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domingo, 4 de outubro de 2020

[#MeusLivros] Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley – Resenha

Por Eric Silva

Dedicado à ex-professora de Inglês

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Edição de bolso que ganhei na aurora dos meus 18 anos de idade
 e que me acompanha até hoje.
Distópico e desolador, Admirável Mundo Novo foi o último livro a marcar minha adolescência deixando impressões que influenciaram meu pensamento político e social ainda no começo da minha vida adulta. Um romance sobre uma sociedade supertecnológica e consumista que aboliu a família, a religião e as relações duradoras em nome de uma felicidade programada e determinada pelo estado. Um livro cuja crítica social se torna cada vez mais atual apesar dos mais de setenta anos de escrito.

Confira a resenha.

Sinopse

Após uma guerra que revolucionaria a história da humanidade, a sociedade é inteiramente reorganizada entorno de um regime totalitário baseado em princípios científicos, com divisão social em castas e que prega a felicidade eterna. Nessa nova organização social de escala planetária, famílias e religiões forma abolidas tornando-se um mundo de pessoas biologicamente programadas em laboratório, e adestradas para cumprir um papel predeterminado na sociedade. Um mundo altamente tecnológico que proibiu a literatura e exalta o avanço da técnica e a uniformidade. Esse é o cenário de Admirável Mundo Novo, obra mais conhecida do escritor inglês Aldous Huxley publicado pela primeira vez em 1932.

Resenha

Eu e Admirável Mundo Novo

Ganhei esse livro de minha professora de Língua Inglesa já no final do último ano do Ensino Médio, como uma lembrança dos últimos três anos em que fui seu aluno. Ela, é claro, acertou em cheio em sua escolha, porque não há presente algum que me faça mais feliz do que ganhar um livro. É um tipo de presente que não me desfaço e que conservo com carinho. A prova disso é que os primeiros livros que ganhei na vida estão comigo há quase 22 anos.

Mas Admirável Mundo Novo significa muito mais do que uma lembrança carinhosa de alguém que admiro como ser humano e profissional docente, ele marcou um período de mudança para mim e se tornou uma importante referência no meu posicionamento crítico e político. Dentro da lista dos livros da Minha infância e adolescência, ele representa o último portal que atravessei antes de me tornar um leitor maduro.

Era dezembro de 2008, eu tinha 18 anos e o fim do ensino médio marcava para mim uma mudança profunda: o fim da vida escolar como eu a conhecia. Era o fim daquela rotina a qual estava acostumado desde os meus três anos de idade, e confesso que só não me sentia assustado com o que estaria por vir, porque sempre tive maturidade o suficiente para me manter equilibrado diante da mudança.

Sabia que o fim do período escolar marcava um momento em que se abriria para mim uma nova perspectiva: a vida adulta (que na verdade se iniciara um ano antes com o adoecimento de minha mãe) e também a vida acadêmica (que eu adiaria até meados do ano de 2010). De fato, um mundo novo de possibilidades e novas experiências me projetariam para além do universo e da rotina que eu conhecia até meus malformados 18 anos. O Eric CDF da escola daria lugar ao acadêmico, a um Eric mais crítico e fortemente ligado à ciência, à crítica social e à literatura como um todo. 

Como o protagonista do livro de Aldous Huxley, eu deixaria o mundo que conhecia para contemplar as maravilhas e os dissabores de outro, desconhecido. Por outro lado, também como ele, esse indivíduo que contemplaria e vivenciaria um mundo novo estaria de toda forma fortemente ligado e alicerçado no seu, no meu caso, o passado escolar, porque sou o que meus professores fizeram de mim, e eles são partes que compõem o meu todo.

Li Admirável Mundo Novo justamente nessa época, fazendo com que fosse o meu último livro desse período. Contudo sua influência vai além. A obra icônica de Huxley carrega em seu enredo uma crítica muito forte e contundente a uma sociedade que vive para o consumo e para a produção em massa. Uma sociedade alienada, baseada em um modo de vida alienante e de forte controle social, que é garantido mediante a inculcação de valores e ideias que reproduzem o status quo ao naturalizar a organização social hierarquizada e injusta, e que também reproduzia o conformismo e a submissão.

Admirável Mundo Novo é uma fabulosa crítica ao sistema capitalista bem como toda forma de autoritarismo seja ele de direita ou de esquerda, e, por isso, esse livro também se tornaria referência para mim em meus estudos acadêmicos.

Por conta destas coisas Admirável Mundo Novo é um livro que tem uma dupla importância para mim.

O Enredo e os Personagens Principais

No ano de 632 depois de Ford (2540 d.C.), muito séculos após A Guerra dos Nove Anos (141 d.F. – 2049 d.C.), o mundo e a sociedade como a conhecemos não existe mais. A sociedade humana alcançou o seu apogeu tornando-se ainda mais industrializada e voltada para o trabalho e o consumo, além de quase desprovida de humanidade.

Não existem mais pais ou filhos, maridos ou esposas, porque as crianças são produzidas, criadas e educadas em Centros de Incubação e Condicionamento como o de Londres Central, onde são também condicionadas e deformadas de acordo com sua posição social predefinida, duplicadas em grupo de dezenas de gêmeos para atender a demanda de mão de obra nas fábricas e condicionadas a não criarem vínculos afetivos duradouros. O amor e a paixão foram abolidos assim como as relações baseadas em compromisso.

Em nome de uma pretensa estabilidade a religião foi extinta, assim como as ciências humanas e a literatura, só os meios de comunicação de massa são permitidos e o acesso ao conhecimento é filtrado e restrito a uns poucos. A sociedade dividida em classes sociais foi substituída por uma comunidade organizada em castas (alfas, betas, gamas…), sem mobilidade social e definidas desde o nascimento. Da mesma forma é definida desde o nascimento a identidade individual e coletiva de cada indivíduo, condicionado a aceitar passivamente e alienadamente o seu lugar na sociedade.

Todos são sempre jovens e livres para ter tudo o que foram condicionados a desejar e, por isso, o isolamento, a castidade e a contemplação, mesmo que da natureza, são vistos como comportamentos estranhos e inadequados, atitudes antissociais e reprimíveis. Toda essa forma de pensar é inculcada e reproduzida constantemente através da repetição de uma ideologia que prega uma mentalidade e uma felicidade quase que infantil, que exalta o novo sobre o velho e a superficialidade das relações. A vida se resume a trabalhar e ser produtivo, consumir e descartar e, enfim, entregar-se aos prazeres proporcionado pelo sexo livre e sem compromisso, pelas drogas e pelas atividades de lazer em grupo, mas que envolvam algum tipo de consumo. E para àqueles que por algum erro no processo de “fabricação” ou de condicionamento não conseguem se encaixar nesse modelo de sociedade resta o exílio em alguma ilha isolada em algum lugar do globo.

Em resumo, essa é a sociedade distópica a que somos apresentados por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo. Uma sociedade criada e organizada por um Estado Mundial que tem como lema: COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE. Estabilidade essa que é forjada a partir de um controle social rígido, legitimado e inescapável e do consumo regular do soma, uma droga psicodélica capaz de afastar os anseios e sentimentos negativos através de uma fuga da realidade.

Ao longo dos três capítulos que iniciam a obra somos apresentados a forma como esse novo mundo se apresenta e é organizado. Acompanhando uma visita técnica de estudantes alfas – a casta superior na hierarquia social, formada basicamente por cientistas e dirigentes ao Centros de Incubação e Condicionamento de Londres Central, o narrador de Aldous vai descortinando a tessitura[1] social sustentado pelo Estado Mundial bem como história que levou a sociedade humana desprezar toda a sua cultura e natureza biológica para criar outra sociedade, uma que fosse “feliz”.

