domingo, 10 de janeiro de 2021

O Decamerão - Giovanni Boccaccio - Resenha

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

10 de janeiro de 2021, Ano da Itália

“As palavras, quando recebidas através dos ouvidos do coração, possuem força muito maior do que muitos supõem; aos que se amam, quase todas as coisas se tornam possíveis”

(O Decamerão – Giovanni Boccaccio)

 

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Edição lida com tradução de Raul de Pollilo. Nova Fronteira, 2018.
Cercados pela desolação provocada pela peste bubônica (negra) que matara grande parte da população florentina e dizimara um terço da população europeia[1], dez jovens de classes abastadas afastam-se da cidade e por quinze dias se dedicam ao lazer e à narração de cem pequenas histórias contadas ao longo de dez jornadas (dias). Livro que influenciou grandes nomes das artes a exemplo de Vivaldi e Molière, O Decamerão não é apenas uma obra que marca a fundação da narrativa moderna[2], como um testemunho escrito com humor e muita ironia e que documenta uma época na história da Europa e um retrato cultural, cotidiano e social de uma sociedade que migrava do feudalismo em direção a consolidação da burguesia.


Confira a resenha do primeiro livro da IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que no ano de 2021 homenageia a literatura italiana.


Sinopse do enredo

1348, Florença, Itália.

Em pleno auge da pandemia de peste bubônica, comumente conhecida como Peste Negra, a cidade de Florença, na região da Toscana, padecia os horrores da doença misteriosa que não só dizimava sua população, tornando a cidade florentina um grande cemitério e uma zona de repulsão demográfica, como subvertia e recriava os hábitos e costumes dos florentinos sobreviventes.

Em meio ao cenário de morte e desolação, um grupo de sete jovens de Florença e provenientes de respeitadas famílias se reúnem na igreja de Santa Maria Novella [E1] e começam a debater, sob a liderança da mais velha, Pampineia, acerca do infortúnio que se abatera sobre Florença e suas famílias, e decidem deixarem a cidade, por sugestão da moça, e pelo intervalo de alguns dias se instalarem com seus criados em uma propriedade fora dos limites urbanos. No entanto, para concretizar seu intento e salvaguardar suas honras, as sete moças pedem a três rapazes conhecidos e namorados de três delas para que as acompanhem em tal retiro enquanto este durasse.

Na Igreja de Santa Maria Novella os jovens reunidas decidem deixar Florença. fonte: Wikimedia Commons.

Igualmente desejosos de deixar para trás a cidade e sua pestilência, os três rapazes aceitam o convite e no dia seguinte os dez jovens e seu séquito de criados deixam Florença em direção a uma requintada propriedade rural desocupada, mas arrumada e provida com uma excelente adega e ali se instalam por alguns dias.

Confortavelmente instalados e fartamente providos de viveres, os jovens e moças dedicam uma quinzena de dias a passeios, conversas, cantos e danças. No entanto, a principal atividade dos jovens é reunirem-se ao entardecer para narrarem histórias de amor e aventura com temas na maioria das vezes pré-definidos por um rei ou rainha escolhido dentre eles e que era igualmente responsável da governança dos criados, da casa e do grupo. Assim, a cada dia e sob a governança de um rei ou rainha de reinado único são contadas 10 narrativas que formam uma jornada, num total final de dez jornadas e cem contos.

Quando finalmente findam as dez jornadas completas de novelar, no décimo quinto dia de retiro, todos regressam à cidade, encerrando a obra de Boccaccio.

Resenha

Escrito entre os anos de 1348 e 1353[3], O Decamerão (ou Príncipe Galeotto) é uma das mais importantes obras literárias italianas e também da literatura mundial, sendo considerada uma obra que marca a fundação da narrativa (em prosa) moderna, além e ser considerada o magnum opus (obra-prima) do escritor e poeta florentino Giovanni Boccaccio (1313-1375).

