Por Eric Silva
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da
resenha nos comentários.
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa
resenha, basta clicar no play.
Um humorado clássico japonês que retrata de forma irônica
a relação entre cidade grande e pequena, Botchan
é o segundo livro publicado por Natsume Soseki, um dos mais importantes nomes
da literatura japonês. Frequentemente comparado pela crítica com O Apanhador no Campo de Centeio, de J.
D. Salinger, esse bildungsroman[1] de grande sucesso
em seu país acompanha a trajetória de vida e as aventuras de um impulsivo
professor recém-formado que saí de Tóquio para ensinar numa escola do ginásio
de uma pequena cidade litorânea da ilha de Shikoku. Um romance que fala de
forma bem-humorada sobre a complexidade das relações humanas.
Confira a resenha do oitavo livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo, que em 2018 homenageia a literatura japonesa.
Confira a resenha do oitavo livro da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo, que em 2018 homenageia a literatura japonesa.
Sinopse
Em um livro com estilo
bem-humorado e que satiriza a condição humana Botchan, segundo livro publicado pelo japonês de Natsume Soseki
aborda o tema das diferenças: o choque cultural que opõe a cidade grande e o
interior. Botchan é um professor de matemática inexperiente que nasceu e viveu
toda a sua vida em Tóquio, mas que aceita partir para uma pequena cidade do
interior do Japão, na ilha de Shikoku, para lecionar, contudo, habilidade
social não é seu forte, cuja personalidade ríspida e a falta de paciência lhe
geram sérios problemas na nova cidade. Por consequência, ele acaba por se tornar
alvo das brincadeiras e das maldades dos colegas e dos alunos da província.
Resenha
Lançado apenas um ano depois
da publicação de seu primeiro grande sucesso, o livro Eu Sou Um Gato, Botchan é um clássico famoso e muito apreciado no
Japão. Com um narrador único e uma história descontraída e carregada de humor,
esse é um livro que, apesar de um tema sobre o cotidiano e ter sido escrito a
pouco mais de um século, agrada bastante e até mesmo diverte o leitor
acostumado ou conhecedor da cultura japonesa.
Concordo com Vilto Reis[2]
quando este afirma que para entender o livro de Soseki é “precisamos ter certa noção cultural”. O livro faz referência ao
modelo de educação japonesa, à sua etiqueta, às tradições culinárias e aos
banhos públicos, além de citar as gueixas, os haikus (haicais), o ikebana,
as artes figurativas e as danças tradicionais. Se não bastasse Botchan é um personagem
atrevido e deslinguado que diz e age conforme suas convicções, por mais
extremas que elas pareçam, e não se limitando a isso desdenha da cultura
tradicional japonesa mostrando o quão ocidentalizados são os seus gostos.
Comparado por muitos críticos
com O
Apanhador do Campo de Centeio, de J.D. Salinger, Botchan é um livro com um narrador
marcante, de língua afiada, convicto de seus ideais e que mesmo sem entendê-lo
por completo nos guia pelo universo tumultuoso das relações interpessoais e
sociais.
Botchan: o enredo de um
bildungsroman
Fotografia: Eric Silva, 2018. |
Em Botchan, temos a história de um narrador que se identifica apenas
por seu apelido de infância (o mesmo do título) e que narra sua própria
história de vida começando pela infância vivida à sombra do irmão mais velho.
Botchan, como lhe chama a
empregada da família, era um menino que por sua impulsividade se metia a fazer
muitas travessuras pelas quais acabava sempre metido em confusões e brigas. Por
elas também recebia reclamações dos vizinhos do bairro localizado em algum
lugar da capital imperial japonesa, Tóquio.
Por suas muitas traquinagens
– as quais ele nunca negou ou fingiu inocência – Botchan sofria também com o
desprezo do pai que, assim como a mãe, tinha suas atenções dirigidas para o
mais velho e era particularmente mais severo com Botchan, dizendo que ele
“nunca seria nada na vida”. Em casa, o garoto só possuía o apoio da empregada,
Kiyo, que lhe emprestava dinheiro, dava-lhe presentes e pedia para que quando fosse
adulto e tivesse sua própria casa, a contratasse como sua empregada. Bastante
insociável, Botchan não entendia com qual propósito Kiyo lhe estimava e de
certa forma se sentia desconfortável com seus carinhos e atenção mesmo sendo
eles inocentes.
