Por Eric Silva para
a 4ª
Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo
10 de janeiro de 2021, Ano da Itália
“As palavras, quando recebidas através dos ouvidos do
coração, possuem força muito maior do que muitos supõem; aos que se amam, quase
todas as coisas se tornam possíveis”
(O Decamerão – Giovanni Boccaccio)
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
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Edição lida com tradução de Raul de Pollilo. Nova Fronteira, 2018. |
Sinopse
do enredo
1348, Florença, Itália.
Em pleno auge da pandemia de peste bubônica, comumente conhecida como Peste Negra, a cidade de
Florença, na região da Toscana, padecia os horrores da doença misteriosa que
não só dizimava sua população, tornando a cidade florentina um grande cemitério
e uma zona de repulsão demográfica, como subvertia e recriava os hábitos e
costumes dos florentinos sobreviventes.
Em meio ao cenário de morte e
desolação, um grupo de sete jovens de Florença e provenientes de respeitadas
famílias se reúnem na igreja de Santa Maria Novella [E1] e começam a debater, sob a liderança da mais velha,
Pampineia, acerca do infortúnio que se abatera sobre Florença e suas famílias,
e decidem deixarem a cidade, por sugestão da moça, e pelo intervalo de alguns
dias se instalarem com seus criados em uma propriedade fora dos limites
urbanos. No entanto, para concretizar seu intento e salvaguardar suas honras,
as sete moças pedem a três rapazes conhecidos e namorados de três delas para
que as acompanhem em tal retiro enquanto este durasse.
Na Igreja de Santa Maria Novella os jovens reunidas decidem deixar Florença. fonte: Wikimedia Commons. |
Igualmente desejosos de deixar para trás a cidade e sua pestilência, os três rapazes aceitam o convite e no dia seguinte os dez jovens e seu séquito de criados deixam Florença em direção a uma requintada propriedade rural desocupada, mas arrumada e provida com uma excelente adega e ali se instalam por alguns dias.
Confortavelmente instalados e
fartamente providos de viveres, os jovens e moças dedicam uma quinzena de dias
a passeios, conversas, cantos e danças. No entanto, a principal atividade dos
jovens é reunirem-se ao entardecer para narrarem histórias de amor e aventura
com temas na maioria das vezes pré-definidos por um rei ou rainha escolhido
dentre eles e que era igualmente responsável da governança dos criados, da casa
e do grupo. Assim, a cada dia e sob a governança de um rei ou rainha de reinado
único são contadas 10 narrativas que formam uma jornada, num total final de dez
jornadas e cem contos.
Quando finalmente findam as
dez jornadas completas de novelar, no décimo quinto dia de retiro, todos
regressam à cidade, encerrando a obra de Boccaccio.
Resenha
Escrito entre
os anos de 1348 e 1353[3],
O Decamerão (ou Príncipe Galeotto) é uma das mais importantes obras literárias
italianas e também da literatura mundial, sendo considerada uma obra que marca
a fundação da narrativa (em prosa) moderna, além e ser considerada o magnum opus (obra-prima) do escritor e
poeta florentino Giovanni Boccaccio (1313-1375).
O título da
obra tem origem no grego e significa “dez dias” ou “dez jornadas” em alusão aos
dez dias nos quais os dez protagonistas-narradores se dedicam a novelar sobre o
amor. No curso desses dez dias, as sete moças (Pampineia, Fiammetta,
Filomena, Emilia, Laurinha, Neifile e Elisa) e os três rapazes (Pânfilo, Filostrato
e Dioneio) se dedicam a relatar dez contos cada um que vão do erótico ao
trágico, tomando por base casos – reais ou não – de amor, de honra e de
vilania, contos de sagacidade, piadas e lições de vida, perfazendo, ao todo,
cem contos contados uma dezena por dia e por cada um dos dez novelistas
alternadamente.
