Por Eric Silva para a Tag Novos Escritores
27 de maio de 2020
“Não se pode esquecer dos homens simples que, mesmo sendo
fracos, decidiram defender suas terras e seus deuses.”
(Os Cinco do Ciclo – Elias Flamel)
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Sinopse
Keltoi é um pequeno e
pacífico vilarejo agrícola nos confins
do império Numitor, “que cresce
pouco e é alimentado pela rotina”, mas que
vive seus dias tranquilos sob a proteção dos cinco deuses do Ciclo e sob a
gerência benevolente de seu líder, Yosef, um homem tão devotado a felicidade de
sua vila quanto ao amor que possui por sua família ou à devoção que tem pelos
deuses.
Todos os anos é ele o
responsável por entregar, na capital do império, o pesado imposto, pago em
centeio, que Numitor lhe exige, mas nada o faz se acostumar com a capital e
suas contradições, com a arrogância do império ou com o fato de que grande
parte do esforço de sua vila alimenta a enormidade de uma nação de corruptos,
assassinos e preguiçosos. Mas diante da força do maior império do mundo, Yosef
prefere submeter-se a pôr em risco sua família e seu povo.
Fora seus deveres como líder
de Keltoi, a vida de Yosef é pacata enquanto envelhece ao lado da mulher,
Morgiana, de seu caçula, Julian, do sério Hitalo, o primogênito, do
despreocupado Yohan, o filho que mais lhe causa preocupação, e da velha Guilda,
que com tanto amor cuidou dele e agora cuida também de sua família. Mas há algo
que o preocupa, que o inquieta e não o abandona, porque se prenuncia em todos
os lugares e em todas as bocas: os ventos da mudança.
É com essa inquietação que
Yosef chega a capital do império para entregar mais um carregamento de seu precioso
centeio e é também lá que ele ouve boatos sobre uma nova ameaça que não só
coloca em risco o seu povo, mas a sua cultura e crenças: uma nova religião,
monoteísta e conduzida por fanáticos que ameaçam a vida daqueles que consideram pagãos. E com a urgência de manter protegido tudo que ama, ele se vê no difícil
desafio de buscar ajuda no seio daquele que mais o enoja: o poderoso Império de
Numitor.
Resenha
Quando Flamel me convidou para ler seu livro e opinar sobre esta
longa narrativa, imaginei que encontraria ali uma saga ao estilo fantasy, cheio de
cenas dantescas, batalhas épicas, criaturas improváveis e muitos desafios no
caminho de um protagonista que tem uma missão preciosa e perigosa a cumprir.
Mas me enganei completamente.
O que eu tinha na tela do meu tablet não era o livro que imaginei, mas outro, um romance
extremamente difícil de classificar, porque se equilibra entre dois mundos, o da literatura como entretenimento e o da
literatura como arte que versa sobre a vida e a natureza humana.
Reflexivo, introspectivo, contemplativo, escrito com uma
qualidade narrativa acima da média, num estilo de escrita que parece morrer
frente ao imediatismo e superficialismo de nossos tempos, que atinge as novas
gerações de leitores, me atinge (não me excluirei), e a tantos outros. Uma
forma de contar histórias que parece flertar com alguns estilos comuns à
literatura mais clássica e menos comercial.
Mas vamos ao livro.
O medo da mudança e liberdade religiosa
Os Cinco do
Ciclo é daquelas obras que o livro e o personagem principal são uma
coisa só. Ele é a própria narrativa, porque
não nos deixa espaço para contemplar o mundo por outra janela que não seja a do
seu próprio olhar. Isso, obviamente, é característica fundante dos romances
escritos em primeira pessoa, mas nem sempre um livro escrito neste foco
narrativo tem um narrador que se preocupe tanto em expressar, nos mínimos
detalhes, suas próprias emoções e opiniões sobre o que vê, e que acabe por
dominar completamente o ritmo em que a narrativa vai seguir como é o caso de
Yosef, líder de Keltoi. Sua alma
envelhecida e cansada, o seu olhar sempre tão alongado, contemplativo e
introspectivo, domina toda a peça e dita o ritmo.
O líder de Keltoi é um homem
digno e respeitável, fascinado pelos livros e que ama com intensidade seu povo
e se dedica para garantir o bem-estar dos mesmos, ainda que para isso faça
enormes sacrifícios pessoais e carregue sozinho o peso de um passado do qual
não se orgulha.
