Por Eric Silva
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Tadasu Oe é um escritor nostálgico que encontra em seu
relacionamento mal resolvido com uma prostituta a inspiração necessária para
seus livros. Considerada a obra-prima de Nagai Kafu (永井 荷風), Histórias da
Outra Margem (濹東綺譚, Bokutō Kidan) é o sexto
livro da III Campanha Anual de Literatura que homenageia a literatura do Japão. Um romance
curto, nostálgico e pintado sob as cores das estações do ano em terras
japonesas.
Sinopse
Tóquio, década de 1930.
Tadasu Oe é um escritor sexagenário, conhecido e saudosista que ocupa parte de
seu tempo em idas e vindas pela capital japonesa em busca de inspiração para
seu último livro. É durante um de seus passeios, no fim de uma tarde chuvosa,
que Oe conhece Oyuki, uma moça pobre que abandonou sua vida como gueixa para
prostituir-se na zona do bairro de Tamanoi. Logo os dois começam um caso
prolongado e, enquanto escreve seu livro, Oe tira daquela relação o alento para
sua solidão e a inspiração para sua literatura.
Dividido em dez pequenos
capítulos, Histórias da Outra Margem é,
ao mesmo tempo, o breve relato das incursões de Oe ao bairro que ficava ao
leste do rio Sumida, durante o seu romance mal resolvido com Oyuki, e também a
descrição do processo de composição e escrita de um romance.
Resenha
Foto: Eric Silva, 2018. |
Nessa longa conversa que
compõe, contraditoriamente, um breve romance (quase uma novela), Tadasu Oe nos fala sobre diversos temas
desde cineteatros à moda e literatura da época. Mas os assuntos preferidos do
narrador são, no entanto outros: as mudanças na cidade de Tóquio, reconstruída
após o terremoto de 1923; seu livro até certo ponto estagnado; o nem sempre
tranquilo ofício de escritor e sua relação mal resolvida com Oyuki. A
destruição e reconstrução da capital, porém tem dentro na narrativa um peso
maior como se fossem símbolos da transformação e profunda ocidentalização do
Japão nas primeiras décadas do século XX.
O livro é o retrato da vida
boêmia toquiota na década de 30, sobretudo a vida das meretrizes das zonas
semiperiféricas de bairros como a Tamanoi da época. Por conta desse fato, para
quem não conhece Tóquio, a meu exemplo, e muito pior a Tóquio de 1930, esse
livro é uma excursão por lugares totalmente desconhecidos, mas extremamente
familiares para seu narrador. Muitos desses lugares já estão há muito perdidos,
engolidos pelo tempo, e, no final, exigem do leitor um maior esforço de
imaginação.
Mas algo muito curioso nesse
livro é a sua intertextualidade acentuada. Uma intertextualidade que se
constrói sobretudo com a obra do autor e com sua vida pessoal. Nele são citados
livros anteriores de Nagai Kafu, amigos seus de infância como Aa Inoue e Soyo
Kojiro, dos quais fala com saudade. O romance fictício desenvolvido pelo
personagem e intitulado O Desaparecimento
também possui citações transcrita no texto principal de Histórias da Outra Margem e até um capítulo inteiro é transcrito. Além disso, fragmentos de textos de
outros escritores e poetas como Gakkai Yoda e Matsuo Bashô são citados,
completando a intertextualidade do livro.
Pelos elementos pessoais
presentes na obra e outros, marcantes nos hábitos e na personalidade boemia de
Tadasu Oe, muitos especialistas em
literatura japonesa consideram o personagem principal desse livro o alter ego
de seu escritor. Assim como Oe, Kafu era assíduo frequentador de bordéis e
casas de prazer, assim como a descrita na sua narrativa. Ademais, Histórias da Outra Margem, como descrito
na orelha do livro, parece uma mistura
de diário, ficção, poesia, crônica e memórias.
A narração é linear e não
explora o uso de flashbacks, ainda que o narrador pareça nostálgico em relação
ao passado.