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Jovens contadores de histórias do Decameron em uma pintura de John William Waterhouse, A Tale from Decameron, 1916, Lady Lever Art Gallery, Liverpool. Fonte: Wikimedia Commons. |
Quando resolvi incluir O
Decamerão entre os livros que leria para essa edição da Campanha Anual de
Literatura, o CALCT, o fiz dentre
uma farta oferta de títulos por se tratar de um clássico importante da
literatura universal, mas o pouco que eu sabia da obra não me estimulava a sua
leitura – nem o investimento financeiro em uma edição tão cara e luxuosa.
Não sou particular apreciador de histórias eróticas e tenho
minhas implicâncias com os romances
de amor, e na época o pouco que sabia de O Decamerão dizia de uma obra cheia de erotismo que me fez
associá-lo, talvez a obra de Marques de Sade, mas no sentido de serem
narrativas libertinas e de caráter hedonista. Como tenho também certas reservas
quanto ao hedonismo tanto como filosofia quanto como princípio de vida, tendo
sido este um dos motivos de não ter apreciado parte dos personagens de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar
Wilde. Esse pesa contra um Decamerão que
eu ainda não tinha lido.
Pode até parecer um certo moralismo da minha parte (não que eu
me abstenha de preservar certos princípios e valores morais), mas se trata de
questão de gosto literário pessoal. Por isso, eu tinha dúvidas se valeria a
pena adquirir O Decamerão e fazer o
esforço de percorrer suas dez centenas de páginas (1005 págs.). Contudo, o
livro se revelou algo não exatamente como me fora descrito o senso comum. É
certo que O Decamerão está repleto de
histórias de traições conjugais bem-sucedidas, mas para além disso, as
narrativas possuem mais o irônico e o cômico do que algo de cunho erótico. Pelo
contrário, se os personagens são adúlteros, espertalhões, hipócritas de toda
natureza, religiosos libertinos e pessoas pouco dadas a respeitar votos
conjugais ou religiosos, por outro lado, o autor e sobretudo os dez novelistas
mantêm um impecável decoro, com condutas irrepreensíveis, não entrando em
detalhes desnecessários ou lançando mão de expressões chulas e de baixo calão
para referenciar práticas sexuais (nenhuma delas sadistas) de seus personagens.
O Decamerão
não era o que falavam dele, logo minhas referências eram tão ignorantes sobre a
obra quanto eu, ou se baseavam em adaptações que destacavam/explicitavam de
forma mais aberta o erotismo existente no conteúdo narrativo da obra. Ainda
assim, ler a obra de Boccaccio foi tarefa cansativa e, por vezes, tediosa.
A Peste e os personagens-narradores
Esboçando um panorama do caos criado pela Peste Negra, O Decamerão começa de uma forma que me
interessou bastante por ambientar seu leitor em um contexto histórico-social de
forma precisa, ampla e elucidativa, mas de forma concisa. Como o autor escrevia
em pleno período de pandemia de peste bubônica (olha
que coincidência eu lê-lo durante a pandemia de COVID-19), Boccaccio
aproveita o triste e desolador cenário da Peste como inspiração para a base
narrativa da trama e já imaginando a necessidade de situar os possíveis
leitores da posterioridade, faz um panorama profundo e detalhado dos impactos
da peste sobre as práticas e relações sociais em Florença, abordando hábitos
antigos abandonados e os novos hábitos adquiridos em razão das circunstâncias,
os comportamentos, as crenças acerca da doença, as dificuldades de sepultamento,
a forma como a doença se manifestava e consumia a vida de suas vítimas e o
abandono dos campos e dos animais pelos camponeses, amplamente vitimados por
aquele mal.
Por ser testemunha ocular dos fatos, a descrição de Boccaccio
possui um peso e potência que as vezes faltam até nos livros de história. Por
conta disso a obra pode ser considerada além de um marco na literatura, um
documento histórico sobre a Peste Negra de alto valor, sobretudo para entender
as dimensões sociais e culturais que a pandemia teve sobre estas. E é em meio a
este cenário confuso marcado pela morte e pelo miasma de muitos mortos é que o
autor insere seus protagonistas que servem na trama como uma lufada de frescor
e vida.
