domingo, 30 de dezembro de 2018

2018, o Ano do Japão no Conhecer Tudo - III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo



2016, o #AnoDaEspanha. 2017, o #AnoDoBrasil. 2018 o #AnoDoJapão.


Olá, caros leitores.

A Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo (CALCT), o nosso projeto mais ambicioso, chega hoje em sua terceira edição. Fomos da Europa para América e agora aterrissando em terras asiáticas. A III CALCT inaugura o novo ano com um novo país para homenagear: o Japão, a terra do sol nascente.

Para quem não conhece o projeto principal do nosso blog, todo os anos, desde 2016, fazemos um itinerário de livros de um determinado país que é escolhido por votação pelos usuários do Google Plus. Para a enquete é pré-selecionados cinco países representando cada um dos cinco continentes do globo. Depois de escolhido o país a ser homenageado, fazemos um itinerário de livros de diferentes autores oriundos da nação homenageada e através de resenhas discutimos sobre os livros escolhidos, apresentamos seus autores e, em postagens especiais, discutimos os temas relacionados ao país e que surgem nos livros do itinerário: aspectos culturais, turísticos, históricos, sociais, etc.

Na pré-seleção para a III CALCT, cinco países estiveram na disputa: Austrália (Oceania), Cuba (América), França (Europa), Japão (Ásia) e Moçambique (África). Foram 3 meses de votação que contou com a participação de 382 pessoas. E com 35% dos votos o Japão foi escolhido para ser o país homenageado em 2018.

Durante doze meses, nos aventuraremos pela literatura nipônica. Olharemos de mais de perto para um país cheio de cultura secular que respira história e tradição enquanto se lança para a modernidade. Um país de beleza cultural e natural surpreendente.

Visitá-lo-emos pelo olhar de seus escritores e das obras por eles concebidos, conhecendo algumas das milhares de facetas do povo japonês através da literatura. E, em paralelo, falaremos também de filmes do cinema nacional.

É claro que assim como nos anos anteriores, nosso foco não será exclusivo para esta campanha, ainda mais que outros projetos exigem nossa atenção, mas será prioritário e a marca principal do Conhecer este ano.

Quem quiser dar sugestões de livros para o itinerário, fique à vontade para postar nos comentários.

Então é oficial, 2018 é o #AnoDoJapão no Conhecer Tudo e estaremos em páginas japonesas.

Atte.,
Conhecer Tudo,
01 de Janeiro de 2018, Ano do Japão.

Os livros do nosso itinerário resenhados até agora:
#1 - O Conto da Deusa - Natsuo Kirino
#2 - Beleza e Tristeza - Yasurai Kawabata
#3 - Battle Royale - Koushun Takami
#4 - Relatos de Um Gato Viajante - Hiro Arikawa
#5 - A Fórmula Preferida do Professor - Yoko Ogawa
#6 - Histórias da Outra Margem - Nagai Kafu
#7 - Naufrágios - Akira Yoshimura
#8 - Botchan - Natsume Soseki
#9 - Tsugumi - Banana Yoshimoto
#10 - A Vida Secreta do Senhor de Musashi e Kuzu - Junichiro Tanizaki

Sobre os autores:
Filmes do nosso itinerário:

Postagens Especiais do nosso itinerário:

Abaixo você pode localizar, no mapa do Japão, os locais onde se desenrolam as tramas dos livros lidos à medida que eles são resenhados, ou as cidades de origem dos escritores no caso de tramas que se desenrolam em outros lugares reais ou fictícios. Clicando nos ícones do mapa você pode saber mais sobre o livro resenhado e conferir imagens da capa e do local da história ou de nascimento do autor.





sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

7ª Arte: Kabei, Nossa Mãe (Kabei, our Mother) – Resenha


Por Eric Silva
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Em um tempo no qual a guerra e a perseguição ideológica faziam muitas vítimas e prisioneiros, uma mãe precisa dar tudo de si para manter sua família após a prisão injusta de seu marido. O que ela encontra pela frente é um Japão marcado pela privação e austeridade, por uma guerra sem sentido que manda centenas de jovens para os campos de batalha sem a certeza de retorno e por uma censura que por décadas perseguirá aqueles que se opõem a insanidade do conflito.

Bonito, raro e delicado, Kabei, nossa mãe, é um filme que traz todas as características que fazem o cinema japonês ser excelente. Confira a resenha.

Sinopse do enredo

Tóquio, 1940, durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial a vida da Família Nogami muda repentinamente quando o pai, Shigeru (Bandō Mitsugorō X), é preso pela força policial especial do Japão, a Tokkō, acusado de ter violado a Lei de Preservação da Paz com suas ideias comunistas.

Após sua prisão a vida de toda a família se torna muito difícil, e sua esposa, Kayo (Sayuri Yoshinaga), passa a trabalhar freneticamente como professora para manter a casa e criar as duas filhas, tendo como único apoio a irmã de Shigeru, Hisako (Rei Dan), e um dos ex-alunos dele, Yamazaki (Tadanobu Asano), que gradativamente vão se tornando imprescindíveis à família.