Apesar de cronológico, o
tempo decorrido durante a narrativa não é preciso e nem definido. Ao que me
pareceu apenas a passagem das estações do ano permitem precisar o tempo em que
as ações ocorrem e por isso as mudanças no tempo são essenciais na narrativa.
Já observei, na maioria dos
livros japoneses que já li, que as estações do ano é um elemento muito
explorado pelos escritores nipônicos. Em Naufrágios
de Akira
Yoshimura esse destaque para as estações e seu uso como demarcador do tempo
é icônico e entorno delas é construída toda a trama. Mesmo em animes e mangás
essa é uma característica japonesa proeminente e curiosa, como se o “calendário natural” convivesse
harmoniosamente ou até mesmo subordinasse o calendário convencional.
No livro de Kafu, a passagem
das estações é também elemento importante e que se concilia com o aparecimento
dos mosquitos que infestavam Tamanoi no verão escaldante de Tóquio. Datas são
pouco usadas com exceção de alguns anos que demarcam acontecimentos anteriores
à trama. Também no final do livro, que é encerrado com a provável data de
fechamento de sua escrita: “Tóquio, 30 de
outubro de 1936, ano do cavalo”.
Um elenco pequeno:
narrador e personagem
Com um profundo tom intimista e olhos centrado na vida
cotidiana e literária de seu narrador, Histórias da Outra Margem é um livro que
parece alheio ao momento histórico de totalitarismo político, ultranacionalismo
e imperialismo militar que dominou o cenário político japonês e que culminou na
invasão japonesa da China em 1937, ano de publicação do livro. Contudo, não é
uma obra que se encontra alheia as mudanças provocadas pelo tempo que muda não
só as pessoas como os lugares, marcando na retina daqueles que viveram bastante
a saudade de coisas que se perderam no passado. Essa nostalgia é a principal marca da narrativa desse livro, o que
fica nítido sobretudo no saudosismo de Oe que descortina as mudanças profundas
e pouco sutis sofridas pela cidade de Tóquio após o grande sismo de Kantō, terremoto ocorrido no ano de 1923, cujos
efeitos – somados a um tsunami subsequente e inúmeros incêndios – foi responsável
pela morte de 110 mil japoneses.
Em muitas passagens o
narrador é irônico e opina sobre a polícia metropolitana, o trabalho dos
cafetões e as transformações ocorridas na cidade que muito lhe desagradam:
“Eu queria mostrar como a beleza
da Tóquio antiga, de seus bairros famosos, se perdeu depois da reconstrução que
se seguiu ao Terremoto de 1923. Por isso, queria que a história de Taneda e
passassem em um desses lugares da capital, cujo charme de outrora se fora para
sempre: Honjo, Fukagawa, os arredores de Asakusa; [...]”.
Ao longo de toda a narrativa,
Oe recorda os lugares que já não existem na “nova” Tóquio, as mudanças
provocadas não só pela destruição do terremoto (principal marco temporal usado
pelo narrador para separar a nova da antiga capital), como também aquelas
provocadas pelo crescimento da cidade em direção aos seus subúrbios; o
surgimento de novas áreas periféricas e a transformação de bairros boêmios ou
antigas zonas de prostituição forçadas a se deslocarem em decorrência do avanço
da cidade.
Por conta disso, o tom principal desta narrativa é marcado
pela nostalgia de um personagem que viveu uma outra Tóquio, diferente, e que
viu ruir e transmutar após as chamas e destruições provocadas pelo sismo. Mas
mais do que uma Tóquio que foi consumida pelo fogo ele sente saudades de uma
era que deixou de existir após a restauração da era Meiji e que foi responsável
pela modernização do país.
Podemos dizer inclusive que é
a forma ainda muito tradicional com a qual Oyuki se veste um dos principais
atrativos que atraem o protagonista de Kafu. A monotonia da casa onde ela
atendia complementaria o interesse do escritor que foge do barulho dos rádios e
megafones das casas vizinhas a sua.