As sete moças e os três rapazes que compõem o grupo de novelistas
são jovens solteiros de famílias com posição social elevada, mas que nem por
isso escaparam de ter membros de suas famílias vitimados pela peste. No
entanto, apesar da situação caótica, os dez decidem isolarem-se com alguns
criados sobreviventes de modo a aproveitarem um pouco de divertimento e lazer
em lugar afastado, o que se explica tanto pela juventude dos dez como pela
incerteza de sobreviverem àquilo tudo.
Quanto ao
desenho psicológico Boccaccio não desenvolve esses personagens com particular
profundidade, mas algumas características deles são bastante evidentes,
marcantes e os individualizam.
Entre as mulheres, cujas idades vão de 18 a 28 anos, Pampineia é
a mais velha e a responsável por propor o retiro. Ela é a mais destacada dos
novelistas. Cheia de iniciativa, a moça tem um gênio decidido e conta com
bastante protagonismo. O que ela propõe ao grupo até certo ponto era imprudente
e um pouco indecoroso para a época, mas ela o faz mesmo assim, motivo pelo qual
Boccaccio faz questão de destacar a seriedade, honradez, bons costumes,
dignidade e nobreza não só do grupo, mas principalmente das moças.
Depois de Pampineia temos Filomena, que é descrita como
“sensatíssima” pelo autor e como “otimista” por alguns críticos. Ela é uma das
poucas a se opor ao plano inicial de Pampineia – que não incluía os três
rapazes – alegando que as mulheres não sabem conviver ou se governarem “sem a
previdência de algum homem”. Trata-se de uma visão bastante sexista e
patriarcal, mas típica da época e para a posição social das moças, e que queria
expressar a insensatez de que elas empreendessem aquela viagem sem algum homem
para acompanhá-las. A questão é resolvida quando os três rapazes chegam a
igreja e são convidados por Pampineia a acompanhá-las.
Contudo, a posição machista não é única de Filomena, mas também
compartilhada por outra personagem, Elisa, que é descrita pela versão espanhola
da Wikipédia como “docta [culta] y
prudente”, mas “de uma dignidade no exenta
[não isenta] de aristocracia”[4] – o que condiz com seu
pensamento mais conservador.
As outras moças, por sua vez, se destacam por qualidades
diversas: Neifile pela beleza; Fiammetta pela inteligência, beleza e
determinação; Emilia pelo narcisismo e egocentrismo, e Laurinha pelo senso de
justiça e submissão ao gênero masculino[5].
Quanto aos rapazes, que se encontravam enamorados de algumas
daquelas moças, eram todos muito corteses e solícitos. Filostrato é o mais
melancólico e com uma personalidade que se inclina para preferir narrativas
trágicas. Pânfilo é dentre os jovens o mais sábio, bem resolvido e centrado[6].
E, por fim, Dioneio que é um jovem de natureza transgressora[7],
bastante jocoso e conta em Decamerão
as novelas mais despudoradas e obscenas.
Nas narrativas que são contadas pelos dez jovens desfilam centenas
de personagens dos mais diferentes humores e caráteres, mas seria impossível
falar de todos. Considero, porém, que a muitos deles têm peso e importância
muito superiores aos dez narradores e se sobressaem dentro do livro, bem como
acontece com alguns personagens de As Mil
e Uma Noites que resenharei em breve no projeto #MeusLivros.
Apreciação crítica das narrativas e da obra em
seu conjunto
Decamerão e Mil e Uma
Noites: comparações inevitáveis
Digo sem sombra de dúvidas que gosto de obras com esquemas sherazadianos, a exemplo de A Chave Estrela, de Primo
Levi, que resenharei em breve no
projeto e As Cidades Invisíveis, de Italo
Calvino, resenhado em 2019. As
Mil e Uma Noites, então, é meu favorito e o precursor desse modo de narrar
onde pequenas novelas são narradas em sequência por uma ou mais
personagens-narradoras e se intercalam, povoando a obra de personagens e
histórias.
Em geral não gosto de coletâneas de contos, mas
contraditoriamente, gosto de livros com este esquema que já vi alguns críticos
chamarem de sherazadiano, em alusão a protagonista d’As Mil e Uma Noites. Acredito que minha predileção por estes livros
em detrimento das coletâneas mais comuns de contos, se deva a existência neles
de uma narrativa que funciona como plano de fundo.
