domingo, 14 de junho de 2020

[Novos Escritores] Os Cinco do Ciclo – Elias Flamel – Resenha

Por Eric Silva para a Tag Novos Escritores

27 de maio de 2020

“Não se pode esquecer dos homens simples que, mesmo sendo fracos, decidiram defender suas terras e seus deuses.”

(Os Cinco do Ciclo – Elias Flamel)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Capa da edição lida. A edição é resultado de uma
produção independente.
Reflexivo, introspectivo, contemplativo, este é o livro do brasileiro Elias Flamel, um romance extremamente difícil de classificar, porque se equilibra entre dois mundos, o da literatura como entretenimento e o da literatura como expressão da natureza humana.

Sinopse

Keltoi é um pequeno e pacífico vilarejo agrícola nos confins do império Numitor, “que cresce pouco e é alimentado pela rotina”, mas que vive seus dias tranquilos sob a proteção dos cinco deuses do Ciclo e sob a gerência benevolente de seu líder, Yosef, um homem tão devotado a felicidade de sua vila quanto ao amor que possui por sua família ou à devoção que tem pelos deuses.

Todos os anos é ele o responsável por entregar, na capital do império, o pesado imposto, pago em centeio, que Numitor lhe exige, mas nada o faz se acostumar com a capital e suas contradições, com a arrogância do império ou com o fato de que grande parte do esforço de sua vila alimenta a enormidade de uma nação de corruptos, assassinos e preguiçosos. Mas diante da força do maior império do mundo, Yosef prefere submeter-se a pôr em risco sua família e seu povo.

Fora seus deveres como líder de Keltoi, a vida de Yosef é pacata enquanto envelhece ao lado da mulher, Morgiana, de seu caçula, Julian, do sério Hitalo, o primogênito, do despreocupado Yohan, o filho que mais lhe causa preocupação, e da velha Guilda, que com tanto amor cuidou dele e agora cuida também de sua família. Mas há algo que o preocupa, que o inquieta e não o abandona, porque se prenuncia em todos os lugares e em todas as bocas: os ventos da mudança.

É com essa inquietação que Yosef chega a capital do império para entregar mais um carregamento de seu precioso centeio e é também lá que ele ouve boatos sobre uma nova ameaça que não só coloca em risco o seu povo, mas a sua cultura e crenças: uma nova religião, monoteísta e conduzida por fanáticos que ameaçam a vida daqueles que consideram pagãos. E com a urgência de manter protegido tudo que ama, ele se vê no difícil desafio de buscar ajuda no seio daquele que mais o enoja: o poderoso Império de Numitor.

Resenha

Quando Flamel me convidou para ler seu livro e opinar sobre esta longa narrativa, imaginei que encontraria ali uma saga ao estilo fantasy, cheio de cenas dantescas, batalhas épicas, criaturas improváveis e muitos desafios no caminho de um protagonista que tem uma missão preciosa e perigosa a cumprir. Mas me enganei completamente.

O que eu tinha na tela do meu tablet não era o livro que imaginei, mas outro, um romance extremamente difícil de classificar, porque se equilibra entre dois mundos, o da literatura como entretenimento e o da literatura como arte que versa sobre a vida e a natureza humana.

Reflexivo, introspectivo, contemplativo, escrito com uma qualidade narrativa acima da média, num estilo de escrita que parece morrer frente ao imediatismo e superficialismo de nossos tempos, que atinge as novas gerações de leitores, me atinge (não me excluirei), e a tantos outros. Uma forma de contar histórias que parece flertar com alguns estilos comuns à literatura mais clássica e menos comercial.

Mas vamos ao livro.

O medo da mudança e liberdade religiosa

Os Cinco do Ciclo é daquelas obras que o livro e o personagem principal são uma coisa só. Ele é a própria narrativa, porque não nos deixa espaço para contemplar o mundo por outra janela que não seja a do seu próprio olhar. Isso, obviamente, é característica fundante dos romances escritos em primeira pessoa, mas nem sempre um livro escrito neste foco narrativo tem um narrador que se preocupe tanto em expressar, nos mínimos detalhes, suas próprias emoções e opiniões sobre o que vê, e que acabe por dominar completamente o ritmo em que a narrativa vai seguir como é o caso de Yosef, líder de Keltoi. Sua alma envelhecida e cansada, o seu olhar sempre tão alongado, contemplativo e introspectivo, domina toda a peça e dita o ritmo.