A prisão abala toda a família, mas sobretudo às duas meninas do casal. Além disso, as dificuldades para falar com Shigeru são enormes, a família passa por muitas humilhações e as condições da pressão são as piores possíveis, deteriorando rapidamente a qualidade de vida do professor.

O tempo passa, mas Shigeru não é liberado pela polícia. Enquanto isso a guerra avança e o país passa a viver momentos de austeridade, radicalismo patriótico e mesmo os homens com deficiências físicas são convocados para o front, mas Kayo ainda tenta com todos os seus esforços sustentar sua família e não desanimar apesar das diversidades, até que a trama encontra o seu desfecho com o fim da guerra, quando ocorre o desastre de Nagasaki e Hiroshima, quando o Japão derrotado pelos americanos se retira da Guerra.

Um drama familiar cru e sem muitos floreios ou poesia, mas, ainda assim, delicado e profundo, Kabei é um filme que fala de perseverança para enfrentar momentos difíceis e até mesmo desesperadores, nos quais a intransigência e ambição dos mais poderosos tira a liberdade individual e submete a todos a momentos de grande dificuldade.

Resenha

Contexto e personagens

Delicado, singelo e muito bem interpretado e dirigido, Kabei, nossa mãe é um filme que me deu muito trabalho conseguir: duas duras semanas de pesquisas em locadoras, streaming de filmes e downloads em sites duvidosos do exterior. Mas, no final, o esforço valeu à pena e assisti a um dos melhores filmes japoneses não-animado que já vi, tão digno quanto Dare mo Shiranai, outro filme japonês que resenhei recentemente no blog.


A Família Nogami

Apesar de pouco conhecido no Brasil, Kabei foi dirigido por Yôji Yamada, diretor da trilogia Samurai (Kakushi ken: Oni no tsume, Bushi no Ichibun e Tasogare Seibei) e de mais de 70 longas-metragens. O filme foi exibido nas salas de cinema japonesas no ano de 2008 e foi baseado no romance autobiográfico, Requiem For a Father, de Teruyo Nogami, que por muitos anos trabalhou com o diretor Akira Kurosawa, muitas vezes como supervisora de roteiro.

Com muita sensibilidade o filme aborda a situação do povo japonês durante a Segunda Guerra Mundial quando o Japão entra no conflito ao lado da Itália fascista e da Alemanha de Hitler. Os alistamentos forçados, o radicalismo patriótico e sobretudo a censura que perseguia os intelectuais de esquerda. Na época, em todo o território japonês havia sido imposta a Lei de Preservação da Paz que vigorava desde 1925[1]. Essa lei foi promulgada como forma de combater as ideias socialistas, comunistas e os anarquistas da época, mas, na prática, qualquer oposição política era enquadrada em sua normativa e punida com a prisão (pena máxima de dez), reeducação ou até mesmo a morte[2].

No ano de 1941, a lei se torna mais severa e até mesmo organizações religiosas passam a ser incluídas e cortes de apelação foram abolidas. Entre os anos de 1925 a 1945, mais de 70.000 pessoas foram presas e a lei só foi revogada com o fim da guerra pelas autoridades de ocupação dos Estados Unidos.

Na época em que esteve em vigor, foi criada especialmente para o cumprimento da Lei de Preservação da Paz uma seção de “Polícia do Pensamento” para monitorar atividades socialistas e comunistas, e uma seção estudantil para monitorar professores e estudantes universitários, além de “Promotores do Pensamento” especiais designados apenas para combater os chamados “Crimes do Pensamento[3].

Cena da prisão de Shigeru

Kabei, nossa mãe é um retrato simultâneo do Japão intransigente e difícil da Segunda Guerra e da perseguição ferrenha aos socialistas e opositores do governo autoritário, sobretudo daqueles contrários à guerra contra a China.

Shigeru Nogami, a quem a família chamava carinhosamente de Tobei, era um professor universitário reconhecido, mas que fazia forte oposição à guerra. Por conta de suas ideias, ele não conseguia que seus livros fossem aprovados pela censura e sua família começava a passar por dificuldades financeiras. Mas além de censurado, suas ideias o levam à cadeia quando no início do ano de 1940 ele é preso pela Tokkō, a polícia especial, fundada especificamente para investigar e controlar grupos políticos e ideologias consideradas subversivas[4]. Sua prisão se torna um motivo de vergonha para seu sogro, chefe de polícia da capital da província de Yamaguchi, e deixa sua esposa, Kayo, em profundas dificuldades financeiras e com problemas com a própria família, ou seja, com o pai.

Kayo, que as crianças chamam de Kabei, apelido ao qual o título do filme faz referência, é uma mulher forte e perseverante, mas de constituição física frágil. Com a ajuda da cunhada, mas sobretudo de Yamazaki ela luta pela sobrevivência da família e para conseguir cuidar do marido preso. A interpretação de Sayuri Yoshinaga é suave e delicada, expressando com originalidade e vivacidade cada uma das emoções vividas por sua personagem. Ela é, junto com a personagem de Yamazaki, o coração da história e um exemplo de hombridade, delicadeza e determinação silenciosa.

