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domingo, 19 de julho de 2020

[Novos Escritores] O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas – João Gabriel Leal – Resenha

Por Eric Silva para a Tag Novos Escritores

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Nos últimos tempos, navegando pelas redes sociais, tenho conhecido muitos autores novos com poucos anos de carreira, estreantes, além de autores independentes que lutam pelo seu espaço no tão competitivo e fechado mercado editorial. Esses encontros casuais acabaram por me lembrar de muito outros que possuo na estante e que nunca cheguei a ler. No final, isso me deu a ideia de uma nova tag: o “Novos Escritores”.

Na terceira resenha dessa nova tag apresento o primeiro livro da trilogia O Amaldiçoado de João Gabriel Leal, O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas conta a história de Lucas, um menino de aparência muito exótica que descobre ser um lobisomem, cuja missão é exterminar o mal dos vampiros que ameaçam a humanidade. Um livro de tema um pouco batido, mas com seu próprio charme, esse é uma obra com um protagonista cativante e com um estilo de narrativa que muito me lembrou as histórias reunidas na Coleção Vaga-lume.

Confira a resenha.

Sobre o autor

João Gabriel Leal tem 26 anos de idade é jornalista, baiano, e atua na imprensa esportiva. Começou a escrever ainda criança, com apenas oito anos de idade.

Na infância, João Gabriel escrevia histórias curtas sobre super-heróis, porém só depois de adulto se sentiu pronto para desafios maiores e escrever mais do que algumas folhas de caderno. Depois de assistir a um documentário sobre lobisomens, teve a inspiração para escrever seu primeiro livro publicado, O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas, primeiro volume de uma trilogia que já tem continuação em O Amaldiçoado e a Tarefa dos Lunáticos, lançado ano passado.

Atualmente, está produzindo o terceiro livro da trilogia.

Sinopse do Enredo

Eulália é uma mulher muito religiosa, mas se casa com Arthur Lupino, um dos maiores mulherengos da pequena cidade sulista de Vale dos Anjos. Aparentemente, aquela relação impensável dá certo até o dia que supostamente Arthur é convocado pelo exército e só retorna nove meses depois com um bebê nos braços. Esse bebê é Lucas, uma criança que supostamente Arthur encontrou abandonado em um ninho de cobras e acabou salvando-lhe a vida. Mesmo desconfiada da história e preocupada com o destino de Lucas, Eulália aceita adotar o menino.

Um tempo depois Arthur é assassinado por um vampiro que tenta atacar sua família. Ninguém descobre a forma como ele morreu e consideram a morte como resultado de um suicídio. Eulália sozinha não consegue tocar a fazenda e torna a se casar, indo morar com Lucas na casa de seu novo marido, Pedro Antônio, e de seu filho, Édipo.

Com o passar do tempo, Lucas vai crescendo e se tronando um menino de aparência estranha, fome descontrolada e temperamento difícil. Está sempre metido em brigas e confusões na escola e tem uma relação delicada e difícil com o padrasto e o enteado da mãe, o que o coloca em situação difícil também com a mãe. O rapaz se irrita muito facilmente e apesar de muito franzino possui uma força descomunal. Mas é quando completa 13 anos de idade que Lucas faz uma grande descoberta sobre si mesmo: um monstro vivia dentro dele.

No dia do seu aniversário, Lucas se desentende e acaba agredindo Édipo, mandando-o para o hospital. Irritado consigo mesmo o garoto passa aquela noite inquieto e sente febre. Como consequência da misteriosa febre, Lucas passa por uma transformação que o torna num lobo faminto, destrói a janela do quarto e desaparece na noite iluminada pela lua cheia. No dia seguinte, o garoto acorda nu no meio da floresta ao lado dos restos de um animal morto que ele, transformado em lobisomem, havia devorado naquela noite.

Desorientado o menino vaga pela floresta sem saber como chegar em casa. É nesse momento que ele encontra um Border Collie[1] que o guia até uma cabana. Morcego, forma como Lucas apelida seu novo companheiro, guia o menino até a casa de seu dono, Anselmo, um antigo amigo de Arthur que revela a Lucas o que havia acontecido com ele e o esclarece acerca de sua missão no mundo, a missão de todos os lobisomens: caçar e exterminar os vampiros. Mais do que isso, o menino lobo é o único capaz de deter o retorno da Rainha das Trevas, a mais poderosa vampira da história. É nesse momento que tudo muda na vida do garoto que passa a enfrentar desafios enormes e perigosas aventuras, ao mesmo tempo que tem que lidar com a chegada de Félix, um garoto novo na escola, mas de áurea misteriosa e sombria. 

Resenha

Vampiros, lobisomens e adolescência: apreciação crítica das temáticas

Histórias de vampiros são muito comuns e não são poucas as obras que possam ser citadas quando se fala do tema. Contudo, histórias de lutas entre lobos e vampiros e o tema da miscigenação entre estas raças parecem ter se tornado mais populares após obras de grande sucesso e divulgação internacional como jogos de RPG, a série Crepúsculo e a franquia de filmes Anjos da Noite.

É possível perceber na trama de João Gabriel influências de algumas obras, sobretudo dos jogos de RPG. Isso não significa, porém, que o O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas não seja original. Pelo contrário, se o autor inicialmente parece se inspirar em outras obras para sua ideia base, por outro lado esbanja originalidade ao apresentar uma proposta de narrativa completamente distinta, nem exageradamente adulta, violenta e pouco crível como o elétrico Anjos da Noite; nem melosa, enjoativa e clichê como o romântico água com açúcar, Crepúsculo; e bem mais literário e intimista do que costumam ser os jogos de RPG.

Romance de terror infantojuvenil, puxado para o subgênero da fantasia sombria, João Gabriel oferta ao seu leitor uma história com muitos personagens realistas e cativantes como Lucas e seu Anselmo. Uma narrativa que não é exageradamente infantil para ser desprovida de ação realista e mortes reais, nem exageradamente adulta para deixar de ser recomendável aos menores como é o caso do subgênero do terror: o vampirismo erótico.

Gravura no frontispício do livro "História dos vampiros e espectros malignos: com um exame do vampiro" Publicado por Masson, Paris 1820 por Collin de Plancy. Wikimedia Commons.


É um livro leve sem deixar de ser crível ou abusar do sentido de impossível. Possui mágica e elementos fantásticos que me fizeram lembrar do universo paralelo de Harry Potter e a originalidade de uma mente criativa que gosta de brincar com seu enredo.

O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas é um livro que me lembrou bastante as histórias e o estilo das narrativas da Coleção Vaga-Lume. Não apenas por seu estilo de escrita se assemelhar com a de alguns escritores da coleção mais lida do país, mas porque ele possui uma temática sólida por trás, e que busca discutir nas entre linhas um aspecto da vida do leitor jovem. Não é um livro apenas para entretenimento, sem, por outro lado, deixar de sê-lo.

Todo livro destaca ou espelha algum aspecto da vida e nos leva a pensar a nossa realidade mesmo quando a trama é de fantasia e tem em si uma verossimilhança unicamente interna. No caso do livro de João Gabriel esse aspecto é a adolescência.

A adolescência é uma fase difícil porque é marcada por uma série muito grande e complicada de mudanças físicas, psicológicas e comportamentais. É um momento de descobertas e de construção da personalidade, das paixões súbitas, da não aceitação do corpo e de uma maior preocupação com a aparência e com a imagem que o outro faz de si.

Como passagem para a vida adulta, essa é uma fase complicadíssima de muitas mudanças e incertezas, no qual o adolescente busca desafiar-se e integrar-se com o mundo social. É um período de formação do indivíduo que será adulto logo mais, um momento de buscar voltar os olhos para o social, tirando-os um pouco do âmbito familiar. Por isso, os jovens gostam de estar integrados a grupos, aos seus pares e estar mais com os amigos e menos com a família.