Yosef é também um homem muito
observador e reflexivo. Influenciado pela sua fé e pelos livros que lê e valoriza
enormemente, o velho líder tem um olhar
afiado que observa o mundo com curiosidade e sobre o qual tece reflexões longas
e desapressadas. Pouca coisa escapa desse olhar afiado que a tudo observa e
processa compondo o mosaico do mundo e das muitas pessoas e realidades que
surgem em seu caminho. O mundo parece
caminhar devagar enquanto Yosef o observa e descreve e essa natureza
observadora, que dita o ritmo lento da narrativa, lhe dá um certo caráter de
romance filosófico.
Por ser uma pessoa íntegra e
dedicada, Yosef exige de sua família os mesmos valores, por isso sua
convivência com o filho mais extrovertido e relaxado, Yohan, quase nunca é
fácil e as comparações com o primogênito extremamente responsável são
invitáveis. Ainda assim, ambos os filhos desejam, cada um ao seu modo, honrar e
conquistar o respeito e aprovação do pai.
Por sua vez, a seriedade que
o líder de Keltoi demonstra é a daqueles que tem uma grande responsabilidade,
mas que confia que há forças superiores que o guiam, e que sempre o permitiram
prosseguir com sua missão, por isso, a fé que Yosef deposita em seus deuses é
imensa e sólida. Pelo mesmo motivo, ainda que admire a seriedade solene e grave
de seu filho mais velho, Hitalo, Yosef não a toma para si em mesma medida e se
permite seus momentos de tranquilidade, bom humor e
relaxamento, ainda que nunca se esqueça por completo de seus problemas e
preocupações.
Sobre a gerência desse homem
amigo de todos, honesto, generoso e compassivo, Keltoi não é a vila mais rica,
mas segue prosperando e feliz. E a história do livro de fato começa quando este
homem tão arraigado às tradições, a sua terra, seu povo e suas crenças, se dá
conta de que o mundo para além do que ele conhece, sempre fechado em sua bolha,
está em uma rápida e violenta mudança e que essa mudança ameaça transformar e
destruir tudo o que ele conhece. Por isso, digo que Os Cinco do Ciclo é também um livro sobre o medo da mudança.
[Citação]
“[...]. Mudança, meu amigo. Essa palavra está na boca daqueles que
amo. Querem que eu a veja, dizem até que ela me cerca e isto me preocupa.”
Falando de minha própria crença religiosa, nós budistas
acreditamos que nada é eterno ou premente, mas que tudo nesse universo é feito
de impermanência, nós e tudo ao nosso redor estamos sempre em ininterrupta
mudança. Desse modo, um estado de vida que hoje existe nunca será permanente e
dará lugar a outro, e devemos aceitar essa mudança. O mesmo não se dá com
Yosef, que meio cego – apesar de tão lúcido (eis aí uma contradição) – parece
alheio as mudanças, ou tem, no início, uma posição “negacionista”. Acho que de
tão fechado em seu mundo – que quase se resume a Keltoi – ele não pode notar o
começo de um novo ciclo, e acabou não
tendo o alcance de visão que outros demonstravam. Por isso, a mudança se impõe
violentamente e sua ameaça obriga-o a mover-se na esperança de conservar o que
ele conhece.
O livro de Flamel, por sua vez, parece querer nos ensinar que a mudança é algo que sempre vem, que se
move independente da vontade contrária dos homens, mas que, contraditoriamente,
também pode ser acelerada pelas ações humanas. Mesmo os impérios mais
poderosos estão sujeitos aos caprichos da mudança e devem se adaptar ou
sucumbir aos seus efeitos.
Vivemos hoje um momento assim, no qual um surto viral tomou
proporções tais que força governos, o mercado e a sociedade civil a repensarem
o mundo e como as pessoas vivem suas vidas. A mudança chegou a galope e pegou a
todos desprevenidos. O mundo voltara a ser o mesmo? Provavelmente não.
Mas para
qualquer mudança que se abate sobre o mundo, os impactos não excluem o campo da
cultura, sobretudo quando se vive em um mundo violento como o de Yosef, no qual
os mais poderosos impõem os seus desejos pela força e pela manipulação política. Tomando isso
por base, Os Cinco do Ciclo aborda
uma realidade muito comum no passado humano: se uma nova religião estende sua
influência até aqueles que governam com tirania, as consequências sobre os que
não compartilham da mesma fé costumam ser desastrosos (imposições e
perseguições, ou seja, violência física e simbólica). É o que o líder de Keltoi
teme quando finalmente a mudança fica evidente aos seus olhos.