Por sua vez, Yamazaki é um jovem estudante, muito formal, meio desajeitado e sem nenhuma condição financeira, como denotam suas meias furadas e seus sapatos rotos. Ele se oferece para ajudar a família Nogami em tudo quanto for possível, e gradativamente vai se tornando um importante pilar e uma pessoa imprescindível para Kayo e suas filhas, uma figura masculina, de presença frequente e de ajuda sincera. A pouca felicidade que a família passa a ter depois da prisão de Shigeru é oportunizada por sua presença e gradualmente aquela se torna também a sua família.

A atuação das suas meninas, Hatsuko Nogami (Mirai Shida), apelidada de "Hatsubei", e de Teruyo Nogami (Miku Satō), a pequena e esfomeada "Terubei", também foram enriquecedoras e imprescindíveis para a composição da curva dramática da história.

Crítica

O filme como um todo é uma produção simples e claramente com baixo orçamento, mas a sua delicadeza lhe dá uma qualidade relevante e sobressalente. Não há nenhum aspecto da trama ou da produção da película que não tenha me agradado.

Dramático sem ser piegas

Como meus leitores já sabem, costumo ignorar detalhes como figurinos, maquiagens e trilhas sonoras. É uma falha minha, mas não costumo pensar em detalhes como esse. Em Kabei, o que mais me chamou a atenção foi a dramaticidade da narrativa que possui aquele traço típico dos japoneses de interpretações contidas, mas profundas e verossímeis, e, também, o contexto histórico que descrevia anteriormente. Ainda assim, a singeleza dos cenários, dos objetos e da cenografia é evidente e se sobressai chamando nossa atenção, além de ser condizente com os tempos austeros que o Japão vivia. Notamos pelos cenários e até figurinos a ambivalência dos costumes orientais tradicionais – sobretudo nas roupas utilizadas por Kayo e Shigeru, como em todo o estilo de sua casa – e a inserção da cultura ocidental que pouco a pouco penetrava no estilo de vida japonês e ganhava raízes profundas.

Não há aspecto do filme que eu não tenha gostado, nem da trama ou da interpretação de seus atores. O que me irritou bastante foi, no entanto, a grande dificuldade de conseguir o filme e legendas apropriadas.

Os diálogos são muito bem construídos e transmitem para a tela os sentimentos de suas personagens de forma com que quem assiste fica imerso na narrativa e nos dramas vividos pelas personagens. Como já disse as interpretações são contidas, como é típico dos japoneses, e evita o dramalhão comum a outras escolas de cinema tipicamente ocidentais.

Apesar de baseada em fatos reais a trama é bastante viva e se alimenta do absurdo de uma época onde a censura e falta de liberdade de pensamento, bem como a guerra consumia vidas e destruía famílias de forma indiferente e cruel. Desta forma o tom geral de um roteiro que é que ainda que real é instigante é de uma melancolia que se alterna com pequenos momentos de humor e descontração, ao mesmo tempo que descreve um período importante na história do Japão.


Destaque para os olhos
A câmera de Yamada explora bastante as emoções em enquadramentos que destacam sobretudo os olhos dos atores. Mas o que mais se sobressai são os planos mais amplos que colocam em um só enquadramento todos os personagens, mostrando-os como um conjunto unido, inseparável, o que nos transmite a sensação de uma família que não deseja ser separada, mas estar sempre junta, e cujo desejo maior é se reunir com o pai preso. Por fim, há também outros ângulos da câmera de Yamada, sobretudo aqueles ângulos a partir de cantos e cômodos da casa, que capturam cenas do cotidiano como alguém que espia, por uma porta aberta, a intimidade de uma refeição, na qual a presença do pai é apenas uma fotografia para qual as meninas insistem de oferecer o jantar.

Mas se a câmera e seus ângulos me chamaram a atenção, também as cores e a iluminação destacam nesse filme. As cores quase sempre em tons neutros de bege, cinza e branco se mesclam aos tons escuros que realçam a melancolia daqueles dias de incerteza. Mas, contraditoriamente, Kabei é um filme de muita luz e cenários claros o que não permite que a desesperança contagie o telespectador que espera do filme um desfecho propício, ou quem sabe um final feliz.


Enquadramento a partir de cantos da casa
Enfim, Kabei é um filme de altíssima qualidade narrativa, um drama que não é piegas, mas, ainda assim, comovente e delicado. Seus personagens muito bem construídos são cativantes e no enredo cumprem papéis fundamentais e bem demarcados. Ele atinge todas as expectativas e tem todas as nuances que normalmente encontro nos dramas japoneses: interpretações contidas, narrativas delicadas, dramatizações sem dramalhão e um certo humor muito bem dosado que surge somente no momento que é mais propício para ele.

O desfecho pode não agradar quem espera um final feliz, mas é realista – lembremos que o filme é baseado numa história real –, ainda assim, tem sua poesia e me agradou bastante, assim como me comoveu. Ele nos faz lembrar que a vida não é justa e está longe de ser perfeita, mas, ao mesmo tempo, traz uma mensagem de perseverança, ao nos lembrar que tempos difíceis passam e a vida prossegue seu curso inexorável.