Porém sob a capa da pretensa felicidade, comunhão e estabilidade entre os povos mundiais existem aqueles que não conseguem se encaixar completamente dentro da sociedade e se sentem sempre deslocados e incompletos. O enredo de Admirável Mundo Novo gira entorno principalmente de três destes deslocados: Bernard, Helmholtz e Jhon.

Psicólogo da casta dos alfas, Bernard é um dos poucos em Londres que tem consciência da futilidade e promiscuidade das relações, além disso ele se sente diferente dos demais de sua casta porque possui um físico acanhado e muito parecido com o comum entre os indivíduos das castas inferiores, o que o irrita e diminui seu sucesso com as mulheres. Por conta destas inadequações, o psicólogo evita bastante a interação social com seus colegas de trabalho e nutre uma certa paixão por Lenina, uma das funcionárias do Centro de Incubação. Por outro lado, as atitudes “antissociais” de Bernard fazem com que gradativamente ele vá sendo evitado, desprezado e considerado como estranho por seus pares.

Por sua vez, Helmholtz é o justo contrário de seu amigo Bernard. Porém, mesmo sendo socialmente muito requisitado e um competente e promissor “Engenheiro em Emoção”, Helmholtz se sentia tolhido em uma sociedade tão carregada de superficialidade e tão desprovida de conteúdo. Decepcionava-o a falta de significado em tudo o que fazia como engenheiro (escrever para rádios, compor cenários para filmes sensíveis e criar slogans e versinhos hipnopédicos) e ansiava por algo que não sabia descrever ao certo o que era.

Por fim, temos John, ou o Selvagem, como seria chamado posteriormente. John é o principal personagem da trama de Aldous – apesar de só aparecer a partir do capítulo 7 – e o mais deslocado dos três, por ser o único que não havia nascido e sido criado dentro da sociedade controlada pelo Estado mundial.

John era filho de Linda, uma beta que acidentalmente se perdeu em uma reserva indígena durante uma viagem de turismo. Lá ela deu à luz a uma criança do último homem com quem se relacionara antes de se perder, e, por conta da vergonha de ter se tornado mãe, é forçada a viver entre os índios. Contudo as reservas indígenas eram os únicos recantos do mundo onde ainda se era permitido viver como séculos atrás, e impedidos de se adequar as gritantes diferenças culturais entre Linda e os indígenas, mãe e filho foram durante muitos anos desprezados e excluídos socialmente pela tribo até que são resgatados por Bernard e Lenina e levados de volta para Londres.

Em Londres John passa a conhecer aquele mundo novo que só conhecia das histórias contadas pela mãe, e começa a sentir o forte choque cultural que essa aproximação lhe impõe, sobretudo quando se descobre apaixonado pela fútil e sedutora Lenina. Ele era muito ligado às tradições e aos costumes da reserva, e com a forte influência dos livros de Shakespeare, ele era incapaz de compreender a futilidade, a licenciosidade e a superficialidade daquele modo de viver. Era incapaz de entender que seu sentimento por Lenina jamais seria correspondido da mesma maneira, porque o amor sublime, por vezes platônico e capaz de sacrifícios inimagináveis, simplesmente não existia na realidade em que ela vivia, e da qual fazia parte. Ela não conhecia essas coisas e era incapaz de compreendê-lo, e ele, a ela.

Quando pesamos o quanto John e sua mãe eram considerados indesejáveis na Reserva e toda a sua relutância em aderir ao modo de viver e de pensar do Outro Lado, concluímos que ele não pertencia a nenhum dos dois mundos, nem ao da reserva, nem a da sociedade condicionada a qual pertencia Lenina, e por isso estava ainda mais deslocado e irremediavelmente perdido.

Outros personagens importantes na trama são: a própria Lenina Crowne, que como todas as moças de seu tempo era uma mulher superficial e pouco inclinada a compreender as excentricidades de Bernard e John; o rígido Diretor do Centro de Incubação de Londres, Thomas “Tomakin”, e o Administrador Mundial, Mustafá Mond, principal dirigente da sociedade londrina e inglesa e notadamente o homem mais culto da trama.

Controle total: totalitarismo como tema principal

Admirável mundo Novo é um livro de ficção científica, mas é também uma distopia moderna. O principal tema deste livro é o totalitarismo, um totalitarismo que passa a controlar não apenas a ideologia e o comportamento das pessoas, como também, através do condicionamento e do soma, o seu nascimento, suas preferências e seu lugar no mundo. Um controle total e quase inescapável, tanto onipresente (uma vez que todos dentro da sociedade se tornam vigilantes em relação aos comportamentos uns dos outros) como onipotente (já que o sistema direciona todos os aspectos da vida dos indivíduos). 

É muito claro na narrativa que o principal objetivo de Aldous é, ao mesmo tempo que critica o autoritarismo, demonstrar o destino para o qual a sociedade humana está caminhando: uma sociedade de supercontrole, consumista, superficial e da fugacidade.

Objetivando alcançar uma felicidade absoluta e incontestável a sociedade de Admirável Mundo Novo caminha para uma ditadura totalitária e de controle total. Para a filósofa política alemã Hannah Arendt, o totalitarismo tem de específico “a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida[2], ou seja, exatamente o que é feito pela sociedade imaginada por Huxley.

As “medidas biopolíticas de administração da vida[3] existem e são aplicadas pelo Governo Mundial visando garantir o controle total sobre os indivíduos e seus corpos. A manipulação genética é utilizada para selecionar e agrupar os indivíduos, separando-os pelas potencialidades e cerceando por completo a liberdade de escolha; a propaganda ideológica serve à disseminação da obediência e da visão ideológica do sistema, naturalizando-as; a hipnopedia é empregada nas crianças para incutir a aceitação e o conformismo, ampliando as possibilidades de dominação absoluta na fase adulta – a mais complicada das fases; o soma existe como droga capaz de entorpecer os desejos e inconformismo, alienador químico, possibilidade de fuga controlada; a proibição da literatura para que ideias contrárias ao sistema e seus valores não sejam propagadas, bem como impedir o desenvolvimento da criticidade dos sujeitos para que eles não enxerguem como prisioneiros do sistema; e, por fim, o monitoramento constante dos comportamentos que desestimula a solidão e a exclusividade para que os próprios indivíduos se tornem vigilantes e vigiados, uma vigilância eterna, ininterrupta e sem rosto definido. Uma vigilância sem necessidade de câmeras.

Enfim, o que se vê em Admirável Mundo Novo é uma sociedade de controle total da vida, no qual cada aspecto do indivíduo (profissional, emocional, comportamental, amoroso, religioso e intelectual) é moldado a pensar e agir conforme a programação do regime.

Mas além de totalitária a sociedade de Admirável Mundo Novo é também utilitarista, forjada para o consumo e para uma vida emocionalmente fácil.

Tudo e cada coisa é medida e dado valor pela utilidade no tocante a torná-los felizes. Mesmo o corpo e o sexo deve ter essa utilidade, deixando de ser espaço individual e privado. Por outro lado, para sustentar o próprio sistema o consumo se torna essencial para que a economia esteja sempre em movimento. Consumista, a sociedade de Huxley se torna também do descarte, porque o que não é novo, o que não é tendência deve ser descartado eliminado, trocado, alimentando o consumismo irresponsável, despreocupado.