Todavia o tema
de Os Cinco do Ciclo está longe de
ser desatualizado, pelo contrário, nos tempos atuais a falta de liberdade
religiosa e conflitos de cunho religioso são realidades comuns para dezenas de
povos, atingindo, sobretudo, grupos minoritários como o povo de Keltoi. A imposição
brutal pelo grupo Estado Islâmico da Sharia,
código religioso que regula a vida privada e civil[1],
o conflito entre budistas e muçulmanos na Tailândia, entre muçulmanos e
não-muçulmanos no Sudão, de xiitas e sunitas no Iraque, e tantos outros de
grande ou pequena projeção internacional evidenciam a atualidade do livro de
Flamel, que, através de um narrador-personagem politeísta, tenta exprimir o medo ao qual as minorias são impostas quando suas
tradições são ameaçadas pelas diferenças religiosas com outros povos.
Diante da iminência de que uma profunda mudança religiosa no
império ameace a sobrevivência de seu povo, o líder de Keltoi resolve lutar com
as ferramentas que possui, mas toma para si uma tarefa tal qual a de Sísifo,
personagens da mitologia grega citada pelo próprio Yosef.
Sísifo era um mortal, filho do rei Éolo, da Tessália, que foi
condenado no Reino de Hades a empurrar para o alto de uma montanha uma pedra
imensa, mas que logo depois de todo o esforço do rapaz, sempre rolava montanha
baixo, forçando Sísifo a repetir seu esforço inútil. Essa é a melhor analogia que se pode fazer em
relação a tarefa a que Yosef se propõe com determinação: rolar uma pedra
montanha acima, uma vez que ele tentará lutar contra algo contra o qual
aparentemente não tem poder para mudar.
Numitor: uma releitura do Império Romano
Se por um lado, a questão religiosa é o tema que mobiliza o
velho Yosef, outro tema é bastante destacado pelo narrador: a subjugação de um
povo por outro, com a subsequente tirania e exploração aos quais os povos são
submetidos para sustentar a elite da nação dominante. O povo de Keltoi é um desses
povos subjugados e obrigados a sustentar com o seu suor uma nação estrangeira,
distante, mas poderosa o bastante para fazer valer a sua vontade pela força e
pela coerção.
Para ambientar Os Cinco do
Ciclo Flamel não cria exatamente um mundo alternativo e fictício, mas
adapta uma época da história humana no qual um povo guerreiro e de exércitos
poderosos construiu pela guerra um dos maiores impérios da Terra: o Império
Romano.
Na história da Idade Antiga, Roma é particularmente conhecida
por ter deixado de ser uma vila empobrecida da península itálica e ter
estendido seu domínio por uma vasta extensão de terra, colocando sob seu julgo
centenas de povos, até o ponto de ser conhecido como um dos maiores e mais
duradores impérios da História. Entretanto, Roma é igualmente lembrada por sua
política corrupta, cheia de traições, golpes, e pelos muitos regentes vaidosos,
inescrupulosos e genocidas que a governaram ao lado ou contra o Senado. Contudo, em Os Cinco do Ciclo Roma não é Roma, é Romula, e o Império Romano tem
outro nome, Numitor, que na mitologia romana, foi rei destituído do trono de
Alba Longa e avô dos gêmeos que fundaram a Roma real.
Maquete da cidade de Roma
durante o governo de Constantino (306-337) |
Flamel faz uma releitura do poder, política e cultura romana,
recontando, inclusive, uma das versões do mito de Rômulo e Remo, e desse modo
cria seu próprio império dominador dos quatro cantos do mundo sem
obrigatoriamente se atrelar a nomes reais e fatos históricos datados. Uma saída
inteligente, porque o desobrigou de ter que envolver na sua narrativa a
complicada tessitura histórica, repleta de personagens e de ações muito bem
datadas do Império Romano, o que só tornariam mais complicada a narrativa e
engessaria o seu desenvolvimento. Mas é fato que a política e o poder do
exército e do senado romano está ali retratado sob o nome de Numitor. Egípcios,
gregos e nórdicos também são citados como povos que foram subjugados pelo poder
do império, e a incorporação do cristianismo ao império (que obviamente não
recebe esse nome na narrativa) é também retratada.
