segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Botchan – Natsume Soseki – Resenha


Por Eric Silva

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Um humorado clássico japonês que retrata de forma irônica a relação entre cidade grande e pequena, Botchan é o segundo livro publicado por Natsume Soseki, um dos mais importantes nomes da literatura japonês. Frequentemente comparado pela crítica com O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, esse bildungsroman[1] de grande sucesso em seu país acompanha a trajetória de vida e as aventuras de um impulsivo professor recém-formado que saí de Tóquio para ensinar numa escola do ginásio de uma pequena cidade litorânea da ilha de Shikoku. Um romance que fala de forma bem-humorada sobre a complexidade das relações humanas.

Confira a resenha do oitavo livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo, que em 2018 homenageia a literatura japonesa.

Sinopse

Em um livro com estilo bem-humorado e que satiriza a condição humana Botchan, segundo livro publicado pelo japonês de Natsume Soseki aborda o tema das diferenças: o choque cultural que opõe a cidade grande e o interior. Botchan é um professor de matemática inexperiente que nasceu e viveu toda a sua vida em Tóquio, mas que aceita partir para uma pequena cidade do interior do Japão, na ilha de Shikoku, para lecionar, contudo, habilidade social não é seu forte, cuja personalidade ríspida e a falta de paciência lhe geram sérios problemas na nova cidade. Por consequência, ele acaba por se tornar alvo das brincadeiras e das maldades dos colegas e dos alunos da província.

Resenha

Lançado apenas um ano depois da publicação de seu primeiro grande sucesso, o livro Eu Sou Um Gato, Botchan é um clássico famoso e muito apreciado no Japão. Com um narrador único e uma história descontraída e carregada de humor, esse é um livro que, apesar de um tema sobre o cotidiano e ter sido escrito a pouco mais de um século, agrada bastante e até mesmo diverte o leitor acostumado ou conhecedor da cultura japonesa.

Concordo com Vilto Reis[2] quando este afirma que para entender o livro de Soseki é “precisamos ter certa noção cultural”. O livro faz referência ao modelo de educação japonesa, à sua etiqueta, às tradições culinárias e aos banhos públicos, além de citar as gueixas, os haikus (haicais), o ikebana, as artes figurativas e as danças tradicionais. Se não bastasse Botchan é um personagem atrevido e deslinguado que diz e age conforme suas convicções, por mais extremas que elas pareçam, e não se limitando a isso desdenha da cultura tradicional japonesa mostrando o quão ocidentalizados são os seus gostos. 

Comparado por muitos críticos com O Apanhador do Campo de Centeio, de J.D. Salinger, Botchan é um livro com um narrador marcante, de língua afiada, convicto de seus ideais e que mesmo sem entendê-lo por completo nos guia pelo universo tumultuoso das relações interpessoais e sociais.

Botchan: o enredo de um bildungsroman

Fotografia: Eric Silva, 2018.
Escrito por Nastume Soseki, no ano de 1906, Botchan é um bildungsroman, termo alemão dado aos romances de aprendizagem ou de formação, e é também um romance clássico contemporâneo da literatura japonesa. Como é comum aos romances de formação, Botchan é uma obra que transpassa todo o processo de desenvolvimento moral, psicológico e social de seu protagonista desde a infância até a idade adulta quando ele se torna professor de matemática em uma escola do interior do Japão.

Em Botchan, temos a história de um narrador que se identifica apenas por seu apelido de infância (o mesmo do título) e que narra sua própria história de vida começando pela infância vivida à sombra do irmão mais velho.

Botchan, como lhe chama a empregada da família, era um menino que por sua impulsividade se metia a fazer muitas travessuras pelas quais acabava sempre metido em confusões e brigas. Por elas também recebia reclamações dos vizinhos do bairro localizado em algum lugar da capital imperial japonesa, Tóquio. 

Por suas muitas traquinagens – as quais ele nunca negou ou fingiu inocência – Botchan sofria também com o desprezo do pai que, assim como a mãe, tinha suas atenções dirigidas para o mais velho e era particularmente mais severo com Botchan, dizendo que ele “nunca seria nada na vida”. Em casa, o garoto só possuía o apoio da empregada, Kiyo, que lhe emprestava dinheiro, dava-lhe presentes e pedia para que quando fosse adulto e tivesse sua própria casa, a contratasse como sua empregada. Bastante insociável, Botchan não entendia com qual propósito Kiyo lhe estimava e de certa forma se sentia desconfortável com seus carinhos e atenção mesmo sendo eles inocentes.

