Por Eric Silva
Um vampiro como nenhum outro que você tenha visto na
literatura e séculos de história alternativa compõem o universo da terceira
obra resenhada na campanha do #AnoDoBrasil. Livro do carioca Gerson
Lodi-Ribeiro, Aventuras do Vampiro de
Palmares, narra as desventuras e peripécias de Dentes Compridos, a última
criatura remanescente de um povo milenar e indiferente à passagem dos séculos e
que desde os tempos mais remotos sobreviveram da vitalidade do sangue humano
até conhecerem o furor de suas presas. Um livro riquíssimo que reescreve a
história da humanidade e do Quilombo dos Palmares, aliando ciência, misticismo, fantasia e fatos para
compor uma trama que atravessa os tempos e desafia o seu leitor com a grande
questão que nem mesmo a ciência foi capaz de responder: somos as únicas
criaturas inteligentes a habitar o universo?
Sinopse
Do Peru pré-colombiano à
Inglaterra Vitoriana, Aventuras do
Vampiro de Palmares narra o trajeto dos filhos-da-noite, entidades naturais
predadoras da raça humana que, ao longo dos séculos, foram sendo envoltos por
uma áurea mítica de crendices e mitos que deram origem a lenda dos vampiros.
Dentes Compridos é o único a escapar do massacre de seu povo milenar e sozinho
corre o continente americano em busca de salvaguardar sua vida. Mas depois de
muitas décadas de fuga em que esteve vivendo entre os índios brasileiros, o
último filho-da-noite chega a nascente nação negra dos Palmares onde é
capturado, feito cativo e depois, improvável aliado, um misto de agente secreto
e assassino que age nas sombras na luta pela liberdade e pujança daquela que
pretendia ser a primeira república das Américas e que se tornaria sua nação em
definitivo.
Resenha
Desde John Polidori[1],
James Malcolm Rymer[2] e Bram Stoker[3]
que a literatura mundial está repleta de histórias de vampiros, dos mais
variados tipos que vão dos sugadores mortos-vivos mais clássicos aos que
brilham na luz do sol (rsrsrsrs). Mas piadas “crepusculares” à parte, na
literatura brasileira também encontramos as nossas próprias histórias sobre o
mito dos vampiros, algumas inspiradas nos modelos mais clássicos e outras
extrapolando o próprio mito buscando outras raízes mais profundas. Mas a
novidade trazida com Aventuras do
Vampiro de Palmares, terceiro livro na campanha do #AnoDoBrasil, é o
vampirismo científico, ou seja, vampiros encarados como criaturas naturais de
uma espécie a parte, predadora da espécie humana e sanguissedenta (hematófaga),
que em circunstância da força do tempo e das crendices passadas de geração em
geração foram revestidas por uma representação fantasiosa, mesmo que com um
fundo de verdade. Uma variação para mim completamente nova.
Meu primeiro contato com
histórias nacionais sobre vampiros foi com O Andarilho das Sombras, primeiro
livro da série Tempos de Sangue de autoria de Eduardo Kasse. Nesse livro, o
autor cria Harold, um vampiro cuja origem remontam a mitos nórdicos que na
Europa Medieval (cenário da trama) já caiam em decadência e desapareciam frente
a hegemonia e imposição do catolicismo. Na trama idealizada por Kasse, o
personagem principal conserva quase todos os aspectos tradicionais do
vampirismo clássico. Além disso é marcante o peso dos contextos históricos de
época sobre a trama, com destaque para a história religiosa-cultural medieval.
Depois de Kasse ainda não
tinha lido outra obra nacional sobre vampiros. Aventuras do Vampiro de Palmares seria o meu segundo contato com
o gênero em uma produção nacional, porém aqui, como já mencionei, a perspectiva
de vampiro é bastante diferente, e mesmo tendo a História também um peso
marcante para esta narrativa, ela se dá em épocas e espaços distintos em
relação a obra de Kasse.