Após a morte da mãe, e alguns
anos depois também do pai, o irmão mais velho herda os bens e a casa, e dá ao
mais novo, agora um jovem adulto, uma certa quantia de dinheiro para que
montasse um negócio ou investisse em seus estudos. Botchan aceita a quantia e
se separa do irmão e Kiyo que o faz prometer que quando tivesse casa própria a
mandaria buscar para trabalhar para ele.
O rapaz então se hospeda em
uma pensão e por impulso investe o dinheiro em um curso de física, pelo qual,
depois de formado, é convidado a trabalhar como professor de matemática em uma
pequena cidade no litoral da ilha de Shikoku. Novamente por rompante ele aceita
a proposta de trabalho e muda-se de Tóquio para a cidade provinciana,
experimentando pela primeira vez um pouco da vida no interior, mas nada sai
como ele imaginava. É hostilizado pelos alunos que estranham seu sotaque e
fazem brincadeiras mordazes sobre seu apetite voraz. Se não bastasse, passa a
viver em atrito com alguns professores por quem alterna confiança,
admiração e aversão.
Tantas são as confusões, desencontros e equívocos na qual
Botchan se envolve que o personagem vai se tornando divertido e até certo ponto
jocoso ao longo do progresso da história.
Jovem Mestre: o
narrador personagem e a oposição cidade grande X cidade pequena
Narrado em primeira pessoa
pelo olhar de seu protagonista, Botchan é daqueles livros que possui um
personagem que beira ao caricato, mas que ainda assim consegue ser marcante.
Ele é um rapaz de cidade grande desbocado, corajoso e brigão, de personalidade
impulsiva e teimosa, mas extremamente
honesto, moral e ético. Uma de suas tiradas mais cômicas é quando revoltado com
alguns alunos que não assumiram sua culpa em uma traquinagem cometida contra
ele, afirma que na infância ele nunca negou nenhuma de suas travessuras e
sempre as sustentou com honra e dignidade, pronto para qualquer castigo que lhe
viesse por conta da ação feita.
Mas Botchan é também alguém extremamente ingênuo e influenciável
por ser muito pouco sociável. Sem moderações ele possui seus rompantes e toma
decisões de forma quase sempre impulsiva no calor de suas emoções, mas
facilmente é levado a desistir de suas decisões, mesmo que temporariamente,
quando vencido pelas argumentações. Por esse seu gênio que Kiyo o apelidou de botchan, que tudo indica significa jovem mestre, mas pode fazer referência
também alguém puro e sincero.
“Quando por vezes veem alguém
sincero e puro, eles o criticam e humilham, chamando-o de garotinho mimado ou
Botchan”.
Apesar da crítica, mesmo ele
dá apelidos a seus companheiros de trabalho tomando por referência certas
manias e caraterísticas físicas dos mesmos como Porco-Espinho, Camisa Vermelha,
Texugo e Fanfarrão.
Em geral, não gosto de
personagens planas, aquelas construídas em redor de uma qualidade ou de um
defeito único, e isso, à primeira vista, me faria odiar esse livro e seu
narrador porque Botchan é quase todo
marcado pela sua integridade firme e impulsividade. Mas ele também não é
exatamente plano, nem exatamente redondo ou evolutivo. Percebi que ele, assim
como a maioria dos profissionais atuantes na escola funcionam como uma sátira
aos intelectuais japoneses da época. Além disso, algumas mudanças operam no
íntimo de Botchan ao longo da narrativa como efeito das experiências
experimentadas por ele, que como efeito o mudam um pouco, mas não tão
profundamente. Entretanto o que me encantou e me fez gostar do livro de Soseki,
também no geral, foi o seu humor discreto e um narrador ácido e convicto de
suas ideias transloucadas e de sua moral tão rígidas quanto a vareta de um
bambu.
Como vimos, na infância, Botchan foi desprezado pelos pais e
muitos destes traços que marcam o personagem do livro se deve a isso. Mas o
curioso, como aponta Cadão Volpato[3], é que a biografia de
Soseki se aproxima com esta parte da história de Botchan. Assim como seu
protagonista Soseki, assinala Volpato, teve uma infância solitária, passou
muitos anos vivendo com outra família, perdeu cedo a mãe, e foi rejeitado pelo
pai.
