Por Eric Silva
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Em um tempo no qual a guerra e a perseguição ideológica
faziam muitas vítimas e prisioneiros, uma mãe precisa dar tudo de si para
manter sua família após a prisão injusta de seu marido. O que ela encontra pela
frente é um Japão marcado pela privação e austeridade, por uma guerra sem
sentido que manda centenas de jovens para os campos de batalha sem a certeza de
retorno e por uma censura que por décadas perseguirá aqueles que se opõem a
insanidade do conflito.
Bonito, raro e delicado, Kabei, nossa mãe, é um filme que traz todas as características que
fazem o cinema japonês ser excelente. Confira a resenha.
Sinopse do enredo
Tóquio, 1940, durante os
primeiros anos da Segunda Guerra Mundial a vida da Família Nogami muda
repentinamente quando o pai, Shigeru (Bandō Mitsugorō X), é preso pela força
policial especial do Japão, a Tokkō,
acusado de ter violado a Lei de Preservação da Paz com suas ideias comunistas.
Após sua prisão a vida de
toda a família se torna muito difícil, e sua esposa, Kayo (Sayuri Yoshinaga),
passa a trabalhar freneticamente como professora para manter a casa e criar as
duas filhas, tendo como único apoio a irmã de Shigeru, Hisako (Rei Dan), e um
dos ex-alunos dele, Yamazaki (Tadanobu Asano), que gradativamente vão se
tornando imprescindíveis à família.
A prisão abala toda a
família, mas sobretudo às duas meninas do casal. Além disso, as dificuldades
para falar com Shigeru são enormes, a família passa por muitas humilhações e as
condições da pressão são as piores possíveis, deteriorando rapidamente a
qualidade de vida do professor.
O tempo passa, mas Shigeru
não é liberado pela polícia. Enquanto isso a guerra avança e o país passa a
viver momentos de austeridade, radicalismo patriótico e mesmo os homens com
deficiências físicas são convocados para o front,
mas Kayo ainda tenta com todos os seus esforços sustentar sua família e não
desanimar apesar das diversidades, até que a trama encontra o seu desfecho com
o fim da guerra, quando ocorre o desastre de Nagasaki e Hiroshima, quando o
Japão derrotado pelos americanos se retira
da Guerra.
Um drama familiar cru e sem
muitos floreios ou poesia, mas, ainda assim, delicado e profundo, Kabei é um filme que fala de
perseverança para enfrentar momentos difíceis e até mesmo desesperadores, nos
quais a intransigência e ambição dos mais poderosos tira a liberdade individual
e submete a todos a momentos de grande dificuldade.
Resenha
Contexto
e personagens
Delicado, singelo e muito bem interpretado e dirigido, Kabei, nossa mãe é um filme que me deu muito trabalho conseguir: duas duras semanas de pesquisas em locadoras, streaming de filmes e downloads em sites duvidosos do exterior. Mas, no final, o esforço valeu à pena e assisti a um dos melhores filmes japoneses não-animado que já vi, tão digno quanto Dare mo Shiranai, outro filme japonês que resenhei recentemente no blog.
Apesar de pouco conhecido no
Brasil, Kabei foi dirigido por Yôji
Yamada, diretor da trilogia Samurai (Kakushi
ken: Oni no tsume, Bushi no Ichibun e Tasogare
Seibei) e de mais de 70
longas-metragens. O filme foi exibido nas salas de cinema japonesas no ano de
2008 e foi baseado no romance autobiográfico, Requiem For a Father, de Teruyo Nogami, que por muitos anos
trabalhou com o diretor Akira Kurosawa, muitas vezes como supervisora de
roteiro.
Com muita sensibilidade o
filme aborda a situação do povo japonês durante a Segunda Guerra Mundial quando
o Japão entra no conflito ao lado da Itália fascista e da Alemanha de Hitler.
Os alistamentos forçados, o radicalismo patriótico e sobretudo a censura que
perseguia os intelectuais de esquerda. Na época, em todo o território japonês
havia sido imposta a Lei de Preservação da Paz que vigorava desde 1925[1].
Essa lei foi promulgada como forma de combater as ideias socialistas,
comunistas e os anarquistas da época, mas, na prática, qualquer oposição política
era enquadrada em sua normativa e punida com a prisão (pena máxima de dez),
reeducação ou até mesmo a morte[2].
No ano de 1941, a lei se
torna mais severa e até mesmo organizações religiosas passam a ser incluídas e
cortes de apelação foram abolidas. Entre os anos de 1925 a 1945, mais de 70.000
pessoas foram presas e a lei só foi revogada com o fim da guerra pelas
autoridades de ocupação dos Estados Unidos.
Na época em que esteve em
vigor, foi criada especialmente para o cumprimento da Lei de Preservação da Paz
uma seção de “Polícia do Pensamento”
para monitorar atividades socialistas e comunistas, e uma seção estudantil para
monitorar professores e estudantes universitários, além de “Promotores do Pensamento” especiais
designados apenas para combater os chamados “Crimes do Pensamento”[3].
Kabei, nossa mãe é
um retrato simultâneo do Japão intransigente e difícil da Segunda Guerra e da
perseguição ferrenha aos socialistas e opositores do governo autoritário,
sobretudo daqueles contrários à guerra contra a China.