No caso de O Decamerão
não tive a mesma identificação. O número
de novelas é excessivo e com uma brevidade que não permite identificação com os
personagens. Mesmo com os dez narradores essa identificação é bastante
limitada, haja vista que eles não são profundamente desenvolvidos ao longo do
livro. Com o tempo, ler O Decamerão se tornou cansativo. Em As Mil e Uma Noites isso não acontece,
porque o número de narrativas é menor e algumas narrativas chegam a ser
bastante longas como, por exemplo, a história dos “três calândares, filhos de rei” e as histórias de “Simbá, o marujo”, dentre outras.
Outra coisa que diferencia o livro de Boccaccio da obra icônica
árabe situa-se no plano temático destas obras, que ora se aproximam bastante e
ora se afastam completamente. Enquanto uma marca das narrativas de As Mil e Uma Noites são as crueldades e
sofrimentos atrozes aos quais alguns personagens são submetidos, este não é um
tema predileto de Boccaccio ainda que apareça em algumas novelas.
Situações fantásticas e criaturas sobrenaturais bem como
complexas tramas de acontecimentos e infortúnios em série e interconectados que
dão em resultados surpreendentes (narrativas rocambolescas) são duas outras
marcas de As Mil e Uma Noites que são
bem menos exploradas em O Decamerão.
Até onde me recordo apenas uma novela aborda fatos sobrenaturais e poucos
personagens são submetidos a “desventuras em série”.
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O conto de Nastagio degli Onesti, pintado por Sandro Botticelli. Único conto com tema sobrenatural. Fonte: Wikimedia Commons. |
As novelas de
Boccaccio tem como principais marcas as aventuras amorosas ou trágicas, o
escárnio, a ironia, as críticas jocosas, as burlas bem e malsucedidas e as
engenhosidades empreendidas pelos enamorados e adúlteros a fim de estar e ter
com seus amantes, enganando e passando para trás seus cônjuges e muitas vezes
logrando êxito em alcançar suas pretensões, saindo impunemente de tais
situações, mesmo quando descobertos, e, por vezes, até mesmo fazendo com que a
situação ficasse a seu favor.
O amor – sobretudo erótico –
e a infidelidade conjugal aparecem também em As
Mil e Uma Noites e é inclusive o tema que desencadeia a trama principal e
leva o Califa a casar-se com Sherazade. Contudo, em cada obra a infidelidade é
tratada de uma forma diferente, e no caso d’
As Mil e Uma Noites, em geral, os infiéis pagam elevado preço por sua
infidelidade (quase sempre com a vida), o que demonstra a pouquíssima
flexibilidade dos autores daqueles “contos árabes”[8]
em relação ao tema, tendo-o tratado de forma mais moralista, ou seja, conforme
a moral de sua época. Boccaccio é mais flexível e aberto e me pareceu um pouco
menos apegado à moralidade de seus contemporâneos.
Já o amor erótico – quando aparece – nem sempre é tratado em As Mil e Uma Noites como uma relação
carnal entre dois seres humanos, mas igualmente entre um homem e uma bela
criatura/entidade pagã. O casamento é bastante valorizado e por vezes se dá por
questões práticas.
Alguns dos aspectos que mais me agradaram em As Mil e Uma Noites são as marcas
fantásticas e rocambolescas presentes em quase totalidade do livro, sem falar
no multiculturalismo da obra que abarca narrativas de diferentes povos do
Oriente médio e da Ásia. Por conta disso, os momentos que mais me agradaram em O Decamerão foram quando o autor
utilizou de tais elementos e de alguma forma se aproximou da obra árabe.
As narrativas
de burlas não me chamaram a atenção nem as poucas histórias de cavalaria, mas
sobretudo me cansaram os contos de questões conjugais. Não se trata, porém, de
um falso moralismo da minha parte, mas de uma exploração demasiadamente
frequente de uma mesma temática.
