Mostrando postagens com marcador Não-Ficção. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Não-Ficção. Mostrar todas as postagens

domingo, 5 de julho de 2020

A Espada que dá Vida – Yagyu Munenori – Resenha


Por Eric Silva
11 de abril de 2020

“Se os pensamentos estão dentro, suas tintas serão manifestadas fora”
(Yagyu Munenori)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Um tratado de esgrima, um texto clássico do zen-budismo e lições de vida, A Espada que dá Vida do espadachim japonês que viveu ativamente as primeiras décadas do xogunato Tokugawa, Yagyu Munenori, é um livro por sua filosofia desafiante, mas, ao mesmo tempo, repleto de valiosas reflexões sobre a mente humana.

Sinopse do livro

Espadachim e mestre de artes maciais fundador do ramo Yagyū Shinkage-ryu de Edo[1], Yagyu Munenori é considerado como o maior rival de Musashi, outro famoso espadachim japonês, ainda que nunca o tenha conhecido pessoalmente. Retentor direto da casa Tokugawa, e instrutor de espadas de três gerações sucessivas de xoguns: Ieyasu, Hidetada e Iemitsu. Contudo, mais do que um instrutor de artes marciais, Yagyu, foi também um importante conselheiro do xogunato Tokugawa e uma figura influente na vida do terceiro xogum, Iemitsu.

Na arte da espada, Yagyu foi um mestre de grande respeito e fama, tendo aperfeiçoado o estilo de espada de seu clã ao introduzir nele uma série de ideias e conceitos do zen-budismo. A Espada que dá Vida (Heihō kadensho – 兵法家伝書)[2] é o tratado de Yagyu através do qual ele passou às gerações seguintes de seu clã toda a filosofia de seu estilo de espada, uma reflexão sobre a Não Espada.

O tema central dessa obra, que ainda hoje é considerada como um texto clássico do zen, é a arte de utilizar a espada mais como instrumento de vida do que de morte, através de um controle sobre o oponente por meio da preparação espiritual para lutar, muito mais do que pela luta propriamente dita. Trata-se de um livro de estratégia que leva o seu leitor a refletir como vencer uma batalha sem necessariamente usar força ostensiva e evitando perda para todas as partes envolvidas. Um livro que extrapola o universo da esgrima, ainda que este seja seu tema central.

Resenha

Detalhe dos suportes (koshirae) para um par de espadas (daishō), período Edo.
Autor: Marie-Lan Nguyen. Wikimedia Commons.
Comecei a ler esse livro por conta de um aluno novo que ao saber da minha opção religiosa me pediu que lesse esse importante texto do kendō (剣道), arte marcial praticada por ele, mas que também é considerado um texto clássico da literatura zen, fortemente influenciado pelo pensamento do monge Takuan Soho, que era amigo próximo de Munenori. Por conta disso, A Espada que dá vida nos apresenta uma série de ideias filosóficas aplicáveis em muitos aspectos da vida cotidiana. Princípios que pode ser utilizado no convívio social, bem como nos negócios. Isso se deve porque a ideia central desse texto não é unicamente ensinar técnicas de manuseio da espada, mas ensinar um estilo de espada que considera que não é a derrotar o oponente a maior vitória que você pode conquistar, mas torná-lo seu parceiro, evitando o conflito.

Escrito no século XVII, A Espada que dá Vida, foi concebido em plena era de domínio do Xogunato Tokugawa, o Período Edo. Nessa época, o Japão vivia um momento político marcado tanto pelo forte isolamento político-econômico do país, como pelo controle rígido exercido pelos xoguns[3], generais que comandava o exército imperial, mas que a partir do século XII, haviam se tornado governantes de facto de todo o país[4].

Durante o período Edo, o Japão foi governado pelos xoguns da família Tokugawa, da qual foram membros Ieyasu, Hidetada e Iemitsu, os três primeiros xoguns da linhagem que governaria as terras nipônicas de 1603 até 1868. Foi durante o governo dos primeiros três xoguns que Yagyu Munenori (1571 – 1646) viveu grande parte de sua vida, e foi ao lado deles que o espadachim fez seu nome na história das artes marciais japonesas.

Yagyu era filho caçula de um espadachim de renome e aristocrata de um vale em Yamato[5], Yagyu Sekishusai Muneyoshi, e herdou deste os segredos de seu estilo de espadas, o Shinkage-ryu. Em certa ocasião, o futuro xogum, Ieyasu, convidou Sekishusai para visitá-lo em sua vila de Takagamine, fora da capital. Ieyasu queria conhecer a famosa técnica de Sekishusai de derrotar um homem armado usando apenas as mãos livres – a técnica da Não Espada.

Sekishusai foi ao encontro de Ieyasu acompanhado de Munenori, na ocasião com 22 anos, e lá explicaram ao xogum os princípios do Shinkage-ryu e o demostraram numa luta entre Sekishusai e Ieyasu.

Impressionado, Ieyasu pediu que o velho mestre se tornasse seu instrutor pessoal. Recusando educadamente, Sekishusai declarou que tinha uma idade já avançada e recomendou seu filho para o posto oferecido. Foi desse modo, que Munenori tornou-se instrutor de três xoguns da casa de Tokugawa, passando a ter também, com o tempo, uma forte influência política dentro do xogunato como conselheiro de Iemitsu, neto de Ieyasu. 