Kabei, nossa mãe é de fato um bom filme, que valeu a pena o esforço de conseguir e traz, em si, o melhor que o cinema japonês tem a oferecer: dramas singelos e delicados, que mostram o quão frágil é a existência humana.

A película é uma produção dos estúdios Shochiku e entrou em cartaz no ano de 2008. Tem duração de 133 minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:

Trailer


Postagens Relacionadas


Nosso Itinerário: livros resenhados

Listas e Postagens Especiais

Cinema







[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Tokubetsu_K%C5%8Dt%C5%8D_Keisatsu

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

A Vida Secreta do Senhor de Musashi e Kuzu – Junichiro Tanizaki – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.
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Um samurai com uma perversão sádica e necrófila e um escritor que parte em uma jornada em busca de inspiração, A Vida Secreta do Senhor de Musashi é a reunião de duas novelas que inicialmente chama à atenção por uma temática muito peculiar e provocativa, mas que no final não impressiona.

Confira a resenha do décimo livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que em 2018 homenageia literatura japonesa.

Um livro, dois enredos distintos

Retratando duas épocas distintas da história do Japão, as duas novelas que compõem esse livro possuem tons e temáticas bastante distintos ainda que abordem a cultura de um mesmo país.

A primeira novela, que dá nome ao livro, relata a história de Terukatsu, o filho de um poderoso senhor de terras, que na infância foi conhecido por Hôshimaru e, na idade adulta, chegaria a suceder seu pai como o senhor de Musashi.

A Vida Secreta do Senhor de Musashi começa contando como, ainda na infância, Hôshimaru havia perdido sua inocência e adquirido uma certa inclinação sexual sadista.

Quando ainda era criança seu pai, Terukuni, selou um acordo político de paz com Tsukuma Ikkansai, senhor do castelo de Ojika. Nos termos desse acordo, Terukuni entregou seu filho mais velho e herdeiro, de apenas seis anos, como refém de Ikkansai. Hôshimaru foi então separado de sua família e levado ao castelo de Ojika, onde viveu por dez anos recebendo instrução em literatura e artes marciais para que se tornasse um samurai.

É nesse período que o castelo de Ojika é cercado por tropas inimigas e após semanas de cerco ameaça é tomado pelos inimigos. Por ser ainda menino e incapaz de lutar, Hôshimaru fica isolado com as mulheres e outras crianças no interior do castelo enquanto a guerra não é decidida. Inconformado por não poder participar das lutas, o menino fica curioso acerca das batalhas que acontecia fora dos muros do castelo até que ele encontra a oportunidade de presenciar um dos mais importantes rituais de guerra da cultura japonesa da época: o trato das cabeças decapitadas dos inimigos vencidos em batalha.

Ajudado por uma das mulheres que cuidavam das cabeças recolhidas pelos guerreiros de Ikkansai, Hôshimaru foge até um sótão isolado do castelo e lá assiste a um grupo de mulheres, entre elas uma linda jovem, que lavavam, penteavam e maquiavam as cabeças decapitadas. Maravilhado com aquele ritual e sobretudo com o zelo extremado com o qual a mais jovem das mulheres tratava as cabeças dos samurais, o menino desperta para sua sexualidade e tem o gatilho para o desenvolvimento de um fetiche sexual sádico e necrófilo que o acompanhará pelo restante da vida e que, de modo direto, influirá na sua personalidade, nas suas ações depois de adulto e nas suas decisões enquanto guerreiro e senhor feudal.

Por usa vez, na segunda novela, Kuzu, Junichiro Tanizaki conta a história da jornada de dois amigos à remota povoação que dá nome à história. O narrador de Kuzu é um escritor que busca inspiração para seu novo livro e decide partir em uma viagem à região de Yoshino, em Yamato, onde poderia resgatar informações sobre a vida de uma importante figura da história medieval japonesa: o Imperador Celestial. Com ele viaja um antigo amigo que busca alguns parentes e com eles as origens e a história de sua mãe falecida ainda muito jovem. Juntos eles seguem uma jornada de encontros e reencontros com o passado. A história gira entorno dessa busca dos dois personagens ao passo que se concilia com elementos da história e da cultura secular japonesa.

Resenha

Capa da edição lida. Imagem produzida por Eric Silva, em dezembro de 2018.
À primeira vista A Vida Secreta do Senhor de Musashi e Kuzu podem parecer duas narrativas bastante distintas, apesar de escritos pelas mesmas mãos. Essa sensação é em decorrência das temáticas muito diferentes e discrepantes. Contudo notei várias semelhanças no estilo de suas narrativas. A primeira delas foi a forma documental com o qual se dá a narração.

Em ambas as novelas Tanizaki traz um narrador que é também um investigador do passado. Tanto o narrador observador de A Vida Secreta do Senhor de Musashi quanto o narrador personagem de Kuzu contam suas histórias com um profundo tom jornalístico que enfatiza bastante as peculiaridades culturais e históricas dos momentos históricos por eles pesquisados.

O narrador da primeira novela se apoia em escritos de pessoas próximas do senhor de Musashi para narrar sua história. Ele interpreta os escritos o compara e aí reconstrói o mosaico da vida sexual e particular do protagonista. Enquanto isso, o narrador de Kuzu mescla documentação histórica com história pessoal sua e de seu amigo, mas ainda aí há um profundo tom de resgate e de documentação do passado.