Mas um fato que, particularmente, me chamou a atenção foi a
opção do autor de não retratar a capital do império como um lugar suntuoso como
nunca visto em outro ponto do mundo antigo, mas como era de fato a Roma real:
uma grande cidade, cheia de riquezas e de vida comercial, mas também de
pobreza, e assaltantes. Um lugar onde a
riqueza proeminente contrasta com a horda de mendicantes morrendo de fome, mas
cuja miséria é ignorada pela multidão. Senti falta apenas do pão e circo[2].
Tomando essa releitura como
cenário, o autor se dedica a demonstrar a opressão e descaso do império em
relação aos seus súditos e dominados através do olhar de Yosef. O líder de
Keltoi, com sua mente lúcida e observadora vai pouco a pouco nos mostrando a injustiça
de um império que não deseja mais nada do que expandir o seu poder e explorar
ao máximo os povos que vivem dentro dos seus domínios, sendo indiferente as
necessidades e dificuldades dos mesmos.
Aponta também como cada povo
tem que entregar uma grande parcela dos frutos da terra que produz, como os
impostos aumentam a cada ano, e como são tratados com indiferença e até
desprezo pelos representantes do Estado. E vai além quando desnuda a corrupção,
os jogos políticos e de aparência e a boçalidade e pompa dos dirigentes de
Numitor, tecendo uma crítica a como determinadas classes sociais
dirigentes vivem e legislam na opulência e cercados de ritos sem sentidos às
custas do suor da população empobrecida, que por meio da opressão e coerção se
vêm obrigados a contribuir com impostos pesados, sem, no entanto, receber em
retorno o que lhe é legítimo por parte daqueles que governam. Como eu disse, um
livro atual.
Em lento e contemplativo compasso: sobre o ritmo e o estilo
Contudo, se Os Cinco do Ciclo trata de um
tema atual e se inspira na empolgante história de um dos mais famosos impérios
da antiguidade. Por outro lado, o seu lento
desenvolvimento foi algo que me aborreceu bastante durante a leitura que
intercalei com outros quatro livros, todos concluídos antes de terminar Os Cinco do Ciclo.
Por ser muito detalhista e
contemplativo, Yosef analisa o mundo num ritmo que é só dele e acaba por ditar
o ritmo do próprio livro que conta com 556 páginas, sem que haja grande
dinamismo em sua maior parte. Mas a verdade é que para entender porque Os Cinco do Ciclo é um livro de
extensão tão grande, mas com desenvolvimento tão lento, é preciso entender o
próprio estilo do autor.
Flamel é um autor que escreve bem e com uma fluidez que,
normalmente, só é encontrada nos escritores mais experimentados. Não há nele
uma preocupação com o imediatismo, com que as coisas fluam rapidamente para um
clímax, porque prefere trabalhar profundamente a complexidade da personalidade
de seu narrador.
Neste livro ele opta por desenvolver uma obra que se inclina
para o filosófico, para a reflexão do personagem-narrador acerca de seu mundo,
sobre como nele funciona a vida, sobretudo a vida cotidiana. Para tanto ele
desenvolve um personagem nostálgico e que beira ao poético, extremamente descritivo,
atento aos detalhes e compassos, intuitivo até, e que apesar de parecer absorto
em seus pensamentos, na verdade está atento aos movimentos da vida, às
expressões, aos sons, aos ritmos.
O autor também gosta de sobrepor na linha de desenvolvimento da
história o presente e o passado e por diversas vezes faz com que seus
personagens contem suas histórias para o protagonista escutá-las com atenção,
ou dá espaço as memórias do passado do próprio Yosef. Por conta disso, alguns
diálogos são arrastados e algumas histórias simples chegam a ser contadas sem
objetividade. Mas também não se pode deixar de mencionar que o livro é povoado
por muitos monólogos interiores do narrador. E é nesses aspectos que Os Cinco do Ciclo testou minha
paciência.
Em minha visão de mundo, considero que ler é algo que exige
esforço, é diferente de assistir a um filme, no qual as cenas já prontas passam
em seu próprio ritmo indiferente se nossa compreensão segue com o mesmo
compasso.
Ler exige esforço do leitor que precisa se acomodar, experimentar
uma boa luz em uma posição confortável e exigir de seus olhos que leia e da sua
mente que imagine, até que texto e imaginação fundam-se numa coisa só. Por
conta disso, leitura e mente devem estar em perfeito compasso. No entanto, se o
desenvolvimento da narrativa se arrasta, junto com diálogos igualmente
arrastados, o resultado é desastroso, porque a mente não espera e passa a
vaguear indo para direções opostas a leitura. Foi assim que me senti lendo Os Cinco do Ciclo e acabei lançando mão
de um recurso que não gosto de utilizar: o autoestímulo.