Lucas está entrando na adolescência e se sente deslocado porque se sente diferente dos demais, mais do que isso, porque é visto como diferente, como estranho e, por isso, sofre rejeição e bullying, e tem dificuldade de fazer amizades. Se aceitar como diferente é seu principal desafio. Mas temos o outro lado também. Mesmo sendo um alguém diferente, Lucas também sente dificuldades de lidar com as diferenças dos outros. O exemplo máximo dessa assertiva é seu único “amigo”, Chico.

Francisco Redondo (um sobrenome bem clichê para alguém gordinho) possui uma personalidade bem diferente da de Lucas, além de ser bastante invasivo, ou “entrão”, como se diz aqui na Bahia. Chico, assim como Lucas, é um garoto solitário e isolado socialmente e vê no menino lobo a oportunidade fazer uma amizade. Por conta disso, Chico tenta de todo modo forçar uma aproximação que Lucas não desejou e nem deseja. Por seu turno, Lucas não sabe lidar com Chico porque, não forma com ele exatamente um igual, um semelhante, e isso cria em Lucas uma certa rejeição ao garoto e uma dificuldade de aceitá-lo como amigo.

Outro ponto desse personagem complexo que vive o principiar da adolescência é a busca por seu lugar no mundo e o papel que desempenhará nele. Descobrir que é um lobisomem não só joga o peso do mundo em suas costas como lhe dá uma missão que ele não pediu, que parece irrealizável, mas, também inescapável. Para alguém que ainda está se conhecendo e se descobrindo, criando referência e desenvolvendo-se a missão de proteger o mundo do retorno de uma poderosa vampira é um fardo pesadíssimo.


Desenho de um lobisomem na floresta à noite.Mont Sudbury. Wikimedia Commons.

Se tudo isso não bastasse ele também está apaixonado e tem fé que conseguirá atrair a atenção da garota que gosta, Melissa, mas, ao mesmo tempo, está inseguro de tudo e não tem certeza de que um dia conseguirá. Na escola as relações com os colegas e professores é um desafio e, em casa, os atritos e brigas são constantes.

Enfim, a adolescência é uma fase de contradições e Lucas é a própria contradição em pessoa. O livro de João Gabriel mostra com maestria o que é ser adolescente pela perspectiva do mais estranho e deslocado de todos: um garoto lobisomem. O livro fala de bullying, de primeiro amor, de amizades, de amor familiar, de aceitação e por isso é diversificado e ultrapassa os limites de uma narrativa de fantasia ou terror infantojuvenil sobre lobisomens e vampiros.  

O pequeno lobisomem e outros personagens

Um dos pontos que mais gostei neste livro foi a construção de seu protagonista que de tão complexo parece real.

João Gabriel concebe um protagonista com quem muitos facilmente se identificariam. O menino estranho dos cabelos espetados que cheira a cachorro molhado, que vive isolado, mas que esconde uma pequena paixão pela garota bonita da classe. Um filho que ama sua mãe, mas que não consegue evitar de trazer-lhe desgostos. Um jovem cheio de energia e potencial, mas que é hostilizado por um padrasto que o considera um incômodo. O garoto diferente que é alvo de bullying do enteado da mãe e dos valentões da escola. O rapaz que tenta entender quem ele é e qual o seu propósito no mundo. Todos eles são Lucas Lupino.

Lucas é um garoto diferente com uma aparência estranha (isso é fato incontestável). Tem uma fome incontrolável e uma irritação ameaçadora que assusta muitos a sua volta. Para muitos ele é só mais um futuro delinquente, mas intimamente ele é só um garoto como outro qualquer, com seus medos, sonhos e paixonites. Ele também é um monstro, perigoso, ameaçador quase incontrolável, mas também tem a pureza de alguém que deseja ser bom e fazer o seu melhor. Enfim, Lucas é um personagem multifacetado e isso faz dele um personagem intrigante ao mesmo tempo que cativante.

Acompanhá-lo é ver uma criança perdida que tenta desesperadamente buscar respostas e controlar seus ímpetos agressivos. Ele é um garoto corajoso, mas cheio de medos e indagações. Sua instabilidade emocional o faz tão frágil quanto o faz forte e, mesmo sua natureza biológica, ao que tudo indica, parece desafiar as próprias leis naturais. O tipo de personagem que mais adoro porque tem uma construção que tende a ser complexa e realista.

Acredito que todo ser humano é um universo em si complexo e multifacetados. Não somos a mesma pessoa nem agimos igual ao tempo todo e como cebolas (sim, cebolas, você não leu errado) somos feitos de camadas sobrepostas de tamanhos distintos, porém, diferentes das cebolas, com tons ligeiramente dessemelhantes.

Não gosto de personagens planos, simples construídas em redor de uma única qualidade ou defeito, mas de personagens complexos e contraditórios, os ditos personagens redondos. Lucas é um deles e já vale pelo livro inteiro.

O Amaldiçoado é uma série com um elenco vasto e muitos outros personagens perfilam pela história. O misterioso Arthur Pedro Antônio, o padrasto burguês e hostil que só pensa em dinheiro; seu filho, Édipo, prepotente e que pensa ser superior a Lucas e por isso está sempre atormentando seu juízo. Chico, o “melhor” e praticamente único amigo de Lucas, mas que passa a maior parte da história forçando esta aproximação e amizade. Melissa, a menina bonita por quem Lucas é apaixonado. Cito ainda Félix, o menino novo da escola que acaba criando uma grande confusão em Vale dos Anjos e se tornando elemento-chave na narrativa.

Muitos outros personagens secundários foram criados por João Gabriel, contudo estes alongariam demais a resenha caso fossem citados com pormenores. Contudo, dois personagens precisam ser destacados. O primeiro é Eulália, a mãe de Lucas, o outo seu Anselmo, que se destaca como mestre e instrutor de Lucas.

Destaco Eulália porque foi um personagem que me chamou a atenção e me causou estranhamento. Eulália é uma religiosa fervorosa, descrita como uma verdadeira beata, porém a maior parte do tempo ela não me convenceu. Achei que o personagem está demasiadamente cercado de estereótipos por ter sido criado como uma mulher exageradamente pura, cristianizada e correta, um exemplo de retidão e probidade só porque é religiosa. Fora os seus momentos de irritação, quando Lucas apronta das suas, Eulália é comparável a Virgem de tão certinha, por isso achei sua construção um pouco caricata e fora da realidade.

Eulália é um exemplo de personagem plano e na maior parte do tempo permanece como um – ela só mostra as unhas uma única vez, já perto do final do livro. Como já disse não gosto de personagens planos, porque é meio difícil de acreditar na constância moral deles, eles não me parecem críveis ou realistas. É certo que a história esconde um propósito para ter um personagem assim, mas isso só fica claro muito tempo depois e é só nesse momento que Eulália ganha um pouco mais de profundidade.

Por seu turno, destaco seu Anselmo por ser um dos personagens mais exóticos e enigmáticos da trama. Ele é descrito como um senhor de idade, sempre portando seu chapéu panamá, e que vive isolado na sua cabana no meio da floresta. Como Lucas ele é um lobisomem, já tem mais de 100 anos e é na trama a chave central para entendermos o passado do menino e suas origens. Ele cumpre o papel de mestre e mentor de Lucas, e o ajuda em muitos aspectos, mas acho que ele poderia ter uma presença mais intensa na trama. Ele some nos momentos mais cruciais da narrativa, mas tenho impressão que será elemento-chave no segundo volume da série.

Para finalizar...

A escrita de João Gabriel é leve e fácil de compreender. Ele escreve bem, no entanto, a história do livro tem um começo fraco e só ficar realmente interessante quando Lucas passa por sua primeira transformação.  A partir dali a narrativa passa alternar entre momentos tranquilos, momentos de tensão e outros de ação e morte. A leitura só é cansativa nos primeiros capítulos, mas, à medida que a trama se torna mais dinâmica e consistente, passa a fluir rapidamente e se torna mais instigante.