Após a morte da mãe, e alguns anos depois também do pai, o irmão mais velho herda os bens e a casa, e dá ao mais novo, agora um jovem adulto, uma certa quantia de dinheiro para que montasse um negócio ou investisse em seus estudos. Botchan aceita a quantia e se separa do irmão e Kiyo que o faz prometer que quando tivesse casa própria a mandaria buscar para trabalhar para ele.

O rapaz então se hospeda em uma pensão e por impulso investe o dinheiro em um curso de física, pelo qual, depois de formado, é convidado a trabalhar como professor de matemática em uma pequena cidade no litoral da ilha de Shikoku. Novamente por rompante ele aceita a proposta de trabalho e muda-se de Tóquio para a cidade provinciana, experimentando pela primeira vez um pouco da vida no interior, mas nada sai como ele imaginava. É hostilizado pelos alunos que estranham seu sotaque e fazem brincadeiras mordazes sobre seu apetite voraz. Se não bastasse, passa a viver em atrito com alguns professores por quem alterna confiança, admiração e aversão.

Tantas são as confusões, desencontros e equívocos na qual Botchan se envolve que o personagem vai se tornando divertido e até certo ponto jocoso ao longo do progresso da história.

Jovem Mestre: o narrador personagem e a oposição cidade grande X cidade pequena

Narrado em primeira pessoa pelo olhar de seu protagonista, Botchan é daqueles livros que possui um personagem que beira ao caricato, mas que ainda assim consegue ser marcante. Ele é um rapaz de cidade grande desbocado, corajoso e brigão, de personalidade impulsiva e teimosa, mas extremamente honesto, moral e ético. Uma de suas tiradas mais cômicas é quando revoltado com alguns alunos que não assumiram sua culpa em uma traquinagem cometida contra ele, afirma que na infância ele nunca negou nenhuma de suas travessuras e sempre as sustentou com honra e dignidade, pronto para qualquer castigo que lhe viesse por conta da ação feita.

Mas Botchan é também alguém extremamente ingênuo e influenciável por ser muito pouco sociável. Sem moderações ele possui seus rompantes e toma decisões de forma quase sempre impulsiva no calor de suas emoções, mas facilmente é levado a desistir de suas decisões, mesmo que temporariamente, quando vencido pelas argumentações. Por esse seu gênio que Kiyo o apelidou de botchan, que tudo indica significa jovem mestre, mas pode fazer referência também alguém puro e sincero.

“Quando por vezes veem alguém sincero e puro, eles o criticam e humilham, chamando-o de garotinho mimado ou Botchan”.

Apesar da crítica, mesmo ele dá apelidos a seus companheiros de trabalho tomando por referência certas manias e caraterísticas físicas dos mesmos como Porco-Espinho, Camisa Vermelha, Texugo e Fanfarrão.  

Em geral, não gosto de personagens planas, aquelas construídas em redor de uma qualidade ou de um defeito único, e isso, à primeira vista, me faria odiar esse livro e seu narrador porque Botchan é quase todo marcado pela sua integridade firme e impulsividade. Mas ele também não é exatamente plano, nem exatamente redondo ou evolutivo. Percebi que ele, assim como a maioria dos profissionais atuantes na escola funcionam como uma sátira aos intelectuais japoneses da época. Além disso, algumas mudanças operam no íntimo de Botchan ao longo da narrativa como efeito das experiências experimentadas por ele, que como efeito o mudam um pouco, mas não tão profundamente. Entretanto o que me encantou e me fez gostar do livro de Soseki, também no geral, foi o seu humor discreto e um narrador ácido e convicto de suas ideias transloucadas e de sua moral tão rígidas quanto a vareta de um bambu.

Como vimos, na infância, Botchan foi desprezado pelos pais e muitos destes traços que marcam o personagem do livro se deve a isso. Mas o curioso, como aponta Cadão Volpato[3], é que a biografia de Soseki se aproxima com esta parte da história de Botchan. Assim como seu protagonista Soseki, assinala Volpato, teve uma infância solitária, passou muitos anos vivendo com outra família, perdeu cedo a mãe, e foi rejeitado pelo pai.