Em seu livro, Lodi-Ribeiro
narra a história de Dentes Compridos, o último remanescente dos
filhos-da-noite, autointitulados como o Povo Verdadeiro. Segundo a trama, que
se inicia na América Latina pré-colombiana, surgira na Terra uma outra espécie,
em alguns aspectos semelhantes a espécie humana, mas muito distinta em seus
hábitos alimentares, nas suas habilidades naturais de predação, na capacidade
de viver milênios, na sensibilidade a luz diurna e na grande capacidade de
visão noturna. Uma espécie cuja gênese se perdera no tempo restando apenas os
mitos contados pelos anciões do Povo Verdadeiro, mas cuja trajetória sobre a
Terra seguiam de perto as grandes migrações humanas.
Segundo as lendas contadas
por aquele povo, o Inominado, um ser responsável pela criação do Mundo Mortal e
do Mundo Elevado, teria criado inicialmente a espécie humana, ou vidas-curtas
assim como os filhos-da-noite os chamavam por viverem relativamente muito
pouco. Os humanos formariam o Povo Predileto, que caíra em desgraça com seu
criador após roubarem dele o Fogo. Em represália ao mau feito de suas criaturas,
o Ser divino cria uma outra espécie, dita quase imortal, que predaria os
humanos e se nutriria de seu sangue. Nasce assim o Povo Verdadeiro, mais fortes
e longevos do que os humanos, de número bem menor, mas o topo da cadeia
alimentar.
Contudo, após uma série de
ações imprudentes, os filhos-da-noite conhecem seu fim restando apenas um
representante da extirpe quase extinta. Um jovem e inexperiente que sempre em
movimento, foge daqueles que sabiam como eliminá-lo e passa a viver entre os
índios da América do Sul, predando de forma discreta e meticulosamente
calculada, ainda que tivesse seus momentos de excesso e carnificina, o que o
obrigava a migrar novamente. É assim, migrando, que Dentes Compridos chega ao
território da nascente nação banta de Palmares formada por ex-escravos fugidos
da colônia luso-brasileira.
Palmares, na época uma nação
em formação e luta pelo seu reconhecimento como território independente, tinha
como principais aliados os holandeses da Nova Holanda de Maurício de Nassau,
sedeada em Recife. Junto com os holandeses o novo país negro combatia as
tentativas de reconquista dos lusitanos, seus inimigos em comum.
Em Palmares, Dentes Compridos
é capturado pelos irmãos Zumbi e Andalaquituche durante o reinado de
Ganga-Zumba e em troca de sua vida passa a agir como agente secreto e assassino
de elite dos palmarinos nas mais arriscadas missões e aventuras em prol da
grande nação banta.
Localização da Palmares real. Algumas das povoações do mapa são citadas e compõem importantes cenários da narrativa de Lodi-Ribeiro. |
Dos povos pré-colombianos à
Inglaterra Vitoriana de Jack, o Estripador, passando pela Guerra de
Independência Norte-americana, é surpreendente como o autor costura diferentes
acontecimentos da história de períodos e lugares distintos por toda América e
Europa, reescrevendo a história para conectar povos e nações muito diferentes
entorno de uma nação em parte imaginada, em parte verídica, um mosaico do que
poderia ter sido Palmares: uma grande nação afrodescendente e livre.
Infelizmente, a História real fora bem diferente da História Alternativa criada
por Lodi-Ribeiro que imagina o antigo quilombo dos Palmares se tornar uma das
mais destacadas potências do mundo moderno.
Neste passeio pela História
Oficial e pela sua História Alterativa, Lodi-Ribeiro faz diversas referências a
figuras reais que vão pouco a pouco perfazendo o conjunto dos personagens que
animam a narrativa, como Túpac Yupanqui, Zumbi dos Palmares, George Washington,
Benjamin Franklin e Thomas Jefferson.
Mas acerca dos personagens
tenho outras duas coisas a mencionar. A primeira é que a História contada ganha
proporções tão grandes que é como se ela fosse também um personagem, o
principal deles, testemunhada pelos olhos de Dentes Compridos que é ao mesmo
tempo modificado por ela e até certo ponto humanizado pelo contato prolongado
com os palmarinos. A minha segunda observação é que em concordância com o nome
de vidas-curtas, fica visível ao leitor mais atencioso que todos os personagens
humanos possuem passagem efêmera pela história, algumas tão rápidas quanto uma
estrela cadente que corta o céu em noite escura, e outros bem menos, por
atravessar várias décadas ao lado de Dentes Compridos, testemunhando suas
aventuras. De qualquer forma, Dentes Compridos é o único personagem que
sobrevive a força do tempo da narrativa.
