sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Orlando e o Escudo da Coragem – Ana Lúcia Merege – Resenha


Por Eric Silva

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Orlando e o Escudo da Coragem é o mais novo infantojuvenil do universo de Athelgard, criação da escritora brasileira Ana Lúcia Merege. Em seu novo livro, Merege conta as aventuras de Orlando, um menino de 12 anos filho de um poderoso senhor de terras em Athelgard, que apesar de sua pouca idade enfrenta uma perigosa prova de coragem para mostrar o seu valor. Um livro criativo e sensível, com uma escrita acolhedora e uma narrativa que ensina o valor da coragem.

Sinopse

Orlando é o mais jovem dos filhos do thane[1] de Leighdale, um garoto esperto, gentil e corajoso de descendência élfica e com o dom da magia, mas que, no entanto, vive à sombra do seu meio-irmão mais velho, Lionel, conhecido por todos pela nobreza e bravura.

O garoto é tão honrado e capaz quanto seu irmão por quem ele tem uma grande admiração, mas ainda não conhece as próprias potencialidades. Em casa, todos implicam por ele insistir em treinar um falcão estrábico, o Vesgo, mas Orlando sabe que assim como ele o pequeno falcão possui potenciais inexplorados e por isso insiste no treinamento do falcão.

Entretanto chega o dia no qual, as potencialidades tanto do menino quanto as do falcão são postas à prova quando Lionel viaja para participar de um torneio e Orlando o acompanha como escudeiro. Naquela viagem às desconhecidas terras das Colinas Negras, por conta de uma série de mal-entendidos e confusões, o menino e seu falcão vivem uma grande e perigosa aventura na qual são testados e levados a mostrar os quão corajosos e capazes eram.

Resenha
Orlando, Lionel e um conto de cavalaria

Imagem: Eric Silva, 2018.
Orlando e o Escudo da Coragem possui uma série grande de personagens importantes, como Brian, que participa do torneio ao lado de Orlando, os caçadores Raylin e Ellak, e o senhor das Colinas Negras, Turnedil, mais a sua esposa, a Dama Elfrida. Porém destacarei apenas Orlando e seu irmão Lionel.

Orlando é um garoto repleto de qualidades positivas. Ele é amigável, aplicado, humilde e sensível, além de guardar em si acentuados graus de sabedoria, maturidade e senso de justiça. Isso tira, na visão de um adulto, um pouco da verossimilhança do personagem, mas para o público infantil ele é um símbolo de retidão e moralidade a ser seguido. Um garoto honesto e bom. Contudo, mesmo aí, o personagem se encaixa perfeitamente dentro das clássicas histórias de cavalaria, onde os cavaleiros tidos como justos eram, em sua maioria, exemplos de nobreza, cristandade e retidão de caráter.

É sem dúvida um personagem que possui seus medos e inseguranças sobretudo pela sua falta de experiência e pouca idade, entretanto ele busca a coragem para vencer seus medos e dar seu melhor.
Lionel é descrito como corajoso e habilidoso estando muito à frente de seu irmão menor, mas também é um bom irmão, atencioso e carinhoso. Defende-o, o estimula e incentiva, além de ensiná-lo, por isso, em lugar de competir com Lionel, Orlando sente admiração e não se importa profundamente de estar à sua sombra. São, em suma companheiros e bons irmãos.

Com precisamente 100 páginas Orlando e o Escudo da Coragem é uma pequena novela que se inspira nos antigos contos de cavalaria medievais. Como é especialidade da sua autora, trata-se de um livro cheio de magia e ensinamentos pensado para o público infantojuvenil, mas escrito com a qualidade de um livro sem faixa etária determinada.