Contudo, o principal tema que emerge de Botchan é a clássica oposição que se faz em relação a pequena e a grande cidade. Carregada de preconceitos essa oposição tenta ressaltar uma pretensa superioridade da grande cidade sobre a pequena que não se limitaria ao nível econômico e técnico, mas também cultural e social. Botchan é a caricatura do homem metropolitano que olha com arrogância e altanaria a “pequenez” que torna a cidade pequena, aos seus olhos, inferior e atrasada.

Botchan tem gostos cosmopolitas e por isso olha para a pequena cidade com um olhar crítico e ácido que não perdoa nenhum aspecto. Ele critica sua pequenez, os hábitos de seus moradores, sua falta de atrativos tanto turísticos como estéticos, o nível de seus restaurantes, a qualidade das pensões e o atendimento despendido por elas. Nada ali naquela cidade – que ele nem se dá o trabalho de dar nome – o satisfaz, mesmo a escola, os alunos, o diretor, a metodologia de trabalho, os colegas de profissão, nada o satisfaz ou o alegra. A tudo ele olha por um prisma arrogante e pretensioso, e tende a achar-se superior a tudo e a todos da pequena povoação, reprovando os gostos e costumes.

No entanto, a medida que a história se desenvolve percebemos que aquela altivez de citadino de uma grande metrópole, esconde, na verdade, suas enormes fraquezas e inabilidades.  Apesar de se portar como superior, gradativamente, sua falta de traquejo social e personalidade rústica e simplória vai se tornando evidente. À proporção que a narrativa se desenvolve o leitor nota que as pessoas que ele inicialmente despreza eram mais argutos e astutos do que ele e, mesmo quando eram igualmente rústicos, eram por outra via bem menos influenciáveis.

Além disso, como professor Botchan se revela um inábil. Ele não sabe lidar com os alunos e suas brincadeiras. Sua grande dificuldade de conviver socialmente não lhe permite saber de qual maneira neutralizar as travessuras e maldades dos estudantes e impor respeito às turmas que não o reconhecem e não o respeitam. O fato de ser novato e muito diferente de todos ali faz com que o choque cultural seja inevitável, e ele, o alvo preferido dos alunos que escapam quase sempre ilesos.

Sua inabilidade também se demonstra na facilidade com o qual ele é manipulado por um dos professores mais velhos. Ele simplesmente não consegue perceber as sutilezas e as diferenças entre os professores tomando seus comportamentos como referência e facilmente se deixa levar pelo maquiavelismo e dissimulação de um deles, não reconhecendo de imediato o caráter de outro que como ele é alvo do primeiro.

Notas finais: escrita, leitura e desfecho

Botchan é um livro que apesar de buscar não se influenciar pelo cenário político de sua época faz menção ao que acontecia no Japão do início do século XX. Essa menção fica ainda mais evidente quando, nos últimos capítulos, ele fala das comemorações a vitória japonesa provavelmente da guerra sino-japonesa (1894-1895), além de fazer uma menção mais breve as batalhas dos nipônicos contra os russos (1904-1905)[4].

Na provável época em que se passa a história e também no período em que o livro foi publicado (1906), o Japão ainda vivia o período Meiji, um momento marcado pelo desenvolvimento econômico e pelo expansionismo imperialista japonês. 

Ainda que mencione alguns acontecimentos nacionais da época, Botchan ainda mantém grande parte da sua neutralidade política contando uma história do cotidiano do povo japonês. A narração do jovem Botchan é linear e irônica –junto com o humor esse é o principal tom da história – e possui um certo carisma que somado as confusões vividas pelo seu protagonista prende o leitor, espantando qualquer possível monotonia em que a narrativa possa cair. Por isso o texto flui com tranquilidade.

A escrita de Soseki é muito bem estruturada e compreensível não exagerando nas descrições ou metáforas. A tradução realizada por Jefferson José Teixeira é impecável, mas senti falta de mais notas de rodapé com textos explicativos que ajudassem os leitores leigos em relação a cultura japonesa.