Se não bastasse, não há por que se preocupar com os laços por que eles não existem. Nesta sociedade vínculos familiares, de amizade e de amor inexistem. O primeiro é considerado uma aberração, um ato vergonhoso e quase criminoso. Os dois últimos são desestimulados para que se evite os excessos, os sentimentos de posse e de ciúmes. A felicidade pensada para essa sociedade é uma felicidade encontrada no descompromisso, caminho que, se pensarmos, já vem sendo seguido, sobretudo pelos mais jovens que buscam relações cada vez mais líquidas e descompromissadas. Contudo, a sociedade do livro de Huxley elimina completamente essas relações e as cercam de tabus.

Fico imaginando se não deveria ser solitário e vazio não se ter uma origem, não se ter pais ou família, viver com a certeza que será sempre só você e as pessoas que, transitoriamente, passarão por sua vida sem, no entanto, deixarem impressões profundas, sem que haja permanência e continuidade nessas relações tão somente marcadas pela realização dos desejos mais urgentes e efêmeros. Admirável Mundo Novo é, parafraseando Saramago, um ensaio sobre a efemeridade e a superficialidade. Ali tudo é efêmero ou superficial: a vida, os sentimentos, as relações, a utilidade das coisas. Acho que por isso mesmo houve a necessidade por aquela sociedade de adotar o consumo em massa de uma droga que fosse capaz de preencher as lacunas deixadas por essas coisas, por essas ausências, efemeridades e superficialidades que em nada combina com a natureza intensa e complexa do ser humano.

Contraditoriamente, a sociedade imaginada para o livro exalta a “comunidade”, o “fazer junto”, o “nunca estar só ou isolado” e o “compartilhar-se” literalmente. Todavia o resultado que essa exigência de comunidade produz no leitor é um sentimento de solidão inexpugnável, porque na verdade todos ali estão e sempre foram sós. Tudo no mundo daqueles personagens é vazio de conteúdo e profundidade, mas eles não são capazes de percebê-lo. O regime não o permitem ver.

Sátira da sociedade capitalista, consumista e utilitarista, em Admirável Mundo Novo Huxley faz sua crítica a sociedade capitalista moderna cada vez mais vazia de sentido em si. Tão acríticos quanto os personagens de sua trama, nós, a sociedade do consumismo e da liquidez, não vemos o vazio de nossas existências regidas pelo consumo do supérfluo e pelo desejo do que é inútil, vazio, entorpecente e alienante. A organização mundial da economia e a indústria cultural nos oferece o seu soma e como ovelhas lobotomizadas os seguimos sem refletir a essência das coisas. Nada é coletivo, mas é de massa. Os que por acaso se desviam deste caminho predefinido – semelhante ao que acontece no livro de Huxley – são acusados de desajustamento e sofrem preconceito, hostilidade ou são alvos de piadas.

Cheio de referências

Um dos livros mais importantes de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo (Brave New World) foi escrito em 1931, mas só foi publicado no ano seguinte pela Chatto & Windus. O título é inspirado em uma passagem do livro A Tempestade (Ato V), de William Shakespeare, mas funciona dentro da trama como um jogo de palavras, uma vez que para John o mundo moderno e ultratecnológico de Admirável Mundo Novo é uma realidade nova e desconhecida. Contudo, o livro é ainda cheio de outras referências à obra de Shakespeare, bem como de várias personalidades importantes que influenciaram profundamente a ciência e a história recente da humanidade. As principais dessas referências são a Henry Ford, Sigmund Freud e Thomas Malthus.

Em uma sociedade extremamente industrializada em que até a fecundação e o nascimento dos indivíduos se dá como em uma linha de produção fabril, Henry Ford, mundialmente conhecido pela criação da Linha de Montagem, acaba por se tornar uma figura messiânica[4] dentro do mundo controlado pelo Estado Mundial. Ele é mencionado e exaltado a todo momento pelos personagens da trama. Não apenas seu nome como também algumas de suas ideias são mencionadas e configurando-se quase como um Deus, a referência a Ford substitui na trama até a tão conhecida expressão inglesa “my God” por “our Ford”, e a cruz, símbolo máximo do cristianismo, pelo “T”, nome do primeiro modelo de carro confeccionado pela empresa de Ford.

No caso de Freud o destaque é bem menor e por vezes citado no lugar de Henry Ford. Por sua vez, quanto a Thomas Malthus, economista britânico que via o crescimento da população como a causa da pobreza no mundo, a referência é bem mais sutil e relacionada aos métodos contraceptivos adotados pelas mulheres que podem reproduzir. Por fim, Shakespeare é outra grande referência na obra que cita através das falas de John – um dos poucos a ter tido contato com alguma obra de literatura – grandes passagens de obras como Macbeth, A Tempestade, Romeu e Julieta, Hamlet, Rei Lear, Sonho de uma Noite de Verão, Medida por Medida e Otelo.

Sobre a estética literária

Admirável Mundo Novo é dividido em 18 capítulos sem títulos e sem que haja grandes ganchos entre eles. Não há suspense ou grandes reviravoltas em grande parte de sua narrativa, mas Huxley garante a atenção do seu leitor pelo deslumbramento causado por um mundo absurdo, onde certamente não conseguiríamos nos encaixar facilmente. E é por ser absurdo um mundo sem pais, filhos, amor ou religião que o livro de Huxley causa em seus leitores mais sensíveis um sentimento de desolação e desesperança.

Apesar de escrito há quase 89 anos atrás a escrita de Huxley nesse livro é muito fluida e de fácil compreensão o que e aliado a tradução de Lino Vallandro ajudou bastante para o entendimento de todo o universo distópico e muito singular imaginado pelo autor.

O narrador deste livro é onisciente[5] e bastante complexo, ora mostrando distanciamento da narrativa ora “deixando marcas das suas impressões” como atesta Nelson Samuel Porto Veratti. Na sua narração, muitas vezes crítica, irônica e até desdenhosa, como a caracteriza o autor supracitado, o narrador permite que os pensamentos dos personagens se misturem à sua fala indo no íntimo das convicções e dos pensamentos alheios, sem, no entanto, acatá-los, por isso, Veratti o classifica como um “entre aqueles que não se deixam iludir pelas aparências” daquele mundo novo.

O que mais gosto nessa narrativa é sua crítica social ao totalitarismo, à sociedade do consumo, à superficialidade e à banalidade das relações do mundo dito pós-moderno. É quase uma aula de Zygmunt Bauman. Porém, o livro tem também seus pontos fracos e o principal deles é a lentidão do seu desenvolvimento. Contudo, esse foi um mal necessário sem o qual não conheceríamos e compreenderíamos a fundo nem o mundo criado para o livro nem as pretensões do autor ao escrevê-lo.

Notas finais: a atualidade de um livro complexo e fascinante

Admirável Mundo Novo foi escrito numa época na qual grande parte de seus avanços tecnológicos ainda se encontravam no campo do vir a ser, do pode vir a ser. O capitalismo financeiro e industrial se encontrava instalado e passava primeira de suas mais profundas crises, a grande depressão. O tom da obra transmite o pessimismo daqueles dias sombrios, nos quais as nações capitalistas viviam anos de profunda recessão econômica e desemprego crescente, regimes totalitários emergiam na Europa e as circunstâncias preparavam o terreno para uma segunda guerra mundial que eclodiria em set de 1939.

O profundo pessimismo de Huxley que não oferece saída a seus personagens reflete a própria atmosfera de um período no qual o futuro era incerto e as circunstâncias adversas, por isso esse tom carregado de desalento domina o livro. Mas em grande parte, para a sociedade da década de 30, Admirável Mundo Novo não fez tanto sentido quanto ele faz nos dias atuais de um capitalismo globalizado, de grandes avanços científicos e tecnológicos de uma sociedade liquida e consumista e com uma população mundial de 7,5 bilhões de pessoas (na década de 30 éramos pouco mais de 2 bilhões).