Neste ponto é válido destacar
como fica bastante perceptível que o ponto marcante do autor é sua explosão
criativa. Além de reescrever a história do mundo que conhecemos, nos primeiros
capítulos, em um tom narrativo que nos faz lembrar as antigas lendas e
alegorias contadas pelas civilizações milenares, o autor vai pegando um pouco
da cultura sul-americana antiga, com referências da tradição cristã (não é dado
um nome a Deus), das histórias bíblicas sobre a criação, até mesmo da mitologia
grega (o roubo do fogo) e ainda algumas teorias científicas, a exemplo da era
das glaciações e das migrações humanas pré-históricas que colonizaram o planeta
e o continente americano, e, por fim, junta todas estes elementos para criar um
mito novo a sua maneira.
Se tudo não bastasse é quase
incrível – e aqui uso a palavra em sua denotação original, como sinônimo de
inacreditável – o conhecimento de marinha e da geografia marinha de Boston
demonstrada pelo autor ao narrar uma das passagens mais intensas da narrativa.
Conhecimento que, sem dúvida, ele aproveitou de sua experiência como antigo
oficial da Marinha do Brasil.
Contudo, se a história
comporta um mix de profundos conhecimentos de História com força criativa para
reescrevê-la, um problema me chamou a atenção. Se bem que não se trata de um
problema, mas um fator dificultador. Lodi-Ribeiro demonstra ser um escritor
muito culto de vocabulário lauto, o que é expressivo na linguagem bastante
rebuscada de seu livro. Mas devido a este extenso vocabulário em alguns
momentos a leitura se tornou difícil pelo grande número de palavras e
expressões não tão corriqueiras, fazendo com que o glossário no final do livro
e o dicionário embutido no Kindle fossem de grande valia e essenciais.
Mas de toda forma é um livro que surpreende pela proposta
de reinventar não só a história como um gênero. Começo a compreender que a
Editora Draco possui um séquito de autores que se destacam pela originalidade
mesmo quando em gêneros por demais difundidos e algumas vezes desgastados.
Autores como Kasse e Merege que se destacam pelo talento narrativo e trabalham
o clássico do terror e da fantasia, respectivamente, sem deixarem de ser
atuais, criativos e cativantes, e como Beraldo e Lodi-Ribeiro, que trazem
propostas em campos que ainda não foram muito bem explorados pela literatura
fantástica nacional, valorizando as grandes nações negras, guerreiras,
inteligentes, místicas.
A edição lida é da Editora
Draco, digital, do ano de 2014 e em sua edição impressa possui 300 páginas.
Se quiser saber mais sobre Gerson Lodi-Ribeiro ou sobre os demais autores da campanha do #AnoDoBrasil clique aqui (link)
Se quiser saber mais sobre Gerson Lodi-Ribeiro ou sobre os demais autores da campanha do #AnoDoBrasil clique aqui (link)
Abaixo você pode conferir uma
prévia do livro disponível no Google Books.
Prévia do Google Books
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[1]
Médico e escritor inglês que em 1819 publicou The Vampyre, obra que estabeleceu o arquétipo moderno do vampiro
(carismático e sofisticado) – atualmente poderíamos considerá-lo como um
arquétipo clássico devido à diversidade atual de tipos de vampiros presentes na
literatura. Sua obra também influenciou outros escritores do gênero como Bram
Stoker.
[2]
Escritor britânico do século XIX que em coautoria com Thomas Peckett Prest
escreveu a obra folhetinesca Varney, o Vampiro (1847).
[3]
Romancista, poeta e contista irlandês que escreveu o romance gótico Drácula
(1897), considerada até os tempos atuais como a principal obra no
desenvolvimento do mito literário moderno do vampiro.
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