Contudo, o principal tema que emerge de Botchan é a clássica oposição que se faz em relação a pequena e a
grande cidade. Carregada de preconceitos essa oposição tenta ressaltar uma
pretensa superioridade da grande cidade sobre a pequena que não se limitaria ao
nível econômico e técnico, mas também cultural e social. Botchan é a caricatura
do homem metropolitano que olha com arrogância e altanaria a “pequenez” que
torna a cidade pequena, aos seus olhos, inferior e atrasada.
Botchan tem
gostos cosmopolitas e por isso olha para a pequena cidade com um olhar crítico
e ácido que não perdoa nenhum aspecto. Ele critica sua pequenez, os hábitos
de seus moradores, sua falta de atrativos tanto turísticos como estéticos, o
nível de seus restaurantes, a qualidade das pensões e o atendimento despendido
por elas. Nada ali naquela cidade – que ele nem se dá o trabalho de dar nome –
o satisfaz, mesmo a escola, os alunos, o diretor, a metodologia de trabalho, os
colegas de profissão, nada o satisfaz ou o alegra. A tudo ele olha por um
prisma arrogante e pretensioso, e tende a achar-se superior a tudo e a todos da
pequena povoação, reprovando os gostos e costumes.
No entanto, a
medida que a história se desenvolve percebemos que aquela altivez de citadino
de uma grande metrópole, esconde, na verdade, suas enormes fraquezas e
inabilidades. Apesar de se portar
como superior, gradativamente, sua falta de traquejo social e personalidade
rústica e simplória vai se tornando evidente. À proporção que a narrativa se
desenvolve o leitor nota que as pessoas que ele inicialmente despreza eram mais
argutos e astutos do que ele e, mesmo quando eram igualmente rústicos, eram por
outra via bem menos influenciáveis.
Além disso, como
professor Botchan se revela um inábil. Ele não sabe lidar com os alunos e
suas brincadeiras. Sua grande dificuldade de conviver socialmente não lhe
permite saber de qual maneira neutralizar as travessuras e maldades dos
estudantes e impor respeito às turmas que não o reconhecem e não o respeitam. O
fato de ser novato e muito diferente de todos ali faz com que o choque cultural
seja inevitável, e ele, o alvo preferido dos alunos que escapam quase sempre
ilesos.
Sua inabilidade também se demonstra na facilidade com o qual ele
é manipulado por um dos professores mais velhos. Ele simplesmente não consegue
perceber as sutilezas e as diferenças entre os professores tomando seus
comportamentos como referência e facilmente se deixa levar pelo maquiavelismo e
dissimulação de um deles, não reconhecendo de imediato o caráter de outro que
como ele é alvo do primeiro.
Notas finais: escrita,
leitura e desfecho
Botchan é um livro
que apesar de buscar não se influenciar pelo cenário político de sua época faz
menção ao que acontecia no Japão do início do século XX. Essa menção fica ainda
mais evidente quando, nos últimos capítulos, ele fala das comemorações a
vitória japonesa provavelmente da guerra sino-japonesa (1894-1895), além de
fazer uma menção mais breve as batalhas dos nipônicos contra os russos
(1904-1905)[4].
Na provável época em que se
passa a história e também no período em que o livro foi publicado (1906), o Japão
ainda vivia o período Meiji, um momento marcado pelo desenvolvimento econômico
e pelo expansionismo imperialista japonês.
Ainda que mencione alguns
acontecimentos nacionais da época, Botchan
ainda mantém grande parte da sua neutralidade política contando uma história do
cotidiano do povo japonês. A narração do jovem Botchan é linear e irônica
–junto com o humor esse é o principal tom da história – e possui um certo
carisma que somado as confusões vividas pelo seu protagonista prende o leitor,
espantando qualquer possível monotonia em que a narrativa possa cair. Por isso
o texto flui com tranquilidade.
A escrita de Soseki é muito bem estruturada e
compreensível não exagerando nas descrições ou metáforas. A tradução realizada por Jefferson José Teixeira é
impecável, mas senti falta de mais notas de rodapé com textos explicativos que
ajudassem os leitores leigos em relação a cultura japonesa.
O que mais gostei na trama foram os seus personagens
sobretudo o protagonismo de Botchan e
sua personalidade forte e cômica. O livro não te faz rir, mas te diverte e
descontrai. Mas seu principal ponto fraco foi, sem sombras de dúvidas, o
desfecho. Apesar de fechado e ter uma passagem legal e surpreendente, o livro
termina de forma súbita e com poucos detalhes sobre o desenrolar dos últimos
acontecimentos. Botchan faz um breve
resumo dos fatos ocorridos com ele e encerra a narrativa sem dar notícias sobre
alguns fatos que interessariam ao leitor saber.