O líder de Keltoi é um homem digno e respeitável, fascinado pelos livros e que ama com intensidade seu povo e se dedica para garantir o bem-estar dos mesmos, ainda que para isso faça enormes sacrifícios pessoais e carregue sozinho o peso de um passado do qual não se orgulha.

Yosef é também um homem muito observador e reflexivo. Influenciado pela sua fé e pelos livros que lê e valoriza enormemente, o velho líder tem um olhar afiado que observa o mundo com curiosidade e sobre o qual tece reflexões longas e desapressadas. Pouca coisa escapa desse olhar afiado que a tudo observa e processa compondo o mosaico do mundo e das muitas pessoas e realidades que surgem em seu caminho. O mundo parece caminhar devagar enquanto Yosef o observa e descreve e essa natureza observadora, que dita o ritmo lento da narrativa, lhe dá um certo caráter de romance filosófico.

Por ser uma pessoa íntegra e dedicada, Yosef exige de sua família os mesmos valores, por isso sua convivência com o filho mais extrovertido e relaxado, Yohan, quase nunca é fácil e as comparações com o primogênito extremamente responsável são invitáveis. Ainda assim, ambos os filhos desejam, cada um ao seu modo, honrar e conquistar o respeito e aprovação do pai.

Por sua vez, a seriedade que o líder de Keltoi demonstra é a daqueles que tem uma grande responsabilidade, mas que confia que há forças superiores que o guiam, e que sempre o permitiram prosseguir com sua missão, por isso, a fé que Yosef deposita em seus deuses é imensa e sólida. Pelo mesmo motivo, ainda que admire a seriedade solene e grave de seu filho mais velho, Hitalo, Yosef não a toma para si em mesma medida e se permite seus momentos de tranquilidade, bom humor e relaxamento, ainda que nunca se esqueça por completo de seus problemas e preocupações.

Sobre a gerência desse homem amigo de todos, honesto, generoso e compassivo, Keltoi não é a vila mais rica, mas segue prosperando e feliz. E a história do livro de fato começa quando este homem tão arraigado às tradições, a sua terra, seu povo e suas crenças, se dá conta de que o mundo para além do que ele conhece, sempre fechado em sua bolha, está em uma rápida e violenta mudança e que essa mudança ameaça transformar e destruir tudo o que ele conhece. Por isso, digo que Os Cinco do Ciclo é também um livro sobre o medo da mudança.

[Citação]

“[...]. Mudança, meu amigo. Essa palavra está na boca daqueles que amo. Querem que eu a veja, dizem até que ela me cerca e isto me preocupa.”

Falando de minha própria crença religiosa, nós budistas acreditamos que nada é eterno ou premente, mas que tudo nesse universo é feito de impermanência, nós e tudo ao nosso redor estamos sempre em ininterrupta mudança. Desse modo, um estado de vida que hoje existe nunca será permanente e dará lugar a outro, e devemos aceitar essa mudança. O mesmo não se dá com Yosef, que meio cego – apesar de tão lúcido (eis aí uma contradição) – parece alheio as mudanças, ou tem, no início, uma posição “negacionista”. Acho que de tão fechado em seu mundo – que quase se resume a Keltoi – ele não pode notar o começo de um novo ciclo, e acabou não tendo o alcance de visão que outros demonstravam. Por isso, a mudança se impõe violentamente e sua ameaça obriga-o a mover-se na esperança de conservar o que ele conhece.

O livro de Flamel, por sua vez, parece querer nos ensinar que a mudança é algo que sempre vem, que se move independente da vontade contrária dos homens, mas que, contraditoriamente, também pode ser acelerada pelas ações humanas. Mesmo os impérios mais poderosos estão sujeitos aos caprichos da mudança e devem se adaptar ou sucumbir aos seus efeitos.

Vivemos hoje um momento assim, no qual um surto viral tomou proporções tais que força governos, o mercado e a sociedade civil a repensarem o mundo e como as pessoas vivem suas vidas. A mudança chegou a galope e pegou a todos desprevenidos. O mundo voltara a ser o mesmo? Provavelmente não.

