“Muitos homens acreditam em coisas que existem e dizem
porquê. Eu acredito em coisas que não existem e digo: por que não?”
(Robert Kennedy, citado em Rio tem coração)
Hoje, dia 02 de abril, é
comemorado em todo o mundo o Dia Internacional do Livro Infantil. A data foi
escolhida em homenagem ao escritor dinamarquês Hans Christian Andersen que
ficou imortalizado na história da literatura universal pelos seus contos de fadas,
a exemplo de O Patinho Feio e A Pequena Sereia.
Esse dia, para todo bom amante
da literatura, é uma data importante e saudosa, porque os livros infantis para
maioria foi a porta de entrada para o universo literário. Minha infância foi
pobre em literatura, mas ainda assim os livros infantis foram também o meu
portal de iniciação. Por isso pergunto: que dia melhor para retomar a campanha
dos #MeusLivros e dividir com vocês um dos primeiros livros infantis que li na
minha vida?
Apresentou-lhes o meu querido
Rio tem coração? livro de Leila R.
Iannone.
Eu e Rio tem coração?
Segundo livro do projeto “Os Livros da
Minha Infância e Adolescência”, Rio tem
coração? escrito por Leila R. Iannone, é um dos mais singelos que já li e,
na minha primeira infância, foi também um dos mais profundos. Recordo-me que na
época todos os livros tinham um objetivo claro de ensinar algo, de trazer uma
moral, e, como devia ser, ajudar na formação do caráter do pequeno leitor. Rio tem coração? é um desses livros.
Lembro que ganhei-o quando
ainda tinha entorno de seis anos, junto com outros livros infantis que ainda
serão resenhados neste projeto: A Vida Íntima de Laura, de Clarice Lispector, e
Lebrinha de Neve, de Luis Gonzaga Fleury. Juntos, esses três fazem parte do
grupo dos primeiros livros literários que tive em minha vida e numa infância
quase desprovida de literatura.
Rio tem coração?
foi presente de uma pessoa cujo nome e o rosto já caiu a muito tempo no limbo
da minha memória. Recordo-me apenas de que ganhei esse livro de uma moça que,
um dia entrando no meu quarto e me encontrando brincando no chão, presenteou-me
com uma pequena caixa recheada de chaveiros de todas as formas e tamanhos,
alguns deles bem antigos, a exemplo das pequenas miniaturas de pá e de colher
de pedreiro em aço e madeira pintada de azul. Mas logo por baixo dos chaveiros
estavam também vários pequenos livros infantis que outrora pertenceram a uma
criança, que já não era mais criança, mas que daquele dia contribuiria para a
formação do meu ser leitor.
Entre estes livros estava Rio tem coração? um livrinho já
desgastado, mas muito colorido com seus vários tons de azul, verde e marrom. De
um papel brilhante e lisinho que eu nunca tinha visto nos livros da escola.
Era um presente simples de
alguém que eu não tinha intimidade. Coisas usadas e sem valor, mas que – ela
deve ter pensado – uma criança pobre e que vivia isolada nos fundos da casa dos
patrões da mãe saberia ressignificar e dar novo sentido. Sim, eu soube. Eu soube integrá-los aos jogos e brincadeiras, soube
distrair-me com eles nas tardes mornas da capital da Bahia, e nas noites frias
de Brotas. Soube absorver seus ensinamentos e tentar reproduzi-los, é claro,
com alguns fracassos. E assim como todos os livros ali, Rio tem Coração? tornou-se um dos meus companheiros.
Com o tempo, assim como
aconteceu com A
Serra dos Dois Meninos minha
edição foi ficando ainda mais gasta e até sofreu muitos dos meus antigos
excessos de terrorismos, com riscos de batalhas que hoje enfeiam os desenhos
delicados pintados a tinta.
Reprodução de uma das ilustrações do livro. Uma das coisas que mais me chamavam a atenção nesse livro era a delicadeza e capricho de sua arte gráfica. |
Hoje o guardo com o mesmo cuidado que tenho com os mais
antigos dos meus companheiros e recentemente descobri que entre a capa e a
primeira folha, coladas uma na outra, existe uma antiga inscrição bem anterior
ao dia em que ele chegou às minhas mãos, datada de 26 de outubro de 1986, e que
em letra pouco caprichosa, os pais amorosos daquela criança lhe desejavam votos
que já não consigo ler por inteiro sem destruir a capa fragilizada.