O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas é uma história interessante com um protagonista cativante com o qual o leitor divide e reage aos anseios e medos do mesmo. Lucas é um menino problemático, mas com o qual você se compadece. Só acho que a obra deveria evitar as armadilhas de americanização da cultura brasileira. Uma cidade inteira que comemora o dia das bruxas não é exatamente comum no Brasil. Comemorações como estas em escolas, sobretudo particulares, são bem comuns, mas uma cidade inteira não é ainda algo existente.

Infelizmente, O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas possui alguns pontos negativos, três para ser exato. O primeiro deles já mencionei quando falava de Eulália: essa não é uma obra livre de alguns estereótipos inocentes, mas inegáveis e que deixam alguns personagens, como Eulália com um certo ar caricatural.

O segundo ponto é o narrador e suas piadas sem humor. Narrado em terceira pessoa, o livro tem um narrador ativo na narrativa. Ele opina, se compadece dos personagens e tenta se engraçado, mas nem sempre consegue êxito.

Mas o que mais me chamou a atenção foi um pequeno trecho, imperceptível quase, mas destaco porque achei muito incoerente e, até certo ponto, inadequado para um livro infantojuvenil. Trata-se de um comentário sobre um dos personagens relacionada a questão da autodefesa do porte de armas:

“Na sala, pegou uma lanterna potente de fazendeiro, uma faca de caça e uma espingarda calibre doze que deixava num armário para ocasiões como aquela. Era a favor da autodefesa. Achava que a polícia não fazia seu trabalho direito e a segurança no país estava um caos”.

O comentário é completamente desnecessário para o entendimento da trama e de seu personagem. Sem querer, a passagem faz aos jovens uma espécie de apologia ao porte de armas, um posicionamento político do personagem desnecessário a obra que, para sua faixa etária e temática, deveria ser politicamente neutra. Na minha opinião, bastava mencionar que ele pegava uma espingarda, arma comum entre caçadores de animais.

O desfecho é sem dúvida um dos melhores aspectos da narrativa. Cheio de acontecimentos inesperados, mistérios e reviravoltas, a conclusão do primeiro livro nem de perto dá um ponto final na narrativa ou esgota suas possibilidades. João Gabriel soube o exato momento onde encerrar a escrita de O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas para deixar seu leitor curioso e ansioso pelo segundo volume da série.

O destino de Lucas fica em aberto bem como da maioria dos personagens. O seu futuro e o destino da humanidade ficam em suspenso e você curioso para saber como Lucas fará para enfrentar os novos desafios que se abrem a sua frente. Quais aliados fará nessa empresa e como seguirá em frente em direção ao seu destino? As possibilidades são imensas, mas tudo depende de como o autor conduzirá a segunda edição que já foi publicada sob o título de O Amaldiçoado e a Tarefa dos Lunáticos. Esperemos pelos desfechos do próximo livro.

A edição lida é independente e está disponível na Amazon, porém o livro já foi publicado em edição impressa pela Editora Giostri, no ano de 2017 e possui 188 páginas.



[1]Raça canina do tipo Collie desenvolvida na região da fronteira anglo-escocesa na Grã-Bretanha para o trabalho de pastorear gado, em especial, de ovelhas. (Wikipédia)


domingo, 14 de junho de 2020

[Novos Escritores] Os Cinco do Ciclo – Elias Flamel – Resenha

Por Eric Silva para a Tag Novos Escritores

27 de maio de 2020

“Não se pode esquecer dos homens simples que, mesmo sendo fracos, decidiram defender suas terras e seus deuses.”

(Os Cinco do Ciclo – Elias Flamel)

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Capa da edição lida. A edição é resultado de uma
produção independente.
Reflexivo, introspectivo, contemplativo, este é o livro do brasileiro Elias Flamel, um romance extremamente difícil de classificar, porque se equilibra entre dois mundos, o da literatura como entretenimento e o da literatura como expressão da natureza humana.

Sinopse

Keltoi é um pequeno e pacífico vilarejo agrícola nos confins do império Numitor, “que cresce pouco e é alimentado pela rotina”, mas que vive seus dias tranquilos sob a proteção dos cinco deuses do Ciclo e sob a gerência benevolente de seu líder, Yosef, um homem tão devotado a felicidade de sua vila quanto ao amor que possui por sua família ou à devoção que tem pelos deuses.

Todos os anos é ele o responsável por entregar, na capital do império, o pesado imposto, pago em centeio, que Numitor lhe exige, mas nada o faz se acostumar com a capital e suas contradições, com a arrogância do império ou com o fato de que grande parte do esforço de sua vila alimenta a enormidade de uma nação de corruptos, assassinos e preguiçosos. Mas diante da força do maior império do mundo, Yosef prefere submeter-se a pôr em risco sua família e seu povo.

Fora seus deveres como líder de Keltoi, a vida de Yosef é pacata enquanto envelhece ao lado da mulher, Morgiana, de seu caçula, Julian, do sério Hitalo, o primogênito, do despreocupado Yohan, o filho que mais lhe causa preocupação, e da velha Guilda, que com tanto amor cuidou dele e agora cuida também de sua família. Mas há algo que o preocupa, que o inquieta e não o abandona, porque se prenuncia em todos os lugares e em todas as bocas: os ventos da mudança.

É com essa inquietação que Yosef chega a capital do império para entregar mais um carregamento de seu precioso centeio e é também lá que ele ouve boatos sobre uma nova ameaça que não só coloca em risco o seu povo, mas a sua cultura e crenças: uma nova religião, monoteísta e conduzida por fanáticos que ameaçam a vida daqueles que consideram pagãos. E com a urgência de manter protegido tudo que ama, ele se vê no difícil desafio de buscar ajuda no seio daquele que mais o enoja: o poderoso Império de Numitor.

Resenha

Quando Flamel me convidou para ler seu livro e opinar sobre esta longa narrativa, imaginei que encontraria ali uma saga ao estilo fantasy, cheio de cenas dantescas, batalhas épicas, criaturas improváveis e muitos desafios no caminho de um protagonista que tem uma missão preciosa e perigosa a cumprir. Mas me enganei completamente.

O que eu tinha na tela do meu tablet não era o livro que imaginei, mas outro, um romance extremamente difícil de classificar, porque se equilibra entre dois mundos, o da literatura como entretenimento e o da literatura como arte que versa sobre a vida e a natureza humana.

Reflexivo, introspectivo, contemplativo, escrito com uma qualidade narrativa acima da média, num estilo de escrita que parece morrer frente ao imediatismo e superficialismo de nossos tempos, que atinge as novas gerações de leitores, me atinge (não me excluirei), e a tantos outros. Uma forma de contar histórias que parece flertar com alguns estilos comuns à literatura mais clássica e menos comercial.

Mas vamos ao livro.

O medo da mudança e liberdade religiosa

Os Cinco do Ciclo é daquelas obras que o livro e o personagem principal são uma coisa só. Ele é a própria narrativa, porque não nos deixa espaço para contemplar o mundo por outra janela que não seja a do seu próprio olhar. Isso, obviamente, é característica fundante dos romances escritos em primeira pessoa, mas nem sempre um livro escrito neste foco narrativo tem um narrador que se preocupe tanto em expressar, nos mínimos detalhes, suas próprias emoções e opiniões sobre o que vê, e que acabe por dominar completamente o ritmo em que a narrativa vai seguir como é o caso de Yosef, líder de Keltoi. Sua alma envelhecida e cansada, o seu olhar sempre tão alongado, contemplativo e introspectivo, domina toda a peça e dita o ritmo.

O líder de Keltoi é um homem digno e respeitável, fascinado pelos livros e que ama com intensidade seu povo e se dedica para garantir o bem-estar dos mesmos, ainda que para isso faça enormes sacrifícios pessoais e carregue sozinho o peso de um passado do qual não se orgulha.