Por volta de 1632, Munenori concluiu o Heihō kadensho (A Espada que dá Vida), livro no qual ensinaria a prática da espada Shinkage-ryu e como seus princípios poderia ser aplicado em um nível macro à vida e também à política[6].

Filosofia, zen-budismo e artes marciais

Monge zen-budista japonês da escola Soto em meditação.
Autor: Marubatsu. Wikimedia Commons.
A Espada que dá vida é um livro difícil de descrever – tanto quanto está sendo complicado resenhá-lo. Essa dificuldade nasce porque ele não é só um livro de artes marciais, é também um livro de estratégia. Contudo além de um livro de estratégia, ele é também uma obra que mergulha na tradição zen, e como tal é repleto de ideias sofisticadas oriunda de uma filosofia cuja compreensão e aplicação podem ser muitas vezes bastante complexo, ainda que tudo pareça ser muito simples. Se não bastasse, além do zen, o livro também tem fortes influências confucionistas[7].

Sou zen-budista, e como tal posso atestar que a simplicidade do zen e de sua prática meditativa, o zazen, são apenas a superfície de um lago profundo no qual repousam conceitos que em certos momentos parecem muito simples de compreender, mas, em outros, parece flertar com o paradoxal porque exige de você enxergar além do aparente (muito além). A Espada que dá Vida é assim também, e lê-lo é um convite a meditar cada ideia antes de prosseguir com a leitura, o que desacelera bastante o ritmo desta leitura.

O zen é uma tradição religiosa associada ao Budismo do ramo mahayana, que foca, sobretudo, na prática, no zazen, ou seja, em sentar-se em meditação (em zen), acalmar a mente, e, nas palavras de Rodrigo Daien, “existir, ser uno com todas as coisas, ouvir os sons sem julgá-los, não fazer cogitações ou viagens para passado ou futuro”[8]. Parece simples, entretanto não é.
Mas como em toda tradição religiosa, há uma filosofia complexa que da base ao Zen: os ensinamentos do Dharma, a lei verdadeira ensinada pelo Buda histórico, Shakyamuni, ou Sidarta Gautama.

Após atingir a iluminação, o próprio Shakyamuni Buda buscava ensinar as quatro nobres verdades sobre o sofrimento de maneiras muito diversas, indo das formas mais simplificadas, às mais complexas, para que independente do grau de conhecimento e instrução de cada um, todos pudessem entender a mensagem do Dharma. Logo, apesar de muito evidentes, muitos ensinamentos de Buda podem ser dificílimos de compreender à primeira vista. Um livro que bebe dessa tradição, inevitavelmente, fará emergir algumas coisas bem complexas.

Mesmo para mim, que tenho uma certa familiaridade com o Zen e com o budismo (dentro do nível mais básico que um recém-convertido pode ter), houve momentos que ler A Espada que dá Vida foi ficar perdido com conceitos abstratos de uma filosofia muito diferente da nossa, mas que fala de nós e do nosso mundo com imensa precisão. Por diversas vezes prossegui na leitura em meio a névoas até alcançar um novo ponto onde as coisas voltassem a ser compreensivas no todo, mas é inegável que as palavras de Munenori, em vários momentos, têm um peso imenso e uma profundidade arrepiante.

O livro original é dividindo em três partes, nas quais Munenori vai mesclando as técnicas do Shinkage-ryu com a filosofia zen e as ideias confucionistas. No entanto, a edição lida também contém um longo prefácio (intitulado aqui como introdução), no qual o editor da tradução inglesa, William Scott Wilson, faz um apanhado geral da trajetória de vida de Munenori e das origens do estilo de espada por ele herdada e aperfeiçoada.

O primeiro capítulo, “A Ponte do Sapato de Presente”, é o menor dos três e apresenta as técnicas fundamentais do estilo, bem como orienta seu treinamento. Além disso, esse capítulo aborda a importância da estratégia criada “ainda dentro dos limites do nosso território”, tendo o inimigo ainda longe, e também de entender nas artes márcias “os limites do território são a nossa mente”. Uma mente que deve ser livre de negligências e observadora dos movimentos e atividades do oponente, buscando falhas e planejando estratégias.

A parte seguinte, “A Espada que Traz Morte”, fala das estratégias e da postura a ser adotada pelo aprendiz do Shinkage-ryu, enfatiza o aspecto técnico mas dá um grande destaque ao aspecto mental, falando sobre o ch’i, a intensão, a ilusão como base das artes marciais, sobre a essência do atacar e do aguardar, assim como a relação entre a mente e os ritmos na luta.

Um ponto muito interessante deste capítulo é quando o livro trata do que Munenori chama de doença nas artes marciais.

Nas palavras de Munenori, pensar apenas em vitória ou em só usar as artes marcais, ou em demonstrar resultados nas mesmas é doença, e nos ensina a usar o pensamento para atingir o não pensar e usar a conexão para desconectar. Confusão, não? Mas trata-se de usar o pensamento para expulsar o mal, expulsar pensamentos usando pensamentos, e que leva ao não pensar. Me farei mais claro.