Do mais, Botchan é
um livro descontraído, um clássico agradável e que justifica sua predileção por
parte do público japonês. Um livro que nas entrelinhas fala da ocidentalização
do Japão e satiriza o charlatanismo intelectual de alguns japoneses de sua
época. Além disso, é um livro que aborda o contraste cultural entre as
populações de cidades grandes e pequenas e que fala muito da ainda pouco
conhecida cultura japonesa.
A edição lida é da editora Estação
Liberdade, do ano de 2016 e possui 184 páginas.
Sobre
o autor
Natsume Soseki (夏目 漱石), era o pseudônimo de Natsume Kinnosuke (夏目金之助). Nascido em 9 de fevereiro de 1867, em Edo, atualmente
conhecida como Tóquio, foi um importante romancista japonês do período Meiji e
o primeiro a retratar o moderno japonês intelectualmente alienado. Além de
escritor foi filósofo.
Sua infância foi solitária. Os pais o deixaram com outra família
quando era bebê, sendo devolvido apenas aos nove anos. Perdeu cedo a mãe,
quando ainda tinha 14 anos e foi rejeitado pelo pai.
Se formou em inglês pela Universidade de Tóquio (1893) e
lecionou nas províncias até 1900, quando foi para a Inglaterra em uma bolsa do
governo. Sua reputação como romancista foi feita com seus dois primeiros
romances Eu Sou um Gato (1905) e Botchan (1906).
Depois de 1907, quando desistiu de ensinar e dedicar-se à
escrita, produziu seus trabalhos mais característicos, que eram sombrios, sem
exceção.
Apesar de sua pouca tradição literária nativa e da sua
modernidade, seus romances têm um lirismo delicado que é exclusivamente
japonês. Foi através de Natsume que o romance moderno e realista, que tinha
sido essencialmente um gênero literário estrangeiro, criou raízes no Japão.
Faleceu em 9 de dezembro de 1916, na cidade de Tóquio.
Confira quem são os outros
autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.
No link abaixo você pode
conferir uma prévia do livro disponível no Issuu:
Preview do Issuu
Postagens Relacionadas
Nosso Itinerário: livros resenhados
Listas e Postagens Especiais
Cinema
[1]
Termo alemão para designar o romance de aprendizagem, ou de formação. Segundo
Felipe Araújo “sua característica principal é apresentar um personagem
principal em jornada, da infância à maturidade, em busca de crescimento
espiritual, político, social, psicológico, físico ou moral”.
[2]
https://homoliteratus.com/botchan-ou-necessidade-do-contexto-para-entender-o-que-foi-um-romance-japones-transgressivo/
[3]
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1751566-livro-de-soseki-percorre-terreno-acidentado-das-relacoes-humanas.shtml
[4]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Era_Meiji
Muito boa a resenha! Acabei de ler e achei o blog através da sua resenha no Skoob.
ResponderExcluirOlá Júlia. Obrigado pelo comentário.
ExcluirQue bom que gostou.
Gostei muito deste livro e esse ano ou no próximo pretendo ler Kokoro, do mesmo autor, já estou com eles em mãos, mas terei que fazê-lo em espanhol por conta da escassez do livro no Brasil e os elevados preços nos sebos (valores superiores a 300 reais por volume).
Infelizmente esqueço de publicar as resenhas no Skoob e como a plataforma é meio desorganizada não sei exatamente quais livros esqueci de publicar lá. Mas fico muito, muito feliz, que alguém de lá tenha chegado até aqui. Volte sempre.
Obrigada por colocar em palavras o que eu queria dizer sobre esse livro se soubesse como. Tenho a mesma dificuldade de escrever resenha que o Botchan tem para discursar. Eu li e gostei muito, terminei sorrindo. Lendo outras resenhas fiquei tipo "vishe!!", não parecia o livro que li. Aí cheguei aqui e lendo sua crítica meu coração ficou quentinho - esta pessoa leu o mesmo livro que eu! Eu sei o que sinto sobre o livro que leio, mas não sei tornar esse sentimento que a leitura me traz uma resenha. Só escrevo "bons" textos a partir de minhas próprias experiências, mas são pessoais, minhas crônicas privadas. Obrigada mais uma vez :)
ResponderExcluir