O título da obra tem origem no grego e significa “dez dias” ou “dez jornadas” em alusão aos dez dias nos quais os dez protagonistas-narradores se dedicam a novelar sobre o amor. No curso desses dez dias, as sete moças (Pampineia, Fiammetta, Filomena, Emilia, Laurinha, Neifile e Elisa) e os três rapazes (Pânfilo, Filostrato e Dioneio) se dedicam a relatar dez contos cada um que vão do erótico ao trágico, tomando por base casos – reais ou não – de amor, de honra e de vilania, contos de sagacidade, piadas e lições de vida, perfazendo, ao todo, cem contos contados uma dezena por dia e por cada um dos dez novelistas alternadamente.

Jovens contadores de histórias do Decameron em uma pintura de John William Waterhouse, A Tale from Decameron, 1916, Lady Lever Art Gallery, Liverpool. Fonte: Wikimedia Commons.


Quando resolvi incluir O Decamerão entre os livros que leria para essa edição da Campanha Anual de Literatura, o CALCT, o fiz dentre uma farta oferta de títulos por se tratar de um clássico importante da literatura universal, mas o pouco que eu sabia da obra não me estimulava a sua leitura – nem o investimento financeiro em uma edição tão cara e luxuosa.

Não sou particular apreciador de histórias eróticas e tenho minhas implicâncias com os romances de amor, e na época o pouco que sabia de O Decamerão dizia de uma obra cheia de erotismo que me fez associá-lo, talvez a obra de Marques de Sade, mas no sentido de serem narrativas libertinas e de caráter hedonista. Como tenho também certas reservas quanto ao hedonismo tanto como filosofia quanto como princípio de vida, tendo sido este um dos motivos de não ter apreciado parte dos personagens de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Esse pesa contra um Decamerão que eu ainda não tinha lido.

Pode até parecer um certo moralismo da minha parte (não que eu me abstenha de preservar certos princípios e valores morais), mas se trata de questão de gosto literário pessoal. Por isso, eu tinha dúvidas se valeria a pena adquirir O Decamerão e fazer o esforço de percorrer suas dez centenas de páginas (1005 págs.). Contudo, o livro se revelou algo não exatamente como me fora descrito o senso comum. É certo que O Decamerão está repleto de histórias de traições conjugais bem-sucedidas, mas para além disso, as narrativas possuem mais o irônico e o cômico do que algo de cunho erótico. Pelo contrário, se os personagens são adúlteros, espertalhões, hipócritas de toda natureza, religiosos libertinos e pessoas pouco dadas a respeitar votos conjugais ou religiosos, por outro lado, o autor e sobretudo os dez novelistas mantêm um impecável decoro, com condutas irrepreensíveis, não entrando em detalhes desnecessários ou lançando mão de expressões chulas e de baixo calão para referenciar práticas sexuais (nenhuma delas sadistas) de seus personagens.

O Decamerão não era o que falavam dele, logo minhas referências eram tão ignorantes sobre a obra quanto eu, ou se baseavam em adaptações que destacavam/explicitavam de forma mais aberta o erotismo existente no conteúdo narrativo da obra. Ainda assim, ler a obra de Boccaccio foi tarefa cansativa e, por vezes, tediosa.

A Peste e os personagens-narradores

Esboçando um panorama do caos criado pela Peste Negra, O Decamerão começa de uma forma que me interessou bastante por ambientar seu leitor em um contexto histórico-social de forma precisa, ampla e elucidativa, mas de forma concisa. Como o autor escrevia em pleno período de pandemia de peste bubônica (olha que coincidência eu lê-lo durante a pandemia de COVID-19), Boccaccio aproveita o triste e desolador cenário da Peste como inspiração para a base narrativa da trama e já imaginando a necessidade de situar os possíveis leitores da posterioridade, faz um panorama profundo e detalhado dos impactos da peste sobre as práticas e relações sociais em Florença, abordando hábitos antigos abandonados e os novos hábitos adquiridos em razão das circunstâncias, os comportamentos, as crenças acerca da doença, as dificuldades de sepultamento, a forma como a doença se manifestava e consumia a vida de suas vítimas e o abandono dos campos e dos animais pelos camponeses, amplamente vitimados por aquele mal.