As vezes quando uma leitura não está dando certo ou eu estou me
amarrando para prosseguir com ela, leio o epílogo ou as últimas páginas do
capítulo final, para ter um lapso fragmentado do desfecho, mas somente até um
ponto em que continue impossível a compreensão de como a história chegou aquele
ponto. As vezes leio as páginas de trás para frente, e quando vejo que é
informação demais, paro. Isso cria artificialmente um interesse em mim de
entender aquelas páginas dispersas e retomar a leitura se torna mais fácil.
Isso significaria que Os
Cinco do Ciclo é um livro ruim e sem qualidade? De forma alguma.
Flamel tem
muito talento para a narração, é detalhista sobretudo na construção de seus
personagens e sua escrita é fluida e muito bem estruturada. Se eu fosse comparar Os Cinco do Ciclo a algum livro que já tenha lido, o compararia,
talvez com um livro intimista de um grande escritor, a exemplo de Histórias da outra margem clássico da
literatura japonesa escrito por Nagai Kafu, mas principalmente ao livro O tigre na sombra, de Lya Luft,
ambos com coincidentes 128 páginas.
Esses são os estilos mais aproximados ao de Flamel, levando em
consideração apenas livros que já li. Ambos são livros cheios de monólogos
interiores, extremamente voltados para seus narradores, para as percepções que
os mesmos têm do momento, da vida, dos lugares e do passado. Mas com algumas
diferenças cruciais em relação a obra de Flamel: são narrativas baseadas na vida cotidiana simples e puramente, sem
criar um mundo para ambientá-las e que precise ser descrito para fazer sentido,
e, principalmente, são livros
desenvolvidos em narrativas rápidas, a fim de que não se perca o frescor do
personagem-narrador que por si só é a principal razão do leitor ler a obra.
Digo isso, porque do meu ponto de vista, Dôda, de Lya Luft, e Tadasu Oe, de
Nagai Kafu, são as razões desses dois livros existirem, porque os mesmos são
lidos não pela narrativa, mas pelo personagem que é foco, centro e praticamente
único tema da história. São obras
intimistas com personagens voltados para si, vendo o mundo sob sua ótica,
contando fragmentos de seu cotidiano, obras que se fossem maiores do que são,
seriam extremamente enfadonhas para o leitor médio de nosso tempo.
Outro livro a que Os Cinco
do Ciclo me remete é Naufrágios, obra de
outro japonês, Akira Yoshimura. Esse é também um livro que tem ritmo muito
próprio, que não tenciona acelerar a narrativa porque o tempo não é acelerado
na realidade; segue o compasso e o ritmo da natureza. Fala também da
sobrevivência de uma pequena comunidade, mas no caso, trata-se de aspectos de
subsistência puramente. Todavia, mais que isso, é um livro bastante descritivo
como o de Flamel. Há nele a preocupação quase obsessiva de descrever a vida cotidiana,
a cultura e as dificuldades da pequena sociedade, fazendo com que a história em
si se preocupe mais com descrever o movimento da vida (e no caso do japonês
também da morte) do que contar uma história que prenda seu leitor seja pela
força da curiosidade ou pela adrenalina da ação.
Naufrágios é um livro que segue o compasso e o ritmo da natureza |
O que quero
dizer com essas comparações é que Flamel não escreve um livro comercial,
cinematográfico, repleto de clichês e fórmulas manjadas, mas que conquistaria
facilmente o leitor médio, aquele que está mais interessado no entretenimento
do que no lado humanista da literatura. Não que o cinematográfico falte ao
livro. Ele está lá, em muitas cenas, no naufrágio do navio, nos sonhos com os
deuses do ciclo, no desfecho da narrativa. Mas
o principal do livro flerta com outro tipo de literatura, mais clássica, mais
preocupada em desnudar questões existenciais, humanas, e encarem isso como um
elogio, porque o é.
Tamanha é essa suposta despreocupação de escrever um livro
comercial que não sei em que gênero enquadro o livro de Flamel, porque ele pode
até parecer pela sinopse como uma espécie de fantasy, mas sua narrativa não tem
elementos mágicos ou sobrenaturais que justifique essa classificação, além
disso, o enredo poderia facilmente se passar pelo relato de fatos reais acontecidos
em qualquer lugar da Europa entre o fim da Idade Antiga e o início da Idade
Média.