Imagine uma situação onde você se encontra dominado por pensamentos obsessivos relacionados a algo ou alguém. Uma frustração, uma insatisfação, uma dor. Sua mente está inquieta, dispersa, e você, doente. Mas através de outros pensamentos, de outra coisa que tome sua atenção e ocupe passageiramente sua mente você se libertará, tanto dos pensamentos obsessivos quanto daqueles que os substituíram, e alcançará o não pensar.

Nas artes marciais, quando você está obcecado pela vitória, a derrota pode ser a única realidade que você conhecerá, por isso, o não pensar te traz ao equilíbrio necessário para estar atento ao seu oponente e a sua própria espada e seu próprio corpo. A mente se equilibra, e ela é a senhora de seu corpo. Isso vale para a vida também.

Finalmente, em “A Espada que dá Vida”, é explorada a ideia da “não-espada” citada no começo da resenha e que foi demonstrada ao xogum. Além disso, o capítulo fala sobre como usar a distância na luta com espadas, posicionamentos a serem adotados, da importância de que a mente jamais fique parada numa ação já ocorrida. Além disso, outros conceitos filosóficos zen-budistas são discutidos como o conceito de apego, da existência e da não-existência, do falso vazio e do verdadeiro vazio, do potencial e da função e outras discussões sobre a mente e o corpo.

Enfim, A Espada que dá Vida é um livro que será muito interessante àqueles que praticam artes marciais, porque, mais do que ensinar técnicas de esgrima, a obra ensinará sobre a vida e como vivê-la de forma a evitar conflitos desnecessários. Para os budistas, será uma fonte de mais alguns ensinamentos. Já para os demais, ela também será uma fonte de conhecimento sobre a história de alguns importantes personagens da história do Japão. Ainda assim, pode ser uma leitura difícil e em vários momentos exaustiva. Eu mesmo tive muitas dificuldades de concentração e de prosseguir a leitura toda vez que me deparava com algum pensamento mais complexo. Foram 52 dias de leitura – ressaltando que meu trabalho também influiu no atraso da leitura.

Ademais, acrescento que a tradução é impecável e o texto original de Yagyu é conciso. A introdução achei excessivamente longa. Por fim, a edição tem uma capa muito elegante e foi produzida em papel em tom amarelado.

A edição lida é da Editora Cultrix, do ano de 2013 e possui 184 páginas.




[1]https://institutoguanyu.wordpress.com/2015/06/02/yagyu-munenori/
[2]https://en.wikipedia.org/wiki/A_Hereditary_Book_on_the_Art_of_War
[3]https://pt.wikipedia.org/wiki/Per%C3%ADodo_Edo
[4]https://pt.wikipedia.org/wiki/Xogum
[5]O texto não deixa claro se Yamato seria alguma das muitas cidades japonesas com esse nome ou se faz referência a antiga Província de Yamato, que atualmente corresponde à atual prefeitura de Nara em Honshū.
[6]https://en.wikipedia.org/wiki/Yagy%C5%AB_Munenori
[7]Referente às ideias de Confúcio (孔子551 a.C. – 479 a.C.), pensador e filósofo chinês do Período das Primaveras e Outonos. (Wikipédia)
[8]https://sobrebudismo.com.br/o-zen-e-enganadoramente-simples/

domingo, 31 de maio de 2020

Uma Breve História da Ciência – William Bynum – Resenha

Por Eric Silva para os blogs Conhecer Tudo e Geographia Mundi

15 de maio de 2020

“A Ciência é especial. É a melhor forma que temos de descobrir coisas sobre o mundo e tudo o que faz parte dele – e isso nos inclui”.

(William Bynum)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

Em uma linguagem simples e didática, Bynum pega-nos pela mão para um passeio pela história da Ciência desde a antiguidade, quando as primeiras sociedades se estabeleceram às margens dos rios, até os tempos modernos com ascensão da tecnologia de informática. De forma clara, objetiva e concisa Uma Breve História da Ciência é um compêndio sobre a capacidade humana de criar e recriar a sua realidade ao produzir ciência.

Confira a resenha.

Resenha

Capa da edição de bolso com ilustrações de Tom Cuxbury

A espécie humana é curiosa e com grandes capacidades de refletir e questionar sobre sua realidade e seu mundo. Foram essas capacidades e essa curiosidade que somadas lhes permitiram não só observar os fenômenos naturais, mas buscar entendê-los e intervir sobre eles, criando conhecimentos. Foi a ciência que permitiu ao homem um maior controle da natureza e ser capaz de enormes feitos de engenharia, cultivar mesmo em condições desfavoráveis e buscar soluções para os males que dizimam as populações. Nas mãos de incontáveis homens e mulheres dedicados a decifrar o livro da vida e do universo, a ciência ajudou a moldar nosso mundo tanto para o bem como para o mal. 

Hoje, em plena pandemia global de Covid-19, o trabalho de milhares de cientistas espalhados pelos quatro cantos do planeta é a melhor possibilidade que a humanidade possui de conseguir chegar a uma superação da crise instalada. Um único vírus fez de 2020, um dos anos mais atípicos da história da humanidade, o ano em que países inteiros pararam e milhares morreram por todo planeta em decorrência do Sars-Cov-2, nome oficial do vírus causador da epidemia. E nessa equação o trabalho científico que pode levar a descoberta de medicamentos e tratamentos eficazes e a uma vacina que imunize a população é uma das poucas esperanças de refrear a pandemia antes que muitos outros milhares pereçam.

