segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Histórias da Outra Margem – Nagai Kafu – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Tadasu Oe é um escritor nostálgico que encontra em seu relacionamento mal resolvido com uma prostituta a inspiração necessária para seus livros.  Considerada a obra-prima de Nagai Kafu ( 荷風), Histórias da Outra Margem (濹東綺譚, Bokutō Kidan) é o sexto livro da III Campanha Anual de Literatura que homenageia a literatura do Japão. Um romance curto, nostálgico e pintado sob as cores das estações do ano em terras japonesas.

Sinopse

Tóquio, década de 1930. Tadasu Oe é um escritor sexagenário, conhecido e saudosista que ocupa parte de seu tempo em idas e vindas pela capital japonesa em busca de inspiração para seu último livro. É durante um de seus passeios, no fim de uma tarde chuvosa, que Oe conhece Oyuki, uma moça pobre que abandonou sua vida como gueixa para prostituir-se na zona do bairro de Tamanoi. Logo os dois começam um caso prolongado e, enquanto escreve seu livro, Oe tira daquela relação o alento para sua solidão e a inspiração para sua literatura.

Dividido em dez pequenos capítulos, Histórias da Outra Margem é, ao mesmo tempo, o breve relato das incursões de Oe ao bairro que ficava ao leste do rio Sumida, durante o seu romance mal resolvido com Oyuki, e também a descrição do processo de composição e escrita de um romance.

Resenha

Foto: Eric Silva, 2018.
Publicado em 1937, Histórias da Outra Margem é um clássico contemporâneo japonês curto e que se caracteriza pela pouca variação nas ações de seus personagens. Ele é antes de mais nada uma longa conversa do narrador com o leitor.

Nessa longa conversa que compõe, contraditoriamente, um breve romance (quase uma novela), Tadasu Oe nos fala sobre diversos temas desde cineteatros à moda e literatura da época. Mas os assuntos preferidos do narrador são, no entanto outros: as mudanças na cidade de Tóquio, reconstruída após o terremoto de 1923; seu livro até certo ponto estagnado; o nem sempre tranquilo ofício de escritor e sua relação mal resolvida com Oyuki. A destruição e reconstrução da capital, porém tem dentro na narrativa um peso maior como se fossem símbolos da transformação e profunda ocidentalização do Japão nas primeiras décadas do século XX.

O livro é o retrato da vida boêmia toquiota na década de 30, sobretudo a vida das meretrizes das zonas semiperiféricas de bairros como a Tamanoi da época. Por conta desse fato, para quem não conhece Tóquio, a meu exemplo, e muito pior a Tóquio de 1930, esse livro é uma excursão por lugares totalmente desconhecidos, mas extremamente familiares para seu narrador. Muitos desses lugares já estão há muito perdidos, engolidos pelo tempo, e, no final, exigem do leitor um maior esforço de imaginação.

Mas algo muito curioso nesse livro é a sua intertextualidade acentuada. Uma intertextualidade que se constrói sobretudo com a obra do autor e com sua vida pessoal. Nele são citados livros anteriores de Nagai Kafu, amigos seus de infância como Aa Inoue e Soyo Kojiro, dos quais fala com saudade. O romance fictício desenvolvido pelo personagem e intitulado O Desaparecimento também possui citações transcrita no texto principal de Histórias da Outra Margem e até um capítulo inteiro é transcrito. Além disso, fragmentos de textos de outros escritores e poetas como Gakkai Yoda e Matsuo Bashô são citados, completando a intertextualidade do livro.

Pelos elementos pessoais presentes na obra e outros, marcantes nos hábitos e na personalidade boemia de Tadasu Oe, muitos especialistas em literatura japonesa consideram o personagem principal desse livro o alter ego de seu escritor. Assim como Oe, Kafu era assíduo frequentador de bordéis e casas de prazer, assim como a descrita na sua narrativa. Ademais, Histórias da Outra Margem, como descrito na orelha do livro, parece uma mistura de diário, ficção, poesia, crônica e memórias.

A narração é linear e não explora o uso de flashbacks, ainda que o narrador pareça nostálgico em relação ao passado.