Seria este um livro existencialista? Não sei dizer. Um
personagem obrigado a sair de sua zona de conforto e do mundo por ele conhecido
que precisa encarar a mudança me faz lembrar vagamente o estilo. Mas a despeito
disso, é um livro que beira muito o realista, não em relação a harmonia um
tanto idealizada da aldeia, mas com relação a todo o resto, da descrição
daquele mundo imperialista ao desfecho da narrativa. Além disso, é intimista,
muito ligado a memória e profundamente imerso nos pensamentos, sensações,
observações de seu personagem narrador. Um livro assim é difícil de colocar em
uma caixinha, o que é estupendo, mas o desenvolvimento arrastado quebra parte
do potencial da obra.
No passado, obras com a pegada de desenvolvimento lento e
compassado costumavam ser longos e ainda assim fazerem muito sucesso, porque
eram obras escritas para um público que vivia em um ritmo diferente do público
atual. No passado, seguia-se uma cadência muito mais paciente, muito menos
imediatista, um ritmo muito mais próximo do tempo da natureza, de seus CICLOS.
No entanto, nesse admirável
mundo novo em que vivemos, um mundo globalizado ditado pela
velocidade de trilhões de gigabytes correndo por fibra óptica superavançada, é
muito difícil que um livro com o estilo de Flamel e com seu volume que passa
das 500 páginas, consiga conquistar o seu público-alvo em geral impaciente e
desejoso de emoções rasas, fáceis, ou de simplesmente viver momentos febris de
emoções arrebatadoras, além de ansioso para ver um pouco de si no personagem
que lê. Ainda assim, Flamel conseguiu uma nota bastante elevada no Skoob por Os Cinco do Ciclo, porque o livro
evidencia seu talento indiscutível para a escrita e para a narração.
O autor brasileiro escreve bem e com esmero, mas, na minha
opinião, peca por escrever um livro tão grande em um ritmo de desenvolvimento
tão lento e com pouquíssimo dinamismo. Por isso, sigo com a opinião que, nos
nossos tempos, onde há muita oferta de leitura e pouca paciência por parte de
um grupo expressivo de leitores, o leitor espera de um livro extenso que a
narrativa seja instigante e dinâmica o máximo de tempo possível, para que ele
possa correr as páginas sem sentir, nem que já leu muito além do que pretendia,
nem sentir o tempo que passou veloz como um corcel adentrando a madrugada fria.
Para finalizar, um ponto que não compreendi perfeitamente
Uma coisa que me intrigou bastante no livro de Flamel é o
universo mitológico-religioso da crença seguida pelos habitantes de Keltoi.
Vejo agora que talvez alguma coisa me escapou e não pude compreender por
completo a crença defendida por Yosef e que baseia em uma certa “ciclicidade”.
Segundo o que entendi, o mundo seria governado por Destino (uma
referência a inevitabilidade da repetição de um ciclo?), e por um conjunto de
cinco deuses que compõem uma espécie de ciclo que dita a própria vida na Terra
e que dão nome ao livro. Ao mesmo tempo, ao que me parece, para o povo de
Keltoi ciclos são iniciados e interrompidos, são períodos de tempo, sinônimos
para estações, o tempo de vida e também trajetórias seguidas por cada vida e
pela própria natureza. Mas um trecho em especial me deixou confuso:
[Citação]
“Cada escolha é um novo ciclo,
cada ciclo é um novo mundo. Assim os Cinco do Ciclo aprenderam com Destino e
nos ensinaram. Minha escolha já foi feita e um mundo se abre diante de
mim."
No meu entendimento, uma filosofia que acredita em
circularidade, acredita que tudo volta a um estágio inicial e novamente caminha
por estágios anteriormente superados, porque círculos não bifurcam, se repetem.
Ciclos são repetições, como os ciclos na natureza, das estações
e a da alternância entre vida e morte. É como acreditar em ouroboros, a serpente que morde a própria calda, e que representa
movimento, continuidade, autofecundação e eterno retorno[3].
