Por Eric Silva
“Pois não há nada de escondido
que não venha a ser revelado, e não existe nada de oculto que não venha a ser
conhecido".
(Lucas 8:17)
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Nos últimos tempos, navegando pelas redes sociais, tenho
conhecido muitos autores novos, com poucos anos de carreira, estreantes, além
de autores independentes que lutam pelo seu espaço no tão competitivo e fechado
mercado editorial. Esses encontros casuais acabaram por me lembrar de muito
outros que possuo na estante e que nunca cheguei a ler. No final, isso me deu a
ideia de uma nova tag: o “Novos Escritores”. A resenha de hoje é sobre uma
dessas produções independentes muito bem-acabadas e de alta qualidade
narrativa.
O mundo está ameaçado e tudo o que conhecemos pode deixar
de existir abrindo espaço para o caos completo e indescritível. É nesse momento
que emerge duas forças antagônicas que como o dia e a noite brigarão para
decidir o futuro da humanidade. Com muita ação e num caldeirão de referências Cerberus – a ascensão da trindade,
primeiro livro do escritor brasileiro Jefferson Lessa, traz uma corrida
alucinante para salvar o mundo de forças desconhecidas e ocultas que nunca
deveriam ter sido incomodadas.
Confira a resenha.
Sinopse
do enredo
Enzo Geovanni é um grande
ocultista conhecido no submundo das sociedades secretas tanto por suas proezas
e poder como por seu caráter prepotente e oportunista. Há muito tempo ele havia
abandonado os idealismos e as grandes paixões da juventude e se tornado uma
pessoa orgulhosa que se utilizava de todos os artifícios e organizações para
aumentar seu próprio poder. Contudo, uma explosão nuclear sobre o Castelo
Houska, na República Checa, abre
as portas para uma grande tragédia que ameaça o mundo humano e todos os cinco
planos que formam o multiverso. Mais do que isso, com o caos provocado pela
explosão emerge também uma misteriosa organização que subjuga todas outras
sociedades secretas: o Punho de Ferro.
Ciente
da grande ameaça que o rompimento do tecido da realidade representa para a
humanidade e também para seus interesses, Enzo resolve agir e reunir um pequeno
grupo que o ajude a combater o Punho de Ferro e restabelecer o frágil
equilíbrio que mantém separados os vários planos.
O
mundo mergulha no caos sendo invadido por demônios e outras criaturas vindas
dos cinco planos, e em uma corrida alucinada pelo mundo e contra o tempo, o
velho ocultista atravessa o mundo e segue em direção à Inglaterra, onde, reúne
duas figuras singulares que com ele lutariam para levar a acabo o plano de
restaurar o tecido da realidade: o demonologista tatuado Atila, que aprisiona
demônios em sua própria pele, e a ciborgue Elise, que detentora de uma avançada
tecnologia alienígena se predispõe a salvar o mundo com a ajuda técnica de seu
inteligente cachorro de estimação, Luddy.
Elise, Atila e Enzo então
formam a Cerberus que enfrenta a difícil tarefa de concertar o equilíbrio
universal nos cinco cantos do planeta enquanto luta contra a poderosa Punho de
Ferro e o mundo que conhecemos começa a ruir.
Sobre
o autor
Jefferson Lessa nasceu em Londrina e desde cedo é apaixonado por
comics, animes, livros de fantasia,
RPG, videogames, card games e rock 'n' roll.
Cresceu colecionando em sua cabeça tudo o que pôde sobre mundos
fantásticos que não obedecem às regras de nossa boa e velha Terra, sistemas
para conjuração de magia, batalhas épicas capazes de decidir o futuro de todos,
artefatos detentores de poderes incomensuráveis e dragões deitados sobre pilhas
de tesouros deixadas por aventureiros abatidos.
Resenha
Cerberus – a ascensão da trindade é o primeiro
volume de uma série independente idealizada pelo escritor brasileiro Jefferson
Lessa. Um romance fantástico e de aventura que trabalha o tema do ocultismo com
criatividade e bastante originalidade, ainda que em alguns momentos apresente
problemas.
É bastante curioso como Lessa
brinca com a literatura de terror lovecraftiana, com referências a lugares tidos como mal-assombrados como Castelo Houska e Amityville, e com a história de várias sociedades secretas e
ocultistas conhecidas, para contar uma história moderna e cheia de aventuras,
cenas de ação e luta contra entidades sobrenaturais.
Esse mix torna Cerberus um livro
ambicioso. As palavras que melhor definem o trabalho de Lessa são ambição,
originalidade e criatividade. Não há muitos lugares comuns nessa narrativa que
possui personagens bem singulares e uma proposta, em meu ponto de vista, ainda
pouco explorada na literatura brasileira.