Principal
temática abordada nas narrativas de O
Decamerão, o amor erótico foi quase sempre explorado em conjunto com
infidelidades conjugais, sobretudo levados a cabo por intento das mulheres ou
de algum rapaz que encontra numa mulher eco para dispô-la como amante (ressalto
que a moral da época via na mulher um sexo inclinado a corromper-se e a levar o
homem a corromper-se também). Tamanho é o número de novelas com este tema que
me cansei delas e até pulei algumas.
No entanto, há um ponto a se destacar. Boccaccio também
trata do amor erótico entre indivíduos e membros do clero de ambos os sexos. Ele expõe vários casos de religiosos que rompiam
secretamente seus votos de castidade e que usavam de artimanhas das mais
engenhosas para viverem vidas libertinas e desviantes, incitando mulheres de
suas paróquias a se associarem a eles. Em uma das histórias há também o envolvimento
amoroso de freiras com um rapaz do povo. Por isso, não é de surpreender que a
obra tenha causado polêmica, críticas e censura na época tendo até sido
colocado no Index Librorum Prohibitorum
da Igreja Católica[9].
Mas o curioso de O Decamerão é que Boccaccio, apesar de abordar temas tão
polêmicos e delicados, faz questão de manter uma separação moral entre os
personagens das narrativas e seus narradores a quem o escritor atribuiu uma
qualidade de honestidade com moral alargada[10].
Não obstante, em O
Decamerão é possível se ter noção sobretudo da mentalidade da época, no
qual, por exemplo, se julgava que o homem era de natureza mais nobre e estável
que a mulher. Uma ideia que tinha como aporte de sustentação a interpretação do
texto bíblico do Gêneses, no qual o homem foi feito primeiro, a partir do
barro, e a mulher, um tempo depois e de uma parte pouco nobre do corpo do
primeiro homem: a costela. Logo, a mulher – na visão religiosa da época – era
inferior e deveria se submeter ao homem como parte menor dele. Mas além disso,
a interpretação do mesmo livro tomava a transgressão de Eva ao comer do fruto
proibido e induzir Adão a também fazê-lo como base para a defesa da tese de ser
a mulher fonte de corrupção do homem e de si mesma, como já mencionado. Boccaccio,
contudo, transgrede essa ordem ao compor uma obra que exalta o feminino e que
dedica às mulheres.
Sobre a escrita, a
linguagem e o estilo
No que diz
respeito a linguagem, surpreendeu-me a facilidade com o qual é possível ler
esta que é uma obra com quase 670 anos de idade. Não que sua escrita seja
simplória, mas o trabalho de tradução de Raul de Polillo é impecável. Ajuda também
o fato de que Boccaccio inclina-se mais para uma linguagem prosaica do que
poética. Ainda que use de muita retórica para articular certos pensamentos, na
minha opinião não abusa das metáforas, dos jogos de palavras ou de construções
estilísticas complexas.
No entanto, O Decamerão é
um clássico em todos os sentidos, mas sobretudo no sentido temporal que se
costuma atribuir à palavra, e por mais que quase sempre as traduções mais
modernas suavizem alguns elementos estamos falando de uma obra de quase sete
séculos atrás e isso deixa notável as diferenças em discursos, em ideias e
ideologia, mas sobretudo em espaço dedicado à descrições, críticas e reflexões
filosóficas ou políticas. É comum que os autores clássicos exagerem em um ou
mais destes aspectos.
Apesar de
muito dinâmico quando as narrativas de fato começam, o autor e seus narradores
reservam espaços consideráveis a divagações e discursos sobre os temas que
servem de base às histórias na forma de preâmbulos cansativos e até tediosos. Além disso,
por ser um livro muito bem colocado em seu contexto histórico e ter grande
influência da obra do também italiano Dante Alighieri (1265 d.C. – 1321 d.C.), O Decamerão faz referências a uma enorme
quantidade de personagens reais de grande relevância para a história local, bem
como de personagens de destaque na sociedade florentina da época. Além deles, o
livro faz referências a figuras reais e fictícias retiradas ou citadas na Divina Comédia de Dante, o que acabou
por fazer das notas explicativas de rodapé um elemento fundamental e constante,
sobretudo no início de cada novela, quando os personagens envolvidos eram
apresentados. Não obstante essas
constantes idas às notas acabam por quebrar o ritmo de leitura.