Por ser testemunha ocular dos fatos, a descrição de Boccaccio possui um peso e potência que as vezes faltam até nos livros de história. Por conta disso a obra pode ser considerada além de um marco na literatura, um documento histórico sobre a Peste Negra de alto valor, sobretudo para entender as dimensões sociais e culturais que a pandemia teve sobre estas. E é em meio a este cenário confuso marcado pela morte e pelo miasma de muitos mortos é que o autor insere seus protagonistas que servem na trama como uma lufada de frescor e vida.

As sete moças e os três rapazes que compõem o grupo de novelistas são jovens solteiros de famílias com posição social elevada, mas que nem por isso escaparam de ter membros de suas famílias vitimados pela peste. No entanto, apesar da situação caótica, os dez decidem isolarem-se com alguns criados sobreviventes de modo a aproveitarem um pouco de divertimento e lazer em lugar afastado, o que se explica tanto pela juventude dos dez como pela incerteza de sobreviverem àquilo tudo.

Quanto ao desenho psicológico Boccaccio não desenvolve esses personagens com particular profundidade, mas algumas características deles são bastante evidentes, marcantes e os individualizam.

Entre as mulheres, cujas idades vão de 18 a 28 anos, Pampineia é a mais velha e a responsável por propor o retiro. Ela é a mais destacada dos novelistas. Cheia de iniciativa, a moça tem um gênio decidido e conta com bastante protagonismo. O que ela propõe ao grupo até certo ponto era imprudente e um pouco indecoroso para a época, mas ela o faz mesmo assim, motivo pelo qual Boccaccio faz questão de destacar a seriedade, honradez, bons costumes, dignidade e nobreza não só do grupo, mas principalmente das moças.

Depois de Pampineia temos Filomena, que é descrita como “sensatíssima” pelo autor e como “otimista” por alguns críticos. Ela é uma das poucas a se opor ao plano inicial de Pampineia – que não incluía os três rapazes – alegando que as mulheres não sabem conviver ou se governarem “sem a previdência de algum homem”. Trata-se de uma visão bastante sexista e patriarcal, mas típica da época e para a posição social das moças, e que queria expressar a insensatez de que elas empreendessem aquela viagem sem algum homem para acompanhá-las. A questão é resolvida quando os três rapazes chegam a igreja e são convidados por Pampineia a acompanhá-las.

Contudo, a posição machista não é única de Filomena, mas também compartilhada por outra personagem, Elisa, que é descrita pela versão espanhola da Wikipédia como “docta [culta] y prudente”, mas “de uma dignidade no exenta [não isenta] de aristocracia[4] – o que condiz com seu pensamento mais conservador.

As outras moças, por sua vez, se destacam por qualidades diversas: Neifile pela beleza; Fiammetta pela inteligência, beleza e determinação; Emilia pelo narcisismo e egocentrismo, e Laurinha pelo senso de justiça e submissão ao gênero masculino[5].

Quanto aos rapazes, que se encontravam enamorados de algumas daquelas moças, eram todos muito corteses e solícitos. Filostrato é o mais melancólico e com uma personalidade que se inclina para preferir narrativas trágicas. Pânfilo é dentre os jovens o mais sábio, bem resolvido e centrado[6]. E, por fim, Dioneio que é um jovem de natureza transgressora[7], bastante jocoso e conta em Decamerão as novelas mais despudoradas e obscenas.

Nas narrativas que são contadas pelos dez jovens desfilam centenas de personagens dos mais diferentes humores e caráteres, mas seria impossível falar de todos. Considero, porém, que a muitos deles têm peso e importância muito superiores aos dez narradores e se sobressaem dentro do livro, bem como acontece com alguns personagens de As Mil e Uma Noites que resenharei em breve no projeto #MeusLivros.

Apreciação crítica das narrativas e da obra em seu conjunto

Decamerão e Mil e Uma Noites: comparações inevitáveis

Digo sem sombra de dúvidas que gosto de obras com esquemas sherazadianos, a exemplo de A Chave Estrela, de Primo Levi, que resenharei em breve no projeto e As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, resenhado em 2019. As Mil e Uma Noites, então, é meu favorito e o precursor desse modo de narrar onde pequenas novelas são narradas em sequência por uma ou mais personagens-narradoras e se intercalam, povoando a obra de personagens e histórias.