Porém, a nostalgia não é a
único traço do desenho psicológico do narrador e personagem principal. Ele é um
homem de hábitos simples, mas possui uma seriedade difícil de enquadrar, porque
não é grave como a de alguns homens moralistas e inflexíveis (o que ele não é
nem um pouco) e nem se dilui em risos ou brincadeiras.
Ele é também tranquilo,
contemplativo e perspicaz, mas deixa transparece uma personalidade um pouco
relapsa. Alguns críticos e resenhistas o classificam com um outsider, alguém “apreciador de uma outra época”[1].
Sua forma de se expressar e conviver, porém demonstra não apenas toda a
natureza tranquila e até fria típica de alguns estereótipos orientais mais
comuns, mas também a distinção de alguém muito instruído, o que de certa forma
contrasta com os ambientes degradados e moralmente indecorosos frequentados por
eles.
Oe, além de escritor
reconhecido e que inclusive viveu parte de sua vida no exterior, é um assíduo
frequentador das casas de prazer toquiotas
e profundo conhecedor do mundo dos bordéis, cafetões e prostitutas. Por conta
disso não é de se surpreender que esse seja um dos principais temas de seus
diálogos com o leitor. Contudo, a forma de falar de Oe se mantém polida durante
a maior parte do texto. Só notamos alguma diferença quando Oyuki, confundindo-o
com um marchand[2] de desenhos “secretos” (pornográficos), passa a
falar com ele de uma forma mais coloquial e faz menos “cerimônia” em sua
presença.
Não obstante, o narrador tem
consciência de que os ambientes frequentados por ele lhe renderiam má fama em
seu meio e, por isso, tomava cuidado para não ser visto por nenhum jornalista.
Também para evitar ser visto de uma forma diferente naquele mundo, omite sua
condição e profissão, inclusive de Oyuki.
Por sua vez, Oyuki é uma
mulher de comportamento muito típico para a sua profissão, o que, em parte,
alimenta estereótipos. Ela não é excessivamente vulgar, mas não deixa de ser.
Trata-se de uma moça pobre, de origem camponesa, ainda um pouco ingênua e, até
certo ponto, afável e jovial. Todavia, em muitos momentos Oyuki revela a
tristeza profunda e o cansaço de quem vive uma vida difícil e sem recompensas.
É um personagem profundo, mas que não consegui captar completamente, por isso,
não tenho muito o que falar de Oyuki, ainda mais que tudo sobre ela é filtrado
pelo olhar do narrador que a olha com curiosidade e certa compunção[3].
O elenco do livro é composto
por muito poucos personagens, a maioria deles tem participação muito secundária
e que se resume a um único capítulo ou apenas parte dele. Também não há uma
preocupação excessiva com descrever os personagens, apenas a Oyuki, mas isso é
feito de forma espaçada no ritmo de desenvolvimento da trama. Porém, a
descrição de Oyuki, em contraponto com os demais personagens, é justificável,
uma vez que ela é a “musa” do narrador e sua inspiração.
Apreciação crítica
Foto: Eric Silva, 2018. |
Histórias da Outra Margem é, em suma, bastante cotidiano, semelhante ao livro Beleza e Tristeza de Yasunari Kawabata
que é igualmente monótono, o que faz de ambas as obras impopulares entre as
gerações mais atuais. Ainda assim, é uma leitura fluída e não travei em nenhum
momento ou abandonei a leitura se não fosse por um motivo apropriado.
A obra é antiga já tendo
completado mais de 80 anos de publicado, o que contrasta bastante com a idade
da edição lida por mim que tem apenas oito anos de publicação, uma diferença de
mais de sete décadas. Isso demonstra o quanto o mercado editorial brasileiro
continua fechado às obras estrangeiras que não pertencem a literatura
euro-estadunidense.
