sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

7ª Arte: Kabei, Nossa Mãe (Kabei, our Mother) – Resenha


Por Eric Silva
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Em um tempo no qual a guerra e a perseguição ideológica faziam muitas vítimas e prisioneiros, uma mãe precisa dar tudo de si para manter sua família após a prisão injusta de seu marido. O que ela encontra pela frente é um Japão marcado pela privação e austeridade, por uma guerra sem sentido que manda centenas de jovens para os campos de batalha sem a certeza de retorno e por uma censura que por décadas perseguirá aqueles que se opõem a insanidade do conflito.

Bonito, raro e delicado, Kabei, nossa mãe, é um filme que traz todas as características que fazem o cinema japonês ser excelente. Confira a resenha.

Sinopse do enredo

Tóquio, 1940, durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial a vida da Família Nogami muda repentinamente quando o pai, Shigeru (Bandō Mitsugorō X), é preso pela força policial especial do Japão, a Tokkō, acusado de ter violado a Lei de Preservação da Paz com suas ideias comunistas.

Após sua prisão a vida de toda a família se torna muito difícil, e sua esposa, Kayo (Sayuri Yoshinaga), passa a trabalhar freneticamente como professora para manter a casa e criar as duas filhas, tendo como único apoio a irmã de Shigeru, Hisako (Rei Dan), e um dos ex-alunos dele, Yamazaki (Tadanobu Asano), que gradativamente vão se tornando imprescindíveis à família.

A prisão abala toda a família, mas sobretudo às duas meninas do casal. Além disso, as dificuldades para falar com Shigeru são enormes, a família passa por muitas humilhações e as condições da pressão são as piores possíveis, deteriorando rapidamente a qualidade de vida do professor.

O tempo passa, mas Shigeru não é liberado pela polícia. Enquanto isso a guerra avança e o país passa a viver momentos de austeridade, radicalismo patriótico e mesmo os homens com deficiências físicas são convocados para o front, mas Kayo ainda tenta com todos os seus esforços sustentar sua família e não desanimar apesar das diversidades, até que a trama encontra o seu desfecho com o fim da guerra, quando ocorre o desastre de Nagasaki e Hiroshima, quando o Japão derrotado pelos americanos se retira da Guerra.

Um drama familiar cru e sem muitos floreios ou poesia, mas, ainda assim, delicado e profundo, Kabei é um filme que fala de perseverança para enfrentar momentos difíceis e até mesmo desesperadores, nos quais a intransigência e ambição dos mais poderosos tira a liberdade individual e submete a todos a momentos de grande dificuldade.

Resenha

Contexto e personagens

Delicado, singelo e muito bem interpretado e dirigido, Kabei, nossa mãe é um filme que me deu muito trabalho conseguir: duas duras semanas de pesquisas em locadoras, streaming de filmes e downloads em sites duvidosos do exterior. Mas, no final, o esforço valeu à pena e assisti a um dos melhores filmes japoneses não-animado que já vi, tão digno quanto Dare mo Shiranai, outro filme japonês que resenhei recentemente no blog.


A Família Nogami

Apesar de pouco conhecido no Brasil, Kabei foi dirigido por Yôji Yamada, diretor da trilogia Samurai (Kakushi ken: Oni no tsume, Bushi no Ichibun e Tasogare Seibei) e de mais de 70 longas-metragens. O filme foi exibido nas salas de cinema japonesas no ano de 2008 e foi baseado no romance autobiográfico, Requiem For a Father, de Teruyo Nogami, que por muitos anos trabalhou com o diretor Akira Kurosawa, muitas vezes como supervisora de roteiro.

Com muita sensibilidade o filme aborda a situação do povo japonês durante a Segunda Guerra Mundial quando o Japão entra no conflito ao lado da Itália fascista e da Alemanha de Hitler. Os alistamentos forçados, o radicalismo patriótico e sobretudo a censura que perseguia os intelectuais de esquerda. Na época, em todo o território japonês havia sido imposta a Lei de Preservação da Paz que vigorava desde 1925[1]. Essa lei foi promulgada como forma de combater as ideias socialistas, comunistas e os anarquistas da época, mas, na prática, qualquer oposição política era enquadrada em sua normativa e punida com a prisão (pena máxima de dez), reeducação ou até mesmo a morte[2].