Mas para qualquer mudança que se abate sobre o mundo, os impactos não excluem o campo da cultura, sobretudo quando se vive em um mundo violento como o de Yosef, no qual os mais poderosos impõem os seus desejos pela força e pela manipulação política. Tomando isso por base, Os Cinco do Ciclo aborda uma realidade muito comum no passado humano: se uma nova religião estende sua influência até aqueles que governam com tirania, as consequências sobre os que não compartilham da mesma fé costumam ser desastrosos (imposições e perseguições, ou seja, violência física e simbólica). É o que o líder de Keltoi teme quando finalmente a mudança fica evidente aos seus olhos.

Todavia o tema de Os Cinco do Ciclo está longe de ser desatualizado, pelo contrário, nos tempos atuais a falta de liberdade religiosa e conflitos de cunho religioso são realidades comuns para dezenas de povos, atingindo, sobretudo, grupos minoritários como o povo de Keltoi. A imposição brutal pelo grupo Estado Islâmico da Sharia, código religioso que regula a vida privada e civil[1], o conflito entre budistas e muçulmanos na Tailândia, entre muçulmanos e não-muçulmanos no Sudão, de xiitas e sunitas no Iraque, e tantos outros de grande ou pequena projeção internacional evidenciam a atualidade do livro de Flamel, que, através de um narrador-personagem politeísta, tenta exprimir o medo ao qual as minorias são impostas quando suas tradições são ameaçadas pelas diferenças religiosas com outros povos.

Diante da iminência de que uma profunda mudança religiosa no império ameace a sobrevivência de seu povo, o líder de Keltoi resolve lutar com as ferramentas que possui, mas toma para si uma tarefa tal qual a de Sísifo, personagens da mitologia grega citada pelo próprio Yosef.

Sísifo era um mortal, filho do rei Éolo, da Tessália, que foi condenado no Reino de Hades a empurrar para o alto de uma montanha uma pedra imensa, mas que logo depois de todo o esforço do rapaz, sempre rolava montanha baixo, forçando Sísifo a repetir seu esforço inútil.  Essa é a melhor analogia que se pode fazer em relação a tarefa a que Yosef se propõe com determinação: rolar uma pedra montanha acima, uma vez que ele tentará lutar contra algo contra o qual aparentemente não tem poder para mudar.

Numitor: uma releitura do Império Romano

Se por um lado, a questão religiosa é o tema que mobiliza o velho Yosef, outro tema é bastante destacado pelo narrador: a subjugação de um povo por outro, com a subsequente tirania e exploração aos quais os povos são submetidos para sustentar a elite da nação dominante. O povo de Keltoi é um desses povos subjugados e obrigados a sustentar com o seu suor uma nação estrangeira, distante, mas poderosa o bastante para fazer valer a sua vontade pela força e pela coerção.

Para ambientar Os Cinco do Ciclo Flamel não cria exatamente um mundo alternativo e fictício, mas adapta uma época da história humana no qual um povo guerreiro e de exércitos poderosos construiu pela guerra um dos maiores impérios da Terra: o Império Romano.

Na história da Idade Antiga, Roma é particularmente conhecida por ter deixado de ser uma vila empobrecida da península itálica e ter estendido seu domínio por uma vasta extensão de terra, colocando sob seu julgo centenas de povos, até o ponto de ser conhecido como um dos maiores e mais duradores impérios da História. Entretanto, Roma é igualmente lembrada por sua política corrupta, cheia de traições, golpes, e pelos muitos regentes vaidosos, inescrupulosos e genocidas que a governaram ao lado ou contra o Senado.  Contudo, em Os Cinco do Ciclo Roma não é Roma, é Romula, e o Império Romano tem outro nome, Numitor, que na mitologia romana, foi rei destituído do trono de Alba Longa e avô dos gêmeos que fundaram a Roma real.

Maquete da cidade de Roma durante o governo de Constantino (306-337)

Flamel faz uma releitura do poder, política e cultura romana, recontando, inclusive, uma das versões do mito de Rômulo e Remo, e desse modo cria seu próprio império dominador dos quatro cantos do mundo sem obrigatoriamente se atrelar a nomes reais e fatos históricos datados. Uma saída inteligente, porque o desobrigou de ter que envolver na sua narrativa a complicada tessitura histórica, repleta de personagens e de ações muito bem datadas do Império Romano, o que só tornariam mais complicada a narrativa e engessaria o seu desenvolvimento. Mas é fato que a política e o poder do exército e do senado romano está ali retratado sob o nome de Numitor. Egípcios, gregos e nórdicos também são citados como povos que foram subjugados pelo poder do império, e a incorporação do cristianismo ao império (que obviamente não recebe esse nome na narrativa) é também retratada.

