por conta da herança de família se tornou artista passando a viver só de sua arte. Ele não se veste luxuosamente, mas não é muito diferente da esposa no que diz respeito ao tratamento dispensado a Val. Ela é a empregada de confiança, mas é a empregada. Por ter entrado em um casamento que não o faz feliz, se sente atraído pela beleza, juventude e inteligência da filha da empregada e por isso a cerca de mimos. Entretanto, quanto a mãe, esta continua sendo a serviçal que também passa a servir a filha quando esta está em sua companhia.
Fabinho é o adolescente mimado, inconsequente, despreocupado e acostumado a ter tudo sem se preocupar com a origem da sua riqueza ou com o futuro. Ao mesmo tempo é o filho pouco ligado aos pais que maior parte do tempo se encontravam ausentes e não o provia do carinho e da atenção que ele necessitava. Os ciúmes de Jéssica é automático apesar de ser pouco expressado, mas não tanto pelo pai, ou até por Val, mas pela presença de alguém que ele acha “segura de mais de si”.

Por fim, Bárbara é a típica socialite que não faz nada em casa por conta própria, ligada ao mundo da moda e que como patroa sempre se mostra amável, mas não perde a chance de mostrar veladamente e, nas entrelinhas, qual é o lugar da criadagem e o seu descontentamento em relação a presença de Jéssica em sua casa. Sua recepção a Jéssica, bem no início, é calorosa, mas apenas até ela perceber que a menina não ficaria “da porta da cozinha pra lá”. Até notar o interesse mal dissimulado do seu marido e, iminentemente, também do filho. Logo a máscara de boa patroa é substituída pelo olhar prepotente, altivo e de pouco contentamento e as indiretas começam a surgir. O desfecho já era esperado.

No fim, o conjunto desses personagens representa três grandes grupos: a classe média acostumada a mandar e ser servida; a geração submissa da classe trabalhadora acostumada a receber ordens, acatá-las e respeitar as convenções impostas pela estratificação, bem como a própria estratificação; e, por fim, Jéssica seria a nova geração, como afirma Léa Maria Aarão Reis[2], que persegue um Brasil mais igualitário com a diminuição das desigualdades entre classes, e que acredita que, através da educação, é possível alcançar essa redução da desigualdade e por, extensão, alcançar também uma vida melhor.

Conclusão: porque um bom livro?

Como os leitores sabem o 7ª Arte se dedica a falar tanto de adaptações de livros para o cinema, como de filmes que dariam bons livros. No primeiro caso teço críticas e comparações entre o livro e sua adaptação, mas no segundo caso explano os motivos que me levam acreditar que o roteiro de um determinado filme se transformaria em um livro interessante caso fosse escrito nesse modelo.

Confesso que minha escolha por Que Horas Ela Volta? tem razões muito pessoais. Ele é um filme que tem muito a ver comigo e por isso chamou bastante a minha atenção.

Assim como a personagem Jéssica já fui o filho da empregada doméstica que morava no serviço. Vivi uma década de minha vida em uma casa que não era minha, e apesar de ter uma relação relativamente boa com os membros da casa, também passei por momentos bem ruins e desconfortáveis que só quem já viveu na casa dos outros sabe bem como é. Além disso, reconheço em Val a labuta, a submissão, a quase servidão a que minha mães esteve submetida, bem como o comportamento condicionado por limites invisíveis e que ela, para nos manter lá, também me impôs.

Por ter visto e vivido de perto a realidade dos empregados domésticos é que achei poderosa a opinião de Léa Maria, quando afirma que a cineasta de Anna Muylaert, com seu trabalho, “toca num nervo infeccionado, até então camuflado, da classe média brasileira”: a “hierarquização feroz das classes no Brasil”.

Porém, aparte das minhas razões pessoais e logo egoístas, considero que a relevância dos temas que são discutidos por Que Horas Ela Volta? já o tornaria um bom enredo para livro. Porém, além dessa relevância, soma-se o fato de que ainda não li um livro brasileiro que abordasse a questão dos trabalhadores domésticos desta maneira. Conheço apenas uma obra estrangeira que tenta desbravar as intrincadas relações entre patrões e empregados domésticos. Esse livro seria O Diário de uma Camareira, de Octave Mirbeau, mas que pelos seus 117 anos de existência fala de um contexto histórico muito diferente, além de ser sobre outro país.