Sei que parece besteira mas
até o dia de hoje me fascino com minha pequena descoberta. Coisas assim, tão
bobas mexem muito comigo, porque falam de pessoas e lugares que não conheço,
que jamais conhecerei. Pessoas que estão perdidas ou no tempo, ou no espaço,
mas que deixaram uma pequena marca, uma pequena impressão de que um dia
existiram e que, por consequência, continuarão existindo através dela.
A moça daquele dia deixou
uma marca em mim também.
Sinopse
Não mais do que um pequeno
conto, Rio tem coração? conta a
história de duas pequenas pedras, Pacheco e Amélia, que lutavam para
continuarem juntas enquanto enfrentavam o furor de um poderoso e caudaloso rio
que indiferente ao mundo não se importava com mais nada a sua volta ou no
interior de seu leito.
Resenha
Rio tem coração? é
uma leitura muito rápida. Em menos de 10 minutos você lê suas mais de 50
páginas. Mas se ele não passa de um pequeno conto muito bem ilustrado, também é
verdade dizer que sua história singela tem uma mensagem muito bonita.
O rio era forte e orgulhoso
de si, por isso estava sempre preocupado em correr e arrastar “tudo que aparecia no caminho: tronco de
árvore esquecida, folha seca que o vento arrancava, terra fofa e cansada das
margens e muitas outras coisas que ele conhecia melhor do que eu”. Em sua
correria não prestava atenção as coisas ao seu redor, nem às criaturas que
viviam próximo a suas margens ou em seu turbulento leito. Por isso, ele nunca
havia reparado no enorme jatobá que crescia “de mansinho” às suas margens, não reparava no sol, ou no camaleão,
mas principalmente nunca se importou com as duas pedras, Pacheco e Amélia, que
em seu leito lutavam para ficarem juntas e não serem arrastadas pela correnteza
furiosa. Mas tudo muda para aquele rio quando após uma forte tempestade. Por um
tempo a chuva havia tornado o rio mais bravio e destrutivo, mas passada o
aguaceiro ele havia sido reduzido a um pequeno “fiozinho torto que descia pela serra, com dificuldade”. Mas também
é naquela mesma “noite de escuridão
infinita” que o destino de Amélia e Pacheco são selados e, depois disso,
tudo muda para o rio diminuído que passa a ver o que não via e sentir o vazio
deixado pelas duas pedras cuja existência ele nunca havia reparado, mas que
eram o seu coração.
Como eu disse é uma história bucólica, um enredo bem
simples que, no entanto, transmite uma lição bem importante: a de não sermos
orgulhosos. O rio era orgulhoso de sua
força e tinha pressa, por isso não se importavam com os que estavam a sua
volta. Não lhe importava se suas ações egoístas faziam mal com quem convivia e
se importando apenas consigo mesmo perdia o que havia de bom e belo que os
outros podiam lhe proporcionar.
Ao contrário dele Pacheco e
Amélia estavam sempre atentos ao namoro do Sol e da Lua, aos ninhos dos
passarinhos “nos braços do jatobá” e
apoiavam-se mutuamente na luta para não serem arrastados e separados pela
correnteza que já havia carregado outras pedras e agora ameaçava arrastar
Amélia que de tão lisa e redonda já não conseguia se apoiar. Com a chuva
tempestuosa o rio enfim consegue fazê-lo e em seu egoísmo e orgulho acaba por
perder o próprio coração (de pedra).
Rio tem coração? é como uma
metáfora que fala de nós mesmos, de nosso egoísmo e de como as vezes não
prestamos atenção às pessoas que nos querem bem, que dependem de nós ou
simplesmente os colegas de escola ou de trabalho para quem nem sempre temos um
olhar mais humano e atencioso. Atenção. Esta é a palavra. Corremos o risco de
endurecermos nossos corações quando não somos capazes de dar atenção as pessoas
que nos cercam acabando também por afastá-las de forma irreversível.
Mas mesmo sendo uma mensagem
para as crianças, ele também serve para os adultos sempre tão sem tempo e
ensimesmados, o que confirmamos na contracapa onde lemos: Você pode ajudar a melhorar o mundo de amanhã, dedicando um pouco de
tempo, amor e compreensão às crianças de hoje. Uma mensagem bem clara, não
é mesmo? Por isso, este que foi um livro que me “viu” crescer ainda é tão
especial pra mim. Não porque eu queira retornar ao passado ao folheá-lo, mas
porque a mensagem imbuída nele é atual para se pensar o futuro e o presente.
A edição lida é da Editora
Salesiano Dom Bosco, do ano de 1984, com ilustrações originalmente pintadas a
tinta e de autoria de Nelson de Moura. Possui 57 páginas.
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