Em seu livro, Uma Breve História da Ciência, o professor britânico de história da medicina, William F. Bynum, permite com que compreendamos como a Ciência foi se tornando uma área fundamental na escrita da história da humanidade, para o domínio da espécie sobre o mundo e para dar respostas a uma imensidão de dúvidas e problemas que se interpuseram no caminho da humanidade. Uma busca por respostas trouxe o avanço técnico e tecnológico que conhecemos.

O texto de Bynum não objetiva fazer uma análise técnica e acadêmica sobre a trajetória da Ciência, mas dar ao leitor uma visão ampla de uma linha do tempo dessa história, pontuando os principais personagens que, cada qual no seu tempo, foram essenciais para o desenvolvimento de grandes áreas do conhecimento como medicina, biologia, física, química, geologia, paleontologia, entre outras. Nessa caminhada, Bynum esclarece-nos sobre as ideias e descobertas que, por exemplo, levaram o homem da descoberta da hereditariedade à decodificação do genoma humano, da ideia do átomo ao desenvolvimento da energia atômica, dos rudimentares conhecimentos sobre o corpo humano a busca de tratamentos para o câncer, e da descoberta da radioatividade à bomba atômica.

Numa linguagem simples, acessível e bem-humorada, em cada capítulo, Bynum fala do desenvolvimento de uma área da Ciência em uma determinada época, evidenciando os cientistas do período que se destacaram, suas ideias, influências e descobertas, bem como seus equívocos e as contribuições que deixam para os períodos seguintes. Nesse percurso instigante, que nunca chega a ser cansativo, Bynum tenta colocar em termos compreensíveis todo tipo de tema e de teoria científica (desde a astronomia babilônica às teorias da evolução e da física quântica). O autor vai elucidando de forma fluída como a ciência foi deixando de ser uma prática atrelada à magia e à religião, para se tornar uma atividade que privilegia o uso da razão e da objetividade.

Determinados capítulos são inteiramente dedicados a alguns dos nomes mais importantes da Ciência contando seus feitos, os desdobramentos de suas ideias e aspectos de suas vidas e personalidades. Cientistas como Hipócrates, considerado o pai da medicina, Galileu Galilei, Isaac Newton e Albert Einstein estão entre os principais destaques da obra.

A edição é ilustrada em estilo xilografia com arte de Tom Cuxbury. Foi publicado em formato pocket (livro de bolso) e tem uma constituição bem delicada, mas felizmente o livro também se encontra disponível em formato e-book caso você queira manter sua edição intacta, como eu.

Em si, o trabalho de Bynum não trata de nada novo, haja vista que outras dezenas de escritores se dedicaram a resumir a trajetória da ciência. Contudo estes autores quase sempre tiveram seus objetivos voltados a alcançar o público universitário. Diferentemente, Uma Breve História da Ciência se destaca por fazê-lo de uma forma leve e para todos os públicos. Livro que eu, como professor também de Iniciação Científica na minha escola, adoto para ensinar, porque nesse livro fantástico, acessível e conciso, centenas de ideias, mentes e vidas foram reunidas para contar a história de uma das maiores e mais importantes atividades humanas, sem a qual o mundo conhecido simplesmente não existiria: a Ciência.

A edição lida é da Editora L&PM, do ano de 2018 e possui 368 páginas.

Sobre o autor

William F. Bynum é Professor emérito do Wellcome Trust Center para a História da Medicina da University College de Londres. Colaborou frequentemente com Roy Porter, outro famoso historiador britânico conhecido por seu importante trabalho na história da medicina. É autor de outras obras como História da Medicina, Great Discoveries in Medicine e Medicine and the Five Senses.

 

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


domingo, 26 de abril de 2020

[ESPECIAL] A Zona: uma galeria inspirada nas Vozes de Tchernóbil – Postagem Especial

Por Eric Silva
“A zona é um mundo à parte. Outro mundo em meio ao restante da Terra”
(Svetlana Alexijevich, Vozes de Tchernóbil)
                                                                                                                                                           

A vida em uma nação tão fechada quanto a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) sempre foi algo que mobilizou a minha curiosidade. Trata-se de um desejo de conhecer o desconhecido, para além das visões tendenciosas ou impregnadas pelas ideologias fossem elas da direita ou da esquerda.

Por outro lado, como geógrafo e educador, o acidente nuclear de Chernobyl [Tchernóbil], ocorrido em 1986, na Ucrânia, até então uma das repúblicas da URSS, é de grande interesse para mim, seja pela sua importância para a compreensão da história e do período da Guerra Fria, seja para o entendimento da matriz energética mundial, sobretudo para a conscientização quanto aos limites e os riscos inerentes ao emprego da energia nuclear. Por isso, ler o livro Vozes de Tchernóbil foi uma oportunidade única de conciliar dois interesses e conhecer a dimensão humana e subjetiva do acidente nuclear bem como sobre a vida e o homem soviético. Um livro precioso e excepcional.

Como é tradição aqui no Conhecer Tudo, livros relevantes e que abordam temáticas interessantes, a exemplo da obra de Svetlana Aleksiévitch, costumam ganhar postagens especiais no blog. Com estas postagens buscamos aprofundar nosso conhecimento dos temas que estes livros abordam ou vê-los por outras dimensões que extrapolam os limites das palavras.