Yosef é também um homem muito observador e reflexivo. Influenciado pela sua fé e pelos livros que lê e valoriza enormemente, o velho líder tem um olhar afiado que observa o mundo com curiosidade e sobre o qual tece reflexões longas e desapressadas. Pouca coisa escapa desse olhar afiado que a tudo observa e processa compondo o mosaico do mundo e das muitas pessoas e realidades que surgem em seu caminho. O mundo parece caminhar devagar enquanto Yosef o observa e descreve e essa natureza observadora, que dita o ritmo lento da narrativa, lhe dá um certo caráter de romance filosófico.

Por ser uma pessoa íntegra e dedicada, Yosef exige de sua família os mesmos valores, por isso sua convivência com o filho mais extrovertido e relaxado, Yohan, quase nunca é fácil e as comparações com o primogênito extremamente responsável são invitáveis. Ainda assim, ambos os filhos desejam, cada um ao seu modo, honrar e conquistar o respeito e aprovação do pai.

Por sua vez, a seriedade que o líder de Keltoi demonstra é a daqueles que tem uma grande responsabilidade, mas que confia que há forças superiores que o guiam, e que sempre o permitiram prosseguir com sua missão, por isso, a fé que Yosef deposita em seus deuses é imensa e sólida. Pelo mesmo motivo, ainda que admire a seriedade solene e grave de seu filho mais velho, Hitalo, Yosef não a toma para si em mesma medida e se permite seus momentos de tranquilidade, bom humor e relaxamento, ainda que nunca se esqueça por completo de seus problemas e preocupações.

Sobre a gerência desse homem amigo de todos, honesto, generoso e compassivo, Keltoi não é a vila mais rica, mas segue prosperando e feliz. E a história do livro de fato começa quando este homem tão arraigado às tradições, a sua terra, seu povo e suas crenças, se dá conta de que o mundo para além do que ele conhece, sempre fechado em sua bolha, está em uma rápida e violenta mudança e que essa mudança ameaça transformar e destruir tudo o que ele conhece. Por isso, digo que Os Cinco do Ciclo é também um livro sobre o medo da mudança.

[Citação]

“[...]. Mudança, meu amigo. Essa palavra está na boca daqueles que amo. Querem que eu a veja, dizem até que ela me cerca e isto me preocupa.”

Falando de minha própria crença religiosa, nós budistas acreditamos que nada é eterno ou premente, mas que tudo nesse universo é feito de impermanência, nós e tudo ao nosso redor estamos sempre em ininterrupta mudança. Desse modo, um estado de vida que hoje existe nunca será permanente e dará lugar a outro, e devemos aceitar essa mudança. O mesmo não se dá com Yosef, que meio cego – apesar de tão lúcido (eis aí uma contradição) – parece alheio as mudanças, ou tem, no início, uma posição “negacionista”. Acho que de tão fechado em seu mundo – que quase se resume a Keltoi – ele não pode notar o começo de um novo ciclo, e acabou não tendo o alcance de visão que outros demonstravam. Por isso, a mudança se impõe violentamente e sua ameaça obriga-o a mover-se na esperança de conservar o que ele conhece.

O livro de Flamel, por sua vez, parece querer nos ensinar que a mudança é algo que sempre vem, que se move independente da vontade contrária dos homens, mas que, contraditoriamente, também pode ser acelerada pelas ações humanas. Mesmo os impérios mais poderosos estão sujeitos aos caprichos da mudança e devem se adaptar ou sucumbir aos seus efeitos.

Vivemos hoje um momento assim, no qual um surto viral tomou proporções tais que força governos, o mercado e a sociedade civil a repensarem o mundo e como as pessoas vivem suas vidas. A mudança chegou a galope e pegou a todos desprevenidos. O mundo voltara a ser o mesmo? Provavelmente não.

Mas para qualquer mudança que se abate sobre o mundo, os impactos não excluem o campo da cultura, sobretudo quando se vive em um mundo violento como o de Yosef, no qual os mais poderosos impõem os seus desejos pela força e pela manipulação política. Tomando isso por base, Os Cinco do Ciclo aborda uma realidade muito comum no passado humano: se uma nova religião estende sua influência até aqueles que governam com tirania, as consequências sobre os que não compartilham da mesma fé costumam ser desastrosos (imposições e perseguições, ou seja, violência física e simbólica). É o que o líder de Keltoi teme quando finalmente a mudança fica evidente aos seus olhos.

Todavia o tema de Os Cinco do Ciclo está longe de ser desatualizado, pelo contrário, nos tempos atuais a falta de liberdade religiosa e conflitos de cunho religioso são realidades comuns para dezenas de povos, atingindo, sobretudo, grupos minoritários como o povo de Keltoi. A imposição brutal pelo grupo Estado Islâmico da Sharia, código religioso que regula a vida privada e civil[1], o conflito entre budistas e muçulmanos na Tailândia, entre muçulmanos e não-muçulmanos no Sudão, de xiitas e sunitas no Iraque, e tantos outros de grande ou pequena projeção internacional evidenciam a atualidade do livro de Flamel, que, através de um narrador-personagem politeísta, tenta exprimir o medo ao qual as minorias são impostas quando suas tradições são ameaçadas pelas diferenças religiosas com outros povos.

Diante da iminência de que uma profunda mudança religiosa no império ameace a sobrevivência de seu povo, o líder de Keltoi resolve lutar com as ferramentas que possui, mas toma para si uma tarefa tal qual a de Sísifo, personagens da mitologia grega citada pelo próprio Yosef.

Sísifo era um mortal, filho do rei Éolo, da Tessália, que foi condenado no Reino de Hades a empurrar para o alto de uma montanha uma pedra imensa, mas que logo depois de todo o esforço do rapaz, sempre rolava montanha baixo, forçando Sísifo a repetir seu esforço inútil.  Essa é a melhor analogia que se pode fazer em relação a tarefa a que Yosef se propõe com determinação: rolar uma pedra montanha acima, uma vez que ele tentará lutar contra algo contra o qual aparentemente não tem poder para mudar.

Numitor: uma releitura do Império Romano

Se por um lado, a questão religiosa é o tema que mobiliza o velho Yosef, outro tema é bastante destacado pelo narrador: a subjugação de um povo por outro, com a subsequente tirania e exploração aos quais os povos são submetidos para sustentar a elite da nação dominante. O povo de Keltoi é um desses povos subjugados e obrigados a sustentar com o seu suor uma nação estrangeira, distante, mas poderosa o bastante para fazer valer a sua vontade pela força e pela coerção.

Para ambientar Os Cinco do Ciclo Flamel não cria exatamente um mundo alternativo e fictício, mas adapta uma época da história humana no qual um povo guerreiro e de exércitos poderosos construiu pela guerra um dos maiores impérios da Terra: o Império Romano.

Na história da Idade Antiga, Roma é particularmente conhecida por ter deixado de ser uma vila empobrecida da península itálica e ter estendido seu domínio por uma vasta extensão de terra, colocando sob seu julgo centenas de povos, até o ponto de ser conhecido como um dos maiores e mais duradores impérios da História. Entretanto, Roma é igualmente lembrada por sua política corrupta, cheia de traições, golpes, e pelos muitos regentes vaidosos, inescrupulosos e genocidas que a governaram ao lado ou contra o Senado.  Contudo, em Os Cinco do Ciclo Roma não é Roma, é Romula, e o Império Romano tem outro nome, Numitor, que na mitologia romana, foi rei destituído do trono de Alba Longa e avô dos gêmeos que fundaram a Roma real.