Em geral não gosto de coletâneas de contos, mas contraditoriamente, gosto de livros com este esquema que já vi alguns críticos chamarem de sherazadiano, em alusão a protagonista d’As Mil e Uma Noites. Acredito que minha predileção por estes livros em detrimento das coletâneas mais comuns de contos, se deva a existência neles de uma narrativa que funciona como plano de fundo.

No caso de O Decamerão não tive a mesma identificação. O número de novelas é excessivo e com uma brevidade que não permite identificação com os personagens. Mesmo com os dez narradores essa identificação é bastante limitada, haja vista que eles não são profundamente desenvolvidos ao longo do livro. Com o tempo, ler O Decamerão se tornou cansativo. Em As Mil e Uma Noites isso não acontece, porque o número de narrativas é menor e algumas narrativas chegam a ser bastante longas como, por exemplo, a história dos “três calândares, filhos de rei” e as histórias de “Simbá, o marujo”, dentre outras.

Outra coisa que diferencia o livro de Boccaccio da obra icônica árabe situa-se no plano temático destas obras, que ora se aproximam bastante e ora se afastam completamente. Enquanto uma marca das narrativas de As Mil e Uma Noites são as crueldades e sofrimentos atrozes aos quais alguns personagens são submetidos, este não é um tema predileto de Boccaccio ainda que apareça em algumas novelas.

Situações fantásticas e criaturas sobrenaturais bem como complexas tramas de acontecimentos e infortúnios em série e interconectados que dão em resultados surpreendentes (narrativas rocambolescas) são duas outras marcas de As Mil e Uma Noites que são bem menos exploradas em O Decamerão. Até onde me recordo apenas uma novela aborda fatos sobrenaturais e poucos personagens são submetidos a “desventuras em série”.

O conto de Nastagio degli Onesti, pintado por Sandro Botticelli. Único conto com tema sobrenatural. Fonte: Wikimedia Commons.


As novelas de Boccaccio tem como principais marcas as aventuras amorosas ou trágicas, o escárnio, a ironia, as críticas jocosas, as burlas bem e malsucedidas e as engenhosidades empreendidas pelos enamorados e adúlteros a fim de estar e ter com seus amantes, enganando e passando para trás seus cônjuges e muitas vezes logrando êxito em alcançar suas pretensões, saindo impunemente de tais situações, mesmo quando descobertos, e, por vezes, até mesmo fazendo com que a situação ficasse a seu favor.

O amor – sobretudo erótico – e a infidelidade conjugal aparecem também em As Mil e Uma Noites e é inclusive o tema que desencadeia a trama principal e leva o Califa a casar-se com Sherazade. Contudo, em cada obra a infidelidade é tratada de uma forma diferente, e no caso d’ As Mil e Uma Noites, em geral, os infiéis pagam elevado preço por sua infidelidade (quase sempre com a vida), o que demonstra a pouquíssima flexibilidade dos autores daqueles “contos árabes”[8] em relação ao tema, tendo-o tratado de forma mais moralista, ou seja, conforme a moral de sua época. Boccaccio é mais flexível e aberto e me pareceu um pouco menos apegado à moralidade de seus contemporâneos.

Já o amor erótico – quando aparece – nem sempre é tratado em As Mil e Uma Noites como uma relação carnal entre dois seres humanos, mas igualmente entre um homem e uma bela criatura/entidade pagã. O casamento é bastante valorizado e por vezes se dá por questões práticas.

Alguns dos aspectos que mais me agradaram em As Mil e Uma Noites são as marcas fantásticas e rocambolescas presentes em quase totalidade do livro, sem falar no multiculturalismo da obra que abarca narrativas de diferentes povos do Oriente médio e da Ásia. Por conta disso, os momentos que mais me agradaram em O Decamerão foram quando o autor utilizou de tais elementos e de alguma forma se aproximou da obra árabe.