Shigeru Nogami, a quem a
família chamava carinhosamente de Tobei, era um professor universitário
reconhecido, mas que fazia forte oposição à guerra. Por conta de suas ideias,
ele não conseguia que seus livros fossem aprovados pela censura e sua família
começava a passar por dificuldades financeiras. Mas além de censurado, suas
ideias o levam à cadeia quando no início do ano de 1940 ele é preso pela Tokkō, a polícia especial, fundada
especificamente para investigar e controlar grupos políticos e ideologias
consideradas subversivas[4]. Sua prisão se torna um
motivo de vergonha para seu sogro, chefe de polícia da capital da província de
Yamaguchi, e deixa sua esposa, Kayo, em profundas dificuldades financeiras e
com problemas com a própria família, ou seja, com o pai.
Kayo, que as crianças chamam
de Kabei, apelido ao qual o título do filme faz referência, é uma mulher forte
e perseverante, mas de constituição física frágil. Com a ajuda da cunhada, mas
sobretudo de Yamazaki ela luta pela sobrevivência da família e para conseguir
cuidar do marido preso. A interpretação de Sayuri Yoshinaga é suave e delicada,
expressando com originalidade e vivacidade cada uma das emoções vividas por sua
personagem. Ela é, junto com a personagem de Yamazaki, o coração da história e
um exemplo de hombridade, delicadeza e determinação silenciosa.
Por sua vez, Yamazaki é um
jovem estudante, muito formal, meio desajeitado e sem nenhuma condição
financeira, como denotam suas meias furadas e seus sapatos rotos. Ele se
oferece para ajudar a família Nogami em tudo quanto for possível, e
gradativamente vai se tornando um importante pilar e uma pessoa imprescindível
para Kayo e suas filhas, uma figura masculina, de presença frequente e de ajuda
sincera. A pouca felicidade que a família passa a ter depois da prisão de
Shigeru é oportunizada por sua presença e gradualmente aquela se torna também a
sua família.
A atuação das suas meninas,
Hatsuko Nogami (Mirai Shida), apelidada de "Hatsubei", e de Teruyo Nogami (Miku Satō), a pequena e
esfomeada "Terubei", também
foram enriquecedoras e imprescindíveis para a composição da curva dramática da
história.
Crítica
O filme como um todo é uma
produção simples e claramente com baixo orçamento, mas a sua delicadeza lhe dá
uma qualidade relevante e sobressalente. Não há nenhum aspecto da trama ou da
produção da película que não tenha me agradado.
Como meus leitores já sabem,
costumo ignorar detalhes como figurinos,
maquiagens e trilhas sonoras. É uma falha minha, mas não costumo pensar em
detalhes como esse. Em Kabei, o que mais me chamou a atenção
foi a dramaticidade da narrativa que possui aquele traço típico dos japoneses
de interpretações contidas, mas profundas e verossímeis, e, também, o contexto
histórico que descrevia anteriormente. Ainda assim, a singeleza dos
cenários, dos objetos e da cenografia é evidente e se sobressai chamando nossa
atenção, além de ser condizente com os tempos austeros que o Japão vivia.
Notamos pelos cenários e até figurinos a ambivalência dos costumes orientais
tradicionais – sobretudo nas roupas utilizadas por Kayo e Shigeru, como em todo
o estilo de sua casa – e a inserção da cultura ocidental que pouco a pouco
penetrava no estilo de vida japonês e ganhava raízes profundas.
Não há aspecto do filme que
eu não tenha gostado, nem da trama ou da interpretação de seus atores. O que me
irritou bastante foi, no entanto, a grande dificuldade de conseguir o filme e
legendas apropriadas.
Os diálogos são muito bem
construídos e transmitem para a tela os sentimentos de suas personagens de
forma com que quem assiste fica imerso na narrativa e nos dramas vividos pelas
personagens. Como já disse as interpretações são contidas, como é típico dos
japoneses, e evita o dramalhão comum a outras escolas de cinema tipicamente
ocidentais.
Apesar de baseada em fatos reais a trama é bastante viva
e se alimenta do absurdo de uma época onde a censura e falta de liberdade de
pensamento, bem como a guerra consumia vidas e destruía famílias de forma
indiferente e cruel. Desta forma o tom
geral de um roteiro que é que ainda que real é instigante é de uma melancolia
que se alterna com pequenos momentos de humor e descontração, ao mesmo tempo
que descreve um período importante na história do Japão.
Destaque para os olhos |
Mas se a câmera e seus
ângulos me chamaram a atenção, também as cores e a iluminação destacam nesse
filme. As cores quase sempre em tons neutros de bege, cinza e branco se mesclam
aos tons escuros que realçam a melancolia daqueles dias de incerteza. Mas,
contraditoriamente, Kabei é um filme
de muita luz e cenários claros o que não permite que a desesperança contagie o
telespectador que espera do filme um desfecho propício, ou quem sabe um final
feliz.
Enquadramento a partir de cantos da casa |
O desfecho pode não agradar quem espera um final feliz,
mas é realista – lembremos que o filme é baseado numa história real –, ainda
assim, tem sua poesia e me agradou bastante, assim como me comoveu. Ele nos faz
lembrar que a vida não é justa e está longe de ser perfeita, mas, ao mesmo
tempo, traz uma mensagem de perseverança, ao nos lembrar que tempos difíceis
passam e a vida prossegue seu curso inexorável.
Kabei, nossa mãe é de fato um bom filme, que valeu a pena o esforço de conseguir e traz, em si, o melhor
que o cinema japonês tem a oferecer: dramas singelos e delicados, que mostram o
quão frágil é a existência humana.
A película é uma produção dos
estúdios Shochiku e entrou em cartaz no ano de 2008. Tem duração de 133
minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:
Trailer
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Listas e Postagens Especiais
Cinema
[1]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[2]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[3]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[4]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Tokubetsu_K%C5%8Dt%C5%8D_Keisatsu
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