Imagem: Eric Silva, 2018.
No blog da editora Draco[2], Merege conta que teve a ideia do livro depois que viu a imagem de um rapaz falcoeiro com o seu falcão, na imagem um falcão peregrino. Dali junto com o desejo de escrever mais livros voltados para o público infantojuvenil que usasse o universo de Athelgard como plano de fundo, a autora foi, durante o processo de escrita, compondo a narrativa de Orlando.
Para escrever seu livro Ana Lúcia buscou se aprofundar no universo da falcoaria, da cavalaria e dos torneios de justas. Em seu texto ela explica que a relação entre Orlando e seu meio-irmão Lionel foi inicialmente inspirada em “A Espada era a Lei”, e o tema em contos de cavalaria como “Sir Gawaine e o Cavaleiro Verde”. Daí nasceu a ideia de uma novela infantojuvenil inspirado nos romances de cavalaria e histórias de fantasia com a falcoaria, os torneiros medievais, o respeito as diferenças e a coragem como os principais temas abordados.

A falcoaria é uma prática antiga e hoje quase extinta que remota do período medieval. Trata-se da prática de caçar com falcões treinados para este fim. Era uma atividade comum entre a elite medieva e foi o esporte preferido de reis e senhores feudais da época[3]. Para amestrar as aves era necessário paciência e tempo e por isso é preciso escolher muito bem o animal e começar a treiná-la ainda filhote.

No livro de Merege falcoaria e respeito às diferenças se encontram para falar da relação de Orlando com sua ave, o Vesgo. Orlando dedica seu tempo a uma ave estrábica e que provavelmente nunca aprenderia a caçar por conta da alta precisão na visão necessária às aves nessa prática. Contudo, ele não abandona nem despreza Vesgo pelas suas condições físicas e busca explorar seus potenciais ao máximo, jamais desistindo, e irrita-se quando sua ave é descriminada pelos adultos e pelos amigos do irmão.

Image: Eric Silva, 2018.
O tema do respeito às diferenças é marcante na narrativa desse livro e vai muito além da história de Orlando e seu falcão. Ela permeia as relações humanas com os elfos e as criaturas míticas e é um dos principais valores defendidos por Merege em sua obra.

O outro valor é a coragem que vem na trama ligada as grandes dificuldades enfrentadas pelos cavaleiros nos torneios medievais.

Os torneios medievais ou justas eram competições de cavalaria ou pelejas comuns entre os séculos XII ao XVI na Europa[4], e utilizadas como populares formas de diversão executada pelos nobres, mas que atraía também a atenção da população camponesa que assistia às competições.

Todas as provas aplicadas nestes torneios implicavam riscos aos seus participantes e por isso funcionavam também como treinamento e teste de coragem. Mas a coragem de que fala Merege não se resume a bravura, mas a coragem de fazer o que é certo e de ser justo sempre, e Orlando enfrenta suas provações buscando mostra que a coragem possui um significado mais largo e amplo do que a qualidade de não ter medo. O torneio idealizado por ela baliza e faz aflorar a essência dos competidores fazendo emergir os preconceitos e valores: arrogância, bravura, honestidade, compaixão, egoísmo, descriminação, tudo aflora em cada competidor e são jugadas pelos idealizadores da disputa com equidade e justiça.

Essas associações e ensinamentos são comuns na obra de Merege. A autora sempre busca através de suas histórias trazer ao leitor adulto e infantojuvenil algum tipo de aprendizado. Neste livro coragem significa ser justo, não buscar o caminho mais curto, respeitando as diferenças e o outro enquanto busca abrir seu caminho pela vida. Ser corajoso é nunca recuar diante da adversidade e lutar por justiça.

Por esses ensinamentos Orlando e o Escudo da Coragem é um livro que dialoga intensamente com os demais da coleção que compreende o universo ficcional criado pela autora, porque em todos ela encerra algum tipo de ensinamento e valor essencial ao crescimento pessoal das pessoas. Esse diálogo é ainda mais intenso com Anna e a Trilha Secreta, outro livro infantojuvenil sobre a necessidade de que trilhemos caminhos que nos leve ao autoconhecimento, a autocitação e ao respeito às diferenças.

Características gerais e apreciação crítica

Imagem: Eric Silva, 2018.
Uma talentosa contadora de histórias, a escrita de Merege é o ponto que mais me agrada em sua obra. Seja lá qual for a temática que ela escreva, esteja na forma de romances, novelas ou mesmo de contos, e independentemente de para quais públicos ela escreva, sua escrita sempre me dá uma sensação de conforto que poucos autores me causam.