Como Vozes de Tchernóbil é um daqueles livros que evocam temas de importância ímpar, preparei essa postagem pensando em conciliar palavra e imagem e dar a vocês, leitores, a oportunidade de conhecer um pouco das falas presentes no livro. Ao mesmo tempo, através da nossa seleção queremos mostrar um pouco da Zona de exclusão de Chernobyl que de diversas formas é sempre evocada pelas vozes ouvidas por Svetlana. Traduzir palavras em imagens.

Espero que gostem da postagem e deixe-nos o seu comentário.


A Zona

Contemplando territórios da Ucrânia e na Bielorrússia, a Zona de Alienação da Usina Nuclear de Chernobyl, conhecida também como Zona de exclusão de Chernobyl, é uma área de isolamento com mais de 2600 km² de extensão[1] entorno da área do acidente nuclear.

Quase desabitada pelo ser humano, a população que antes vivia na região fora removida nos meses que se seguiram a explosão, tonando cidades e povoados como Chernobyl e Pripyat em lugares-fantasmas. Contudo ainda é possível encontrar na região algumas pessoas, sobretudo, antigos moradores idosos que para lá retornaram ilegalmente após a evacuação.

Ainda hoje a área é proibida para a moradia ou qualquer outra atividade devido ao elevado grau de contaminação de seu solo, água e ar. As únicas atividades permitidas é o turismo, cujas excursões duram apenas algumas horas e sob diversas restrições[2], além de alguns estudos científicos relacionados com instalações para a segurança nuclear[3]. Para evitar a entrada ilegal de civis a zona de exclusão é patrulhada por unidades especiais do Serviço de Guardas Fronteiros da Ucrânia e do Ministério de Assuntos Interiores da Ucrânia[4], além de ser uma área de permanente controle de radiação[5].

Um dado curioso é que, a despeito de todo os riscos e mesmo com os elevados níveis de radiação dentro do perímetro da zona, a central nuclear de Chernobyl se encontrou em funcionamento até o ano de 2000.
A zona é citada em inúmeros depoimentos do livro de Svetlana e alguns dos entrevistados são ainda residentes nela. São falas que nos dão uma dimensão do que se viveu naquela área no tempo que se seguiu ao acidente, de como aquele é um mundo à parte e algumas transmitem, inclusive, uma carga simbólica muito forte, mostrando como a própria zona possui uma representação simbólica, subjetiva, indo além do espaço físico propriamente dito.

A Zona de Exclusão de Chernobyl

“Fui à zona de Tchernóbil. Já estive lá muitas vezes. E lá eu entendi que era impotente. Que não compreendo. E esse sentimento de impotência está me destruindo. Porque não reconheço este mundo. Tudo nele mudou. Até o mal é outro. O passado já não me protege. Não me tranquiliza. Não dá respostas. Antes sempre dava, agora não mais. O futuro me arruína, não o passado” (Vozes de Tchernóbil)

“A zona te puxa. Como um ímã, eu digo. Eh, minha senhora! Quem passar por lá… aquela alma será puxada.” (Vozes de Tchernóbil)

“Temos à nossa frente a tarefa de compreender Tchernóbil como filosofia. Há dois Estados separados por uma cerca de arame farpado: um é a zona, o outro, o restante. Nos postes apodrecidos que cercam a zona, como se fossem cruzes, penduraram panos brancos. São os nossos costumes. As pessoas vão ali como se estivessem indo a um cemitério. O mundo depois da tecnologia. O tempo andou para trás. Ali estão enterradas não só as suas casas, mas também uma época inteira. A época da fé! Da fé na ciência!” (Vozes de Tchernóbil)


A Zona: uma galeria inspirada nas Vozes de Tchernóbil

Fonte das Imagens: Wikimedia Commons





"Vê como foi? A ordem de evacuação era ‘Em três dias’. As mulheres gritando, as crianças chorando, o gado mugindo. Tapeavam os pequenos: ‘Vamos ao circo’. As pessoas achavam que iam voltar. A expressão ‘para sempre’ não existia".



“Não havia terroristas. Havia roentgen, curie…”




“Há um monumento aos heróis de Tchernóbil. É o sarcófago que construíram com as próprias mãos e no qual depositaram a chama nuclear. Uma pirâmide do século XX".




“Não apenas a paisagem mudou, pois onde antes se estendiam campos, cresceram novamente bosques e arbustos, mas também o caráter nacional mudou. Todos estão depressivos. O sentimento é o de estarem irremediavelmente condenados”.




“Eu queria gravar tudo na minha memória: um globo terrestre achatado por um trator no meio do pátio de uma escola; roupa lavada enegrecida, estendida havia vários anos num varal; bonecas envelhecidas pela chuva”.




“Porque já não é terra de ninguém. Deus a tomou. As pessoas a abandonaram”.




“Trabalhávamos dia e noite… Os comboios iam repletos. As pessoas fugiam… Muitos russos deixavam as suas casas… Milhares! Dezenas de milhares! Centenas! Uma Rússia inteira”.




“Foi elaborado um itinerário que tem início na cidade morta de Prípiat. Lá, os turistas podem observar os altos prédios abandonados com roupas enegrecidas nas varandas e carrinhos de bebê. E também o antigo posto de polícia, o hospital e o Comitê Municipal do Partido. Aqui ainda se conservam, imunes à radiação, os lemas da época comunista”.