Maquete da cidade de Roma durante o governo de Constantino (306-337)

Flamel faz uma releitura do poder, política e cultura romana, recontando, inclusive, uma das versões do mito de Rômulo e Remo, e desse modo cria seu próprio império dominador dos quatro cantos do mundo sem obrigatoriamente se atrelar a nomes reais e fatos históricos datados. Uma saída inteligente, porque o desobrigou de ter que envolver na sua narrativa a complicada tessitura histórica, repleta de personagens e de ações muito bem datadas do Império Romano, o que só tornariam mais complicada a narrativa e engessaria o seu desenvolvimento. Mas é fato que a política e o poder do exército e do senado romano está ali retratado sob o nome de Numitor. Egípcios, gregos e nórdicos também são citados como povos que foram subjugados pelo poder do império, e a incorporação do cristianismo ao império (que obviamente não recebe esse nome na narrativa) é também retratada.

Mas um fato que, particularmente, me chamou a atenção foi a opção do autor de não retratar a capital do império como um lugar suntuoso como nunca visto em outro ponto do mundo antigo, mas como era de fato a Roma real: uma grande cidade, cheia de riquezas e de vida comercial, mas também de pobreza, e assaltantes. Um lugar onde a riqueza proeminente contrasta com a horda de mendicantes morrendo de fome, mas cuja miséria é ignorada pela multidão. Senti falta apenas do pão e circo[2].

Tomando essa releitura como cenário, o autor se dedica a demonstrar a opressão e descaso do império em relação aos seus súditos e dominados através do olhar de Yosef. O líder de Keltoi, com sua mente lúcida e observadora vai pouco a pouco nos mostrando a injustiça de um império que não deseja mais nada do que expandir o seu poder e explorar ao máximo os povos que vivem dentro dos seus domínios, sendo indiferente as necessidades e dificuldades dos mesmos.

Aponta também como cada povo tem que entregar uma grande parcela dos frutos da terra que produz, como os impostos aumentam a cada ano, e como são tratados com indiferença e até desprezo pelos representantes do Estado. E vai além quando desnuda a corrupção, os jogos políticos e de aparência e a boçalidade e pompa dos dirigentes de Numitor, tecendo uma crítica a como determinadas classes sociais dirigentes vivem e legislam na opulência e cercados de ritos sem sentidos às custas do suor da população empobrecida, que por meio da opressão e coerção se vêm obrigados a contribuir com impostos pesados, sem, no entanto, receber em retorno o que lhe é legítimo por parte daqueles que governam. Como eu disse, um livro atual.

Em lento e contemplativo compasso: sobre o ritmo e o estilo

Contudo, se Os Cinco do Ciclo trata de um tema atual e se inspira na empolgante história de um dos mais famosos impérios da antiguidade. Por outro lado, o seu lento desenvolvimento foi algo que me aborreceu bastante durante a leitura que intercalei com outros quatro livros, todos concluídos antes de terminar Os Cinco do Ciclo.

Por ser muito detalhista e contemplativo, Yosef analisa o mundo num ritmo que é só dele e acaba por ditar o ritmo do próprio livro que conta com 556 páginas, sem que haja grande dinamismo em sua maior parte. Mas a verdade é que para entender porque Os Cinco do Ciclo é um livro de extensão tão grande, mas com desenvolvimento tão lento, é preciso entender o próprio estilo do autor.

Flamel é um autor que escreve bem e com uma fluidez que, normalmente, só é encontrada nos escritores mais experimentados. Não há nele uma preocupação com o imediatismo, com que as coisas fluam rapidamente para um clímax, porque prefere trabalhar profundamente a complexidade da personalidade de seu narrador.

Neste livro ele opta por desenvolver uma obra que se inclina para o filosófico, para a reflexão do personagem-narrador acerca de seu mundo, sobre como nele funciona a vida, sobretudo a vida cotidiana. Para tanto ele desenvolve um personagem nostálgico e que beira ao poético, extremamente descritivo, atento aos detalhes e compassos, intuitivo até, e que apesar de parecer absorto em seus pensamentos, na verdade está atento aos movimentos da vida, às expressões, aos sons, aos ritmos.

O autor também gosta de sobrepor na linha de desenvolvimento da história o presente e o passado e por diversas vezes faz com que seus personagens contem suas histórias para o protagonista escutá-las com atenção, ou dá espaço as memórias do passado do próprio Yosef. Por conta disso, alguns diálogos são arrastados e algumas histórias simples chegam a ser contadas sem objetividade. Mas também não se pode deixar de mencionar que o livro é povoado por muitos monólogos interiores do narrador. E é nesses aspectos que Os Cinco do Ciclo testou minha paciência.

Em minha visão de mundo, considero que ler é algo que exige esforço, é diferente de assistir a um filme, no qual as cenas já prontas passam em seu próprio ritmo indiferente se nossa compreensão segue com o mesmo compasso.

Ler exige esforço do leitor que precisa se acomodar, experimentar uma boa luz em uma posição confortável e exigir de seus olhos que leia e da sua mente que imagine, até que texto e imaginação fundam-se numa coisa só. Por conta disso, leitura e mente devem estar em perfeito compasso. No entanto, se o desenvolvimento da narrativa se arrasta, junto com diálogos igualmente arrastados, o resultado é desastroso, porque a mente não espera e passa a vaguear indo para direções opostas a leitura. Foi assim que me senti lendo Os Cinco do Ciclo e acabei lançando mão de um recurso que não gosto de utilizar: o autoestímulo.

As vezes quando uma leitura não está dando certo ou eu estou me amarrando para prosseguir com ela, leio o epílogo ou as últimas páginas do capítulo final, para ter um lapso fragmentado do desfecho, mas somente até um ponto em que continue impossível a compreensão de como a história chegou aquele ponto. As vezes leio as páginas de trás para frente, e quando vejo que é informação demais, paro. Isso cria artificialmente um interesse em mim de entender aquelas páginas dispersas e retomar a leitura se torna mais fácil.

Isso significaria que Os Cinco do Ciclo é um livro ruim e sem qualidade? De forma alguma.

Flamel tem muito talento para a narração, é detalhista sobretudo na construção de seus personagens e sua escrita é fluida e muito bem estruturada. Se eu fosse comparar Os Cinco do Ciclo a algum livro que já tenha lido, o compararia, talvez com um livro intimista de um grande escritor, a exemplo de Histórias da outra margem clássico da literatura japonesa escrito por Nagai Kafu, mas principalmente ao livro O tigre na sombra, de Lya Luft, ambos com coincidentes 128 páginas.


Esses são os estilos mais aproximados ao de Flamel, levando em consideração apenas livros que já li. Ambos são livros cheios de monólogos interiores, extremamente voltados para seus narradores, para as percepções que os mesmos têm do momento, da vida, dos lugares e do passado. Mas com algumas diferenças cruciais em relação a obra de Flamel: são narrativas baseadas na vida cotidiana simples e puramente, sem criar um mundo para ambientá-las e que precise ser descrito para fazer sentido, e, principalmente, são livros desenvolvidos em narrativas rápidas, a fim de que não se perca o frescor do personagem-narrador que por si só é a principal razão do leitor ler a obra. Digo isso, porque do meu ponto de vista, Dôda, de Lya Luft, e Tadasu Oe, de Nagai Kafu, são as razões desses dois livros existirem, porque os mesmos são lidos não pela narrativa, mas pelo personagem que é foco, centro e praticamente único tema da história. São obras intimistas com personagens voltados para si, vendo o mundo sob sua ótica, contando fragmentos de seu cotidiano, obras que se fossem maiores do que são, seriam extremamente enfadonhas para o leitor médio de nosso tempo.

Outro livro a que Os Cinco do Ciclo me remete é Naufrágios, obra de outro japonês, Akira Yoshimura. Esse é também um livro que tem ritmo muito próprio, que não tenciona acelerar a narrativa porque o tempo não é acelerado na realidade; segue o compasso e o ritmo da natureza. Fala também da sobrevivência de uma pequena comunidade, mas no caso, trata-se de aspectos de subsistência puramente. Todavia, mais que isso, é um livro bastante descritivo como o de Flamel. Há nele a preocupação quase obsessiva de descrever a vida cotidiana, a cultura e as dificuldades da pequena sociedade, fazendo com que a história em si se preocupe mais com descrever o movimento da vida (e no caso do japonês também da morte) do que contar uma história que prenda seu leitor seja pela força da curiosidade ou pela adrenalina da ação.  