Outro aspecto foi a ênfase grande nos aspectos culturais de cada época. Muitas referências às artes literárias e guerreiras, às fábulas e à cultura são feitas pelo escritor, com maior destaque para Kuzu.

Contudo o conteúdo de A Vida Secreta do Senhor de Musashi é mais inquietante, ainda que não seja um texto apelativo ou demasiadamente pesado. Não é uma abordagem pornográfica e muito menos sensacionalista, mas que ainda assim mexe com muitos tabus. Por sua vez, Kuzu tem uma temática bem mais leve e monótona – na verdade achei todo o livro monótono. 

Por ser profundamente ligado a elementos culturais do Japão, esse segundo conto exige do leitor conhecimentos profundos sobre a literatura, a história japonesa, do seu folclore e de seu teatro tradicional. Confesso que me senti perdido na leitura dessa novela, que além de enfadonha é cheia de citações e referências a coisas que simplesmente desconheço e cuja ausência de notas de rodapé contribuíram para me manter na ignorância. Por isso, não consegui me concentrar na leitura que foi mais maquinal e mecânica do que imaginei que seria ao começar as primeiras páginas.

A escrita de Tanizaki não é atrativa, metafórica ou lírica e poética, ainda que seja firme e fluida. Mesmo Kuzu com a beleza de seus cenários poderia ser um conto belo e poético, mas foi seco e sem beleza.

Objetivamente, nada nos dois contos me chamou muito a atenção. O caráter jornalístico das novelas foi o que mais me desestimulou durante a narrativa com as constantes intromissões e análises do narrador da primeira novela, bem como com a insistência do narrador de Kuzu em fazer milhares de referências e inferências a aspectos da história japonesa e de sua arte.

Quando li Beleza e Tristeza de Yasurai Kawabata me incomodou um pouco as constantes e massivas referências ao mundo das artes e que davam base a trama, mas consegui tolerá-las sem prejuízo da minha compreensão da narrativa. Em grande parte, a escrita limpa de Kawabata e a construção dos personagens e do drama entorno do qual gira a trama tenham contribuído enormemente para manter minha atenção. Contudo, o mesmo não se deu com os escritos de Tanizaki. De certo modo a falta de sabor como o qual a segunda metade da primeira novela se desenvolve foi o gatilho para que eu não tivesse mais paciência para compreender Kuzu de uma forma mais global. Confesso que só os últimos capítulos foram para mim mais significativos e inteligíveis, porém o desfecho dessa segunda novela foi tão fraco e decepcionante que me arrependi do tempo gasto em sua leitura.

Aprendi um pouco mais da história dos samurais e das guerras e conflitos medievais da história japonesa e mesmo o rito das cabeças decapitadas me pareceu interessante. Por isso, e somente por isso valeu a pena ler A Vida Secreta do Senhor de Musashi, mas a história vai se tornando maçante e o texto não possui uma beleza estética que me impressionasse.

Ademais, os personagens, ainda que bem descritos e desenvolvidos, não impressionam nem cativam. Só Hôshimaru intriga por suas ações e inclinações morais, mas ele sozinho não é o suficiente para impedir que a trama se torne chata em grande parte do seu desenvolvimento. Não senti nenhum humor na trama nem um sentimento forte o suficiente para reduzir o forte tom jornalístico da primeira trama. Kuzu ainda suaviza esse seu caráter do meio para o final da trama, mas não salva por completo a peça.

A edição lida é da Editora Companhia das Letras, do ano de 2009 e possui 218 páginas.

Sobre o autor

Junichiro Tanizaki (谷崎 潤一郎) nasceu em 24 de julho de 1886, em Tóquio. É um dos maiores autores da literatura japonesa moderna e o mais popular romancista japonês depois de Natsume Soseki.

Estudou literatura japonesa na Universidade Imperial de Tóquio e com influências de Poe, Baudelaire e Oscar Wilde, começou a escrever desde cedo.  Publicou seu primeiro trabalho em 1909, numa revista literária que ajudou a fundar.

A partir de 1923, deixou-se absorver pela cultura de seu país e abandonou a inclinação ocidentalizante, vivendo nesse momento uma crise intelectual e emocional que contribuiu decisivamente para torná-lo um dos nomes centrais da literatura japonesa do século XX. O centro dos seus interesses é a preservação da língua e da cultura tradicional do Japão.

Em 1949, recebeu o prêmio Imperial de Literatura. Dentre suas principais obras estão Amor insensato (1924), Voragem (1928), Há quem prefira urtigas (1930), A chave (1956) e Diário de um velho louco (Estação Liberdade, 2002).

Morreu em 30 de julho de 1965, um ano após ter sido o primeiro autor japonês eleito membro honorário da American Academy and Institute of Arts and Letters.



sábado, 8 de dezembro de 2018

Tsugumi – Banana Yoshimoto – Resenha


Por Eric Silva

 “Ao fitar o céu alaranjado na iminência do anoitecer, senti uma ligeira vontade de chorar.
Isso porque ocorre-me que o amor é um sentimento ilimitado e inesgotável que podemos doar à vontade, como a água canalizada distribuída pela rede de abastecimento do Japão. ”
(Tsugumi – Banana Yoshimoto).


Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Nostálgico, intimista e poético Tsugumi (つぐみ), livro da japonesa Banana Yoshimoto (よしもと ばなな) fala de umas férias de verão e de dias singelos. Uma obra sobre uma amizade que supera as adversidades de um humor despótico e da saudade que a distância do lugar ao qual pertencemos pode imputar em nossa alma.

Confira a resenha do nono livro da III Campanha Anual de Literatura que em 2018 homenageia a literatura japonesa.

Sinopse

Deixar a terra natal não está sendo algo fácil para Maria Shirakawa que constantemente relembra o cheiro de maresia da raia onde crescera. Recém-instalada em Tóquio para onde se mudou com a mãe, ela rememora as lembranças da vida na pequena cidade litorânea e das primas Yoko e Tsugumi.

Apesar da bela Tsugumi sofrer de uma doença crônica séria, isso não impede que ela tenha uma personalidade forte, despótica e cruel, exigindo de todos a paciência digna de um santo. Mas por mais difícil que seja conviver com Tsugumi ela e a prima se compreendem e se gostam e, por isso, Maria aceita o convite de Tsugumi para voltar à cidade nas férias de verão, última estada juntas.

Publicado originalmente em 1988, Tsugumi é um livro sobre nostalgia e sobre a percepção que as pessoas possuem acerca da eminência da possibilidade do fim que não se concretiza, da possibilidade da morte e da separação. O livro rendeu à autora o prêmio Yamamoto Shūgorō e foi adaptada para o cinema por Jun Ichikawa, em 1990. No Brasil, só foi lançado em 2015, com tradução direta do japonês, pela Editora Estação Liberdade.

Resenha

Enredo

Narrado em primeira pessoa, Tsugumi (つぐみ) conta a história das últimas férias de verão de Maria na pousada de seus tios, ao lado das primas Yoko e Tsugumi. Uma narrativa bem cotidiana com duas protagonistas centrais: a que dá título ao livro e sua narradora.

Maria nasceu em uma pequena cidade pesqueira, na costa oeste de Izu, interior do Japão, onde viveu grande parte da sua vida sempre ligada ao mar e às primas. Durante muitos anos ela viveu com a mãe na edícula da pousada Yamamoto, propriedade de seus tios.

Seu pai durante muito tempo tentou se separar da primeira esposa sem obter sucesso e, por isso, levou anos até conseguir regularizar sua vida com a mãe de Maria e trazê-las para Tóquio para viverem com ele. Enquanto isso, a mãe de Maria ajudava na cozinha da pousada e suportava a situação em silêncio, mas por conta disso e por viver de favor na edícula, sempre se sentiu um parasita, sentimento que ocultava com bom humor e resignação.

Maria, por sua vez, era uma menina feliz e tinha uma vida alegre junto das primas que viviam na pousada. Apesar de se entristecer com a situação dos pais, ela gostava da cidade onde vivia, se sentia ligada ao mar e às suas amizades, mas sobretudo a Tsugumi, a prima mais nova.

Tsugumi desde a infância foi uma criança doente, de saúde muito delicada e possuía uma rotina de febres e internações que preocupavam a pequena família, no entanto, seu temperamento era dos mais difíceis. “Ríspida, boca suja, egoísta, mimada e ardilosa”, Tsugumi não hesitava em dizer o que pensava, ofender e ser desagradável, mas contraditoriamente todos buscavam ter paciência com ela e agiam de forma resignada. Apenas Maria costumava rebater as crueldades da prima e procurava ser dura com ela quando Tsugumi passava dos limites, mas também a compreendia e admirava, e a amizade entre as duas era mutuamente sincera. É narrando sua história simultaneamente a de Tsugumi, que Maria vai nos apresentando a peculiar figura da prima, seu gênio difícil e as pequenas aventuras irresponsáveis que muito prejudicavam a sua saúde. 

Apesar da alegria de finalmente se mudar para Tóquio com a mãe para viverem com o pai, a saudade do mar permanece no coração de Maria. Ela ganha a oportunidade de reviver aqueles dias quando sua prima a convida para passar as férias de verão na pequena cidade litorânea. A pousada seria vendida e a família de Tsugumi se mudaria para outra cidade onde abririam um novo negócio, por isso aquela seria então a despedida de ambas, a última oportunidade de viverem juntas a praia da infância.

Sobre nostalgia: tema e apreciação crítica

Fotografia da edição produzida por Eric Silva em dezembro de 2018.
Tsugumi é um livro moderno que fala do Japão contemporâneo, mas em sua essência incorpora traços da tradição literária japonesa.

Monotonia e contemplação são as principais marcas dos livros japoneses que já li esse ano, e isso não foi um problema para mim. Percebi isso logo com Beleza e Tristeza de Yasurai Kawabata, mas depois livros como A Fórmula Preferida do Professor, de Yoko Ogawa e Histórias da Outra Margem, de Nagai Kafu reforçaram essa impressão. O mesmo se deu com Botchan, de Natsume Soseki, e agora com Tsugumi, de Banana Yoshimoto. Todos são livros sobre o cotidiano em épocas distintas, mas voltados para falar da realidade cotidiana japonesa, hábitos e pequenos problemas. O que fez com que uma leitura fosse agradável e outra não foi exclusivamente o talento de escrita de seu respectivo autor.