“Certo, as casas estavam vazias, não havia pessoas, tinham partido, mas tudo ao redor estava mudo, não havia nem um pássaro. Pela primeira vez vi uma terra sem pássaros. Sem mosquitos. Nada voava”.




“Ninguém falava em radiação, só os militares circulavam com máscaras respiratórias… As pessoas compravam os seus pães, saquinhos com doces e pastéis nos balcões… A vida cotidiana prosseguia. Só que… as ruas eram lavadas com uma espécie de pó…”




“Quando falamos de passado e futuro, imiscuímos nessas palavras a nossa concepção de tempo, mas Tchernóbil é antes de tudo uma catástrofe do tempo. Os radionuclídeos espalhados sobre a nossa terra viverão cinquenta, cem, 200 mil anos. Ou mais. Do ponto de vista da vida humana, são eternos. Então, o que somos capazes de entender? Está dentro da nossa capacidade alcançar e reconhecer um sentido nesse horror que ainda desconhecemos?”




“Os gansos selvagens gritando, a primavera chegando. Era hora de semear. E nós com as casas vazias… Só os telhados estavam inteiros.”




“Avó, é proibido levar o gato. Não permitem. O pelo é radiativo.”
“Não, meus filhos, sem o gato eu não vou. Como é que eu posso deixá-lo? Sozinho? Ele é a minha família.”




“Os jardins cresciam, mas para quem? As pessoas tinham abandonado as aldeias. Quando passaram pela cidade de Prípiat, viram varandas com flores e roupas penduradas; debaixo de um arbusto, uma bicicleta com a bolsa de lona de um carteiro cheia de jornais e cartas. Sobre ela havia um ninho de passarinho. Como eu vi no cinema”.




“Imagine a estrada de ferro, uma via férrea traçada por brilhantes engenheiros; o trem é veloz, mas em lugar de um maquinista temos um cocheiro do século passado. Este é o destino da Rússia: viajar entre duas culturas. Entre o átomo e a pá”.




Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear
Svetlana Alexijevich





[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_de_exclus%C3%A3o_de_Chernobil
[2] http://exame.abril.com.br/mundo/chernobyl-completa-25-anos-e-abre-portas-para-turismo/
[3] https://es.wikipedia.org/wiki/Zona_de_alienaci%C3%B3n
[4] https://es.wikipedia.org/wiki/Zona_de_alienaci%C3%B3n
[5] http://www.otempo.com.br/opini%C3%A3o/f%C3%A1tima-oliveira/as-babushkas-da-zona-de-exclus%C3%A3o-de-chernobyl-1.1269487

domingo, 19 de abril de 2020

[ESPECIAL] Vozes de Tchernóbil – Svetlana Aleksiévitch – Resenha


Por Eric Silva para os blogs Conhecer Tudo e Geographia Mundi

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Sábado, 26 de abril de 1986, 1 h e 23 minutos, explode o quarto reator da usina de Chernobyl[1][2][3], na Ucrânia soviética[4]. A radiação liberada pela explosão entraria para a história como o maior acidente nuclear conhecido[5] e a nuvem radioativa se espalharia por toda Europa, bem como as substâncias gasosas e voláteis projetadas a grandes alturas e que chegariam até mesmo à América do Norte[6]. Depois da tragédia que se abateu sobre soviéticos, muitos livros e reportagens relatariam o desastre, suas causas, as tentativas do governo soviético de mantê-lo em segredo, mas poucos deles mostrariam a dimensão humana, poucos dariam voz as vítimas: liquidadores, camponeses, soldados, as crianças. Em Vozes de Tchernóbil, a repórter bielorrussa e ganhadora do Nobel de Literatura, Svetlana Aleksiévitch, dá espaço para os depoimentos daqueles que viveram o desastre de perto, que testemunharam e padecem dos seus reflexos. Relatos emocionantes, carregados dos mais diversos sentimentos e que mostram muitas das facetas do acidente que só quem viveu pode contar.

Confiram a resenha do livro.

Sinopse

Em abril de 1986, a explosão da usina de Chernobyl criou um dos maiores desastres da história da humanidade e teve como saldo mortes, evacuações e desolação. As perdas materiais foram imensas, mas os danos emocionais e os custos humanos, incalculáveis. Por meio de relatos daqueles que viveram Chernobyl, que por ele foram marcados e que também vivem em meios as sombras do desastre, Svetlana Aleksiévitch (grafado também como Alexijevich ou Alexievich) conta a história oral do acidente nuclear. Um livro emocionante e único que descortina a letargia[7] do Estado, o desalento daqueles que foram arrancados da terra e de tudo que conheciam, bem como a morte e o sofrimento daqueles que, por amor à pátria, deram sua vida na luta suicida contra a radiação.

Resenha

Como alguns dos leitores do blog devem saber, sou licenciado em Geografia e discutir em sala de aula temas como matrizes e fontes energéticas é uma das minhas funções. Nesse tema faz parte também o debate acerca da produção de energia elétrica a partir do calor gerado pela fissão nuclear de átomos radioativos, produção no qual EUA e URSS fizeram uso pioneiro.