Naufrágios é um livro que segue o compasso
 e o ritmo da natureza

O que quero dizer com essas comparações é que Flamel não escreve um livro comercial, cinematográfico, repleto de clichês e fórmulas manjadas, mas que conquistaria facilmente o leitor médio, aquele que está mais interessado no entretenimento do que no lado humanista da literatura. Não que o cinematográfico falte ao livro. Ele está lá, em muitas cenas, no naufrágio do navio, nos sonhos com os deuses do ciclo, no desfecho da narrativa. Mas o principal do livro flerta com outro tipo de literatura, mais clássica, mais preocupada em desnudar questões existenciais, humanas, e encarem isso como um elogio, porque o é.

Tamanha é essa suposta despreocupação de escrever um livro comercial que não sei em que gênero enquadro o livro de Flamel, porque ele pode até parecer pela sinopse como uma espécie de fantasy, mas sua narrativa não tem elementos mágicos ou sobrenaturais que justifique essa classificação, além disso, o enredo poderia facilmente se passar pelo relato de fatos reais acontecidos em qualquer lugar da Europa entre o fim da Idade Antiga e o início da Idade Média.

Seria este um livro existencialista? Não sei dizer. Um personagem obrigado a sair de sua zona de conforto e do mundo por ele conhecido que precisa encarar a mudança me faz lembrar vagamente o estilo. Mas a despeito disso, é um livro que beira muito o realista, não em relação a harmonia um tanto idealizada da aldeia, mas com relação a todo o resto, da descrição daquele mundo imperialista ao desfecho da narrativa. Além disso, é intimista, muito ligado a memória e profundamente imerso nos pensamentos, sensações, observações de seu personagem narrador. Um livro assim é difícil de colocar em uma caixinha, o que é estupendo, mas o desenvolvimento arrastado quebra parte do potencial da obra.

No passado, obras com a pegada de desenvolvimento lento e compassado costumavam ser longos e ainda assim fazerem muito sucesso, porque eram obras escritas para um público que vivia em um ritmo diferente do público atual. No passado, seguia-se uma cadência muito mais paciente, muito menos imediatista, um ritmo muito mais próximo do tempo da natureza, de seus CICLOS.

No entanto, nesse admirável mundo novo em que vivemos, um mundo globalizado ditado pela velocidade de trilhões de gigabytes correndo por fibra óptica superavançada, é muito difícil que um livro com o estilo de Flamel e com seu volume que passa das 500 páginas, consiga conquistar o seu público-alvo em geral impaciente e desejoso de emoções rasas, fáceis, ou de simplesmente viver momentos febris de emoções arrebatadoras, além de ansioso para ver um pouco de si no personagem que lê. Ainda assim, Flamel conseguiu uma nota bastante elevada no Skoob por Os Cinco do Ciclo, porque o livro evidencia seu talento indiscutível para a escrita e para a narração.

O autor brasileiro escreve bem e com esmero, mas, na minha opinião, peca por escrever um livro tão grande em um ritmo de desenvolvimento tão lento e com pouquíssimo dinamismo. Por isso, sigo com a opinião que, nos nossos tempos, onde há muita oferta de leitura e pouca paciência por parte de um grupo expressivo de leitores, o leitor espera de um livro extenso que a narrativa seja instigante e dinâmica o máximo de tempo possível, para que ele possa correr as páginas sem sentir, nem que já leu muito além do que pretendia, nem sentir o tempo que passou veloz como um corcel adentrando a madrugada fria.

Para finalizar, um ponto que não compreendi perfeitamente

Uma coisa que me intrigou bastante no livro de Flamel é o universo mitológico-religioso da crença seguida pelos habitantes de Keltoi. Vejo agora que talvez alguma coisa me escapou e não pude compreender por completo a crença defendida por Yosef e que baseia em uma certa “ciclicidade”.

Segundo o que entendi, o mundo seria governado por Destino (uma referência a inevitabilidade da repetição de um ciclo?), e por um conjunto de cinco deuses que compõem uma espécie de ciclo que dita a própria vida na Terra e que dão nome ao livro. Ao mesmo tempo, ao que me parece, para o povo de Keltoi ciclos são iniciados e interrompidos, são períodos de tempo, sinônimos para estações, o tempo de vida e também trajetórias seguidas por cada vida e pela própria natureza. Mas um trecho em especial me deixou confuso:

[Citação]

 “Cada escolha é um novo ciclo, cada ciclo é um novo mundo. Assim os Cinco do Ciclo aprenderam com Destino e nos ensinaram. Minha escolha já foi feita e um mundo se abre diante de mim."

No meu entendimento, uma filosofia que acredita em circularidade, acredita que tudo volta a um estágio inicial e novamente caminha por estágios anteriormente superados, porque círculos não bifurcam, se repetem.

Ciclos são repetições, como os ciclos na natureza, das estações e a da alternância entre vida e morte. É como acreditar em ouroboros, a serpente que morde a própria calda, e que representa movimento, continuidade, autofecundação e eterno retorno[3]. Essa ideia simples parece dominante na narrativa, mas esse trecho quebra a lógica, porque um novo ciclo não se abre para outro, é apenas repetição do mesmo ciclo, porém em uma outra época, com outras pessoas, mas é sempre repetição de situações similares. Uma ideia que vi ser construída com bastante lucidez em Naufrágios, o livro de Akira Yoshimura, que enfatiza o ciclo das estações e a constante repetição das atividades sazonais que garantia a sobrevivência dos personagens.

Por isso, esse ponto sobre a cresça de Keltoi me deixou um tanto confuso, porque, se escolher significa ter dois caminhos e abandonar um em favor de outro, como isso pode ser um ciclo? Já que repetição não significa ruptura, e ruptura significa abandonar, romper o ciclo. Em vários momentos a ideia de Flamel concorda com essa repetição, mas nessa passagem, a contradiz, por isso não ficou claro para mim. Então, como um bom resenhista perguntei diretamente a fonte e recebi uma explicação com a cara de Yosef:

“Sobre o ponto que te causou confusão. Os Cinco do Ciclo servem a Destino que controla todos os Ciclos. O que pensei com esses Ciclos? Vejo que muitas coisas se repetem no mundo: guerra, fome, revoluções, esperanças, catástrofes e etc. Apesar desses Ciclos se repetirem, eles nunca são os mesmos. As guerras do passado e do presente podem aparentar semelhanças, mas tem as suas diferenças e são travadas em mundos diferentes. A idade de bronze, a idade medieval e o mundo moderno repetem ciclos, mas são mundos diferentes. Para mim, um ciclo só se fecha quando há a completa destruição. Caso ela não ocorra, o ciclo vira aprendizado.

"Cada escolha é um novo ciclo, cada ciclo é um novo mundo".

Cada nova escolha pode gerar uma mudança, sendo assim, cada escolha pode influenciar em um novo ciclo. E, se influencia em novo ciclo, então influencia no mundo.

O fechar de um ciclo já marca o início do outro. E, esse outro ciclo, é influenciado pelo anterior. Não há repetição, há evolução. Assim Os Cinco do Ciclo aprenderam com Destino e ensinaram para o povo de Keltoi. Uma flor sempre vai crescer na terra, isso é um Ciclo. Porém, nunca vai crescer da mesma forma.”

Poético.

Mas, deixando os pormenores de lado, Os Cinco do Ciclo é um livro que nos apresenta um autor de qualidade que tem a sua frente o desafio de continuar refinando sua arte, definir por completo o seu estilo e conceber muitas obras de boa qualidade como esta. Digo que Os Cinco do Ciclo me causou impaciência pela sua extensão combinada ao ritmo lento e à narração detalhista, porque sou imediatista, ansioso e perco facilmente o interesse, infelizmente, mas isso faz parte da minha contradição como ser humano que ama filosofar, especular e se alongar em resenhas intermináveis, mas que não tem igual paciência para o alongar alheio.