A literatura japonesa ainda
chega até nós com maior frequência, a exemplo das obras de Haruki Murakami e
Yasunari Kawabata, mas quando se trata de outros países asiáticos e
principalmente africanos e da Oceania há uma vasta lacuna de milhares de livros
que nunca foram traduzidos e que provavelmente não serão, com exceção, é claro,
dos antigos e futuros ganhadores do Nobel de Literatura. Por isso, o trabalho
da editora Estação Liberdade é importantíssimo para que essa leitura oriental
chegue ao público brasileiro.
Mas, a despeito da longevidade da obra, a tradução
impecável de Andrei Cunha facilita a leitura que não possui uma linguagem
demasiadamente erudita. Além disso, as
notas de rodapé escritas pelo tradutor foram imprescindíveis para o
entendimento da obra que faz muitas referências aos costumes, à cultura e à
moda japonesa da época. Cunha também traduziu, para a mesma casa editorial, o
livro Guerra das Gueixas, outra obra
icônica de Kafu.
A diagramação é também
caprichada e o livro foi feito com papel de excelente qualidade, se não
bastasse, os desenhos de Shohachi Kimura, que marcam a divisão dos capítulos,
foram retirados da edição original e tornam ainda mais atraente a edição
brasileira.
Em conclusão, o desfecho de Histórias da Outra Margem não surpreende, porque o narrador vai
dando diversas pistas ao longo dos últimos capítulos. Contudo, é um final
original, porque, apropriando-me das palavras do próprio Oe, não se preocupa em
ser “satisfatório”. Oe, ao contrário, nos convida a pensarmos uma outra forma
de concluir o seu romance.
Breve, sutil e um pouco monótono, mas de uma qualidade
literária indiscutível. Este é Histórias
da Outra Margem de Nagai Kafu.
A edição lida é da Editora
Estação Liberdade, do ano de 2013 e possui 128 páginas.
Sobre
o autor
Nagai Kafu (永井 荷風) é o pseudônimo de Nagai
Sokichi. Kafu nasceu em Tóquio no ano de 1879 e é autor de romances, contos e
peças de teatro.
Desde a adolescência
interessou-se por literatura e cultura tradicional japonesa e chinesa.
Aos 19 anos escreveu seus
primeiros contos, publicados a partir de 1900. Rebelde quando jovem, Kafu não
conseguiu terminar seus estudos universitários. Na primeira década do século XX
viveu no exterior, primeiramente em Nova York, onde trabalhou em um banco
japonês. Em 1906, muda-se para Lyon, na França, onde teve um contato mais
intenso com a cena literária, especialmente com a escola do simbolismo. Esse
período inspirou o livro Amerika Monogatari [Histórias americanas], de 1908.
Ao retornar ao Japão, em
1908, já era um homem de letras maduro e cosmopolita e torna-se estudante e
tradutor de literatura francesa. Por alguns anos após seu retorno, Kafū foi
professor na Universidade de Keiō, em Tóquio, e líder do mundo literário.
Manteve intensa produção até
sua morte, em 1959.
Confira quem são os outros
autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.
No link abaixo você pode conferir uma prévia do livro
disponível no Issuu.
Preview
do Issuu
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Cinema
[1]Marilia
Kubota. Nagai Kafu Retoma O Mundo Flutuante. Disponível em:
https://revistamemai.wordpress.com/2013/02/26/19-literatura-nagai-kafu-retoma-o-mundo-flutuante-em-historias-de-outra-margem/.
[2]
Palavra francesa (em português, "mercador" ou
"comerciante") que, em alguns países não francófonos, designa o
profissional que negocia obras de arte.
[3]
Sentimento de pesar, de arrependimento por haver cometido má ação.
Eu li esse livro e gostei bastante, apesar de saber que o ritmo é bem cadenciado, mais monótono do que os livros que costumo ler. É uma história profunda sobre a vida comum...
ResponderExcluirGrande abraço!
Drica.
Livros monótonos também podem ser prazerosos, tudo depende do nosso estado de espírito. Além disso é importante variar as leituras. Gostei do livro de Kafu e como quase toda obra japonesa deixa uma reflexão muito interessante.
ExcluirObrigado pelo comentário Drica. Abraço.