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domingo, 24 de maio de 2020

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários – Ana Lúcia Merege – Resenha


Por Eric Silva
24 de abril de 2020

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Realização com pareceria do Instituto Pegaí Leitura Grátis, a coletânea Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é mais uma das obras delicadas, singelas e muito bem escritas da escritora fluminense Ana Lúcia Merege que neste livro dá destaque à sabedoria, afetividade e experiências de personagens da terceira idade, pertencentes aos universos ficcionais criados pela autora.

Confira a resenha.

Sinopse do enredo

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é uma pequena coletânea de contos publicados com apoio do Instituto Pegaí e que, segundo prefácio da autora, faz parte de um projeto mais amplo denominado Heróis de prata. Nesse projeto a autora escreve uma série de contos de fantasia e ficção científica que daria destaque, nas palavras da própria Merege, a “protagonistas idosos ou, pelo menos, bem maduros, cuja experiência e amplitude de visão são determinantes para a resolução da trama”. Nesse primeiro livro há um destaque para a relação entre esses personagens e seus netos, com os quais contracenam.

Nos dois primeiros contos temos narrativas inspiradas no universo ficcional de fantasia medieval de Athelgard, principal cenário das obras da autora, enquanto os demais situam-se em outros dois universos criados por ela, o último deles compartilhado com o escritor Luiz Felipe Vasques.

Intitulado O espetáculo não pode parar, o primeiro conto é narrado em primeira pessoa e conta algumas das memórias de Zemel, um saltimbanco que se recorda de seu avô com quem aprendeu o ofício, além de relatar os desafios enfrentados por sua família para ganhar o sustento após seu avô sofrer um acidente. Em suas memórias de infância, Zemel conta como o acidente de seu avô, ocorrido durante um dos pequenos espetáculos que os dois faziam juntos, o deixou traumatizado e de como com sapiência o velho saltimbanco não permitiu que o amor do neto pela arte circense morresse.




O segundo conto, O eterno retorno, traz de volta a menina Anna e sua avó, a elfa Kyara, dois importantes personagens de outro livro infantojuvenil de Merege, Anna e a Trilha Secreta, publicado em 2015. Neste conto, Anna tem apenas nove anos e vive feliz com a avó que está ensinando-a a caçar. Contudo a menina, que possui mais sangue humano do que élfico, está cada vez mais curiosa sobre seu povo e pressiona para saber mais sobre o passado da avó, uma história dolorosa que Kyara receia revisitar.

Em De amor e eternidade, Merege revisita a série Contos da Clepsidra, ambientada na cidade de Cartago, no século III, e que em como protagonista o capitão fenício Balthazar de Tiro. Nesta narrativa, Balthazar, já envelhecido, vive com a família de um dos seus ex-tripulantes, família que o capitão adotou como sua e cujo futuro o preocupa bastante. Como de costume ele brinca com suas netas e lhes conta suas aventuras mágicas de viagens no tempo ao lado de outro dos tripulantes do seu navio, Lísias, o que faz emergir lembranças boas e tristes e preocupações relacionadas ao futuro.

Por fim, A era de Leonte, é um conto no estilo space opera[1] baseado no universo ficcional de Medistelara, “no qual as civilizações do antigo Mediterrâneo são transportadas para o espaço”, com destaque neste conto para os fenícios espaciais, os ken’amis, e sua Liga Mercantil, e para os heládicos[2], que na narrativa são donos de uma corporação de mineração chamada Caríbdes, que iniciou uma exploração de um valioso mineral no planeta Carsis.

Nesta narrativa, Merege conta uma história da personagem Elyssa de Quartag e seu neto adolescente, Hanno, um aprendiz de piloto. Elyssa vai ao distante planeta Carsis representando a poderosa Liga Mercantil para firmar um acordo de compensação financeira e comercial com os heládicos após estes começarem a exploração de minério no planeta. Ali, avó e neto percebem uma situação de exploração da mão de obra barata local, e a história encontra uma reviravolta inesperada por conta de uma especial movimentação de astros.

