domingo, 5 de julho de 2020

A Espada que dá Vida – Yagyu Munenori – Resenha


Por Eric Silva
11 de abril de 2020

“Se os pensamentos estão dentro, suas tintas serão manifestadas fora”
(Yagyu Munenori)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Um tratado de esgrima, um texto clássico do zen-budismo e lições de vida, A Espada que dá Vida do espadachim japonês que viveu ativamente as primeiras décadas do xogunato Tokugawa, Yagyu Munenori, é um livro por sua filosofia desafiante, mas, ao mesmo tempo, repleto de valiosas reflexões sobre a mente humana.

Sinopse do livro

Espadachim e mestre de artes maciais fundador do ramo Yagyū Shinkage-ryu de Edo[1], Yagyu Munenori é considerado como o maior rival de Musashi, outro famoso espadachim japonês, ainda que nunca o tenha conhecido pessoalmente. Retentor direto da casa Tokugawa, e instrutor de espadas de três gerações sucessivas de xoguns: Ieyasu, Hidetada e Iemitsu. Contudo, mais do que um instrutor de artes marciais, Yagyu, foi também um importante conselheiro do xogunato Tokugawa e uma figura influente na vida do terceiro xogum, Iemitsu.

Na arte da espada, Yagyu foi um mestre de grande respeito e fama, tendo aperfeiçoado o estilo de espada de seu clã ao introduzir nele uma série de ideias e conceitos do zen-budismo. A Espada que dá Vida (Heihō kadensho – 兵法家伝書)[2] é o tratado de Yagyu através do qual ele passou às gerações seguintes de seu clã toda a filosofia de seu estilo de espada, uma reflexão sobre a Não Espada.

O tema central dessa obra, que ainda hoje é considerada como um texto clássico do zen, é a arte de utilizar a espada mais como instrumento de vida do que de morte, através de um controle sobre o oponente por meio da preparação espiritual para lutar, muito mais do que pela luta propriamente dita. Trata-se de um livro de estratégia que leva o seu leitor a refletir como vencer uma batalha sem necessariamente usar força ostensiva e evitando perda para todas as partes envolvidas. Um livro que extrapola o universo da esgrima, ainda que este seja seu tema central.

Resenha

Detalhe dos suportes (koshirae) para um par de espadas (daishō), período Edo.
Autor: Marie-Lan Nguyen. Wikimedia Commons.
Comecei a ler esse livro por conta de um aluno novo que ao saber da minha opção religiosa me pediu que lesse esse importante texto do kendō (剣道), arte marcial praticada por ele, mas que também é considerado um texto clássico da literatura zen, fortemente influenciado pelo pensamento do monge Takuan Soho, que era amigo próximo de Munenori. Por conta disso, A Espada que dá vida nos apresenta uma série de ideias filosóficas aplicáveis em muitos aspectos da vida cotidiana. Princípios que pode ser utilizado no convívio social, bem como nos negócios. Isso se deve porque a ideia central desse texto não é unicamente ensinar técnicas de manuseio da espada, mas ensinar um estilo de espada que considera que não é a derrotar o oponente a maior vitória que você pode conquistar, mas torná-lo seu parceiro, evitando o conflito.

Escrito no século XVII, A Espada que dá Vida, foi concebido em plena era de domínio do Xogunato Tokugawa, o Período Edo. Nessa época, o Japão vivia um momento político marcado tanto pelo forte isolamento político-econômico do país, como pelo controle rígido exercido pelos xoguns[3], generais que comandava o exército imperial, mas que a partir do século XII, haviam se tornado governantes de facto de todo o país[4].

Durante o período Edo, o Japão foi governado pelos xoguns da família Tokugawa, da qual foram membros Ieyasu, Hidetada e Iemitsu, os três primeiros xoguns da linhagem que governaria as terras nipônicas de 1603 até 1868. Foi durante o governo dos primeiros três xoguns que Yagyu Munenori (1571 – 1646) viveu grande parte de sua vida, e foi ao lado deles que o espadachim fez seu nome na história das artes marciais japonesas.

Yagyu era filho caçula de um espadachim de renome e aristocrata de um vale em Yamato[5], Yagyu Sekishusai Muneyoshi, e herdou deste os segredos de seu estilo de espadas, o Shinkage-ryu. Em certa ocasião, o futuro xogum, Ieyasu, convidou Sekishusai para visitá-lo em sua vila de Takagamine, fora da capital. Ieyasu queria conhecer a famosa técnica de Sekishusai de derrotar um homem armado usando apenas as mãos livres – a técnica da Não Espada.