Mas um fato que, particularmente, me chamou a atenção foi a opção do autor de não retratar a capital do império como um lugar suntuoso como nunca visto em outro ponto do mundo antigo, mas como era de fato a Roma real: uma grande cidade, cheia de riquezas e de vida comercial, mas também de pobreza, e assaltantes. Um lugar onde a riqueza proeminente contrasta com a horda de mendicantes morrendo de fome, mas cuja miséria é ignorada pela multidão. Senti falta apenas do pão e circo[2].

Tomando essa releitura como cenário, o autor se dedica a demonstrar a opressão e descaso do império em relação aos seus súditos e dominados através do olhar de Yosef. O líder de Keltoi, com sua mente lúcida e observadora vai pouco a pouco nos mostrando a injustiça de um império que não deseja mais nada do que expandir o seu poder e explorar ao máximo os povos que vivem dentro dos seus domínios, sendo indiferente as necessidades e dificuldades dos mesmos.

Aponta também como cada povo tem que entregar uma grande parcela dos frutos da terra que produz, como os impostos aumentam a cada ano, e como são tratados com indiferença e até desprezo pelos representantes do Estado. E vai além quando desnuda a corrupção, os jogos políticos e de aparência e a boçalidade e pompa dos dirigentes de Numitor, tecendo uma crítica a como determinadas classes sociais dirigentes vivem e legislam na opulência e cercados de ritos sem sentidos às custas do suor da população empobrecida, que por meio da opressão e coerção se vêm obrigados a contribuir com impostos pesados, sem, no entanto, receber em retorno o que lhe é legítimo por parte daqueles que governam. Como eu disse, um livro atual.

Em lento e contemplativo compasso: sobre o ritmo e o estilo

Contudo, se Os Cinco do Ciclo trata de um tema atual e se inspira na empolgante história de um dos mais famosos impérios da antiguidade. Por outro lado, o seu lento desenvolvimento foi algo que me aborreceu bastante durante a leitura que intercalei com outros quatro livros, todos concluídos antes de terminar Os Cinco do Ciclo.

Por ser muito detalhista e contemplativo, Yosef analisa o mundo num ritmo que é só dele e acaba por ditar o ritmo do próprio livro que conta com 556 páginas, sem que haja grande dinamismo em sua maior parte. Mas a verdade é que para entender porque Os Cinco do Ciclo é um livro de extensão tão grande, mas com desenvolvimento tão lento, é preciso entender o próprio estilo do autor.

Flamel é um autor que escreve bem e com uma fluidez que, normalmente, só é encontrada nos escritores mais experimentados. Não há nele uma preocupação com o imediatismo, com que as coisas fluam rapidamente para um clímax, porque prefere trabalhar profundamente a complexidade da personalidade de seu narrador.

Neste livro ele opta por desenvolver uma obra que se inclina para o filosófico, para a reflexão do personagem-narrador acerca de seu mundo, sobre como nele funciona a vida, sobretudo a vida cotidiana. Para tanto ele desenvolve um personagem nostálgico e que beira ao poético, extremamente descritivo, atento aos detalhes e compassos, intuitivo até, e que apesar de parecer absorto em seus pensamentos, na verdade está atento aos movimentos da vida, às expressões, aos sons, aos ritmos.

O autor também gosta de sobrepor na linha de desenvolvimento da história o presente e o passado e por diversas vezes faz com que seus personagens contem suas histórias para o protagonista escutá-las com atenção, ou dá espaço as memórias do passado do próprio Yosef. Por conta disso, alguns diálogos são arrastados e algumas histórias simples chegam a ser contadas sem objetividade. Mas também não se pode deixar de mencionar que o livro é povoado por muitos monólogos interiores do narrador. E é nesses aspectos que Os Cinco do Ciclo testou minha paciência.

Em minha visão de mundo, considero que ler é algo que exige esforço, é diferente de assistir a um filme, no qual as cenas já prontas passam em seu próprio ritmo indiferente se nossa compreensão segue com o mesmo compasso.