Parecemo-nos muito mais com a sociedade de Admirável Mundo Novo do que há 89 anos, quando instituições como a família e religião eram sólidas e as relações, duradoras. O consumo se encontrava limitado pelas circunstâncias dos anos difíceis, mas em anos anteriores, sobretudo nos EUA, havia ocorrido um crescimento exponencial do consumo por conta da busca incessante dos estadunidenses por manter o American way of life[6] (o estilo americano de vida) e concretizar o tão sonhado American Dream[7] (o sonho americano).

Por se parecer tanto com nossa sociedade é que Admirável Mundo Novo pode ser considerado visionário e fazer mais sentido hoje do que na época em que foi escrito. Com uma clareza impressionante o pesquisador Nelson Samuel Porto Veratti expõe a atualidade do livro de Huxley quando afirma que:

 “A passividade e a cooptação que caracterizam as personagens huxleyanas também estão presentes na massa acrítica do mundo atual, muitas vezes sedada por tranquilizantes (Soma), distraída por superficialidades sensoriais (cinema sensível e música sintética), conduzida pelo aboio ideológico capitalista (consumismo desenfreado), seduzida pela busca da felicidade a qualquer preço (hedonismo e ecstasy), privada das instâncias libertadoras (escasso incentivo à leitura e à reflexão) e infantilizada pela intolerância à frustração (liberdade sem responsabilidade), entre outras coisas

Enfim, a ideia do livro de Huxley não é só criativa como avançadíssima para a época em que a obra fora escrita. O autor antevê avanços como a inseminação artificial e a clonagem que só se tornariam possíveis muitas décadas depois. Além disso, o consumismo retratado na narrativa é um tema cada vez mais atual e próximo da forma como se dá na trama: ilimitado, superestimulado e inconsciente. Em muitos aspectos, como expõem Veratti, nos encontramos perigosamente próximos de um mundo admiravelmente novo.

O desfecho é inusitado, bastante realista e pessimista, mas bastante condizente com o caráter desapaixonado de seu narrador e de toda a narrativa, bem como com a insanidade daquele mundo. [ALERTA DE SPOILER SOBRE O DESFECHO]. Não havia ali possibilidade de um final romântico ou ingênuo, mas só da realidade crua e bruta de quando somos incapazes de nos encaixar e possibilidades de solução nos faltam. Aos personagens que conseguem vislumbrar algo para além do que o controle social lhe permite resta apenas duas opções:  ou aceitar o que é posto e aderir a ele, ou ir para o extremo contrário e abandonar tudo, pois não é a eles permitido transformar a realidade ao sabor dos próprios desejos ou convicções. Uma realidade inescapável tão não só pela morte.

Enfim, um livro crítico, atual, possível e desapaixonadamente marcante.

A edição lida é da Editora Globo, do ano de 2003 e possui 318 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro em outra edição que se encontra disponível no Google Books.

Sobre o autor

Escritor inglês, Aldous Leonard Huxley nasceu em Godalming, no dia 26 de julho de 1894. Estudou no Balliol College, em Oxford e graduou-se em inglês em 1916.

Huxley é mundialmente conhecido pelos seus romances e ensaios.

Seus primeiros poemas foram publicados em 1916. Quatro anos depois lançou mais duas obras. Só em 1921 chegou a publicar seu primeiro livro de crítica social, "Crome Yellow", ainda sem tradução no Brasil.

Atuou como crítico literário e teatral e escreveu artigos para várias revistas. Foi editor da revista Oxford Poetry e publicou contos, poesias, literatura de viagem e roteiros de filmes.

A partir da década de 50, tornou-se um entusiasta do uso responsável do LSD, fazendo ele mesmo uso do alucinógeno. Em 1960, Huxley foi diagnosticado com câncer de laringe e faleceu em Los Angeles no dia 22 de novembro de 1963.

Prévia do Google Books



[1]Modo como estão interligadas as partes de um todo; organização, contextura

[2]ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989

[3]Nelson Samuel Porto Veratti.

[4]https://pt.wikipedia.org/wiki/Admirável_Mundo_Novo

[5]Segundo Ana Paula de Araújo é quando o narrador “sabe de tudo. Há vários tipos de narrador onisciente, mas podemos dizer que são chamados assim porque conhecem todos os aspectos da história e de seus personagens. Pode por exemplo descrever sentimentos e pensamentos das personagens, assim como pode descrever coisas que acontecem em dois locais ao mesmo tempo”. (Infoescola).

[6]O Sonho Americano (em inglês: American Dream) é um ethos nacional dos Estados Unidos, uma variedade de ideais de liberdade inclui a chance para o sucesso e prosperidade, maior mobilidade social para as famílias e crianças, alcançada através de trabalho duro em uma sociedade sem obstáculos. (Wikipédia).

[7]O American way (em português, '‘jeito ou estilo americano’') ou American way of life ('estilo americano de vida’') é a expressão aplicada a um estilo de vida que funcionaria como referência de autoimagem para a maioria dos habitantes dos Estados Unidos da América. Seria uma modalidade comportamento dominante e expressão do ethos nacionalista desenvolvido a partir do século XVIII, cuja base é a crença nos direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade, como direitos inalienáveis de todos americanos, nos termos da Declaração de Independência. Pode-se relacionar o American way com o American Dream. (Wikipédia).


sexta-feira, 19 de outubro de 2018

[Coleção Vaga-lume] Zezinho, o Dono da Porquinha Preta – Jair Vitória – Resenha


Por Eric Silva para a Tag Coleção Vagalume

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A coleção vaga-lume é um conjunto de livro infantojuvenil que inegavelmente marcos a história de vida de muitos leitores brasileiros. São poucos os adultos leitores que nunca tenham lido pelo menos um dos livros dessa vasta coleção que reúne alguns dos maiores nomes da literatura infantojuvenil brasileira das décadas de 80 e 90.

Eu pessoalmente tenho muitas destas leituras na minha bagagem de adolescência: A Vida Secreta de Jonas e O Brinquedo Misterioso, ambos de Luiz Galdino, os livros de Marcos Rey como O Mistério do Cinco Estrelas, Na Rota do Perigo e Sozinha no Mundo, além de A Serra dos Dois Meninos de Aristides Fraga Lima.  Sozinha no Mundo e o livro de Aristides são os meus prediletos na coleção.

Meu amor por essa coleção é tão grande que lanço hoje uma nova tag exclusiva para ela. Entre os muitos que li e dos que possuo em casa começo resenhando um que só apareceu aqui no blog através do resumo de um antigo aluno meu, mas que, ainda assim, rendeu até o hoje mais de 1600 acessos: Zezinho, o Dono da Porquinha Preta.

Sinopse

Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma novela infantojuvenil do escritor mineiro Jair Vitória. Nesse livro Jair narra as aventuras de um menino do campo, Zezinho, na sua luta para impedir que seu pai, um homem rústico e turrão, venda sua porquinha de estimação para um dos lavradores vizinhos.

Resenha
Enredo

Zezinho é um menino do interior acostumado a uma educação rígida e sem muito sentimentalismo. Seu pai, Odilo, é um homem rústico endurecido pela difícil vida do campo e pouco acostumado a demonstrações de afeto e carinho. Sempre muito severo e rígido, os filhos o temem e basta uma palavra sua para que os meninos o atendam de pronto por temor de algum castigo ou represália. Mesmo a esposa tem pouca influência sobre Odilo que normalmente faz o oposto aos seus conselhos apenas para contrariá-la e demonstrar poder.