Dentro do tema, particularmente, a discussão acerca da produção e do emprego da energia nuclear na sociedade moderna sempre me atraiu, tanto pela polêmica que gira entorno dos riscos envolvidos em seu emprego, como também pelo tanto de conhecimento e domínio tecnológico imbuído em seu desenvolvimento: uma produção de energia que não é só perigosa, mas também complexa e contraditória (no fim dessa postagem você encontra um vídeo sobre como funciona a produção dessa energia).

Digo complexa porque sua produção demanda o cumprimento de muitas medidas de segurança e um conhecimento técnico apurado; e contraditória porque, apesar de produzir resíduos extremamente nocivos e cujo armazenamento e descarte deve seguir um rigoroso protocolo, a energia nuclear é considerada como limpa por liberar na atmosfera durante a sua produção apenas vapor d'água. Contudo, ela é ainda muito perigosa porque não elimina o risco de vazamento ou de um acidente nuclear, a exemplo do ocorrido em Fukushima, no Japão, em 2011, em decorrência de um terremoto seguido de tsunami, ou do acidente em Chernobyl, Ucrânia, em 1986. Vozes de Tchernóbil trata justamente deste último desastre nuclear, porém, a partir de uma perspectiva completamente diferente daquela utilizada nos livros, filmes, documentários e reportagens que abordaram o tema.

Para nos situarmos geográfica e historicamente no contexto do livro de Svetlana Aleksiévitch fizemos uma postagem especial sobre o momento histórico do acidente e como este se deu. Contudo, aqui repetirei algumas coisas para que o leitor possa se situar histórico-espacialmente.

O acidente da usina nuclear de Chernobyl se deu no ano de 1986, já no princípio do fim da Guerra Fria e do bloco socialista que se desmancharia com a desagregação da União Soviética em 1991. Localizada na república soviética da Ucrânia, a província de Kiev, onde se encontram as cidades de Chernobyl e Pripyat, seria o principal cenário do desastre que também afetaria enorme e principalmente a república vizinha, a Bielorrússia.

Após uma explosão em decorrência de testes que eram realizados no reator 4 da usina durante a madrugada de 26 de abril, uma grande nuvem radioativa se espalharia pela região alcançando diversos países da Europa e de outros continentes, mas afetando por sobremaneira os habitantes dos arredores da usina que tiveram que ser evacuados em massa sem possibilidade de retorno.

A explosão ocorrida no reator 4 da Usina Nuclear de Chernobyl gerou um grande saldo de mortes e mesmo hoje é a causa principal dos muitos casos de doenças congênitas e má formações nas crianças, bem como pela elevada incidência de câncer na população de diversas faixas etárias.

Entretanto, mais do que sequelas na saúde da população ucraniana e bielorrussa, o incidente provocou diversos outros reflexos na vida daqueles sujeitos. Perdas imateriais e subjetivas: perda de identidade e do lugar de pertença, este último um conceito que usamos na Geografia e que está ligada ao subjetivo e ao simbólico, mas também ao espaço físico da vivência.

Composto completamente de relatos orais, Vozes de Tchernóbil vem contar essa história sob um “olhar mosaicista[8] onde as várias vozes, sob ópticas abordagens e pontos diferentes vão montando o cenário e o roteiro daqueles acontecimentos do qual elas mesmas fizeram parte, porém em posições e momentos distintos. O resultado é uma quebra com a impessoalidade da notícia e com a frieza dos números. É o acidente e a própria União Soviética vistos de outro ângulo, através do olhar de quem esteve lá, de quem ainda vive nas zonas proibidas, de quem colhe e padece dos frutos radioativos de Chernobyl. Também daqueles que não viveram os primeiros dias, mas tiveram suas vidas inevitavelmente marcadas pelos efeitos do acidente: as gerações posteriores.

Durante quase 20 anos Svetlana entrevistou e reuniu dezenas de relatos provenientes de um grupo extremamente heterogêneo: ex-soldados, ex-liquidadores[9], físicos, professores, camponeses, donas de casa, burocratas, membros de ONGs, refugiados, moradores da zona, evacuados, crianças, adultos, idosos, homens e mulheres. Relatos que perpassam o antes, o durante e o depois, de pessoas que testemunharam não só a derrocada de um sistema, como também de suas vidas e das gerações que se sucederam.

O livro começa com uma Nota Histórica onde a autora copila trechos de notícias e livros que falaram sobre Chernobyl e assim permite ao leitor, sobretudo aos leigos, se situarem, mesmo que minimamente, no contexto do que foi e de como se deu o acidente nuclear. Mas logo em seguida, a autora começa de fato com as narrativas trazendo o relato de Liudmila Ignátienko, a esposa de um dos primeiros bombeiros a chegarem ao local do incêndio na central atômica.

Em seu relato comovente e angustiante, Liudmila expressa o profundo sentimento que nutria pelo esposo, Vassíli Ignátienko, e de como a exposição à forte radiação liberada pelo reator transformou o corpo de Vassíli e o matou em apenas 14 dias. Uma narrativa forte que transcreve não só uma história de sofrimento e dor, mas de um amor desmedido de uma mulher por seu marido, que mesmo estando grávida de seu primeiro filho foi contra toda a racionalidade para se manter ao lado do esposo doente até o último dia de vida dele.