Resenha

Ana Lúcia é uma autora brasileira que venho acompanhando desde 2016, quando fiz a resenha de seu livro O Castelo das Águias. De 2016 para cá, já resenhei outras três obras da autora e um quarto livro no qual foi organizadora ao lado de Eduardo Kasse, autor da série Tempos de Sangue.

No início de 2019, ela me enviou Contos Fantásticos de Avós Extraordinários para que eu conhecesse seu último trabalho. Contudo, aquele ano foi tão difícil e conturbado para mim que acabei abandonando todas as atividades do blog e também a maioria das minhas leituras. Aquele também foi o ano que menos li.

Com o período de quarentena devido ao Covid-19, retomei minhas leituras, o blog e me recordei desse livro e, por isso, resolvi resenhá-lo, antes que minha rotina voltasse a ficar insana.

Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é uma coletânea pequena, contando com apenas quatro contos que giram entorno de uma mesma temática: narrativas de aventuras (contos 2 e 4) ou de momentos cotidianos (contos 1 e 3) vividos por avós e netos e que levam esses últimos a beberem das experiências e sapiência de seus avós.

É uma obra infantojuvenil, mas sensível e madura, e que pode agradar outras faixas etárias pela qualidade da escrita da autora e de algumas narrativas que não são particularmente tão infantis.

Como é de seu costume, Merege utiliza novamente suas narrativas para trazer aos leitores mirins algumas lições de vida e, dessa vez, inova por dar destaque a um grupo etário que na sociedade moderna tem enfrentado um visível declínio de importância atribuída.

Serei mais claro.

Nesta sociedade de tantos avanços tecnológicos, de imediatismo exacerbado e de pragmatismo proeminente, a terceira idade vem sendo constantemente tratada como um estorvo para suas famílias, e visivelmente perdem importância no papel de matriarcas e patriarcas, de chefes de família, para os mais jovens. Em grande parte, esse grupo etário passa a ser visto, preconceituosamente, como ultrapassado e incapaz de ser útil numa sociedade tecnológica muito diferente da realidade vivida outrora pelos mesmos. Por conta desse fator, a importância que no passado era atribuída aos mesmos entra em declínio. Por outro lado, em relação a importância adquirida pelos mesmos em termo de vivências e experiências, essa não pode ser diminuída.

Com este pequeno livro, Merege vem com o claro objetivo de mostrar a importância desses personagens mais velhos e falar dos impactos que a relação que se estabelece entre netos e avós tem para a formação do caráter das novas gerações. Sendo ele um livro voltado para crianças de 10 a 12 anos, Merege busca estimular um novo olhar nos pequenos para as gerações que os antecederam. Um olhar de respeito e de admiração.

O livro é escrito por Merege com sua linguagem costumeira que busca um meio termo entre um vocabulário culto e uma linguagem simplificada, e como sempre, a autora mostra que ainda é uma grande contadora de histórias. Esse seu estilo fica bastante proeminente no primeiro conto da série, no qual a autora nos traz um narrador jovem, mas maduro e sensível, de olhar observador e inteligente, e com ele escreve um texto com uma escrita imersiva e gostosa de ler.

Já disse em outras oportunidades que o ponto que me conquistou nas obras de Merege foi a sua escrita impecável, tecida com esmero e, por que não, com amor. Mesmo quando se trata de uma narrativa que eu goste menos, sou tão fascinado pela forma como ela escreve que me esqueço do resto. Além disso, a temática medieval me agrada bastante, sobretudo quando a autora foca no cotidiano medievo, como é o caso do conto O espetáculo não pode parar e do meu livro preferido de Merege, O Caçador.

Como um bibliomaníaco nerd e otaku ligado em História, em vida cotidiana e em cultura nacional e internacional, sou fã de narrativas ambientadas em cenários medievais, de slice-of-life (histórias centradas no dia a dia de pessoas comuns) e de obras artísticas que mostrem a riqueza cultural de uma época ou lugar. O espetáculo não pode parar me conquistou por esses elementos ao apresentar um personagem criança no limiar de adquirir a maturidade adulta, pertencente a um universo medievo, e cujo espírito, ainda jovem, foi forjado nas dificuldades de uma vida nômade e paupérrima. Trata-se do conto mais adulto da obra e que me lembrou da força do livro O Caçador.