Na narrativa contada por Jair Vitória, Odilo resolveu vender, Maninha, a porquinha preta de estimação do filho criada sempre próximo a casa desde que era uma leitoa. Maninha é muito dócil e está preste a ter sua primeira ninhada de porquinhos. Zezinho tem muito afeto pelo animal e cuidou da porca desde que ela era pequena, acostumando-a a ficar próxima dos humanos, atender seus chamados e aceitar afagos seus.

Quando, Valtério, o filho do lavrador vizinho, conta a Zezinho que seu pai comprará Maninha de Odilo o menino se revolta com o amigo, acusando-o de invejoso e ladrão. Mas a principal revolta do menino é saber que seu pai jamais voltaria atrás com a sua decisão e venderia a porquinha desconsiderando os sentimentos do filho pelo animal.

Tentando impedir a venda da porquinha escondendo-a nas grotas[1] da região e convencendo os lavradores a não comprarem Maninha, Zezinho se envolve em diversas confusões que atiçam a ira do pai.

Personagens realistas: as vivências do autor

Jair Vitória é um escritor que cresceu e se criou na zona rural mineira. Suas narrativas dialogam com suas vivências na roça e, por isso, costumeiramente estão ligadas a questões da vida e do campo como Botina Velha, o Escritor da Classe que fala das crianças que abandonam a escola para ajudar no trabalho da lavoura e A Terra que Machucou que aborda a questão da luta pela terra.

Os personagens criados por Jair são inspirados na realidade brasileira e no cotidiano das populações rurais de sua época, o que torna o livro não só essencialmente brasileiro, como realista. Seus personagens são críveis e poderiam muito bem terem existidos na realidade ou terem sido inspirados em pessoas reais.

Filho de lavradores, assim como Zezinho, Jair tirou de suas próprias vivências o material que inspirou a história, por isso a sua narrativa mesmo voltada para crianças e jovens adolescentes é repleta de sensibilidade e delicadeza e todos os seus elementos (cenários, linguagem, costumes e temas) são realistas e apontam para o seu conhecimento da vida e da criação do povo mais antigo das áreas rurais. Zezinho poderia ser o alter ego da criança que Jair foi na infância: uma criança travessa, mas sensível e inocente, muito ligada aos animais e corajosa no sentido de defender as criaturas por quem tem estima. Isso torna Zezinho, o dono da Porquinha Preta um livro sensível e delicado e até mesmo profundo.

Zezinho teme o pai assim como os seus irmãos, mas é igualmente obstinado, e mesmo não fazendo frente ao pai diretamente usa de todos os recursos que lhe são possíveis para impedir a venda do animal. Jair dá ares de travesso a seu personagem principal, mas coração sensível e determinado. É um personagem difícil de ignorar e muito fácil de ser estimado pelo leitor. Jair acerta em sua fórmula para fazer uma história com personagens cativantes e cria um protagonista pelo qual você torce apesar de todas as brigas e traquinagens cometidas pelo menino ao longo da narrativa.

Por seu turno, Odilo, por seu caráter severo e turrão, acaba fazendo, dentro da narrativa, o papel de vilão que bate e briga à toa, do pai insensível e implicante. Trata-se da transposição para a literatura do imaginário adolescente que quando se vê contrariado pelos pais costuma pintá-los com ares de tirania e vilania.

A mãe é mais sensível e se entristece por ver a tristeza do filho, mas sabe que é impotente ante a teimosia do marido e, realista e pessimista, tenta apenas convencer o menino de desapegar-se do animal.

Os demais personagens, com exceção do menino Valtério, possuem participação muito secundária. Jair dedica um certo tempo na descrição psicológica de Odilo, mas não o faz em relação aos aspectos físicos. Os demais personagens ficam, em sua maioria, em segundo plano, enquanto personagens como o próprio Zezinho, seu irmão mais velho Orlando e o amigo Valtério são construídos ao longo da narrativa, sem uma preocupação de caracterizá-los profundamente. Seus detalhes vão sendo construídos ao longo da história.

Orlando é representado como o irmão mais velho que gosta de fazer troça do mais novo, em contraste com os caçulas da família que se demonstram sensíveis, prestativos e inocentes e buscam ao seu modo ajudar Zezinho ou pelo menos consolá-lo, mesmo que este não saiba reconhecer e aceitar o pequeno e inútil esforço dos irmãozinhos.

Valtério no imaginário de Zezinho é seu principal antagonista, porque seria ele o incitador da questão da venda da porquinha. Foi sua inveja e cobiça de ter uma porquinha mansa que incitou o pai, seo Martinho a querer comprar Maninha e, por sua vez, estimulou Odilo a vendê-la. Por isso, no imaginário simplista de criança injustiçada, primeiro pelo amigo que lhe traíra, e depois pelo pai que desconsiderava sua estima pelo animal, faz com que ele veja Valtério como inimigo invejoso que conta vantagem em poder, pela força do dinheiro, tomar-lhe a porquinha preta.

Um livro que fala de educação e de amor

Fotografia: Eric Silva, 2018.
O enredo do livro é simples, porém profundo. Zezinho, o dono da Porquinha Preta, é uma obra essencialmente pedagógica, a qual já utilizei muitas vezes em aulas de aperfeiçoamento da leitura.

Como educador formado em letras e que exerceu o magistério, Jair demonstra, em uma linguagem muito simples, que a melhor educação é aquela feita com diálogo e sem violência. Essas são as temáticas principais de seu livro: educação e amor.

Odilo é um homem rude que educa seus filhos com uma disciplina baseada no medo e na violência. A sensação transmitida pelo livro não é a de que seus filhos o respeitam porque o amam e admiram, mas porque o temem, porque temem um castigo do qual em algum momento já haviam sido submetidos.

“Zezinho saiu apressadamente. Ordem do pai era ORDEM de verdade. Não era brincadeira. Nem era pensar em contrariá-lo. Correu e foi ajudar o irmão no paiol”.

Ele não demonstra afeto pelos filhos e nem compreensão. Não age conforme um diálogo para entender as crianças e suas vontades para fazê-las compreender seus motivos e respeitarem a sua autoridade. Averso a qualquer conversa ele prefere demonstrar seu poder contrariando os desejos da esposa e dos filhos em vez de entrar em um consenso com os mesmos:

“Sabia que o pai sempre gostava de contrariar a mãe, mostrando que não aceitava opinião de ninguém em casa, mas talvez ela conseguisse alguma coisa”.

Em sua compreensão as vontades e desejos das crianças não deveriam ser ouvidas, muito menos atendidas, devem ser descartadas imperando apenas a palavra dele:

“Menino não tem querer. Menino não tem nada aqui em casa. Só tem a roupa que veste e a comida que come”.

Trata-se de uma educação rígida, inflexível e violenta – simbólica e fisicamente falando – e que resulta, invariavelmente, em problemas futuros. Quase sempre este autoritarismo gera desobediência, o que de certa forma acontece com Zezinho.

Como educador e quase pai, acredito que o diálogo e a liberdade de expressão são caminhos mais promissores ainda que não perfeitos – não há educação perfeita –. Isso não significa que não haja autoridade. Autoridade é conquistada com respeito e admiração. O diálogo serve para esclarecer o posicionamento de ambos e o adulto tomando a sua concepção acerca do problema e o posicionamento da criança deve ponderar e saber quando dizer não e quando ser flexível, sempre tentando fazer a criança compreender as razões de suas decisões e a legitimidade das mesmas.

