domingo, 7 de março de 2021

Eu e Você – Niccolò Ammaniti – Resenha

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

7 de março de 2021, ano da Itália

“O mimetismo batesiano se verifica quando uma espécie animal inócua, aproveitando sua semelhança com uma espécie tóxica ou venenosa que vive no mesmo território, consegue imitar a cor e os comportamentos dessa última. Assim, na mente dos predadores, a espécie imitadora é associada à perigosa, o que aumenta suas possibilidades de sobrevivência”.

(Niccolò Ammaniti, epígrafe)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Um livro que explora a natureza humana quando esta é forçada a se adequar ao meio e que aborda a transição da adolescência para a idade adulta, Eu e Você, do italiano Niccolò Ammaniti, é um livro sensível que aborda as dificuldades de um garoto calado e antissocial em interagir de forma honesta e sincera com o mundo, mas que é confrontado pelo destino e posto à prova quando forçado a conviver, mesmo que temporariamente, com sua meia-irmã problemática e viciada em narcóticos.

Confira a resenha do terceiro livro da IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.

Sinopse do enredo

Roma, fevereiro de 2000. Munido de comida, bebida, livros e jogos, Lorenzo Cuni está escondido no porão de seu prédio, rodeado de objetos empoeirados de uma condessa morta, esperando que a semana branca (settimana bianca) acabe e ele possa enfim retornar para o andar de cima e contar para a mãe o quão divertido foi passar aqueles dias esquiando nos alpes italianos com seus amigos.

Mentir e esconder-se ali era a única opção depois que ele inventou uma viagem que não existia com amigos que ele nem se quer conhecia. Uma maneira louca de fugir da perseguição dos pais que queriam que ele tivesse amizades.

Tudo parecia dar certo. Ele conseguiu enganar os pais em relação a viagem, e conseguiu despistar a mãe quando esta queria levá-lo ao ponto de encontro com os tais amigos. Depois disso, conseguiu se instalar secretamente em seu refúgio sem grandes esforços. Apesar disso, ele não contava que um segundo elemento se introduziria em seus planos: a meia irmã Olivia, com a qual Lorenzo quase não teve nenhum contato e que era viciada em drogas.

Naquele justo momento, Olivia aparece em busca de algumas coisas pessoais no porão da casa do pai, de algum dinheiro e de um lugar para “ficar limpa”, ou seja, para esperar passar o tempo de abstinência dos narcóticos que usava. Sob coerção, Lorenzo se vê obrigado a “hospedar” a irmã em seu refúgio secreto e, por vários dias, conviver com ela, uma quase desconhecida. É assim que Olivia se soma a equação de Eu e Você, e à vida do jovem Lorenzo.

Resenha

Quando comprei Eu e Você, em 2019, de planos fazer naquele ano a quarta edição da CALCT, fiquei um tanto receoso porque a capa e o título sugerem mais um daqueles romances de amor adolescente e dramático. Todavia o livro de Niccolò Ammaniti vai para um caminho totalmente oposto, e se ainda assim Eu e Você (no original, Io e Te) seja um tanto dramático, é um livro sem muito romantismo, cheio de originalidade e que conseguiu me agradar com seus personagens, sua narrativa e sua leitura ágil e descomplicada.

Li numa resenha que este livro promete pouco e entrega pouco, mas para mim, esse “pouco” foi mais do que o suficiente. É claro que Eu e Você não explora as belas paisagens italianas ou os cenários romanos seculares, mas, por outro lado, explora um pouco da natureza humana daqueles que são deslocados. O próprio protagonista e narrador é daquelas almas egocêntricas que preferem a solitude de estar em sua própria companhia porque considera que não há nenhuma outra associação melhor, mas que se vê – por atrito – forçado a amadurecer. A outra protagonista é uma pessoa destruída pelo desprezo de seus pares e pelo vício das drogas. Alguém desajustado, que mesmo não estando à espera de que alguém lhe estenda a mão, luta com suas próprias forças para encontrar um caminho.

Ammaniti parece gostar dos romances dramáticos e de família, a exemplo do seu elogiado Como Deus Manda (Come Dio Comanda), onde os dois protagonistas, pai e filho, vivem uma relação baseada na violência e no conflito. Eu e Você é mais suave, mas possui seus próprios tons dramáticos. A temática sobre as drogas já se tornou corriqueira – afinal, mais do que nunca, o uso de drogas se tornou um fato universal –, mas está em perfeito equilíbrio com a proposta e nível do livro. Ainda assim, ele foi bom o suficiente para garantir uma adaptação para o cinema realizado em 2012 por Bernardo Bertolucci e que rendeu várias indicações para o Prêmio David di Donatello.

A escrita de Ammaniti é ágil, leve e sucinta sem deixar de ser descritiva e bem escrita. É prosaica, mas não destituídas de alguma poesia. Há um equilíbrio entre diálogo e narração, e o narrador, por sua personalidade individualista é irônico e opinativo. Mas o interessante nesse livro é o choque existente entre duas gerações de irmãos tão distintos entre si. Ele amado e mimado, ela ovelha negra, perdida, indesejada. Desse choque nasce uma novela interessante, ainda que limitada. Mas o que quero mesmo é destacar seus personagens muito bem-feitos.

Lorenzo é um personagem tão peculiar quanto interessante. Ele é um ator nato e o meio termo entre um adolescente esnobe e malcriado, mas sensível, e o futuro projeto de um manipulador taciturno, antissocial e calculista, mas que não se concretiza. Observador, inteligente, e egocêntrico, mas pouco dado a conversar com aqueles que não faziam parte de seu círculo familiar. Só a mãe, o pai e a avó lhe importavam.