Essa ideia simples parece dominante na narrativa, mas esse trecho quebra a
lógica, porque um novo ciclo não se abre para outro, é apenas repetição do
mesmo ciclo, porém em uma outra época, com outras pessoas, mas é sempre
repetição de situações similares. Uma ideia que vi ser construída com bastante
lucidez em Naufrágios, o livro de
Akira Yoshimura, que enfatiza o ciclo das estações e a constante repetição das
atividades sazonais que garantia a sobrevivência dos personagens.
Por isso, esse ponto sobre a cresça de Keltoi me deixou um tanto
confuso, porque, se escolher significa ter dois caminhos e abandonar um em
favor de outro, como isso pode ser um ciclo? Já que repetição não significa
ruptura, e ruptura significa abandonar, romper o ciclo. Em vários momentos a
ideia de Flamel concorda com essa repetição, mas nessa passagem, a contradiz,
por isso não ficou claro para mim. Então, como um bom resenhista perguntei
diretamente a fonte e recebi uma explicação com a cara de Yosef:
“Sobre o ponto que te causou confusão. Os Cinco do Ciclo servem a
Destino que controla todos os Ciclos. O que pensei com esses Ciclos? Vejo que
muitas coisas se repetem no mundo: guerra, fome, revoluções, esperanças, catástrofes
e etc. Apesar desses Ciclos se repetirem, eles nunca são os mesmos. As guerras
do passado e do presente podem aparentar semelhanças, mas tem as suas
diferenças e são travadas em mundos diferentes. A idade de bronze, a idade
medieval e o mundo moderno repetem ciclos, mas são mundos diferentes. Para mim, um
ciclo só se fecha quando há a completa destruição. Caso ela não ocorra, o ciclo
vira aprendizado.
"Cada escolha é um novo ciclo, cada ciclo é um novo mundo".
Cada nova escolha pode gerar uma mudança, sendo assim, cada escolha pode
influenciar em um novo ciclo. E, se influencia em novo ciclo, então influencia
no mundo.
O fechar de um ciclo já marca o início do outro. E, esse outro ciclo, é
influenciado pelo anterior. Não há repetição, há evolução. Assim Os Cinco do
Ciclo aprenderam com Destino e ensinaram para o povo de Keltoi. Uma flor sempre
vai crescer na terra, isso é um Ciclo. Porém, nunca vai crescer da mesma forma.”
Poético.
Mas, deixando
os pormenores de lado, Os Cinco do Ciclo
é um livro que nos apresenta um autor de qualidade que tem a sua frente o
desafio de continuar refinando sua arte, definir por completo o seu estilo e
conceber muitas obras de boa qualidade como esta. Digo que Os Cinco do Ciclo me causou impaciência pela sua extensão combinada
ao ritmo lento e à narração detalhista, porque sou imediatista, ansioso e perco
facilmente o interesse, infelizmente, mas isso faz parte da minha contradição
como ser humano que ama filosofar, especular e se alongar em resenhas
intermináveis, mas que não tem igual paciência para o alongar alheio.
A edição lida é uma produção
independente, do ano de 2017 e possui 556 páginas. A continuação da obra se dá
com o livro Herdeiro do Ciclo, outra produção independente, do ano de 2020 e
que possui 708 páginas.
Sobre
o autor
Sou Elias Flamel, tenho dois
volumes publicados da saga do Ciclo na Amazon, sou pós-graduado em escrita criativa e análise literária
pelo Instituto Vera Cruz e resenhista do site Leitor
Cabuloso. Aficionado por mitologia, desde a
grega até a africana, vejo genialidade em Hamlet e no Batman e confesso somente
para os íntimos que ainda espero a carta de Hogwarts (no mundo bruxo existe
tanta coruja destrambelhada).
[1]SOUSA,
Bertone. Estado Islâmico, Sharia e a democracia (im)possível no Islã. Bertone Sousa, [s.l.], 2015. Disponível
em:
<https://bertonesousa.wordpress.com/2015/11/18/estado-islamico-sharia-e-a-democracia-impossivel-no-isla/>.
Acesso em:
[2]Panem et circenses foi uma política
desenvolvida durante a República Romana e o Império Romano (Wikipédia).
Trata-se do “modo com o qual os líderes romanos lidavam com a população em
geral, para mantê-la fiel à ordem estabelecida e conquistar o seu apoio”
(Santiago, Emerson. Política do pão e Circo. Infoescola. Disponível em:
<https://www.infoescola.com/historia/politica-do-pao-e-circo/>. Acesso
em: 27 de maio de 2020.
[3]Ver:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouroboros
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