Ler exige esforço do leitor que precisa se acomodar, experimentar uma boa luz em uma posição confortável e exigir de seus olhos que leia e da sua mente que imagine, até que texto e imaginação fundam-se numa coisa só. Por conta disso, leitura e mente devem estar em perfeito compasso. No entanto, se o desenvolvimento da narrativa se arrasta, junto com diálogos igualmente arrastados, o resultado é desastroso, porque a mente não espera e passa a vaguear indo para direções opostas a leitura. Foi assim que me senti lendo Os Cinco do Ciclo e acabei lançando mão de um recurso que não gosto de utilizar: o autoestímulo.

As vezes quando uma leitura não está dando certo ou eu estou me amarrando para prosseguir com ela, leio o epílogo ou as últimas páginas do capítulo final, para ter um lapso fragmentado do desfecho, mas somente até um ponto em que continue impossível a compreensão de como a história chegou aquele ponto. As vezes leio as páginas de trás para frente, e quando vejo que é informação demais, paro. Isso cria artificialmente um interesse em mim de entender aquelas páginas dispersas e retomar a leitura se torna mais fácil.

Isso significaria que Os Cinco do Ciclo é um livro ruim e sem qualidade? De forma alguma.

Flamel tem muito talento para a narração, é detalhista sobretudo na construção de seus personagens e sua escrita é fluida e muito bem estruturada. Se eu fosse comparar Os Cinco do Ciclo a algum livro que já tenha lido, o compararia, talvez com um livro intimista de um grande escritor, a exemplo de Histórias da outra margem clássico da literatura japonesa escrito por Nagai Kafu, mas principalmente ao livro O tigre na sombra, de Lya Luft, ambos com coincidentes 128 páginas.


Esses são os estilos mais aproximados ao de Flamel, levando em consideração apenas livros que já li. Ambos são livros cheios de monólogos interiores, extremamente voltados para seus narradores, para as percepções que os mesmos têm do momento, da vida, dos lugares e do passado. Mas com algumas diferenças cruciais em relação a obra de Flamel: são narrativas baseadas na vida cotidiana simples e puramente, sem criar um mundo para ambientá-las e que precise ser descrito para fazer sentido, e, principalmente, são livros desenvolvidos em narrativas rápidas, a fim de que não se perca o frescor do personagem-narrador que por si só é a principal razão do leitor ler a obra. Digo isso, porque do meu ponto de vista, Dôda, de Lya Luft, e Tadasu Oe, de Nagai Kafu, são as razões desses dois livros existirem, porque os mesmos são lidos não pela narrativa, mas pelo personagem que é foco, centro e praticamente único tema da história. São obras intimistas com personagens voltados para si, vendo o mundo sob sua ótica, contando fragmentos de seu cotidiano, obras que se fossem maiores do que são, seriam extremamente enfadonhas para o leitor médio de nosso tempo.

Outro livro a que Os Cinco do Ciclo me remete é Naufrágios, obra de outro japonês, Akira Yoshimura. Esse é também um livro que tem ritmo muito próprio, que não tenciona acelerar a narrativa porque o tempo não é acelerado na realidade; segue o compasso e o ritmo da natureza. Fala também da sobrevivência de uma pequena comunidade, mas no caso, trata-se de aspectos de subsistência puramente. Todavia, mais que isso, é um livro bastante descritivo como o de Flamel. Há nele a preocupação quase obsessiva de descrever a vida cotidiana, a cultura e as dificuldades da pequena sociedade, fazendo com que a história em si se preocupe mais com descrever o movimento da vida (e no caso do japonês também da morte) do que contar uma história que prenda seu leitor seja pela força da curiosidade ou pela adrenalina da ação.  

Naufrágios é um livro que segue o compasso
 e o ritmo da natureza

O que quero dizer com essas comparações é que Flamel não escreve um livro comercial, cinematográfico, repleto de clichês e fórmulas manjadas, mas que conquistaria facilmente o leitor médio, aquele que está mais interessado no entretenimento do que no lado humanista da literatura. Não que o cinematográfico falte ao livro. Ele está lá, em muitas cenas, no naufrágio do navio, nos sonhos com os deuses do ciclo, no desfecho da narrativa. Mas o principal do livro flerta com outro tipo de literatura, mais clássica, mais preocupada em desnudar questões existenciais, humanas, e encarem isso como um elogio, porque o é.