Sekishusai foi ao encontro de Ieyasu acompanhado de Munenori, na ocasião com 22 anos, e lá explicaram ao xogum os princípios do Shinkage-ryu e o demostraram numa luta entre Sekishusai e Ieyasu.

Impressionado, Ieyasu pediu que o velho mestre se tornasse seu instrutor pessoal. Recusando educadamente, Sekishusai declarou que tinha uma idade já avançada e recomendou seu filho para o posto oferecido. Foi desse modo, que Munenori tornou-se instrutor de três xoguns da casa de Tokugawa, passando a ter também, com o tempo, uma forte influência política dentro do xogunato como conselheiro de Iemitsu, neto de Ieyasu. 

Por volta de 1632, Munenori concluiu o Heihō kadensho (A Espada que dá Vida), livro no qual ensinaria a prática da espada Shinkage-ryu e como seus princípios poderia ser aplicado em um nível macro à vida e também à política[6].

Filosofia, zen-budismo e artes marciais

Monge zen-budista japonês da escola Soto em meditação.
Autor: Marubatsu. Wikimedia Commons.
A Espada que dá vida é um livro difícil de descrever – tanto quanto está sendo complicado resenhá-lo. Essa dificuldade nasce porque ele não é só um livro de artes marciais, é também um livro de estratégia. Contudo além de um livro de estratégia, ele é também uma obra que mergulha na tradição zen, e como tal é repleto de ideias sofisticadas oriunda de uma filosofia cuja compreensão e aplicação podem ser muitas vezes bastante complexo, ainda que tudo pareça ser muito simples. Se não bastasse, além do zen, o livro também tem fortes influências confucionistas[7].

Sou zen-budista, e como tal posso atestar que a simplicidade do zen e de sua prática meditativa, o zazen, são apenas a superfície de um lago profundo no qual repousam conceitos que em certos momentos parecem muito simples de compreender, mas, em outros, parece flertar com o paradoxal porque exige de você enxergar além do aparente (muito além). A Espada que dá Vida é assim também, e lê-lo é um convite a meditar cada ideia antes de prosseguir com a leitura, o que desacelera bastante o ritmo desta leitura.

O zen é uma tradição religiosa associada ao Budismo do ramo mahayana, que foca, sobretudo, na prática, no zazen, ou seja, em sentar-se em meditação (em zen), acalmar a mente, e, nas palavras de Rodrigo Daien, “existir, ser uno com todas as coisas, ouvir os sons sem julgá-los, não fazer cogitações ou viagens para passado ou futuro”[8]. Parece simples, entretanto não é.
Mas como em toda tradição religiosa, há uma filosofia complexa que da base ao Zen: os ensinamentos do Dharma, a lei verdadeira ensinada pelo Buda histórico, Shakyamuni, ou Sidarta Gautama.

Após atingir a iluminação, o próprio Shakyamuni Buda buscava ensinar as quatro nobres verdades sobre o sofrimento de maneiras muito diversas, indo das formas mais simplificadas, às mais complexas, para que independente do grau de conhecimento e instrução de cada um, todos pudessem entender a mensagem do Dharma. Logo, apesar de muito evidentes, muitos ensinamentos de Buda podem ser dificílimos de compreender à primeira vista. Um livro que bebe dessa tradição, inevitavelmente, fará emergir algumas coisas bem complexas.

Mesmo para mim, que tenho uma certa familiaridade com o Zen e com o budismo (dentro do nível mais básico que um recém-convertido pode ter), houve momentos que ler A Espada que dá Vida foi ficar perdido com conceitos abstratos de uma filosofia muito diferente da nossa, mas que fala de nós e do nosso mundo com imensa precisão. Por diversas vezes prossegui na leitura em meio a névoas até alcançar um novo ponto onde as coisas voltassem a ser compreensivas no todo, mas é inegável que as palavras de Munenori, em vários momentos, têm um peso imenso e uma profundidade arrepiante.

O livro original é dividindo em três partes, nas quais Munenori vai mesclando as técnicas do Shinkage-ryu com a filosofia zen e as ideias confucionistas. No entanto, a edição lida também contém um longo prefácio (intitulado aqui como introdução), no qual o editor da tradução inglesa, William Scott Wilson, faz um apanhado geral da trajetória de vida de Munenori e das origens do estilo de espada por ele herdada e aperfeiçoada.