Apesar de cronológico, o tempo decorrido durante a narrativa não é preciso e nem definido. Ao que me pareceu apenas a passagem das estações do ano permitem precisar o tempo em que as ações ocorrem e por isso as mudanças no tempo são essenciais na narrativa.

Já observei, na maioria dos livros japoneses que já li, que as estações do ano é um elemento muito explorado pelos escritores nipônicos. Em Naufrágios de Akira Yoshimura esse destaque para as estações e seu uso como demarcador do tempo é icônico e entorno delas é construída toda a trama. Mesmo em animes e mangás essa é uma característica japonesa proeminente e curiosa, como se o “calendário natural” convivesse harmoniosamente ou até mesmo subordinasse o calendário convencional.

No livro de Kafu, a passagem das estações é também elemento importante e que se concilia com o aparecimento dos mosquitos que infestavam Tamanoi no verão escaldante de Tóquio. Datas são pouco usadas com exceção de alguns anos que demarcam acontecimentos anteriores à trama. Também no final do livro, que é encerrado com a provável data de fechamento de sua escrita: “Tóquio, 30 de outubro de 1936, ano do cavalo”.

Um elenco pequeno: narrador e personagem

Com um profundo tom intimista e olhos centrado na vida cotidiana e literária de seu narrador, Histórias da Outra Margem é um livro que parece alheio ao momento histórico de totalitarismo político, ultranacionalismo e imperialismo militar que dominou o cenário político japonês e que culminou na invasão japonesa da China em 1937, ano de publicação do livro. Contudo, não é uma obra que se encontra alheia as mudanças provocadas pelo tempo que muda não só as pessoas como os lugares, marcando na retina daqueles que viveram bastante a saudade de coisas que se perderam no passado. Essa nostalgia é a principal marca da narrativa desse livro, o que fica nítido sobretudo no saudosismo de Oe que descortina as mudanças profundas e pouco sutis sofridas pela cidade de Tóquio após o grande sismo de Kantō, terremoto ocorrido no ano de 1923, cujos efeitos – somados a um tsunami subsequente e inúmeros incêndios – foi responsável pela morte de 110 mil japoneses.
Em muitas passagens o narrador é irônico e opina sobre a polícia metropolitana, o trabalho dos cafetões e as transformações ocorridas na cidade que muito lhe desagradam:

“Eu queria mostrar como a beleza da Tóquio antiga, de seus bairros famosos, se perdeu depois da reconstrução que se seguiu ao Terremoto de 1923. Por isso, queria que a história de Taneda e passassem em um desses lugares da capital, cujo charme de outrora se fora para sempre: Honjo, Fukagawa, os arredores de Asakusa; [...]”.

Ao longo de toda a narrativa, Oe recorda os lugares que já não existem na “nova” Tóquio, as mudanças provocadas não só pela destruição do terremoto (principal marco temporal usado pelo narrador para separar a nova da antiga capital), como também aquelas provocadas pelo crescimento da cidade em direção aos seus subúrbios; o surgimento de novas áreas periféricas e a transformação de bairros boêmios ou antigas zonas de prostituição forçadas a se deslocarem em decorrência do avanço da cidade.

Por conta disso, o tom principal desta narrativa é marcado pela nostalgia de um personagem que viveu uma outra Tóquio, diferente, e que viu ruir e transmutar após as chamas e destruições provocadas pelo sismo. Mas mais do que uma Tóquio que foi consumida pelo fogo ele sente saudades de uma era que deixou de existir após a restauração da era Meiji e que foi responsável pela modernização do país.

Podemos dizer inclusive que é a forma ainda muito tradicional com a qual Oyuki se veste um dos principais atrativos que atraem o protagonista de Kafu. A monotonia da casa onde ela atendia complementaria o interesse do escritor que foge do barulho dos rádios e megafones das casas vizinhas a sua.

Porém, a nostalgia não é a único traço do desenho psicológico do narrador e personagem principal. Ele é um homem de hábitos simples, mas possui uma seriedade difícil de enquadrar, porque não é grave como a de alguns homens moralistas e inflexíveis (o que ele não é nem um pouco) e nem se dilui em risos ou brincadeiras.