No ano de 1941, a lei se torna mais severa e até mesmo organizações religiosas passam a ser incluídas e cortes de apelação foram abolidas. Entre os anos de 1925 a 1945, mais de 70.000 pessoas foram presas e a lei só foi revogada com o fim da guerra pelas autoridades de ocupação dos Estados Unidos.

Na época em que esteve em vigor, foi criada especialmente para o cumprimento da Lei de Preservação da Paz uma seção de “Polícia do Pensamento” para monitorar atividades socialistas e comunistas, e uma seção estudantil para monitorar professores e estudantes universitários, além de “Promotores do Pensamento” especiais designados apenas para combater os chamados “Crimes do Pensamento[3].

Cena da prisão de Shigeru

Kabei, nossa mãe é um retrato simultâneo do Japão intransigente e difícil da Segunda Guerra e da perseguição ferrenha aos socialistas e opositores do governo autoritário, sobretudo daqueles contrários à guerra contra a China.

Shigeru Nogami, a quem a família chamava carinhosamente de Tobei, era um professor universitário reconhecido, mas que fazia forte oposição à guerra. Por conta de suas ideias, ele não conseguia que seus livros fossem aprovados pela censura e sua família começava a passar por dificuldades financeiras. Mas além de censurado, suas ideias o levam à cadeia quando no início do ano de 1940 ele é preso pela Tokkō, a polícia especial, fundada especificamente para investigar e controlar grupos políticos e ideologias consideradas subversivas[4]. Sua prisão se torna um motivo de vergonha para seu sogro, chefe de polícia da capital da província de Yamaguchi, e deixa sua esposa, Kayo, em profundas dificuldades financeiras e com problemas com a própria família, ou seja, com o pai.

Kayo, que as crianças chamam de Kabei, apelido ao qual o título do filme faz referência, é uma mulher forte e perseverante, mas de constituição física frágil. Com a ajuda da cunhada, mas sobretudo de Yamazaki ela luta pela sobrevivência da família e para conseguir cuidar do marido preso. A interpretação de Sayuri Yoshinaga é suave e delicada, expressando com originalidade e vivacidade cada uma das emoções vividas por sua personagem. Ela é, junto com a personagem de Yamazaki, o coração da história e um exemplo de hombridade, delicadeza e determinação silenciosa.

Por sua vez, Yamazaki é um jovem estudante, muito formal, meio desajeitado e sem nenhuma condição financeira, como denotam suas meias furadas e seus sapatos rotos. Ele se oferece para ajudar a família Nogami em tudo quanto for possível, e gradativamente vai se tornando um importante pilar e uma pessoa imprescindível para Kayo e suas filhas, uma figura masculina, de presença frequente e de ajuda sincera. A pouca felicidade que a família passa a ter depois da prisão de Shigeru é oportunizada por sua presença e gradualmente aquela se torna também a sua família.

A atuação das suas meninas, Hatsuko Nogami (Mirai Shida), apelidada de "Hatsubei", e de Teruyo Nogami (Miku Satō), a pequena e esfomeada "Terubei", também foram enriquecedoras e imprescindíveis para a composição da curva dramática da história.

Crítica

O filme como um todo é uma produção simples e claramente com baixo orçamento, mas a sua delicadeza lhe dá uma qualidade relevante e sobressalente. Não há nenhum aspecto da trama ou da produção da película que não tenha me agradado.

Dramático sem ser piegas

Como meus leitores já sabem, costumo ignorar detalhes como figurinos, maquiagens e trilhas sonoras. É uma falha minha, mas não costumo pensar em detalhes como esse. Em Kabei, o que mais me chamou a atenção foi a dramaticidade da narrativa que possui aquele traço típico dos japoneses de interpretações contidas, mas profundas e verossímeis, e, também, o contexto histórico que descrevia anteriormente. Ainda assim, a singeleza dos cenários, dos objetos e da cenografia é evidente e se sobressai chamando nossa atenção, além de ser condizente com os tempos austeros que o Japão vivia. Notamos pelos cenários e até figurinos a ambivalência dos costumes orientais tradicionais – sobretudo nas roupas utilizadas por Kayo e Shigeru, como em todo o estilo de sua casa – e a inserção da cultura ocidental que pouco a pouco penetrava no estilo de vida japonês e ganhava raízes profundas.