Tamanha é essa suposta despreocupação de escrever um livro comercial que não sei em que gênero enquadro o livro de Flamel, porque ele pode até parecer pela sinopse como uma espécie de fantasy, mas sua narrativa não tem elementos mágicos ou sobrenaturais que justifique essa classificação, além disso, o enredo poderia facilmente se passar pelo relato de fatos reais acontecidos em qualquer lugar da Europa entre o fim da Idade Antiga e o início da Idade Média.

Seria este um livro existencialista? Não sei dizer. Um personagem obrigado a sair de sua zona de conforto e do mundo por ele conhecido que precisa encarar a mudança me faz lembrar vagamente o estilo. Mas a despeito disso, é um livro que beira muito o realista, não em relação a harmonia um tanto idealizada da aldeia, mas com relação a todo o resto, da descrição daquele mundo imperialista ao desfecho da narrativa. Além disso, é intimista, muito ligado a memória e profundamente imerso nos pensamentos, sensações, observações de seu personagem narrador. Um livro assim é difícil de colocar em uma caixinha, o que é estupendo, mas o desenvolvimento arrastado quebra parte do potencial da obra.

No passado, obras com a pegada de desenvolvimento lento e compassado costumavam ser longos e ainda assim fazerem muito sucesso, porque eram obras escritas para um público que vivia em um ritmo diferente do público atual. No passado, seguia-se uma cadência muito mais paciente, muito menos imediatista, um ritmo muito mais próximo do tempo da natureza, de seus CICLOS.

No entanto, nesse admirável mundo novo em que vivemos, um mundo globalizado ditado pela velocidade de trilhões de gigabytes correndo por fibra óptica superavançada, é muito difícil que um livro com o estilo de Flamel e com seu volume que passa das 500 páginas, consiga conquistar o seu público-alvo em geral impaciente e desejoso de emoções rasas, fáceis, ou de simplesmente viver momentos febris de emoções arrebatadoras, além de ansioso para ver um pouco de si no personagem que lê. Ainda assim, Flamel conseguiu uma nota bastante elevada no Skoob por Os Cinco do Ciclo, porque o livro evidencia seu talento indiscutível para a escrita e para a narração.

O autor brasileiro escreve bem e com esmero, mas, na minha opinião, peca por escrever um livro tão grande em um ritmo de desenvolvimento tão lento e com pouquíssimo dinamismo. Por isso, sigo com a opinião que, nos nossos tempos, onde há muita oferta de leitura e pouca paciência por parte de um grupo expressivo de leitores, o leitor espera de um livro extenso que a narrativa seja instigante e dinâmica o máximo de tempo possível, para que ele possa correr as páginas sem sentir, nem que já leu muito além do que pretendia, nem sentir o tempo que passou veloz como um corcel adentrando a madrugada fria.

Para finalizar, um ponto que não compreendi perfeitamente

Uma coisa que me intrigou bastante no livro de Flamel é o universo mitológico-religioso da crença seguida pelos habitantes de Keltoi. Vejo agora que talvez alguma coisa me escapou e não pude compreender por completo a crença defendida por Yosef e que baseia em uma certa “ciclicidade”.

Segundo o que entendi, o mundo seria governado por Destino (uma referência a inevitabilidade da repetição de um ciclo?), e por um conjunto de cinco deuses que compõem uma espécie de ciclo que dita a própria vida na Terra e que dão nome ao livro. Ao mesmo tempo, ao que me parece, para o povo de Keltoi ciclos são iniciados e interrompidos, são períodos de tempo, sinônimos para estações, o tempo de vida e também trajetórias seguidas por cada vida e pela própria natureza. Mas um trecho em especial me deixou confuso:

[Citação]

 “Cada escolha é um novo ciclo, cada ciclo é um novo mundo. Assim os Cinco do Ciclo aprenderam com Destino e nos ensinaram. Minha escolha já foi feita e um mundo se abre diante de mim."

No meu entendimento, uma filosofia que acredita em circularidade, acredita que tudo volta a um estágio inicial e novamente caminha por estágios anteriormente superados, porque círculos não bifurcam, se repetem.