O que aprendi com O
Decamerão
Agora, me desviando de uma análise técnica, gostaria de
ressaltar que aprendi muito com esta leitura.
Toda obra literária é uma possibilidade de aprendizagem e com O Decamerão aprendi duas coisas
diferentes. A primeira delas está relacionada às respostas e aos comportamentos
humanos em situação de pandemias e grandes surtos com elevada mortalidade. Aprendi
como as pandemias se assemelham e se diferenciam em contextos históricos
distintos.
A segunda diz respeito aos olhares ora romantizados, ora
dicotômicos ou ainda demonizadores que lançamos sobre o passado, quase sempre
para reafirmarmos ou justificarmos posturas, ideias e concepções de mundo
afirmadas e assumidas no presente. Ou ainda, somente para nos diferenciarmos de
nossos antepassados quando na verdade somos em essência de natureza tão
similar, apesar dos contextos distintos e de uma ou outra conquista ou avanço
real e necessário que tenhamos feitos.
Falarei por hora só da segunda observação e serei breve.
Percebo que é uma tendência humana, a depender do contexto, o
desejo de romantizar ou demonizar o passado.
Quando é do nosso agrado envolvemos o passado com uma aura de
nostalgia e exaltamos os valores e a decência perdida, bem como aspectos de um
dado estilo de vida que se perdeu. Vemos isso nos discursos conservadores tanto
quanto na literatura e no cinema, como nos livros e histórias de cavalaria com
seus nobres e valorosos cavaleiros que empunham suas armas em nome de um ideal.
Trata-se de uma forma de negar as imperfeições do passado para suscitar um
desejo de regressar a uma ordem anterior, mas que, no entanto, só existiu da
forma como é evocada no imaginário dos próprios nostálgicos.
Todavia quando é do nosso agrado fazemos o justo contrário e
sublinhamos com tintas escarlates as barbaridades e violências físicas ou mesmo
simbólicas que as muitas gerações passadas foram capazes de levar a efeito. E
nisso reconheço um movimento contrário ao saudosismo dos conservadores, mas que
não necessariamente é positivo, porque enquanto aqueles exaltam o passado para
denegrir o presente, estes denigrem o passado e põem o presente em um pedestal
como se esta fosse uma era de esclarecidos e de um grau de desenvolvimento
cultural superior. No entanto, ao contrário do que diz essa forma de pensar, as
atuais gerações empreendem violências tão mordazes quanto as do passado, porém
de formas muitas vezes mais eficazes, silenciosas, sutis e indiretas.
O resultado destes dois movimentos contrários é que nossa visão
do passado acaba sempre sendo turva, distorcida e incompleta, bastante distante
de abarcar a complexidade das teias sociais e históricas e da diversidade
cultural e geográfica das sociedades passadas.
Ler O Decamerão foi
para mim importante porque me deu uma visão de que nós, em nossa vida privada e
em nossas tumultuadas relações interpessoais e amorosas, não somos tão
diferentes dos homens medievos do século 14 e contemporâneos de Boccaccio. É
por isso que não há motivo para afirmarmos, por exemplo, que nossa sociedade é
moralmente degenerada em comparação com um suposto passado luminoso e de
moralidade, quando na verdade, o que antes era feito às escondidas e com mil
artifícios para ocultá-lo, hoje simplesmente é feito de forma aberta e mais
transparente.
Evoluímos?
Regredimos? Ou em essência ainda somos os mesmos?
Por fim, a primorosa
edição da Nova Fronteira
Não costumo tecer elogios a questões editoriais, mas em relação
a edição lida, tenho somente elogios a fazer.
![]() |
Edição lida. Fotografia: Eric Silva, 2021. |
A Nova Fronteira dividiu o imenso livro de Boccaccio em dois
tomos de capa dura e fez com eles um lindo box. Achei a diagramação escolhida
para a oba belíssima tanto pelos floreios que enfeitam as páginas, como pelas
iluminuras que iniciam cada história devolvendo ao livro seu ar de obra
medieval. A fonte e o papel usado também tornam agradável a leitura e o fato
das notas aparecerem no rodapé da página nos garante a economia de um tempo que
seria desperdiçado caso as notas explicativas se encontrassem no final do livro
como em algumas obras similares.