Quando você penetra em seus cenários primorosamente construídos é como se estivesse realmente vivenciando aqueles cenários medievais, bosques e florestas. A linguagem é coerente e adequada, você compreende completamente a história ainda que ela faça referências a elementos e objetos de época que não são conhecidos do público geral. Trata-se de liberdade criativa ampla sem perder o rumo ou deixar o leitor confuso.

A narração é limpa e se limita ao essencial sem perder, porém, a beleza de um texto que te envolve e prende. O narrador não opina nem interfere na narrativa, mas lhe diz o suficiente para que você entenda que toda a peça cumpre o papel de te ensinar algo.

O livro é curto e dividido em 13 capítulos pequenos e por isso a leitura é rápida. Como o texto é fluido e muito bem construído você nem sente quando a história acaba. A linguagem é acessível e mesmo os termos técnicos e históricos não atrapalham o entendimento geral da narrativa, deixa apenas o leitor na curiosidade para saber o que é um jarl (“título usado na Era Viquingue e no início da Idade Média para designar o governador de uma região relativamente grande ou o braço-direito de um rei”)[5] ou um thane (título dado a um oficial do rei local)[6].

Os personagens são construídos conforme suas características e valores, mas como o objetivo da trama é fazer emergir o que está oculto bem poucos são os personagens planos, o que se destaca são os personagens que evoluem com a trama e se transformam. O principal deles é Brian, um dos principais competidores do torneio e que ao longo da história mostra muitas de suas facetas. Isso torna interessante a narrativa e instigante, porque os personagens deixam de ser previsíveis, e ainda que o desfecho da história o seja, não sabemos por quais caminhos a história passará antes de desembocar no resultado que o leitor espera.

A edição é muito semelhante ao livro Anna e a Trilha Secreta e possui o mesmo desenho gráfico e diagramação. O livro é também ilustrado com os desenhos de Ericksama que além de bonitos são também delicados.

Novamente o que mais gostei em Orlando e o Escudo da Coragem é o que costumo gostar e me atrair na obra de Merege: os temas, cenários e a escrita aconchegante e gostosa de se ler. Não vejo pontos fracos em uma trama que foi pensado para o público infantil. Há alguns clichês e o uso de fórmulas já clássicas, mas isso é tudo e está totalmente condizente com o gênero e com o público a que o livro está dirigido. Ainda assim, Merege se sobressai com o seu talento e originalidade nos seus pontos mais fortes. Seus propósitos são claros: divertir, encantar e ensinar, e essas metas o livro cumpre com maestria.

A edição lida é da Editora Draco, do ano de 2018 e possui 100 páginas.

Sobre a autora

Nascida em 1969, na cidade do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Merege é romancista e bibliotecária. Possui mestrado em Ciência da Informação, pelo IBICT/UFRJ-ECO, tendo defendido, em 1999, sua dissertação intitulada O livro impresso: trajetória e contemporaneidade. É também formada em Biblioteconomia pela UNIRIO e, desde 1996, trabalha no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional, onde atua no trabalho com material original, fontes primárias, identificação de documentos e organização de exposições.

Seu primeiro romance publicado, O Caçador (2009), foi também o primeiro do gênero fantasia escrito pela autora que desde então vem se dedicando a organização de diversas coletâneas do gênero, além de contos e romances. Suas principais obras estão ligadas ao universo de Athelgard, criado pela escritora para ambientar sua mais recente trilogia que se inicia com o romance O Castelo das Águias e ganha sequência com os livros A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar, todos publicados pela editora paulista Draco.

Com vasta experiência com manuscritos e forte interesse pela história do período medieval, Merege foi responsável ainda, na mesma editora, pela organização das coletâneas Excalibur: histórias de reis, magos e távolas redondas e Medieval: Contos de uma era fantástica, este último em parceria com o escritor brasileiro Eduardo Kasse.

A escritora ainda ministra cursos e palestras em instituições e escolas.




[1] Título dado a um oficial do rei local (Wikipédia).
[2] https://blog.editoradraco.com/2018/07/como-escrevi-orlando-e-o-escudo-da-coragem/
[3] Enciclopédia Delta Júnior
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Torneio_medieval
[5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Jarl
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Thane_(Scotland)


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