As narrativas de burlas não me chamaram a atenção nem as poucas histórias de cavalaria, mas sobretudo me cansaram os contos de questões conjugais. Não se trata, porém, de um falso moralismo da minha parte, mas de uma exploração demasiadamente frequente de uma mesma temática.

Principal temática abordada nas narrativas de O Decamerão, o amor erótico foi quase sempre explorado em conjunto com infidelidades conjugais, sobretudo levados a cabo por intento das mulheres ou de algum rapaz que encontra numa mulher eco para dispô-la como amante (ressalto que a moral da época via na mulher um sexo inclinado a corromper-se e a levar o homem a corromper-se também). Tamanho é o número de novelas com este tema que me cansei delas e até pulei algumas.

No entanto, há um ponto a se destacar. Boccaccio também trata do amor erótico entre indivíduos e membros do clero de ambos os sexos. Ele expõe vários casos de religiosos que rompiam secretamente seus votos de castidade e que usavam de artimanhas das mais engenhosas para viverem vidas libertinas e desviantes, incitando mulheres de suas paróquias a se associarem a eles. Em uma das histórias há também o envolvimento amoroso de freiras com um rapaz do povo. Por isso, não é de surpreender que a obra tenha causado polêmica, críticas e censura na época tendo até sido colocado no Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica[9].

Mas o curioso de O Decamerão é que Boccaccio, apesar de abordar temas tão polêmicos e delicados, faz questão de manter uma separação moral entre os personagens das narrativas e seus narradores a quem o escritor atribuiu uma qualidade de honestidade com moral alargada[10].

Não obstante, em O Decamerão é possível se ter noção sobretudo da mentalidade da época, no qual, por exemplo, se julgava que o homem era de natureza mais nobre e estável que a mulher. Uma ideia que tinha como aporte de sustentação a interpretação do texto bíblico do Gêneses, no qual o homem foi feito primeiro, a partir do barro, e a mulher, um tempo depois e de uma parte pouco nobre do corpo do primeiro homem: a costela. Logo, a mulher – na visão religiosa da época – era inferior e deveria se submeter ao homem como parte menor dele. Mas além disso, a interpretação do mesmo livro tomava a transgressão de Eva ao comer do fruto proibido e induzir Adão a também fazê-lo como base para a defesa da tese de ser a mulher fonte de corrupção do homem e de si mesma, como já mencionado. Boccaccio, contudo, transgrede essa ordem ao compor uma obra que exalta o feminino e que dedica às mulheres.

Sobre a escrita, a linguagem e o estilo

No que diz respeito a linguagem, surpreendeu-me a facilidade com o qual é possível ler esta que é uma obra com quase 670 anos de idade. Não que sua escrita seja simplória, mas o trabalho de tradução de Raul de Polillo é impecável. Ajuda também o fato de que Boccaccio inclina-se mais para uma linguagem prosaica do que poética. Ainda que use de muita retórica para articular certos pensamentos, na minha opinião não abusa das metáforas, dos jogos de palavras ou de construções estilísticas complexas.

No entanto, O Decamerão é um clássico em todos os sentidos, mas sobretudo no sentido temporal que se costuma atribuir à palavra, e por mais que quase sempre as traduções mais modernas suavizem alguns elementos estamos falando de uma obra de quase sete séculos atrás e isso deixa notável as diferenças em discursos, em ideias e ideologia, mas sobretudo em espaço dedicado à descrições, críticas e reflexões filosóficas ou políticas. É comum que os autores clássicos exagerem em um ou mais destes aspectos.

Apesar de muito dinâmico quando as narrativas de fato começam, o autor e seus narradores reservam espaços consideráveis a divagações e discursos sobre os temas que servem de base às histórias na forma de preâmbulos cansativos e até tediosos. Além disso, por ser um livro muito bem colocado em seu contexto histórico e ter grande influência da obra do também italiano Dante Alighieri (1265 d.C. – 1321 d.C.), O Decamerão faz referências a uma enorme quantidade de personagens reais de grande relevância para a história local, bem como de personagens de destaque na sociedade florentina da época. Além deles, o livro faz referências a figuras reais e fictícias retiradas ou citadas na Divina Comédia de Dante, o que acabou por fazer das notas explicativas de rodapé um elemento fundamental e constante, sobretudo no início de cada novela, quando os personagens envolvidos eram apresentados. Não obstante essas constantes idas às notas acabam por quebrar o ritmo de leitura.