O que falta na relação de Odilo e sua família é essa flexibilidade e diálogo. Pelo contrário, ele prefere punir o erro com a violência em lugar do diálogo, dos combinados e das proibições e suas respectivas consequências quando são quebrados os acordos e imposições (punição não violenta). Essas são práticas que ensinam e impõem limites. Centrado em uma educação arcaica, Odilo prefere a agressão física:

E já foi tirando o cinturão. Quando via o pai puxando o correião daquele jeito, tremendo de raiva, a surra não era brincadeira. Ia ser fogo. O pai não perdoava. Fugir era uma coisa que não devia nem pensar. Só se fosse para nunca mais voltar em casa.

– Não, paizinho, vou capinar agora.

– Aqui o seu capinar, Zezinho.

A primeira lambada estalou nas pernas. Zezinho pulou e acudiu com as mãos. A segunda guascada atingiu as mãos dele e ara aliviar a dor, levou as mãos à boca. Mas o pai não cava tempo de ele acudir a dor. As lambadas eram rápidas e terríveis. A dor andava das costas às pernas.

O propósito de Jair Vitória é tecer uma crítica a esse modelo arcaico de disciplinamento, e no final mostra que seu resultado nem sempre é bom ou tem um resultado conforme o desejado. O que fica é a revolta:

Sentia o corpinho dolorido, macetado. Não estava gostando do mundo naquele momento. Toda vez que apanhava, passava a estar contra tudo.

“Mas a Maninha ele não vende. Se ele vender, eu mato ela. Dou veneno pra ela. Vou pegar aquele Valtério e dar um murro no nariz dele pra tirar sangue.”

Por isso, Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma leitura que também recomendaria aos pais como uma reflexão sobre educação.

Por outro lado, outro aspecto explorado pela narrativa é o amor. O amor do pai que falta aos filhos e o amor de Zezinho pelo animal de estimação. Isso de certa forma está também ligado ao tema de educação. Porque não existe educação verdadeira que deixe de lado o amor. É preciso amor para educar, porque se trata de uma tarefa árdua.  Do amor nasce a compreensão e a empatia em relação ao sofrimento do outro, mas é também do amor que nasce o desejo de lutar. O amor por Maninha fortalece Zezinho para que ele desafie os desejos do pai de vendê-la, mesmo com todo o medo que ele sente por aquele homem de figura imponente e ameaçadora.

Últimos comentários: narração, escrita e desfecho

Narrado em terceira pessoa e seguindo um tempo cronológico, Zezinho, o dono da Porquinha Preta é um livro de linguagem simples e escrita limpa, sem muitas metáforas ou recursos estilísticos que viessem a complicar a compreensão de seu principal público-alvo: crianças e jovens adolescentes.

Os diálogos e mesmo a narração aproveitam da linguagem simples do interior explorando muitos vocábulos regionais de uma linguagem popular que é mais próxima da realidade daquelas pessoas. Isso garante o realismo e a verossimilhança da narrativa. Contudo, é nos diálogos que essa particularidade fica mais visível. Imitando a forma regional de falar ou autor usa o coloquialismo para construir falas como: “Mas ele é mais grande que você, Zezinho” ou “É capaz que eu vou também”.

O narrador explorar alguns termos regionais, mas, por seu lado, garante todas as convenções da norma-padrão da língua, sem, no entanto, utilizar-se de um tom erudito ou rebuscado.

Em sua escrita, Jair mistura os pensamentos de Zezinho às falas do narrador ao ponto de narração, comentários e pensamentos narrados em discurso indireto virarem uma coisa só, numa forma de narração confortável e gostosa que flui tranquilamente e instiga a leitura.

Ilustração de Cirto Gerano que encerra o sexto capítulo.
As ilustrações de Cirto Genaro são bonitas e delicadas feitas com técnicas na ponta de lápis com delicadeza e realismo.

O desfecho é tocante e não desagrada, mas é um pouco abrupto e apressado. Mas independentemente de ter sido apressado e não desenvolver plenamente uma das cenas mais tocantes da história, ele entrega a narrativa deixando um questionamento sobre crescimento, amadurecimento e determinação, ressaltando até mesmo em suas últimas linhas o caráter pedagógico do livro.

A história de Zezinho não é minha preferida dentro da Coleção Vaga-lume, mas está entre os livros que mais admiro por ser muito bem escrito e trabalhado com carinho pelo seu escritor. É perceptível pela escrita de Jair o carinho e docilidade com o qual ele compôs sua narrativa e personagens, transformando uma historinha simples e até banal em um livro bonito e delicado, que busca ensinar seus leitores através de personagens cativantes e sem perder o realismo ou tornar-se por demasia infantil.

A edição lida é da Editora Ática, do ano de 1996 e possui 127 páginas.

Sobre o autor

Jair Vitória nasceu numa fazenda no município do Prata, Triângulo Mineiro, em 1943. Viveu seus primeiros sete anos na zona rural e só conheceu a cidade quando já era rapazinho.  Era filho de lavradores e estudou a maior parte do tempo na escola da zona rural. Parou de estudar três vezes para ajudar os pais na roça. Entretanto, o pai desejava ao filho um destino diferente do dele que não possuía nem o primário. Jair volta a estudar na roça até quando chegou à universidade. Trabalhou de datilógrafo e estudou à noite. Dedicou-se ao magistério e à literatura e formou-se em Letras, pela Universidade de São Paulo.

Seu primeiro livro publicado foi o livro de contos "Cuma-João".

Aposentado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, retornou ao Triângulo Mineiro, e, atualmente, vive na pequena cidade de Tupaciguara, onde escreve seus livros.





[1] Cavidade, na encosta de serra ou de morro, provocada por águas das chuvas, ou, em ribanceira de rio, por águas de enchentes (Houaiss, 2001)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

O Conto da Deusa – Natsuo Kirino – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.




2018 é o #AnoDoJapão no Conhecer Tudo e a III Campanha Anual de Literatura começa sua homenagem à literatura nipônica com um livro que faz grandes referências à mitologia japonesa e às tradições de povos antigos que os antecederam. Em O Conto da Deusa, o primeiro livro do nosso itinerário pela literatura do Japão, Natsuo Kirino conta a história da criação do Japão mesclando mitologia e uma narrativa ficcional de amor e traição que fala também de tradições terríveis e da marginalização da mulher. Um livro em alguns momentos bastante morno, mas que se apresenta como uma fonte enorme de informação sobre a cultura japonesa antiga.

Confira a resenha do primeiro livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura japonesa.

Resenha

Não conheço muito da literatura japonesa, porque meus interesses quanto ao Japão estão bem mais ligados à indústria dos animes e a dimensão histórico-cultural do país. Por isso muitos dos livros da campanha foram escolhidos meio que de forma aleatória.

Quando escolhi começar com O Conto da Deusa não sabia que Natsuo Kirino era escritora de livros policiais – um dos meus gêneros prediletos e que, infelizmente, venho lendo pouco nos últimos tempos – e por isso acabei escolhendo esse livro pelo mesmo abordar um pouco da mitologia local. No geral gostei do livro, mas faltou um pouco de tempero que diminuísse a monotonia de sua narrativa. Nesta resenha busquei apontar os temas principais que identifiquei na obra e no final um pouco do que achei do livro.

O Enredo

Izanaki e Izanami durante a criação da terra.
Pintura de Kobayashi Eitaku, 1885.
Imagem do Wikimedia Commons.
Uma releitura do mito japonês da criação do mundo, O Conto da Deusa se divide basicamente em 5 grandes partes durante os quais Namima, a protagonista e narradora da trama, relata toda a trajetória de sua vida terrena e os acontecimentos posteriores a sua morte. Mas na narrativa ainda é relatada a história dos Deuses Izanami (伊弉冉尊) – a quem Namima serve no mundo dos mortos - e Izanaki (いざなぎ), seu esposo.