Ele é também tranquilo, contemplativo e perspicaz, mas deixa transparece uma personalidade um pouco relapsa. Alguns críticos e resenhistas o classificam com um outsider, alguém “apreciador de uma outra época[1]. Sua forma de se expressar e conviver, porém demonstra não apenas toda a natureza tranquila e até fria típica de alguns estereótipos orientais mais comuns, mas também a distinção de alguém muito instruído, o que de certa forma contrasta com os ambientes degradados e moralmente indecorosos frequentados por eles.

Oe, além de escritor reconhecido e que inclusive viveu parte de sua vida no exterior, é um assíduo frequentador das casas de prazer toquiotas e profundo conhecedor do mundo dos bordéis, cafetões e prostitutas. Por conta disso não é de se surpreender que esse seja um dos principais temas de seus diálogos com o leitor. Contudo, a forma de falar de Oe se mantém polida durante a maior parte do texto. Só notamos alguma diferença quando Oyuki, confundindo-o com um marchand[2] de desenhos “secretos” (pornográficos), passa a falar com ele de uma forma mais coloquial e faz menos “cerimônia” em sua presença.

Não obstante, o narrador tem consciência de que os ambientes frequentados por ele lhe renderiam má fama em seu meio e, por isso, tomava cuidado para não ser visto por nenhum jornalista. Também para evitar ser visto de uma forma diferente naquele mundo, omite sua condição e profissão, inclusive de Oyuki.

Por sua vez, Oyuki é uma mulher de comportamento muito típico para a sua profissão, o que, em parte, alimenta estereótipos. Ela não é excessivamente vulgar, mas não deixa de ser. Trata-se de uma moça pobre, de origem camponesa, ainda um pouco ingênua e, até certo ponto, afável e jovial. Todavia, em muitos momentos Oyuki revela a tristeza profunda e o cansaço de quem vive uma vida difícil e sem recompensas. É um personagem profundo, mas que não consegui captar completamente, por isso, não tenho muito o que falar de Oyuki, ainda mais que tudo sobre ela é filtrado pelo olhar do narrador que a olha com curiosidade e certa compunção[3].

O elenco do livro é composto por muito poucos personagens, a maioria deles tem participação muito secundária e que se resume a um único capítulo ou apenas parte dele. Também não há uma preocupação excessiva com descrever os personagens, apenas a Oyuki, mas isso é feito de forma espaçada no ritmo de desenvolvimento da trama. Porém, a descrição de Oyuki, em contraponto com os demais personagens, é justificável, uma vez que ela é a “musa” do narrador e sua inspiração.

Apreciação crítica

Foto: Eric Silva, 2018.
Apesar de puxar mais para a descrição e divagações do narrador, Kafu buscou nesse livro um equilíbrio entre narração e diálogo. A escrita é bem estruturada, mas a narrativa não é instigante. Não há sobressaltos nem grandes acontecimentos, apenas uma monotonia de dias quentes cheios de mosquitos, ou tardes bonitas que terminam em chuvas repentinas. O livro como um todo é um monólito de granito formado por muitos grãos (poesias, narrativa, intertextualidade, cartas, memórias), mas sem a beleza de uma trama complexa ou dinâmica.

Histórias da Outra Margem é, em suma, bastante cotidiano, semelhante ao livro Beleza e Tristeza de Yasunari Kawabata que é igualmente monótono, o que faz de ambas as obras impopulares entre as gerações mais atuais. Ainda assim, é uma leitura fluída e não travei em nenhum momento ou abandonei a leitura se não fosse por um motivo apropriado.

A obra é antiga já tendo completado mais de 80 anos de publicado, o que contrasta bastante com a idade da edição lida por mim que tem apenas oito anos de publicação, uma diferença de mais de sete décadas. Isso demonstra o quanto o mercado editorial brasileiro continua fechado às obras estrangeiras que não pertencem a literatura euro-estadunidense.