O que aprendi com O Decamerão

Agora, me desviando de uma análise técnica, gostaria de ressaltar que aprendi muito com esta leitura.

Toda obra literária é uma possibilidade de aprendizagem e com O Decamerão aprendi duas coisas diferentes. A primeira delas está relacionada às respostas e aos comportamentos humanos em situação de pandemias e grandes surtos com elevada mortalidade. Aprendi como as pandemias se assemelham e se diferenciam em contextos históricos distintos.

A segunda diz respeito aos olhares ora romantizados, ora dicotômicos ou ainda demonizadores que lançamos sobre o passado, quase sempre para reafirmarmos ou justificarmos posturas, ideias e concepções de mundo afirmadas e assumidas no presente. Ou ainda, somente para nos diferenciarmos de nossos antepassados quando na verdade somos em essência de natureza tão similar, apesar dos contextos distintos e de uma ou outra conquista ou avanço real e necessário que tenhamos feitos.

Falarei por hora só da segunda observação e serei breve.

Percebo que é uma tendência humana, a depender do contexto, o desejo de romantizar ou demonizar o passado.

Quando é do nosso agrado envolvemos o passado com uma aura de nostalgia e exaltamos os valores e a decência perdida, bem como aspectos de um dado estilo de vida que se perdeu. Vemos isso nos discursos conservadores tanto quanto na literatura e no cinema, como nos livros e histórias de cavalaria com seus nobres e valorosos cavaleiros que empunham suas armas em nome de um ideal. Trata-se de uma forma de negar as imperfeições do passado para suscitar um desejo de regressar a uma ordem anterior, mas que, no entanto, só existiu da forma como é evocada no imaginário dos próprios nostálgicos.

Todavia quando é do nosso agrado fazemos o justo contrário e sublinhamos com tintas escarlates as barbaridades e violências físicas ou mesmo simbólicas que as muitas gerações passadas foram capazes de levar a efeito. E nisso reconheço um movimento contrário ao saudosismo dos conservadores, mas que não necessariamente é positivo, porque enquanto aqueles exaltam o passado para denegrir o presente, estes denigrem o passado e põem o presente em um pedestal como se esta fosse uma era de esclarecidos e de um grau de desenvolvimento cultural superior. No entanto, ao contrário do que diz essa forma de pensar, as atuais gerações empreendem violências tão mordazes quanto as do passado, porém de formas muitas vezes mais eficazes, silenciosas, sutis e indiretas.

O resultado destes dois movimentos contrários é que nossa visão do passado acaba sempre sendo turva, distorcida e incompleta, bastante distante de abarcar a complexidade das teias sociais e históricas e da diversidade cultural e geográfica das sociedades passadas.

Ler O Decamerão foi para mim importante porque me deu uma visão de que nós, em nossa vida privada e em nossas tumultuadas relações interpessoais e amorosas, não somos tão diferentes dos homens medievos do século 14 e contemporâneos de Boccaccio. É por isso que não há motivo para afirmarmos, por exemplo, que nossa sociedade é moralmente degenerada em comparação com um suposto passado luminoso e de moralidade, quando na verdade, o que antes era feito às escondidas e com mil artifícios para ocultá-lo, hoje simplesmente é feito de forma aberta e mais transparente.

Evoluímos? Regredimos? Ou em essência ainda somos os mesmos?

Por fim, a primorosa edição da Nova Fronteira

Não costumo tecer elogios a questões editoriais, mas em relação a edição lida, tenho somente elogios a fazer.

Edição lida. Fotografia: Eric Silva, 2021.