Inicialmente os dois relatos são feitos de forma separada e desconexas entre si, até que os destinos dos deuses acabam por se entrelaçar com os de Namima e sua descendência, encaminhando o enredo para o seu desfecho. Contudo, para não deixar mais extensa a resenha contarei o mito de Izanami e Izanaki em uma postagem especial dedicada só a isso, e focarei apenas na história mais central: o passado de Namima.

A História de Namima

Namima começa seu relato apresentando-se como uma miko (sacerdotisa) que havia nascido numa ilha muito distante, mas que após sua morte prematura passou a servir a deusa Izanami em um reino de escuridão onde habitavam junto aos mortos. É ao longo de toda a primeira parte do livro que a moça relata como foi sua vida “pequena e estranha”.

Namima nasceu em uma pequena ilha de pescadores muito pobres. A ilha chamada por seus habitantes de Umihebi, uma homenagem às muitas cobras marinhas que ali viviam e que se tornavam uma das fontes de renda dos ilhéus.

A vida em Umihebi era regida por um código tradicional e religioso muito severo e que era respeitado por todos para evitar atrair desequilíbrios na ordem natural das coisas. Por conta da localização muito ao leste – próximo de onde nascia o sol – os moradores de Umihebi acreditavam que a pequena ilha fora o primeiro lugar em que os deuses haviam pisado. Por isso, o acesso a algumas áreas da ilha era bastante restrito, a exemplo do Kyoido (Fonte Pura) que só podia ser acessado pela sacerdotisa maior da ilha, Mikura-sama, avô de Namima, e o Amiido (Fonte de Escuridão), onde eram depositados os mortos.

Na ilha, Namima era a filha mais nova da família Umihebi, o Clã da Cobra Marinha, que “tinha o privilégio de gerar o Oráculo”, ou seja, a sacerdotisa maior da ilha, escolhida entre os membros femininos dos Umihebi, ou então da família Umigame, caso a miko anterior morresse de forma prematura e sem deixar alguém na linha de sucessão. Porém, conta a narradora, que os Umigame se encontravam em desgraça e impedidos de buscar seu sustento na pesca, devido a incapacidade da mãe em gerar filhas mulheres que pudessem servir de “sacerdotisas substitutas”. Por conta disso, todos os ilhéus eram proibidos de falar com os Umigame, e mesmo o filho mais velho, Mahito, sendo forte e apto à pesca, era proibido de participar dos grupos de pescadores. Por isso, os Umigame viviam de forma miserável e quase passavam fome.

Namima conta que quando criança não compreendia as tradições da ilha e sua mãe não lhe explicava muito bem a razão de ser daqueles costumes incompreensíveis e nebulosos. Essa incompreensão se torna ainda maior quando a menina é separada e proibida de manter contato com sua única irmã, Kamikuu.

Na época, ainda muito jovem, Kamikuu fora escolhida para ser a sacerdotisa sucessora da avó e passa a viver com esta longe de sua família, em uma cabana isolada. É nesse dia que Namima descobre que enquanto sua irmã se tornaria a pessoa mais importante e preciosa da ilha, ela seria vista como seu oposto, a “impura”.  Era o princípio da dualidade, no qual a existência de um lado luminoso, de um Yang (Kamikku), implicaria necessariamente a existência de seu oposto e, portanto, sombrio (o yin, no caso Namima). Por isso se Kamikuu seria a sacerdotisa maior da ilha e por isso era representante da luz e da vida (sacerdotisa da luz), sua irmã mais nova seria a representante das trevas e da morte. Contudo só mais à frente, por ocasião da morte de sua avó, que a garota descobriria o destino nefasto que sua condição de irmã de Kamikuu lhe reservava.

Por ter de viver enclausurada com a avô aprendendo as tradições e rituais mágicos, todos os dias os Umihebi deveriam preparar um banquete para a sacerdotisa aprendiz. Um banquete cuja fartura era incoerente com a miséria local vivida pelas famílias da ilha e pelos próprios Umihebi e cujos restos deveriam ser descartados no mar e jamais consumidos por outra pessoa.

Apesar de não poder ter contato ou dirigir a palavra a irmã que tanto amava, à Namima foi incumbida a tarefa de levara a comida de Kamikuu e descartar os restos do dia anterior. Uma tarefa que deveria ser cumprida sem falhas todos os dias, mesmo sob as tempestades mais severas.

É numa dessas caminhadas que Namima encontra-se pela primeira vez com Mahito que lhe implora os restos da comida para alimentar a mãe faminta e que esperava mais uma criança. Mesmo sabendo o perigo que corria, Namima passa a dar a Mahito os restos do banquete de Kamikuu.

Mahito era apaixonado por Kamikuu e apesar de saber da paixão impossível que o rapaz amaldiçoado nutria pela sua irmã, a Namima se envolve com ele e engravida. Contudo, essa não é a única turbulência que acontece em sua vida e de uma hora para outra à Namima é imposto um novo fardo nefasto e insuportável, ocupando o lugar de sacerdotisa das trevas, aquela que vivia entre os mortos.

O lado perverso da tradição e o papel da mulher na sociedade

O papel da mulher na sociedade é um dos temas da obra de Kirino.
Mulheres de quimono em Koton, no Japão.
Imagem: Wikimedia Commons.
Quando analisamos o livro de Natsuo observamos que o objetivo da autora com O Conto da Deusa foi falar de muitos temas que na cultura japonesa se encontram intrinsecamente ligados entre si, ainda que muitas pessoas não o percebam em seu cotidiano. Por isso ela escreve uma história em que várias dimensões complementares se entrecruzam: a mitologia e a religião que por muitos de seus traços fomentou por séculos, dentro da sociedade, práticas e ideias machistas que legitimavam a submissão e marginalização da mulher, além de alicerçar uma infinidade de tradições injustas impostas por gerações.

Assim, ao meu ver, através do mito dos deuses Izanami e Izanaki, e da história de Namima e sua irmã, a autora quis demonstrar, por um lado, como crenças religiosas respaldadas em ideias machistas costumam promover a marginalização da mulher dentro da sociedade, e, de outro, como certas tradições perpetuadas pelo medo podem ser perversas e opressoras.

De um lado, o machismo e a marginalização da mulher aparecem em dois pontos cruciais do mito de Izanami e Izanaki, e do outro, o peso das tradições aparece nas tarefas impostas a Namima, Mahito e Kamikuu.

No que diz respeito ao mito e a marginalização da mulher, o primeiro ponto que observei está ligado ao nascimento dos dois primeiros filhos do casal de deuses e o outro ao destino de Izanami quando abandonada pelo marido no mundo dos Mortos.

Por ter falado antes de seu marido durante o ritual de seu casamento, Izanami foi punida com duas gravidezes na quais foram geradas crianças defeituosas que precisaram ser descartadas. A Deusa só pôde dar à luz a uma criatura perfeita depois que o ritual foi refeito e a “ordem correta” reestabelecida.

Algum tempo depois, mesmo tendo dado origem a terra e a muitos dos deuses que nela habitavam, Izanami morre dando à luz ao Deus do fogo e é condenada a habitar em um mundo solitário e de trevas. Assim, Izanami passa a viver apartada de todas as coisas vivas que criara e também de seu marido, e este, após ver o corpo pútrido[1] de sua esposa a repudia e a enclausura na escuridão do submundo.

Nesses dois pontos tão bem destacados pela autora é possível ver como por tanto tempo a mulher foi vista como uma criatura secundária, que deveria vir depois do homem mesmo sendo ela a geradora da vida. Além disso, ela deveria ser sempre bela e aprazível ao olhar de seu marido ou corria o risco de ser rejeitada. Depois de repudiada o que lhe restava dentro da sociedade era uma posição humilhante e ainda mais apartada do convívio social.