O que mais gostei na trama foram os seus personagens sobretudo o protagonismo de Botchan e sua personalidade forte e cômica. O livro não te faz rir, mas te diverte e descontrai. Mas seu principal ponto fraco foi, sem sombras de dúvidas, o desfecho. Apesar de fechado e ter uma passagem legal e surpreendente, o livro termina de forma súbita e com poucos detalhes sobre o desenrolar dos últimos acontecimentos. Botchan faz um breve resumo dos fatos ocorridos com ele e encerra a narrativa sem dar notícias sobre alguns fatos que interessariam ao leitor saber.

Do mais, Botchan é um livro descontraído, um clássico agradável e que justifica sua predileção por parte do público japonês. Um livro que nas entrelinhas fala da ocidentalização do Japão e satiriza o charlatanismo intelectual de alguns japoneses de sua época. Além disso, é um livro que aborda o contraste cultural entre as populações de cidades grandes e pequenas e que fala muito da ainda pouco conhecida cultura japonesa.

A edição lida é da editora Estação Liberdade, do ano de 2016 e possui 184 páginas.

Sobre o autor

Natsume Soseki (夏目 漱石), era o pseudônimo de Natsume Kinnosuke (夏目金之助). Nascido em 9 de fevereiro de 1867, em Edo, atualmente conhecida como Tóquio, foi um importante romancista japonês do período Meiji e o primeiro a retratar o moderno japonês intelectualmente alienado. Além de escritor foi filósofo.

Sua infância foi solitária. Os pais o deixaram com outra família quando era bebê, sendo devolvido apenas aos nove anos. Perdeu cedo a mãe, quando ainda tinha 14 anos e foi rejeitado pelo pai.

Se formou em inglês pela Universidade de Tóquio (1893) e lecionou nas províncias até 1900, quando foi para a Inglaterra em uma bolsa do governo. Sua reputação como romancista foi feita com seus dois primeiros romances Eu Sou um Gato (1905) e Botchan (1906).

Depois de 1907, quando desistiu de ensinar e dedicar-se à escrita, produziu seus trabalhos mais característicos, que eram sombrios, sem exceção.

Apesar de sua pouca tradição literária nativa e da sua modernidade, seus romances têm um lirismo delicado que é exclusivamente japonês. Foi através de Natsume que o romance moderno e realista, que tinha sido essencialmente um gênero literário estrangeiro, criou raízes no Japão.

Faleceu em 9 de dezembro de 1916, na cidade de Tóquio.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.

No link abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Issuu:

Preview do Issuu




[1] Termo alemão para designar o romance de aprendizagem, ou de formação. Segundo Felipe Araújo “sua característica principal é apresentar um personagem principal em jornada, da infância à maturidade, em busca de crescimento espiritual, político, social, psicológico, físico ou moral”.
[2] https://homoliteratus.com/botchan-ou-necessidade-do-contexto-para-entender-o-que-foi-um-romance-japones-transgressivo/

[3] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1751566-livro-de-soseki-percorre-terreno-acidentado-das-relacoes-humanas.shtml
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Era_Meiji

3 comentários:

  1. Muito boa a resenha! Acabei de ler e achei o blog através da sua resenha no Skoob.

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    Respostas
    1. Olá Júlia. Obrigado pelo comentário.

      Que bom que gostou.

      Gostei muito deste livro e esse ano ou no próximo pretendo ler Kokoro, do mesmo autor, já estou com eles em mãos, mas terei que fazê-lo em espanhol por conta da escassez do livro no Brasil e os elevados preços nos sebos (valores superiores a 300 reais por volume).

      Infelizmente esqueço de publicar as resenhas no Skoob e como a plataforma é meio desorganizada não sei exatamente quais livros esqueci de publicar lá. Mas fico muito, muito feliz, que alguém de lá tenha chegado até aqui. Volte sempre.

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  2. Obrigada por colocar em palavras o que eu queria dizer sobre esse livro se soubesse como. Tenho a mesma dificuldade de escrever resenha que o Botchan tem para discursar. Eu li e gostei muito, terminei sorrindo. Lendo outras resenhas fiquei tipo "vishe!!", não parecia o livro que li. Aí cheguei aqui e lendo sua crítica meu coração ficou quentinho - esta pessoa leu o mesmo livro que eu! Eu sei o que sinto sobre o livro que leio, mas não sei tornar esse sentimento que a leitura me traz uma resenha. Só escrevo "bons" textos a partir de minhas próprias experiências, mas são pessoais, minhas crônicas privadas. Obrigada mais uma vez :)

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