Tsugumi tem uma leitura rápida, poética e com um drama sem tons de fato dramáticos – Tsugumi consegue espantar com seu humor excêntrico qualquer nuvem pesada que possa cair sobre a trama –, mas como não consegui me identificar com os personagens a leitura desse livro não conseguiu me causar nenhum arrebatamento ou vontade de tornar a lê-lo.

Banana Yoshimoto escreve bem e tem uma escrita por vezes profunda, lírica e bonita. A passagem que citei logo no começo dessa resenha é uma das mais belas e metafóricas e me inspirou bastante, contudo é a rotina de Maria, a narrativa repleta de repetitivos passeios, noites estreladas, dias de febre alta de Tsugumi e pores do sol que me causou monotonia.

Por ser é uma ficção realista pintado com tons de nostalgia, a realidade é que Tsugumi é verossímil demais, sem que seus personagens pareçam de fato reais. Todos que cercam Tsugumi são para mim calmos, pacientes e resignados demais com as travessuras da menina. Já aprendi que essa natureza serena e resignada dos japoneses é pura estereotipia. Eles são pessoas de carne e osso, e mais parecidos conosco do que se julga. Diferenças culturais são óbvias, mas há muito de ocidental no Japão moderno e, por isso, me custa acreditar que apenas porque Tsugumi era doente todos seriam assim tão pacientes e resignados diante de suas brincadeiras cruéis, de sua falta de noção e de educação.

Não digo que Tsugumi seja um livro ruim. Ele possui uma qualidade literária muito grande e o que mais gostei foi do seu tom poético, mas foram os personagens que não me cativaram. 

Tsugumi é um livro que dá pleno destaque as suas personagens femininas e cujo protagonismo é dividido entre mais de uma personagem. Tsugumi, Maria e Yoko cumprem o papel de uma tríade de protagonistas, no qual, no entanto, Maria e Tsugumi possuem o maior destaque dentro da narrativa.

Das três Tsugumi tem a personalidade mais forte. Ela é descrita com uma beleza estonteante que contrasta com a debilidade de sua saúde, porém, para se sobrepor a fragilidade de seu corpo, ela age de forma espontânea, impulsiva e até agressiva como se a todo momento exigisse de si mesma a energia para viver e isso se manifestasse na forma de traquinagens e atos impulsivos e irresponsáveis. Yoshimoto desenha uma personagem forte e determinada apesar de grosseira, altiva e mal-educada.

Maria e Yoko, por sua vez, possuem temperamentos mais brandos do que a de Tsugumi. Maria é ativa e forte, poética e determinada, mas também é bem mais responsável e sensata do que a prima. Yoko, por ser a mais velha, é madura e responsável, mas também frágil e chorosa. Na tríade ela é a mais apática e passiva, mas se revela uma boa amiga e uma irmã paciente e preocupada.

Esses três personagens foram muito bem construídos por Yoshimoto, mas os demais (os pais de Maria, a mãe de Yoko e Tsugumi, e, por fim, Kyoichi, o rapaz que se encontra na cidade durante o verão) não são muito convincentes. Mesmo Yoko não me convenceu o bastante. Digo isso por culpa de Tsugumi. Os atos da garota são revoltantes e de uma falta de educação e consideração que ultrapassam os limites do bom senso, mas todos a sua volta se mantêm resignados e aceitam-na como se fosse essa a única possibilidade. Foi essa resignação inverossímil que os fazem aceitar Tsugumi como ela é com pouca ou até sem nenhuma reclamação que os tornou, para mim, distantes da realidade. Excetuando Maria, parece que o pai de Tsugumi é a única exceção, o único a se revoltar – mesmo que silenciosamente –, mas ele é inativo na narrativa e quase não é mencionado.

Sou sincero em dizer que não gostei e nem me senti ligado aos personagens de Yoshimoto e, por consequência, também não me senti ligado ao livro.

Sinto que o propósito da escritora com seu livro é falar de nostalgia e recordações, mas também da possibilidade da morte e como cada um de nós reagimos a ela.

A primeira dessas percepções está ligada ao tom da obra e se confirma no epílogo do livro escrito pela autora. Tsugumi possui um tom nostálgico de uma recordação de um tempo perdido e impossível de ser recuperado. É como o resultado de alguém que mudou de vida deixando para trás a anterior, mas que por um curto período de tempo a resgata e se agarra a esta lembrança.

Maria viveu toda a sua vida naquela cidadezinha pesqueira e se sente ligada ao mar e as pessoas que ali vivem, por isso, ao se mudar para Tóquio ela se sente um tanto deslocada e a falta daquele lugar a acompanha. As férias de verão é uma oportunidade de reencontrar o passado recente, bem como de se despedir dele para aceitar um futuro em diferente que será construído em outro lugar.