A literatura japonesa ainda chega até nós com maior frequência, a exemplo das obras de Haruki Murakami e Yasunari Kawabata, mas quando se trata de outros países asiáticos e principalmente africanos e da Oceania há uma vasta lacuna de milhares de livros que nunca foram traduzidos e que provavelmente não serão, com exceção, é claro, dos antigos e futuros ganhadores do Nobel de Literatura. Por isso, o trabalho da editora Estação Liberdade é importantíssimo para que essa leitura oriental chegue ao público brasileiro.

Mas, a despeito da longevidade da obra, a tradução impecável de Andrei Cunha facilita a leitura que não possui uma linguagem demasiadamente erudita. Além disso, as notas de rodapé escritas pelo tradutor foram imprescindíveis para o entendimento da obra que faz muitas referências aos costumes, à cultura e à moda japonesa da época. Cunha também traduziu, para a mesma casa editorial, o livro Guerra das Gueixas, outra obra icônica de Kafu.

A diagramação é também caprichada e o livro foi feito com papel de excelente qualidade, se não bastasse, os desenhos de Shohachi Kimura, que marcam a divisão dos capítulos, foram retirados da edição original e tornam ainda mais atraente a edição brasileira.

Em conclusão, o desfecho de Histórias da Outra Margem não surpreende, porque o narrador vai dando diversas pistas ao longo dos últimos capítulos. Contudo, é um final original, porque, apropriando-me das palavras do próprio Oe, não se preocupa em ser “satisfatório”. Oe, ao contrário, nos convida a pensarmos uma outra forma de concluir o seu romance.
Breve, sutil e um pouco monótono, mas de uma qualidade literária indiscutível. Este é Histórias da Outra Margem de Nagai Kafu.

A edição lida é da Editora Estação Liberdade, do ano de 2013 e possui 128 páginas.

Sobre o autor

Nagai Kafu (永井 荷風) é o pseudônimo de Nagai Sokichi. Kafu nasceu em Tóquio no ano de 1879 e é autor de romances, contos e peças de teatro.

Desde a adolescência interessou-se por literatura e cultura tradicional japonesa e chinesa.

Aos 19 anos escreveu seus primeiros contos, publicados a partir de 1900. Rebelde quando jovem, Kafu não conseguiu terminar seus estudos universitários. Na primeira década do século XX viveu no exterior, primeiramente em Nova York, onde trabalhou em um banco japonês. Em 1906, muda-se para Lyon, na França, onde teve um contato mais intenso com a cena literária, especialmente com a escola do simbolismo. Esse período inspirou o livro Amerika Monogatari [Histórias americanas], de 1908.

Ao retornar ao Japão, em 1908, já era um homem de letras maduro e cosmopolita e torna-se estudante e tradutor de literatura francesa. Por alguns anos após seu retorno, Kafū foi professor na Universidade de Keiō, em Tóquio, e líder do mundo literário.

Manteve intensa produção até sua morte, em 1959.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.

No link abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Issuu.

Preview do Issuu








[1]Marilia Kubota. Nagai Kafu Retoma O Mundo Flutuante. Disponível em: https://revistamemai.wordpress.com/2013/02/26/19-literatura-nagai-kafu-retoma-o-mundo-flutuante-em-historias-de-outra-margem/.
[2] Palavra francesa (em português, "mercador" ou "comerciante") que, em alguns países não francófonos, designa o profissional que negocia obras de arte.
[3] Sentimento de pesar, de arrependimento por haver cometido má ação.

2 comentários:

  1. Eu li esse livro e gostei bastante, apesar de saber que o ritmo é bem cadenciado, mais monótono do que os livros que costumo ler. É uma história profunda sobre a vida comum...

    Grande abraço!

    Drica.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Livros monótonos também podem ser prazerosos, tudo depende do nosso estado de espírito. Além disso é importante variar as leituras. Gostei do livro de Kafu e como quase toda obra japonesa deixa uma reflexão muito interessante.

      Obrigado pelo comentário Drica. Abraço.

      Excluir

Postagens populares

Conhecer Tudo