Mesmo hoje, muitos resquícios dessa visão machista ainda são visíveis e palpáveis não apenas dentro da cultura japonesa, a que Natsuo faz referência, mas em muitas outras de povos tanto orientais quanto ocidentais.

No que diz respeito a história da ilha Umihebi, Natsuo destaca o peso de tradições injustas que ligaram os três protagonistas da trama a destinos horríveis e até certo ponto desumanos. Mahito e sua família são condenados ao isolamento e a privação; Kamikuu é separada da família e obrigada a cumprir um papel que não escolheu para si; enquanto que à Namima foi destinado o pior e o mais perverso dos destinos, tanto em vida como depois da morte.

Os três eram apenas crianças quando suas vidas foram decididas pela superstição de seu povo. Destinos tanto cruéis como inescapáveis os quais cada um deles buscam enfrentar à sua maneira e sem o apoio ou amparo de quem quer que fosse. Tradições como estas povoam a história cultural de centenas de povos ao longo de muitos séculos e por isso O Conto da Deusa se torna um livro de temática universal, porque em seu cerne não ilustra apenas as culturas orientais como todo um conjunto de culturas que também possuem ou possuíram tradições injustas.

Para finalizar...

Apesar de falar de temas como mitologia e tradições O conto da Deusa não é um texto de difícil compreensão. A autora economiza no estilismo e não usa de uma linguagem muito rebuscada. Toda a filosofia de vida que está embutido na narrativa é fácil de ser captada porque gira mais entorno das tradições cruéis da ilha e de temas como o ressentimento e o medo da morte.

A preocupação maior da autora é em desenvolver as personagens e a narrativa que gira em torno delas. Certamente, essa é uma influência do gênero em que está costumada a escrever, o policial, que normalmente economizar no rebuscamento e na estilística para focar na tensão e no desenvolvimento da história e de seus personagens. Porém as semelhanças param por aí.

Natsuo explora só um pouco a curiosidade do seu leitor escondendo as motivações da morte de Namima, mas como esse também não era o foco o do livro, logo o mistério é desfeito e a narrativa amorna bastante. No final, o que temos é realmente um “conto” (lê-se romance), que, a depender da percepção do leitor, possui um de desenvolvimento bastante arrastado sobre ressentimentos, traição, tradições opressivas e sobre as coisas que nos separam e nos aproximam das divindades, estas últimas tão falhas e ressentidas quanto a nós mesmos.

Ilha de Kudaka ou Kudakajima que inspirou a criação do cenário d'O Conto da Deusa.
Imagem: www.oki-islandguide.com
Como geógrafo uma coisa que logo atiçou minha curiosidade foi a localização de Umihebi para saber se tratava-se de um lugar real ou ficcional. De início minhas buscas foram infrutíferas até que me dei conta de uma seção do livro intitulada “Fontes” que contem a bibliografia pesquisada pela autora. Analisando essa secção notei que muitas delas faziam referências a uma ilha do arquipélago Ryukyu pertencente à prefeitura de Okinawa (沖縄県), a mais ao sul do Japão. Essa ilha é Kudakajima ou Kudaka (久高).

Contudo não achei quase nada sobre essa ilha, ainda pior em português. Até que me deparei com um artigo do site Tadaima Japan[2] que faz referências a muitos dos elementos naturais descritos no livro por Natsuo. Foi aí que tive certeza que Umihebi é, na verdade, Kudakajima, uma ilha de 7,75 km de extensão em meio ao Pacifico e a 5 km de Chinen (知念村), distrito da parte sul da prefeitura de Okinawa.

Outra coisa curiosa que vejo na escrita desse livro é o duplo comportamento de seu narrador. Em quase toda a narrativa, Nanima se comporta como narrador personagem, contando apenas os fatos de sua vida por ela presenciados, e sem a capacidade saber o que se passava no íntimo dos demais personagens. Mesmo depois de se tornar um espírito sua capacidade narrativa não é alterada e ela ignorava tudo o que acontecia no mundo dos vivos. Contudo, nas partes do livro que são dedicados a contar a vida terrena do deus Izanaki, o narrador muda de foco e se torna onisciente, narrando fatos e pensamentos. Apesar disso, o estilo de narração não muda e a sensação é que Nanima continua narrando a história, porém sob outra perspectiva.

Por fim, o que mais gostei nesse livro foi conhecer um pouco mais da mitologia japonesa, área da cultura nipônica que conheço muito pouco, porém acho que faltou tempero para tornar a história mais excitante.

O Conto da Deusa é uma obra interessante para quem gosta de cultura nipônica como eu, porque ela espelha um pouco a forma arraigada como, no passado, os japoneses costumavam se agarrar às tradições e cumprir resignadamente seus deveres perante elas. Por outro lado, para quem não tem esse tipo de interesse o livro se torna mediano e com um desfecho fraco ainda que bastante inesperado.

Acredito que, a depender da percepção de cada leitor, a história pode parecer arrastada e os personagens pouco atrativos. Mas mais legal do livro é conhecer a forma como eles vivem e as tradições impostas a eles pela sociedade daquele lugar.

As injustiças cometidas contra a protagonista realmente são tocantes e o destino que ela encontra em seu caminho nos faz questionar se de fato existe justiça no mundo e no além-túmulo. Será que realmente estamos presos a um destino inescapável? E o que nos espera depois da morte é de fato condizente com os nossos atos em vida? Essas são questões que me assaltaram após a leitura deste livro.

No Japão, Natsuo é considerada uma autora muito popular, todavia, não acho que O Conto da Deusa seja um de seus livros mais notórios, entretanto, como esta é minha primeira experiência com a autora, não posso compará-lo com outra de suas obras.

Em sentido prático, no que diz respeito ao entretenimento, o que há de mais interessante é o destino de Nanima, Mahito, a filha desses dois primeiros e a irmã da protagonista, Kamikuu. Mesmo assim esse núcleo da história é cheio de momentos mornos. Então não espere um livro muito agitado, mas algumas reviravoltas interessantes acontecem ao longo da trama.

A edição lida é a versão digital publicado pela Editora Rocco e traduzida por Alexandre D’Elia. Do ano de 2014 e com 288 páginas.

Sobre a autora

Natsuo Kirino é o pseudônimo da escritora japonesa Mariko Hashioka.

Kirino nasceu em 7 de outubro de 1951, em Kanazawa (金沢市), cidade localizada na província de Ishikawa, mas desde os 14 anos vive em Tóquio, a capital japonesa.

Formou-se em direito na Universidade de Seikei (成蹊大学) e trabalhou em diferentes áreas antes de se tornar escritora profissional em 1981.

Seus primeiros trabalhos foram com contos e como escritora de mangá. Só posteriormente se dedicou ao romance policial, gênero em que se destacou no Japão.

Escreveu 13 romances e três livros de contos entre os quais o mais conhecido é Out (no Brasil traduzido como Do outro lado), publicado em 1997. Com esse livro venceu o Grande Prêmio Japonês de Melhor Romance Policial e ficou entre as finalistas do Edgar Allan Poe de 2004, na categoria Melhor Romance, tornando-se a primeira escritora japonesa indicada a este prêmio literário.

No Brasil, três de suas obras foram traduzidas pela editora Rocco: O Conto da Deusa (The Goddess Chronicle), Grotescas (Grotesque) e Do outro lado (Out).

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


Prévia do Google Books








[1] Que já se decompôs; podre, apodrecido, putrefato (Houaiss, 2001)
[2] http://tadaimajp.com/2015/05/okinawa-kudakajima/

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