A Nova Fronteira dividiu o imenso livro de Boccaccio em dois tomos de capa dura e fez com eles um lindo box. Achei a diagramação escolhida para a oba belíssima tanto pelos floreios que enfeitam as páginas, como pelas iluminuras que iniciam cada história devolvendo ao livro seu ar de obra medieval. A fonte e o papel usado também tornam agradável a leitura e o fato das notas aparecerem no rodapé da página nos garante a economia de um tempo que seria desperdiçado caso as notas explicativas se encontrassem no final do livro como em algumas obras similares.

As capas dos dois volumes são impecáveis e com cores chamativas e contrastantes que – a contrassenso – não me desagradaram.

Também achei certeira a escolha por dividir a obra em dois volumes. Livros grandes como este são mais susceptíveis a danificar a costura e a colagem dos cadernos bem como deixa vincos na lombada. A opção de dividir o livro em dois e confeccioná-lo em capa dura diminuem estes efeitos e ajudam a conservar melhor o livro.

Ou seja, não vejo pontos negativos numa edição que além de tudo isso conta com uma tradução de excelente qualidade – como já afirmei.

Concluindo...

E enfim, para concluir essa resenha imensa, afirmo que posso não ter me tornado fã da obra de Boccaccio, mas ela tem seus pontos positivos. Lê-lo pôs por terra a visão preconceituosa que eu tinha da obra e me ajudou a ver a Idade Média sob novos ângulos, de uma “história da vida privada”.

Gostei sobretudo da abordagem que o autor faz dos anos da peste e isso me ajudou a compreender melhor nosso momento histórico ao fazer um paralelo com a atual pandemia de COVID-19, mas da qual falarei semana que vem. Em outras palavras, O Decamerão pode ter sido para mim um tanto cansativo, mas foi igualmente relevante e substancial para estes dois momentos históricos tão distintos.

A edição lida é da Editora Nova Fronteira, em dois tomos, de 2018. A tradução é de Raul de Polillo, com introdução de Edoardo Bizzarri. Ao todo são 1005 páginas. O título original em italiano é Il Decamerone.

Sobre o autor

Giovanni Boccaccio nasceu em Paris, no dia 16 de junho de 1313 e começou a escrever suas primeiras histórias aos sete anos, quando aprendera a ler e a escrever.

Em 1327, começa a estudar comércio e finanças e ingressa na universidade para fazer Direito Canônico, mas dedica todo o seu tempo à atividade literária.

Em 1350, em Florença, faz amizade com Francesco Petrarca e junto com Dante, formam uma grande tríade poética da Itália renascentista. Naquele mesmo ano é nomeado embaixador do governo florentino na cidade de Ravena e passa a viajar em missão diplomática por toda a Itália a serviço de Florença.

Publica O Decamerão em 1353, sua obra-prima. Em 1373 começa uma série de conferências sobre a Divina Comédia de Dante, mas dois anos depois adoece e falece em Certaldo, Itália, no dia 21 de dezembro de 1375.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: mapa.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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[1] O que foi a peste negra e quanta gente ela matou? Mundo Estranho, [s.l.], 4 jul. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-peste-negra-e-quanta-gente-ela-matou/. Acesso em: 03 jan. 2021.

[2] CAVALLARI, Doris. Decamerão. [Entrevista concedida a] Ederson Granetto.  Literatura Fundamental/UNIVESPtv, São Paulo, [s/d]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cqCTE_IfeOo. Acesso em: 03 jan. 2021.

[3] DECAMERÃO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Decamer%C3%A3o&oldid=59701159>. Acesso em: 03 jan. 2020.

[4]DECAMERÓN. In: Wikipedia, La enciclopedia libre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://es.wikipedia.org/w/index.php?title=Decamer%C3%B3n&oldid=131917997>. Acesso em: 03 jan. 2020.

[5] Idem.

[6] CAVALLARI, op. cit.

[7] DECAMERÓN, op. cit.

[8] Na verdade, só uma parcela dos contos que compõem As Mil e Uma Noites são de origem árabe. Há ali também contos provenientes do folclore indiano, persa e até mesmo chinês.

[9]  DECAMERON. In: Wikipedia, L'enciclopedia libera. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: https://it.wikipedia.org/wiki/Decameron. Acesso em: 05 jan. 2020.

[10] CAVALLARI, op. cit.

 


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