A edição lida é uma produção independente, do ano de 2017 e possui 556 páginas. A continuação da obra se dá com o livro Herdeiro do Ciclo, outra produção independente, do ano de 2020 e que possui 708 páginas.

Sobre o autor

Sou Elias Flamel, tenho dois volumes publicados da saga do Ciclo na Amazon, sou pós-graduado em escrita criativa e análise literária pelo Instituto Vera Cruz e resenhista do site Leitor Cabuloso. Aficionado por mitologia, desde a grega até a africana, vejo genialidade em Hamlet e no Batman e confesso somente para os íntimos que ainda espero a carta de Hogwarts (no mundo bruxo existe tanta coruja destrambelhada).



[1]SOUSA, Bertone. Estado Islâmico, Sharia e a democracia (im)possível no Islã. Bertone Sousa, [s.l.], 2015. Disponível em: <https://bertonesousa.wordpress.com/2015/11/18/estado-islamico-sharia-e-a-democracia-impossivel-no-isla/>. Acesso em:

[2]Panem et circenses foi uma política desenvolvida durante a República Romana e o Império Romano (Wikipédia). Trata-se do “modo com o qual os líderes romanos lidavam com a população em geral, para mantê-la fiel à ordem estabelecida e conquistar o seu apoio” (Santiago, Emerson. Política do pão e Circo. Infoescola. Disponível em: <https://www.infoescola.com/historia/politica-do-pao-e-circo/>. Acesso em: 27 de maio de 2020.

[3]Ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouroboros


domingo, 17 de fevereiro de 2019

[Novos Escritores] Cerberus – a ascensão da trindade – Jefferson Lessa – Resenha

Por Eric Silva
17 de fevereiro de 2019, ano da Itália

“Pois não há nada de escondido que não venha a ser revelado, e não existe nada de oculto que não venha a ser conhecido".
(Lucas 8:17)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Nos últimos tempos, navegando pelas redes sociais, tenho conhecido muitos autores novos, com poucos anos de carreira, estreantes, além de autores independentes que lutam pelo seu espaço no tão competitivo e fechado mercado editorial. Esses encontros casuais acabaram por me lembrar de muito outros que possuo na estante e que nunca cheguei a ler. No final, isso me deu a ideia de uma nova tag: o “Novos Escritores”. A resenha de hoje é sobre uma dessas produções independentes muito bem-acabadas e de alta qualidade narrativa.

O mundo está ameaçado e tudo o que conhecemos pode deixar de existir abrindo espaço para o caos completo e indescritível. É nesse momento que emerge duas forças antagônicas que como o dia e a noite brigarão para decidir o futuro da humanidade. Com muita ação e num caldeirão de referências Cerberus – a ascensão da trindade, primeiro livro do escritor brasileiro Jefferson Lessa, traz uma corrida alucinante para salvar o mundo de forças desconhecidas e ocultas que nunca deveriam ter sido incomodadas.

Confira a resenha.

Sinopse do enredo

Enzo Geovanni é um grande ocultista conhecido no submundo das sociedades secretas tanto por suas proezas e poder como por seu caráter prepotente e oportunista. Há muito tempo ele havia abandonado os idealismos e as grandes paixões da juventude e se tornado uma pessoa orgulhosa que se utilizava de todos os artifícios e organizações para aumentar seu próprio poder. Contudo, uma explosão nuclear sobre o Castelo Houska, na República Checa, abre as portas para uma grande tragédia que ameaça o mundo humano e todos os cinco planos que formam o multiverso. Mais do que isso, com o caos provocado pela explosão emerge também uma misteriosa organização que subjuga todas outras sociedades secretas: o Punho de Ferro.

Ciente da grande ameaça que o rompimento do tecido da realidade representa para a humanidade e também para seus interesses, Enzo resolve agir e reunir um pequeno grupo que o ajude a combater o Punho de Ferro e restabelecer o frágil equilíbrio que mantém separados os vários planos.

O mundo mergulha no caos sendo invadido por demônios e outras criaturas vindas dos cinco planos, e em uma corrida alucinada pelo mundo e contra o tempo, o velho ocultista atravessa o mundo e segue em direção à Inglaterra, onde, reúne duas figuras singulares que com ele lutariam para levar a acabo o plano de restaurar o tecido da realidade: o demonologista tatuado Atila, que aprisiona demônios em sua própria pele, e a ciborgue Elise, que detentora de uma avançada tecnologia alienígena se predispõe a salvar o mundo com a ajuda técnica de seu inteligente cachorro de estimação, Luddy.

Elise, Atila e Enzo então formam a Cerberus que enfrenta a difícil tarefa de concertar o equilíbrio universal nos cinco cantos do planeta enquanto luta contra a poderosa Punho de Ferro e o mundo que conhecemos começa a ruir.

Sobre o autor

Jefferson Lessa nasceu em Londrina e desde cedo é apaixonado por comics, animes, livros de fantasia, RPG, videogames, card games e rock 'n' roll.

Cresceu colecionando em sua cabeça tudo o que pôde sobre mundos fantásticos que não obedecem às regras de nossa boa e velha Terra, sistemas para conjuração de magia, batalhas épicas capazes de decidir o futuro de todos, artefatos detentores de poderes incomensuráveis e dragões deitados sobre pilhas de tesouros deixadas por aventureiros abatidos.

Resenha

Cerberusa ascensão da trindade é o primeiro volume de uma série independente idealizada pelo escritor brasileiro Jefferson Lessa. Um romance fantástico e de aventura que trabalha o tema do ocultismo com criatividade e bastante originalidade, ainda que em alguns momentos apresente problemas.

É bastante curioso como Lessa brinca com a literatura de terror lovecraftiana, com referências a lugares tidos como mal-assombrados como Castelo Houska e Amityville, e com a história de várias sociedades secretas e ocultistas conhecidas, para contar uma história moderna e cheia de aventuras, cenas de ação e luta contra entidades sobrenaturais.

Esse mix torna Cerberus um livro ambicioso. As palavras que melhor definem o trabalho de Lessa são ambição, originalidade e criatividade. Não há muitos lugares comuns nessa narrativa que possui personagens bem singulares e uma proposta, em meu ponto de vista, ainda pouco explorada na literatura brasileira.

Cerberus é uma fusão de muitas referências, assim os principais diálogos que posso estabelecer com outras obras são da esfera da literatura estrangeira, do cinema e principalmente com a literatura ocultista.

Lessa pega emprestado a ideia de planos astrais separados por um "tecido da realidade" para a construção de sua trama, um conceito recorrentemente debatido por diversas seitas e que foi amplamente explorado também na obra de Eduardo Spohr, As Batalhas do Apocalipse. Trabalha também com ideias ufológicas e com a cultura dos exorcismos de demônios, e da união dessas ideias tece uma história de aventura.

As principais referências diretas são ao cinema que imortalizou o caso real da casa de Amityville e à literatura de Lovecraft. Mas as principais fontes de inspiração de Lessa são sem dúvidas as histórias das muitas seitas ocultistas que existem a séculos espalhadas pelo mundo e que até os dias de hoje alimentam centenas de teorias de conspiração. Organizações como o Illuminati, Skull and Bones e a Mão Negra são citadas no livro ou são base para a construção de sua narrativa.

Enfim, Lessa nos pega pela mão e nos conduz por uma viagem ao coração do ocultismo, das teorias de conspiração e de tudo que é sobrenatural e que já foi debatido ou especulado por muitos ao longo de anos.