O trabalho domestico na mansão de Bárbara.
Em primeiro plano, Val e a diarista que lhe ajuda com a limpeza da casa. 
O filme também soube retratar muito bem a realidade de um grupo social que possui muito pouca projeção no cinema e na literatura e que quando são representadas ou são destacadas as suas características quase sempre é de uma forma estereotipada.

Estou acostumado a ver no cinema e na literatura o empregado como uma espécie de figurante, ou personagem secundário, condizendo com sua posição dentro da casa dos seus senhores.

A cozinha é o lugar do mexerico, o mordomo é o lacaio fiel, a governanta é a tirana que conduz a mãos de ferro a criadagem subalterna, a empregada é o alvo preferido das ofensas, das provocações e humilhações de seus senhores. Esses são os esteriótipos mais comuns. Quando o personagem foge deles ela/ele é aquela pessoa maravilhosa, surreal, que merecia ser mais do que um simples empregado e por vezes é promovido a patroa/patrão. Logo é também um modelo nem sempre real.

Para mim, a Val de Que Horas Ela Volta? devolve a humanidade aos empregados domésticos ao ser retratada como alguém com seus próprios dramas pessoais, que padece os dissabores da profissão. Um alguém que é simples mas não ingênuo, que é envolvida pelo sentimento de dever imposto por sua posição, mas que também se envolve emocionalmente com as pessoas para quem trabalha, e que no fim, faz suas escolhas a partir daquilo que de fato é importante para si.

Ademais, Que Horas Ela Volta? tem um traço que gosto muito no nosso cinema: a sua capacidade de trazer histórias cheias de humanidade. Vi essa humanidade em toda a trama, na relação carinhosa entre Val e Fabinho e também no desfecho que fala de recomeço.

Trata-se de um filme que ao mesmo tempo que desnuda e expõe as relações entre ricos e pobres, patrões e empregados, também ressalta como o afeto pode estar pra além disso. Em meio a todas as questões de classe, o filme mostra que a humanidade existe no amor sincero cultivado ao longo dos anos com cumplicidade, afeto e atenção e não reconhece as fronteiras entre classes.

Val e Fabinho em uma das cenas que melhor representou o carinho entre os dois. 
Sempre ao lado de Fabinho, apoiando-o em tudo e preenchendo a lacuna de uma mãe ausente, Val constrói com o filho dos patrões uma relação muito próxima, muito sincera e muito bonita. A cena que mais me chamou a atenção foi quando com insônia, Fabinho deixou o conforto de seu quarto e vai se aninhar no acanhado espaço de Val, apenas para que ela acariciasse seus cabelos para fazê-lo dormir. Em contrapeso, seus pais lhe garantia tudo que fosse do melhor e a possibilidade de uma boa formação educacional, mas falhavam miseravelmente no que diz respeito à atenção, ao cuidado e ao carinho.

Enfim, é uma relação muito bonita de carinho e cumplicidade, nascida entre duas pessoas carentes de carinho, ele da mãe, ela da filha ausente. Sentimento raro, mas que mostra que, aparte de tudo, ainda somos humanos e em nossa humanidade, quando não nos deixamos levar pelas convenções sociais, somos capazes de amar e encontrar amor em toda parte.

Enfim, em seu conjunto e com a incrível atuação de Regina Casé, Que Horas Ela Volta? revela um retrato fiel das divisas sociais que separam as classes e que são reproduzidas em todos os contextos e dimensões da vida cotidiana da sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, tratou da humanidade nas relações sinceras. Um filme real, bonito, sincero, humano. Preciso dizer mais alguma coisa?

A película é uma produção dos estúdios Gullane e África Filmes, com co-produção de Globo Filmes e entrou em cartaz no ano de 2015. Foi ganhador do Prêmio Especial do Júri Pela Atuação para Regina Casé e Camila Márdila no Festival de Sundance. Venceu no Festival de Berlim o prêmio do Público de Melhor ficção na Mostra Panorama e o prêmio CICCAE. Venceu ainda no RiverRun International Film Festival pelo melhor roteiro, dentre outros prêmios no Brasil e no mundo. Tem duração de 112 minutos.

Abaixo você pode conferir o trailer do filme:

Trailer










[1] https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2016/01/30/que-horas-ela-volta-um-filme-para-se-pensar-a-estratificacao-social-no-brasil/
[2]https://www.geledes.org.br/que-horas-ela-volta-com-medo-de-jessica/?gclid=EAIaIQobChMIx4mDzeXY1wIVS4GRCh1l8w4cEAAYASAAEgL-KvD_BwE

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