As capas dos dois volumes são impecáveis e com cores chamativas
e contrastantes que – a contrassenso – não me desagradaram.
Também achei certeira a escolha por dividir a obra em dois
volumes. Livros grandes como este são mais susceptíveis a danificar a costura e
a colagem dos cadernos bem como deixa vincos na lombada. A opção de dividir o
livro em dois e confeccioná-lo em capa dura diminuem estes efeitos e ajudam a
conservar melhor o livro.
Ou seja, não vejo pontos negativos numa edição que além de tudo
isso conta com uma tradução de excelente qualidade – como já afirmei.
Concluindo...
E enfim, para
concluir essa resenha imensa, afirmo que posso não ter me tornado fã da obra de
Boccaccio, mas ela tem seus pontos positivos. Lê-lo pôs por terra a visão
preconceituosa que eu tinha da obra e me ajudou a ver a Idade Média sob novos
ângulos, de uma “história da vida privada”.
Gostei
sobretudo da abordagem que o autor faz dos anos da peste e isso me ajudou a
compreender melhor nosso momento histórico ao fazer um paralelo com a atual
pandemia de COVID-19, mas da qual
falarei semana que vem. Em outras palavras, O
Decamerão pode ter sido para mim um tanto cansativo, mas foi igualmente
relevante e substancial para estes dois momentos históricos tão distintos.
A edição lida é da Editora
Nova Fronteira, em dois tomos, de 2018. A tradução é de Raul de Polillo, com
introdução de Edoardo Bizzarri. Ao todo são 1005 páginas. O título original em
italiano é Il Decamerone.
Sobre
o autor
Em 1327, começa a estudar comércio e finanças e ingressa na
universidade para fazer Direito Canônico, mas dedica todo o seu tempo à
atividade literária.
Em 1350, em Florença, faz amizade com Francesco Petrarca e junto
com Dante, formam uma grande tríade poética da Itália renascentista. Naquele
mesmo ano é nomeado embaixador do governo florentino na cidade de Ravena e
passa a viajar em missão diplomática por toda a Itália a serviço de Florença.
Publica O Decamerão em
1353, sua obra-prima. Em 1373 começa uma série de conferências sobre a Divina
Comédia de Dante, mas dois anos depois adoece e falece em Certaldo, Itália, no
dia 21 de dezembro de 1375.
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os pontos do nosso itinerário no mapa do link: mapa.
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Eu
e Você – Niccolò Ammaniti – Resenha
Se
um Viajante numa Noite de Inverno – Italo Calvino – Resenha
A
Solidão dos Números Primos – Paolo Giordano – Resenha
[1]
O que foi a peste negra e quanta gente ela matou? Mundo Estranho, [s.l.], 4
jul. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-peste-negra-e-quanta-gente-ela-matou/.
Acesso em: 03 jan. 2021.
[2]
CAVALLARI, Doris. Decamerão.
[Entrevista concedida a] Ederson Granetto.
Literatura Fundamental/UNIVESPtv, São Paulo, [s/d]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cqCTE_IfeOo. Acesso em: 03 jan. 2021.
[3]
DECAMERÃO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation,
2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Decamer%C3%A3o&oldid=59701159>.
Acesso em: 03 jan. 2020.
[4]DECAMERÓN. In: Wikipedia, La
enciclopedia libre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://es.wikipedia.org/w/index.php?title=Decamer%C3%B3n&oldid=131917997>.
Acesso em: 03 jan. 2020.
[5] Idem.
[6] CAVALLARI, op. cit.
[7] DECAMERÓN, op. cit.
[8]
Na verdade, só uma parcela dos contos que compõem As Mil e Uma
Noites são
de origem árabe. Há ali também contos provenientes do folclore indiano, persa e
até mesmo chinês.
[9]
DECAMERON. In: Wikipedia, L'enciclopedia libera. Flórida:
Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: https://it.wikipedia.org/wiki/Decameron.
Acesso em: 05 jan. 2020.
[10] CAVALLARI, op. cit.
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