Não há aspecto do filme que eu não tenha gostado, nem da trama ou da interpretação de seus atores. O que me irritou bastante foi, no entanto, a grande dificuldade de conseguir o filme e legendas apropriadas.

Os diálogos são muito bem construídos e transmitem para a tela os sentimentos de suas personagens de forma com que quem assiste fica imerso na narrativa e nos dramas vividos pelas personagens. Como já disse as interpretações são contidas, como é típico dos japoneses, e evita o dramalhão comum a outras escolas de cinema tipicamente ocidentais.

Apesar de baseada em fatos reais a trama é bastante viva e se alimenta do absurdo de uma época onde a censura e falta de liberdade de pensamento, bem como a guerra consumia vidas e destruía famílias de forma indiferente e cruel. Desta forma o tom geral de um roteiro que é que ainda que real é instigante é de uma melancolia que se alterna com pequenos momentos de humor e descontração, ao mesmo tempo que descreve um período importante na história do Japão.


Destaque para os olhos
A câmera de Yamada explora bastante as emoções em enquadramentos que destacam sobretudo os olhos dos atores. Mas o que mais se sobressai são os planos mais amplos que colocam em um só enquadramento todos os personagens, mostrando-os como um conjunto unido, inseparável, o que nos transmite a sensação de uma família que não deseja ser separada, mas estar sempre junta, e cujo desejo maior é se reunir com o pai preso. Por fim, há também outros ângulos da câmera de Yamada, sobretudo aqueles ângulos a partir de cantos e cômodos da casa, que capturam cenas do cotidiano como alguém que espia, por uma porta aberta, a intimidade de uma refeição, na qual a presença do pai é apenas uma fotografia para qual as meninas insistem de oferecer o jantar.

Mas se a câmera e seus ângulos me chamaram a atenção, também as cores e a iluminação destacam nesse filme. As cores quase sempre em tons neutros de bege, cinza e branco se mesclam aos tons escuros que realçam a melancolia daqueles dias de incerteza. Mas, contraditoriamente, Kabei é um filme de muita luz e cenários claros o que não permite que a desesperança contagie o telespectador que espera do filme um desfecho propício, ou quem sabe um final feliz.


Enquadramento a partir de cantos da casa
Enfim, Kabei é um filme de altíssima qualidade narrativa, um drama que não é piegas, mas, ainda assim, comovente e delicado. Seus personagens muito bem construídos são cativantes e no enredo cumprem papéis fundamentais e bem demarcados. Ele atinge todas as expectativas e tem todas as nuances que normalmente encontro nos dramas japoneses: interpretações contidas, narrativas delicadas, dramatizações sem dramalhão e um certo humor muito bem dosado que surge somente no momento que é mais propício para ele.

O desfecho pode não agradar quem espera um final feliz, mas é realista – lembremos que o filme é baseado numa história real –, ainda assim, tem sua poesia e me agradou bastante, assim como me comoveu. Ele nos faz lembrar que a vida não é justa e está longe de ser perfeita, mas, ao mesmo tempo, traz uma mensagem de perseverança, ao nos lembrar que tempos difíceis passam e a vida prossegue seu curso inexorável.

Kabei, nossa mãe é de fato um bom filme, que valeu a pena o esforço de conseguir e traz, em si, o melhor que o cinema japonês tem a oferecer: dramas singelos e delicados, que mostram o quão frágil é a existência humana.

A película é uma produção dos estúdios Shochiku e entrou em cartaz no ano de 2008. Tem duração de 133 minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:

Trailer


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[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Preserva%C3%A7%C3%A3o_da_Paz
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Tokubetsu_K%C5%8Dt%C5%8D_Keisatsu

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