Ciclos são repetições, como os ciclos na natureza, das estações e a da alternância entre vida e morte. É como acreditar em ouroboros, a serpente que morde a própria calda, e que representa movimento, continuidade, autofecundação e eterno retorno[3]. Essa ideia simples parece dominante na narrativa, mas esse trecho quebra a lógica, porque um novo ciclo não se abre para outro, é apenas repetição do mesmo ciclo, porém em uma outra época, com outras pessoas, mas é sempre repetição de situações similares. Uma ideia que vi ser construída com bastante lucidez em Naufrágios, o livro de Akira Yoshimura, que enfatiza o ciclo das estações e a constante repetição das atividades sazonais que garantia a sobrevivência dos personagens.

Por isso, esse ponto sobre a cresça de Keltoi me deixou um tanto confuso, porque, se escolher significa ter dois caminhos e abandonar um em favor de outro, como isso pode ser um ciclo? Já que repetição não significa ruptura, e ruptura significa abandonar, romper o ciclo. Em vários momentos a ideia de Flamel concorda com essa repetição, mas nessa passagem, a contradiz, por isso não ficou claro para mim. Então, como um bom resenhista perguntei diretamente a fonte e recebi uma explicação com a cara de Yosef:

“Sobre o ponto que te causou confusão. Os Cinco do Ciclo servem a Destino que controla todos os Ciclos. O que pensei com esses Ciclos? Vejo que muitas coisas se repetem no mundo: guerra, fome, revoluções, esperanças, catástrofes e etc. Apesar desses Ciclos se repetirem, eles nunca são os mesmos. As guerras do passado e do presente podem aparentar semelhanças, mas tem as suas diferenças e são travadas em mundos diferentes. A idade de bronze, a idade medieval e o mundo moderno repetem ciclos, mas são mundos diferentes. Para mim, um ciclo só se fecha quando há a completa destruição. Caso ela não ocorra, o ciclo vira aprendizado.

"Cada escolha é um novo ciclo, cada ciclo é um novo mundo".

Cada nova escolha pode gerar uma mudança, sendo assim, cada escolha pode influenciar em um novo ciclo. E, se influencia em novo ciclo, então influencia no mundo.

O fechar de um ciclo já marca o início do outro. E, esse outro ciclo, é influenciado pelo anterior. Não há repetição, há evolução. Assim Os Cinco do Ciclo aprenderam com Destino e ensinaram para o povo de Keltoi. Uma flor sempre vai crescer na terra, isso é um Ciclo. Porém, nunca vai crescer da mesma forma.”

Poético.

Mas, deixando os pormenores de lado, Os Cinco do Ciclo é um livro que nos apresenta um autor de qualidade que tem a sua frente o desafio de continuar refinando sua arte, definir por completo o seu estilo e conceber muitas obras de boa qualidade como esta. Digo que Os Cinco do Ciclo me causou impaciência pela sua extensão combinada ao ritmo lento e à narração detalhista, porque sou imediatista, ansioso e perco facilmente o interesse, infelizmente, mas isso faz parte da minha contradição como ser humano que ama filosofar, especular e se alongar em resenhas intermináveis, mas que não tem igual paciência para o alongar alheio.

A edição lida é uma produção independente, do ano de 2017 e possui 556 páginas. A continuação da obra se dá com o livro Herdeiro do Ciclo, outra produção independente, do ano de 2020 e que possui 708 páginas.

Sobre o autor

Sou Elias Flamel, tenho dois volumes publicados da saga do Ciclo na Amazon, sou pós-graduado em escrita criativa e análise literária pelo Instituto Vera Cruz e resenhista do site Leitor Cabuloso. Aficionado por mitologia, desde a grega até a africana, vejo genialidade em Hamlet e no Batman e confesso somente para os íntimos que ainda espero a carta de Hogwarts (no mundo bruxo existe tanta coruja destrambelhada).



[1]SOUSA, Bertone. Estado Islâmico, Sharia e a democracia (im)possível no Islã. Bertone Sousa, [s.l.], 2015. Disponível em: <https://bertonesousa.wordpress.com/2015/11/18/estado-islamico-sharia-e-a-democracia-impossivel-no-isla/>. Acesso em:

[2]Panem et circenses foi uma política desenvolvida durante a República Romana e o Império Romano (Wikipédia). Trata-se do “modo com o qual os líderes romanos lidavam com a população em geral, para mantê-la fiel à ordem estabelecida e conquistar o seu apoio” (Santiago, Emerson. Política do pão e Circo. Infoescola. Disponível em: <https://www.infoescola.com/historia/politica-do-pao-e-circo/>. Acesso em: 27 de maio de 2020.

[3]Ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouroboros


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