Através de relatos como de Liudmila, alguns deles bem tensos, outros saudosistas, melancólicos e até desesperados, Svetlana traça um panorama de como viviam os soviéticos atingidos, desde camponeses a citadinos, mas sobretudo de como vivem os deserdados que foram obrigados a abandonar a terra onde viveram por gerações, as dificuldades de readaptação em lugares estranhos para onde foram mandados, o preconceito que ainda sofrem por serem “pessoas de Chernobyl”, como lidam com o sentimento da perda, com a certeza da morte prematura e/ou com o medo de gerar filhos doentes. Conta também sobre a insanidade de tentar “vencer” a radiação, que esteve sempre aliada ao zoocídio[10] de centenas de animais domésticos contaminados, à desinformação sobre os riscos, ao patriotismo exacerbado e à necessidade urgente de conter o vazamento do reator e impedir que outros desastres maiores acontecessem, mas que custou a saúde e até a vida de milhares de homens e mulheres que trabalharam na zona contaminada. 

Por esses tantos olhares, através de um conjunto de vozes que compõem um coro, Vozes de Tchernóbil tece o drama destas pessoas, como também faz a denúncia da ação do Estado, que sob a desculpa de não causar pânico e desordem, preferiu esconder a verdade sobre a dimensão real do problema, até mesmo para a comunidade internacional.

O meu interesse em ler esse livro foi imediato desde o seu lançamento, mas, infelizmente, não foi possível no momento. Mais do que um interesse profissional sobre o tema, vi nesse livro uma possibilidade de conhecer um pouco mais da realidade cotidiana de um dos países que já fizeram parte do bloco socialista. Esse meu interesse se justifica porque desde quando aprendi as diferenças entre capitalismo e socialismo que tenho curiosidade de saber mais sobre os países que experimentaram o socialismo, a exemplo da URSS, China, Vietnã e Cuba. Uma curiosidade quase imanente de saber como era e é a realidade cotidiana desses países, no que avançaram em relação ao capitalismo, no que regrediram, como se vivia e se vive nessas nações. Contudo, sempre vejo com desconfiança o relato de autores de extrema esquerda, e com ainda mais desconfiança o que falam os pensadores de direita, sejam eles moderados ou de ultradireita.

Pela primeira vez leio um livro no qual as pessoas comuns são a voz a relatar. Uma história oral, do ponto de vista de quem viveu a realidade daquele lugar daquela época. O foco é sem dúvida Chernobyl, mas não há como separar o maior desastre nuclear do mundo e o socialismo soviético. A forma como tudo se deu fala muito do que era a URSS, da ideologia dos que enfrentaram o desastre, dos que dirigiam o gigante socialista. E os testemunhos, sobretudo, falam dessa realidade. Aprendi com esse livro muito mais do que um pensador socialista pudesse me dizer, de forma bem mais real do que as críticas, por vezes tendenciosas, que um pensador de direita poderia supor sobre o que foi o socialismo real.

Sem dúvida, um livro angustiante, pois a situação vivida por essas pessoas era como um tipo de guerra, uma guerra contra um inimigo invisível, incompreensível, dissimulado na aparente normalidade do que existia em volta, no qual, longe da usina, tudo parecia normal. Como compreender a evacuação, a destruição do seu lar, e o homicídio de seus animais, quando nem você mesmo compreende quem é o inimigo contra o qual se luta? Por isso encerro dizendo, simplesmente, que este é um livro altamente recomendável.

A edição lida é da Editora Companhia das Letras, do ano de 2016 e possui 384 páginas. 

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books. Abaixo também você pode ver imagens aéreas feitas por um drone da cidade de Pripyat, hoje uma cidade-fantasma.


Vídeos

Pripyat de vista por um Drone


Como funciona a produção de Energia Nuclear?



Prévia do Google Books





[1]A transliteração do nome Chernobyl (em ucraniano Чорнобиль) possui diferentes grafias a exemplo de Chernobil, Chernóbil, Chernobyl, Tchernobil ou Tchernóbil. O tradutor do livro de Svetlana Aleksiévitch optou pela grafia Tchernóbil, aportuguesada e mais próxima da pronúncia. Contudo aqui optamos por uma grafia mais popular (Chernobyl) e corrente, inclusive, no Inglês.
[2]https://pt.wikipedia.org/wiki/Acidente_nuclear_de_Chernobil
[3]O reator era também conhecido como Chernobil-4
[4]No período a Ucrânia era uma das repúblicas que compunham a União das Repúblicas Soviéticas (URSS).
[5]https://pt.wikipedia.org/wiki/Acidente_nuclear_de_Chernobil
[6]ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[7]Incapacidade de reagir; inércia e/ou desinteresse. (Houaiss, 2001).
[8]Uso a expressão “olhar mosaicista” comparando o conjunto dos relatos com as peças de um mosaico. Peças que apesar de distintas, porque as visões dos depoentes são diversas e distintas, ajudam a compor um todo que são os fatos ocorridos naquele momento.
[9]Liquidador é o termo que era empregado pelo Estado Soviético para designar cada membro do grupo de mais de 600 mil pessoas responsáveis pela limpeza da área atingida e contensão do vazamento da usina, ou seja, eram responsáveis por minimizar as consequências do acidente.
[10]Assassínio de animais. Disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/assassinio-de-animais--zoocidio/28815

Postagens populares

Conhecer Tudo