O primeiro capítulo, “A Ponte do Sapato de Presente”, é o menor dos três e apresenta as técnicas fundamentais do estilo, bem como orienta seu treinamento. Além disso, esse capítulo aborda a importância da estratégia criada “ainda dentro dos limites do nosso território”, tendo o inimigo ainda longe, e também de entender nas artes márcias “os limites do território são a nossa mente”. Uma mente que deve ser livre de negligências e observadora dos movimentos e atividades do oponente, buscando falhas e planejando estratégias.

A parte seguinte, “A Espada que Traz Morte”, fala das estratégias e da postura a ser adotada pelo aprendiz do Shinkage-ryu, enfatiza o aspecto técnico mas dá um grande destaque ao aspecto mental, falando sobre o ch’i, a intensão, a ilusão como base das artes marciais, sobre a essência do atacar e do aguardar, assim como a relação entre a mente e os ritmos na luta.

Um ponto muito interessante deste capítulo é quando o livro trata do que Munenori chama de doença nas artes marciais.

Nas palavras de Munenori, pensar apenas em vitória ou em só usar as artes marcais, ou em demonstrar resultados nas mesmas é doença, e nos ensina a usar o pensamento para atingir o não pensar e usar a conexão para desconectar. Confusão, não? Mas trata-se de usar o pensamento para expulsar o mal, expulsar pensamentos usando pensamentos, e que leva ao não pensar. Me farei mais claro.

Imagine uma situação onde você se encontra dominado por pensamentos obsessivos relacionados a algo ou alguém. Uma frustração, uma insatisfação, uma dor. Sua mente está inquieta, dispersa, e você, doente. Mas através de outros pensamentos, de outra coisa que tome sua atenção e ocupe passageiramente sua mente você se libertará, tanto dos pensamentos obsessivos quanto daqueles que os substituíram, e alcançará o não pensar.

Nas artes marciais, quando você está obcecado pela vitória, a derrota pode ser a única realidade que você conhecerá, por isso, o não pensar te traz ao equilíbrio necessário para estar atento ao seu oponente e a sua própria espada e seu próprio corpo. A mente se equilibra, e ela é a senhora de seu corpo. Isso vale para a vida também.

Finalmente, em “A Espada que dá Vida”, é explorada a ideia da “não-espada” citada no começo da resenha e que foi demonstrada ao xogum. Além disso, o capítulo fala sobre como usar a distância na luta com espadas, posicionamentos a serem adotados, da importância de que a mente jamais fique parada numa ação já ocorrida. Além disso, outros conceitos filosóficos zen-budistas são discutidos como o conceito de apego, da existência e da não-existência, do falso vazio e do verdadeiro vazio, do potencial e da função e outras discussões sobre a mente e o corpo.

Enfim, A Espada que dá Vida é um livro que será muito interessante àqueles que praticam artes marciais, porque, mais do que ensinar técnicas de esgrima, a obra ensinará sobre a vida e como vivê-la de forma a evitar conflitos desnecessários. Para os budistas, será uma fonte de mais alguns ensinamentos. Já para os demais, ela também será uma fonte de conhecimento sobre a história de alguns importantes personagens da história do Japão. Ainda assim, pode ser uma leitura difícil e em vários momentos exaustiva. Eu mesmo tive muitas dificuldades de concentração e de prosseguir a leitura toda vez que me deparava com algum pensamento mais complexo. Foram 52 dias de leitura – ressaltando que meu trabalho também influiu no atraso da leitura.

Ademais, acrescento que a tradução é impecável e o texto original de Yagyu é conciso. A introdução achei excessivamente longa. Por fim, a edição tem uma capa muito elegante e foi produzida em papel em tom amarelado.

A edição lida é da Editora Cultrix, do ano de 2013 e possui 184 páginas.




[1]https://institutoguanyu.wordpress.com/2015/06/02/yagyu-munenori/
[2]https://en.wikipedia.org/wiki/A_Hereditary_Book_on_the_Art_of_War
[3]https://pt.wikipedia.org/wiki/Per%C3%ADodo_Edo
[4]https://pt.wikipedia.org/wiki/Xogum
[5]O texto não deixa claro se Yamato seria alguma das muitas cidades japonesas com esse nome ou se faz referência a antiga Província de Yamato, que atualmente corresponde à atual prefeitura de Nara em Honshū.
[6]https://en.wikipedia.org/wiki/Yagy%C5%AB_Munenori
[7]Referente às ideias de Confúcio (孔子551 a.C. – 479 a.C.), pensador e filósofo chinês do Período das Primaveras e Outonos. (Wikipédia)
[8]https://sobrebudismo.com.br/o-zen-e-enganadoramente-simples/

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