Cerberus é uma fusão
de muitas referências, assim os principais diálogos que posso estabelecer com
outras obras são da esfera da literatura estrangeira, do cinema e
principalmente com a literatura ocultista.
Lessa pega emprestado a ideia de planos astrais separados por um
"tecido da realidade" para a construção de sua trama, um conceito
recorrentemente debatido por diversas seitas e que foi amplamente explorado
também na obra de Eduardo Spohr, As Batalhas do
Apocalipse. Trabalha também com ideias ufológicas e com a
cultura dos exorcismos de demônios, e da união dessas ideias tece uma história
de aventura.
As principais referências diretas são ao cinema que imortalizou
o caso real da casa de Amityville e à
literatura de Lovecraft. Mas as principais fontes de inspiração de Lessa são
sem dúvidas as histórias das muitas seitas ocultistas que existem a séculos
espalhadas pelo mundo e que até os dias de hoje alimentam centenas de teorias
de conspiração. Organizações como o Illuminati,
Skull and Bones e a Mão Negra são
citadas no livro ou são base para a construção de sua narrativa.
Enfim, Lessa
nos pega pela mão e nos conduz por uma viagem ao coração do ocultismo, das
teorias de conspiração e de tudo que é sobrenatural e que já foi debatido ou
especulado por muitos ao longo de anos.
Com uma pesquisa cuidadosa, ele faz a construção do enredo e dos
elementos presentes na trama buscando informar e ao mesmo tempo construir sua
verossimilhança. No entanto, em algumas passagens esse cuidado levou a algumas
descrições excessivas que visavam explicar coisas pouco relevantes como a
autoria de uma música clássica ou a composição de um dos coquetéis mais caros
do mundo, o Magie Noir. São
descrições que poderiam ter sido colocadas em notas de rodapé ou deixadas à
curiosidade de quem lê, evitando sobrecarregar a narrativa com elementos
secundários. Porém, a medida que o enredo segue sentimos a evolução da escrita
e o texto vai se tornando menos denso e mais dinâmico.
Não obstante, começar a
leitura de Cerberus pode ser um
desafio para quem lê e, a depender do grau de exigência do leitor, o livro pode
ser abandonado prematuramente. Vou explicar o porquê, mas adianto que aqui
exponho apenas a minha opinião, meu ponto de vista, e não necessariamente todos
concordarão comigo, ainda mais que leitores são diferentes, com gostos e manias
peculiares e distintas.
Em toda a primeira parte do
livro Lessa é apressado na construção e apresentação da problemática
principal da história. O enredo já começa correndo e, por isso, não tem um
desenvolvimento instigante.
De imediato somos apresentados a problemática de que o tecido da
realidade foi danificado pela explosão de uma bomba nuclear lançada sobre a
capital checa, Praga, e nosso principal protagonista rapidamente percebe tudo o
que está acontecendo e, em poucos minutos conversando com um antigo aliado,
consegue até mesmo precisar prováveis culpados do incidente. Isso tudo se dá no
primeiro capítulo que conta com pouco menos de 10 páginas!
Depois de dois capítulos curtos que nos dão uma melhor dimensão
de quem é Enzo Giovanni e nos dá amplas demonstrações da riqueza que o mesmo
ostenta, além de sua personalidade autoritária e irritante, a tríade de
personagens entorno do qual girará todos os acontecimentos (que até então não
se conheciam) se reúne de uma forma inusitada (em um fast food às moscas, gerenciado por um demônio e aberto às três
horas da madrugada enquanto Londres vive um caos com pessoas fugindo em
debandada). Ali, tudo se arranja facilmente, com direito a uma pequena
demonstração de força dos novos integrantes que dão cabo de um demônio que
possuía o corpo de um homem incrivelmente obeso.
Resumindo a ópera: achei que o começo é rápido demais e não há
um preâmbulo, um desenvolvimento inicial dos personagens antes que as coisas se
compliquem. Há uma certa pressa em iniciar a trama principal, o que me
incomodou.
Mas até então só havia lido 11% do livro e não desisto de obra
nenhuma antes dos 50%, porque podemos sempre ser surpreendidos por uma evolução
inesperada da história. Isso acontece
nesse livro que em alguns momentos têm o desenvolvimento acelerado e em outros
toma uma cadência mais natural e bem desenvolvida. Mas confesso que, nesse
ponto inicial da obra, fiquei com uma certa dúvida se esse livro realmente
seria bom, porque a forma como o trio de ocultistas se encontram e se organizam
para dar solução ao problema central não teve uma boa construção e pareceu um
tanto cômico demais e improvisado. Entretanto, Cerberus
gradativamente vai evoluindo e a escrita e o desenvolvimento se tornando mais
refinada. Com um pouco de paciência você se identifica com os personagens e com
a trama e logo se sente envolvido.