Porém, é quando se lê o epílogo do livro que o leitor percebe que o significado dessa nostalgia é bem mais profundo. Yoshimoto inspira-se em sua própria experiência pessoal para escrever e compõe o livro com o objetivo de “registrar o estado de ócio” dos verões que ela costuma passar com a sua própria família numa localidade da costa de Izu e que serve de inspiração a sua trama. Ela resolve escrever uma trama que lembrasse aos seus os momentos em que viveram juntos, e que lhes fosse possível recordar a maresia, os passeios na praia, os banhos de mar.

Mas a outra temática é a possibilidade da morte. Tsugumi tem uma saúde frágil e debilitada, por conta disso o tema da morte lhe é rotineiro e uma sombra que paira sobre sua vida. A todo momento temos a perspectiva de que ela não sobreviverá. Porém, Tsugumi tem um posicionamento em relação a vida surpreendente: ela não se abate, não se faz de vítima, usa até o último fôlego de suas energias, não se sente deprimida e nem parece ter medo do fim, ela o aceita, mas, ao mesmo tempo, luta para viver de forma intensa cada um dos momentos mais banais ou sublimes de sua vida. Ela os vive ao seu modo e gosto, mas os vive sem arrependimentos. Trata-se de uma posição muito positiva em relação a vida e um desejo intenso de vivê-la. Esse aspecto é tão notável dentro da trama que me custa entender porque não me senti ligado a personagem.

Em conclusão: narração e escrita

Fotografia da edição produzida por Eric Silva em dezembro de 2018.
A narração se dá em primeira pessoa e é bastante linear, porém Maria usa de lembranças do passado que nos ajudam a compreender melhor sua vida passada e o temperamento de Tsugumi. Esses poucos e breves flashes se tornam, então, essenciais para a construção dos personagens e o entendimento de como vivem suas vidas. Mas os dois aspectos que mais marcar a narração e por consequência a escrita de Yoshimoto é o lado sensorial da história e a poética de sua escrita.

Apaixonada pelo mar Maria conduz uma narração bastante sensorial na qual os sentidos do olfato, do tato e da visão são constantemente invocados. Yoshimoto escreve cenas cheias de elementos naturais e poéticos e faz com que sensações como o cheiro da maresia sobretudo se torne um elemento desencadeador de lembranças e marcante na vida dos personagens. Do outro lado, ela também escreve a monotonia e tardes mornas cheias de poesia e lirismo, e este que é um livro intimista e sem grandes ápices se torne também muito poético, como nessa passagem à onde ele fala de noites estranhas e de sonhos:

"Às vezes a noite usa dessas pequenas artimanhas. O ar atravessa lentamente escuridão e, num local bem longínquo, encontra alguém com o mesmo estado de espírito formando uma estrela cadente que cai em suas mãos fazendo-o despertar. As duas pessoas sonham o mesmo sonho. Isso tudo ocorre durante a noite é uma sensação única. Na manhã seguinte, o que ocorreu se torna ambíguo e se confunde com a luz. Esse tipo de noite é longa. É eterna e brilhante como uma pedra preciosa."

Por fim, acrescento que o texto é fluido e a leitura muito rápida, sobretudo por conta dos capítulos pequenos (em geral 15 páginas) e por conta de uma escrita bem estruturada e com uma tradução impecável e numa linguagem acessível. Elogio ainda a edição que está belíssima e com notas de rodapé que economizam a pesquisa de termos japoneses que aparecem na trama com relativa frequência.

O desfecho surpreende porque nos dá uma possibilidade de esperança, mas não é um grande final. Yoshimoto prefere seguir o mesmo ritmo de toda a trama e fechar seu livro sem nenhuma grande reviravolta, mas com a expectativa de mudanças que estão por vir na vida de seus personagens.

A edição lida é da Editora Estação Liberdade, do ano de 2015 e possui 184 páginas.

Sobre o autor

Nascida em 24 de julho de 1964, em Tóquio, Banana Yoshimoto (よしもと ばなな) é o pseudônimo de Mahoko Yoshimoto.

Filha do filósofo, poeta e crítico literário Takaaki Yoshimoto, Banana é uma escritora contemporânea japonesa. Formou-se pela faculdade de Artes da Universidade Nihon, especializando-se em Literatura. Durante essa época, tomou para si o pseudônimo "Banana", por causa de seu amor por flores de bananeira.

Seu romance de estreia, Kitchen, foi um sucesso instantâneo no Japão e foi adaptado duas vezes para o cinema. Em novembro de 1987, recebeu o sexto Prêmio Kaien de Novos Escritores e o Prêmio Umitsubame de Primeiro Romance, bem como o décimo sexto Prêmio Literário Izumi Kyoka, em janeiro de 1988.

Alguns críticos dizem que muito de seu trabalho é superficial e comercial, mas seus fãs pensam que Banana Yoshimoto consegue capturar perfeitamente o que significa ser jovem e frustrado no Japão moderno. Os dois principais temas de sua obra, segundo a própria autora, são "a exaustão da juventude no Japão contemporâneo" e "a maneira como experiências terríveis modificam a vida de uma pessoa".

Preview do Issuu

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Issuu.


Booktrailer





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