Com uma pesquisa cuidadosa, ele faz a construção do enredo e dos elementos presentes na trama buscando informar e ao mesmo tempo construir sua verossimilhança. No entanto, em algumas passagens esse cuidado levou a algumas descrições excessivas que visavam explicar coisas pouco relevantes como a autoria de uma música clássica ou a composição de um dos coquetéis mais caros do mundo, o Magie Noir. São descrições que poderiam ter sido colocadas em notas de rodapé ou deixadas à curiosidade de quem lê, evitando sobrecarregar a narrativa com elementos secundários. Porém, a medida que o enredo segue sentimos a evolução da escrita e o texto vai se tornando menos denso e mais dinâmico.

Não obstante, começar a leitura de Cerberus pode ser um desafio para quem lê e, a depender do grau de exigência do leitor, o livro pode ser abandonado prematuramente. Vou explicar o porquê, mas adianto que aqui exponho apenas a minha opinião, meu ponto de vista, e não necessariamente todos concordarão comigo, ainda mais que leitores são diferentes, com gostos e manias peculiares e distintas.

Em toda a primeira parte do livro Lessa é apressado na construção e apresentação da problemática principal da história. O enredo já começa correndo e, por isso, não tem um desenvolvimento instigante.

De imediato somos apresentados a problemática de que o tecido da realidade foi danificado pela explosão de uma bomba nuclear lançada sobre a capital checa, Praga, e nosso principal protagonista rapidamente percebe tudo o que está acontecendo e, em poucos minutos conversando com um antigo aliado, consegue até mesmo precisar prováveis culpados do incidente. Isso tudo se dá no primeiro capítulo que conta com pouco menos de 10 páginas!

Depois de dois capítulos curtos que nos dão uma melhor dimensão de quem é Enzo Giovanni e nos dá amplas demonstrações da riqueza que o mesmo ostenta, além de sua personalidade autoritária e irritante, a tríade de personagens entorno do qual girará todos os acontecimentos (que até então não se conheciam) se reúne de uma forma inusitada (em um fast food às moscas, gerenciado por um demônio e aberto às três horas da madrugada enquanto Londres vive um caos com pessoas fugindo em debandada). Ali, tudo se arranja facilmente, com direito a uma pequena demonstração de força dos novos integrantes que dão cabo de um demônio que possuía o corpo de um homem incrivelmente obeso.

Resumindo a ópera: achei que o começo é rápido demais e não há um preâmbulo, um desenvolvimento inicial dos personagens antes que as coisas se compliquem. Há uma certa pressa em iniciar a trama principal, o que me incomodou.

Mas até então só havia lido 11% do livro e não desisto de obra nenhuma antes dos 50%, porque podemos sempre ser surpreendidos por uma evolução inesperada da história. Isso acontece nesse livro que em alguns momentos têm o desenvolvimento acelerado e em outros toma uma cadência mais natural e bem desenvolvida. Mas confesso que, nesse ponto inicial da obra, fiquei com uma certa dúvida se esse livro realmente seria bom, porque a forma como o trio de ocultistas se encontram e se organizam para dar solução ao problema central não teve uma boa construção e pareceu um tanto cômico demais e improvisado. Entretanto, Cerberus gradativamente vai evoluindo e a escrita e o desenvolvimento se tornando mais refinada. Com um pouco de paciência você se identifica com os personagens e com a trama e logo se sente envolvido.

Como disse essa é a mainha opinião, não necessariamente os leitores acharão o mesmo. Há pessoas que gostam de livros mais dinâmicos e que vão direto ao ponto, ou melhor, direto à ação. A questão é que prefiro narrativas com desenvolvimento mais equilibrado (nem tão rápido nem lento demais).

Um contraponto que posso citar é Os Miseráveis, de Victor Hugo, clássico da literatura francesa que eu adoro. Os Miseráveis têm um começo com desenvolvimento muito arrastado e irritante, isso, porém, não tirou a qualidade do conjunto e o mesmo se dá com Cerberus, cujo autor está buscando firmar e afinar o seu estilo. Nesse sentido, nota-se, por exemplo, que aos poucos, ao longo do livro, o autor também vai refinando o seu humor. Isso é um sinal de que o talento e o estilo de Lessa vão maturando e ainda possui muitos potenciais a serem explorados.

A tríade e o desfecho

O título do livro faz referência ao Cérbero (em grego antigo: Κέρβερος), entidade da mitologia grega que possuía a forma de um monstruoso cão de três cabeças e guardava a entrada do mundo inferior, o reino subterrâneo dos mortos[1]. Contudo, na obra de Lessa, o Cerberus é também a organização improvisada por Enzo e composto por ele, Atila e Elise. Dessa forma, cada um dos membros representaria uma das cabeças do cachorro feroz que guarda a entrada do reino de Hades.

Enzo Giovanni é o personagem mais velho (105 anos!) e principal protagonista da obra. Ele é um homem ranzinza, orgulhoso, arrogante e autoritário, mas com profundos conhecimentos místicos. Trata-se de um personagem de temperamento forte e difícil.

Inicialmente foi difícil para mim me afeiçoar a Enzo e em muitos momentos ele passa consideravelmente dos limites com seu ego narcisista e despótico. Contudo, a aventura que ele vive ao lado dos dois outros protagonistas se revela ao longo da trama como uma forma de redenção dos seus pecados e, no final, vemos um Enzo um tanto mudado.

Atila representa um meio termo entre uma pessoa equilibrada e um perigo eminente. Ele é capaz de exorcizar demônios poderosos prendendo-os em sua própria pele como se fossem tatuagens. Contudo essa habilidade exige dele uma ininterrupta luta para manter as perigosas bestas sob o controle, mas é justamente quando tudo dá errado que o personagem ganha maior destaque no romance. Ele é caracterizado como um homem com uma aparência bastante alternativa, um mix de viking moderno com punk:

Aproximou-se do balcão e, para sua infelicidade, só havia um jovem debruçado sobre o móvel. Era coberto de tatuagens, tinha o cabelo bagunçado cobrindo os olhos castanhos e uma barba negra que se dividia em duas tranças; além disso, era possível contar quatro brincos em cada uma de suas orelhas. Não era robusto, mas, ainda assim, parecia ser forte, pois, mesmo relaxado, não havia espaço para flacidez nos músculos de seus braços.

Elise, por sua vez é a otimista do grupo. Até certo ponto ingênua, Elise é uma ciborgue com tecnologia alienígena que substituiu grande parte do seu corpo por poderosas próteses mecânicas. Em muitos momentos seu comportamento soa infantil o que contrasta bastante com seu corpo atlético e robótico, mas mais do que um ciborgue rápido e poderoso ela é uma garota sincera, amorosa e que tem um código moral muito forte, se recusando a tirar a vida de seus inimigos.

Elise é bastante curiosa e procura ver as coisas de um ponto de vista mais leve, por isso o personagem é também o ponto de equilíbrio da narrativa, colocando-se entre dois protagonistas masculinos de personalidades fortes e, até certo ponto, agressivas.

Enfim, o que temos aí é uma tríade (trindade, como sugere o subtítulo) muito atípica e, por isso, bastante original. Em certos momentos, principalmente no começo do livro, tive certa relutância de aceitá-los, mas gradativamente eles crescem na história e vão se tornando mais criveis e realistas.

Por fim, Cerberus – a ascensão da trindade é um livro que exige um pouco de boa vontade no começo por parte do leitor, mas no final não tem uma leitura cansativa, ainda mais que a obra está dividida em 49 pequenos capítulos muito dinâmicos e cheio de aventuras e cenários diferentes. É um livro original e criativo, com uma pesquisa excepcional que foi feita para a montagem do enredo. Esses elementos positivos amenizam seus problemas que, no entanto, não são nem um pouco incomuns em uma obra independente e de estreia.

O desfecho agrada e fica em aberto, porém toda a história é contada (começo meio e fim) sugerindo que o livro de continuação terá uma trama completamente nova e até, quem sabe, independente do primeiro livro. Esperemos para saber quais aventuras aguardam a Cerberus no futuro.




[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A9rbero

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