Como disse essa é a mainha
opinião, não necessariamente os leitores acharão o mesmo. Há pessoas que gostam
de livros mais dinâmicos e que vão direto ao ponto, ou melhor, direto à ação. A
questão é que prefiro narrativas com desenvolvimento mais equilibrado (nem tão
rápido nem lento demais).
Um contraponto que posso
citar é Os Miseráveis, de Victor Hugo, clássico da literatura francesa que eu
adoro. Os Miseráveis têm um começo
com desenvolvimento muito arrastado e irritante, isso, porém, não tirou a
qualidade do conjunto e o mesmo se dá com Cerberus, cujo autor está buscando
firmar e afinar o seu estilo. Nesse sentido, nota-se, por exemplo, que aos poucos, ao
longo do livro, o autor também vai refinando o seu humor. Isso é um sinal de
que o talento e o estilo de Lessa vão maturando e ainda possui muitos
potenciais a serem explorados.
A tríade e o desfecho
O título do livro faz referência ao Cérbero (em grego antigo: Κέρβερος), entidade da
mitologia grega que possuía a forma de um monstruoso cão de três cabeças e
guardava a entrada do mundo inferior, o reino subterrâneo dos mortos[1]. Contudo, na obra de
Lessa, o Cerberus é também a organização improvisada por Enzo e composto por
ele, Atila e Elise. Dessa forma, cada um dos membros representaria uma das
cabeças do cachorro feroz que guarda a entrada do reino de Hades.
Enzo Giovanni é o personagem
mais velho (105 anos!) e principal protagonista da obra. Ele é um homem
ranzinza, orgulhoso, arrogante e autoritário, mas com profundos conhecimentos
místicos. Trata-se de um personagem de temperamento forte e difícil.
Inicialmente foi difícil para
mim me afeiçoar a Enzo e em muitos momentos ele passa consideravelmente dos
limites com seu ego narcisista e despótico. Contudo, a aventura que ele vive ao
lado dos dois outros protagonistas se revela ao longo da trama como uma forma
de redenção dos seus pecados e, no final, vemos um Enzo um tanto mudado.
Atila representa um meio
termo entre uma pessoa equilibrada e um perigo eminente. Ele é capaz de
exorcizar demônios poderosos prendendo-os em sua própria pele como se fossem
tatuagens. Contudo essa habilidade exige dele uma ininterrupta luta para manter
as perigosas bestas sob o controle, mas é justamente quando tudo dá errado que
o personagem ganha maior destaque no romance. Ele é caracterizado como um homem
com uma aparência bastante alternativa, um mix de viking moderno com punk:
Aproximou-se do balcão e, para sua infelicidade, só havia um jovem
debruçado sobre o móvel. Era coberto de tatuagens, tinha o cabelo bagunçado
cobrindo os olhos castanhos e uma barba negra que se dividia em duas tranças;
além disso, era possível contar quatro brincos em cada uma de suas orelhas. Não
era robusto, mas, ainda assim, parecia ser forte, pois, mesmo relaxado, não
havia espaço para flacidez nos músculos de seus braços.
Elise, por sua vez é a
otimista do grupo. Até certo ponto ingênua, Elise é uma ciborgue com tecnologia alienígena que substituiu grande parte do
seu corpo por poderosas próteses mecânicas. Em muitos momentos seu comportamento soa
infantil o que contrasta bastante com seu corpo atlético e robótico, mas mais do que um ciborgue
rápido e poderoso ela é uma garota sincera, amorosa e que tem um código moral
muito forte, se recusando a tirar a vida de seus inimigos.
Elise é bastante curiosa e
procura ver as coisas de um ponto de vista mais leve, por isso o personagem é
também o ponto de equilíbrio da narrativa, colocando-se entre dois
protagonistas masculinos de personalidades fortes e, até certo ponto,
agressivas.
Enfim, o que temos aí é uma
tríade (trindade, como sugere o subtítulo) muito atípica e, por isso, bastante
original. Em certos momentos, principalmente no começo do livro, tive certa
relutância de aceitá-los, mas gradativamente eles crescem na história e vão se
tornando mais criveis e realistas.
Por fim, Cerberus –
a ascensão da trindade é um livro que exige um pouco de boa vontade no
começo por parte do leitor, mas no final não tem uma leitura cansativa, ainda
mais que a obra está dividida em 49 pequenos capítulos muito dinâmicos e cheio
de aventuras e cenários diferentes. É um livro original e criativo, com uma
pesquisa excepcional que foi feita para a montagem do enredo. Esses elementos
positivos amenizam seus problemas que, no entanto, não são nem um pouco
incomuns em uma obra independente e de estreia.
O desfecho agrada e fica em aberto, porém toda a história
é contada (começo meio e fim) sugerindo que o livro de continuação terá uma
trama completamente nova e até, quem sabe, independente do primeiro livro.
Esperemos para saber quais aventuras aguardam a Cerberus no futuro.
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