Os pais se preocupam com a pouca sociabilidade do filho. Quando era pequeno, Lorenzo só respondia aos estranhos com “sim, não, e não sei”, e se insistissem, dizia aquilo que eles queriam ouvir. Quando “os outros” não o deixavam em paz, se tornava agressivo e, por isso, os pais preocupados o mandaram para um psicólogo, que o menino tratou logo de tentar enganar, fazendo-se passar por um “menino normal”. Contudo o diagnóstico não poderia ser ao mais exato: Lorenzo era “incapaz de sentir empatia pelos outros”, “[...] tudo que está fora de seu círculo afetivo não existe, não lhe suscita nada” e “acredita que é especial e que apenas pessoas especiais como ele podem compreendê-lo”.

Os pais, obviamente, desacreditaram deste diagnóstico e tiraram o menino do tratamento. Para eles, o filho era “afetuoso”, “um menino normal”. No entanto, aquela decisão foi a chave para que Lorenzo aprendesse a dissimular, fingir ser quem não era para que as pessoas o deixassem em paz. Se misturava com os outros jovens numa distância segura o suficiente para que eles e os pais pensassem que ele era um “deles”, que tinha amigos, e longe o suficiente para não ser importunado. Como um inseto havia aprendido a mimetizar.

“Eu me misturava como uma sardinha em um cardume de sardinhas, me mimetizava como um bicho-pau entre ramos secos”.

Contudo, ao entrar no liceu[1] público a técnica deixa de ser eficiente e ele se torna alvo de bullying. O que lhe resta é evoluir, não como pessoa, mas como imitador, e é através da imitação das práticas e trejeitos dos mais temidos da escola que ele consegue afastar todo os indesejáveis. Ele passava a ser uma mosca que imitava as vespas.

“Em algum lugar, nos trópicos, vive uma mosca que imita as vespas. Tem quatro asas, como todas as de sua espécie, mas mantém uma sobre a outra, e assim parecem apenas duas. Tem listras amarelas e pretas no abdome, antenas, olhos protuberantes e até um ferrão de mentira. Não faz nada, é boazinha. Mas, vestida como uma vespa, é temida pelas aves, pelas lagartixas, até pelos seres humanos. Pode entrar tranquilamente nos vespeiros, um dos lugares mais perigosos e vigiados do mundo, e ninguém a reconhece.

Eu tinha errado tudo.

Era isso que eu devia fazer.

Imitar os mais perigosos”.

 

Desse modo, Lorenzo continuava sozinho e isolado. Sentia-se feliz sozinho, mas ao lado dos outros tinha que representar, o que chegava a amedrontá-lo. Além disso, inventava mentiras e casos engraçados da escola para deixar os pais tranquilos. Foi nesse círculo interminável de mentiras e dissimulações que ele acabou por inventar que alguns amigos haviam o convidado para esquiar e teve que buscar uma maneira de sustentar sua mentira. Nesse ponto começa de fato a história do livro.

[ALERTA DE SPOILER]. Olivia por sua vez é pintada pelo narrador sob as cores da irmã-mistério, desconhecida, inoportuna, indesejada, inteligente e boa mentirosa, mas, ao mesmo tempo, objeto de uma curiosidade pouco confessada e que ao olhar do irmão vai pouco a pouco se transformando, pela força da convivência forçada, como alguém em mutação.

[ALERTA DE SPOILER]. Ela, por sua vez, oscila da indiferença a curiosidade, das pequenas implicâncias a solidariedade fraternal que quebra lentamente o iceberg em que Lorenzo estava preso. Na maioria do tempo padece dos efeitos da abstinência, mas, nas suas falas, é possível perceber o ressentimento que nutria do pai e da madrasta.

É interessante notar que Olivia na história funciona como o ponto de pressão de Oliver, forçando-o a abandonar seu egocentrismo para ajudá-la em um momento em que ela se encontra extremante vulnerável e doente.

[ALERTA DE SPOILER]. Eles dois não conviveram, mal se conheciam, e se viram em pouquíssimas oportunidades, mas a relação irmão e irmã, com seus altos e baixos, birras e solidariedades está ali, explícita, palpável. E desse modo aquele breve tempo juntos acaba por impulsionar o lado mais humano do garoto e contribui para seu crescimento e amadurecimento por forçá-lo a deixar de olhar para si, para olhar para o outro. Uma temporada breve, mas significativa ao ponto de levar o menino a ampliar seu círculo afetivo outrora tão estreito.

Enfim, o desfecho é singelo e muito sensível, sem deixar de ser, até certo ponto, realista e verossímil. O livro como um todo não é um clássico, e rapidamente caiu no esquecimento, mas tem qualidade e te prende, sendo, em parte, até comovente.

A edição lida é da Editora Bertrand Brasil, do ano de 2013 e possui 160 páginas.

Sobre o autor


Niccolò Ammaniti nasceu em Roma e é um dos mais conceituados autores italianos da atualidade. Os seus livros são sucessos de vendas internacionais e estão publicados em quarenta e quatro países. Escreveu os romances Branchie, Ti prendo e ti porto via e Não tenho medo, além da antologia de contos Fango. Como Deus Manda recebeu o prêmio Strega, mais importante e disputado da literatura italiana. A Festa do Século, seu livro seguinte, demonstra todo o talento do autor por meio de uma crítica tão criativa quanto impiedosa à sociedade. Com Eu E Você, Ammaniti comprova a versatilidade literária que o levou a ser traduzido para mais de quarenta idiomas.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano.

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Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


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