Zemel, protagonista do conto, é ainda menino e junto com sua família vive migrando de cidade em cidade, o pai e o tio oferecendo seus serviços de ferreiro e de paneleiro, respectivamente, e o avó e o neto, fazendo pequenos espetáculos de saltimbancos para entreter camponeses e vilões[3] das povoações por onde passavam.

Contudo, a narrativa se dá quando o avô de Zemel sofre um acidente durante uma dessas apresentações e as coisas ficam mais difíceis para a família. Se não bastasse, o menino fica traumatizado com o ocorrido e tenta abandonar as artes circenses, em um momento crítico, no qual seu trabalho também é importante para a sobrevivência de todos. Nesse cenário, Thiers de Pwilrie, o avô da criança, tem que usar de inteligência, paciência e força de vontade para demover o neto e ao mesmo tempo garantir o pão. É um texto que traz uma lição de vida importante e que agrega muito do que gosto nesse tipo de literatura: drama, personagens realistas e vida cotidiana e cultural medieval.

Numa linha similar, ainda que fale de elfos, O eterno retorno foi também um conto que me agradou, um pouco menos do que o primeiro, mas que me fez recordar de narrativas anteriores envolvendo os mesmos personagens.

Uma das narrativas ambientadas na Floresta dos Teixos
Nas histórias envolvendo as tribos élficas da Floresta dos Teixos, Merege costuma nos mergulhar em cenários muito bonitos de florestas e bosques, e desde pequeno tenho particular fascínio por florestas, o que se consolidou com minha formação em Geografia. Por seu turno, esses contos e novelas sobre a infância da protagonista de O Castelo das Águias nos proporciona o contato com esses cenários. Além disso, Merege dá a estas narrativas povoadas por espíritos guardiões e xamãs uma pegada um tanto indígena que faz do seu trabalho bastante original ao somar fantasia e crenças similares às dos indígenas norte-americanos.

O tema de O eterno retorno é também bastante maduro. Na verdade, todo o livro se encontra nesse limiar entre uma obra para crianças e um tom de histórias mais sérias, e acredito que esse tom emana do peso da maturidade de seus protagonistas adultos. Neste conto em particular, Merege falam de dores do passado, e de forma meio velada remota às histórias de amores familiares marcados pela tragédia. Contudo, a autora não entra em todos os detalhes do que ocorreu no passado da protagonista Kyara, porque se trata de uma narrativa retirada de uma história maior que compõe os livros da série Athelgard.

Mesmo para quem não acompanha a obra da autora, o conto ainda assim fará sentido, porque Merege dá todos os elementos necessários para que ele seja lido de forma independente, mas tudo ali faz alusão a uma história mais ampla do qual nos foi permitido ver só uma parte. Isso me lembra, inclusive, que tenho que ler as duas obras de continuação de O Castelo das Águias.

Os contos seguintes foram os que menos me agradaram, ainda que eles tenham muita qualidade e, por isso, não me demorarei neles.

O terceiro conto, De amor e eternidade, traz um personagem de Merege com o qual eu ainda não tinha tido contato, o capitão fenício Balthazar. O conto é baseado em memórias do capitão que ele narra para duas de suas netas a fim de entretê-las.

Por conta dessa sua natureza de narrativa de memórias, é o conto, que na minha opinião, ficou mais deslocado, porque faz muitas referências às outras histórias escritas ou imaginadas pela autora. Merege novamente toma cuidado para fazer todas essas referências compreensíveis ao leitor e não prejudicar a leitura de quem não leu as aventuras da mocidade de Balthazar. Não obstante, o conto tem todo os elementos de um spin-off[4] e por conta disso, a sensação que o conto me deu foi de um leve deslocamento.  Acho que não tive essa mesma sensação com o segundo conto da coletânea tanto pelos motivos já citados, como também porque acompanho a trajetória da personagem Anna desde 2016.

Por sua vez, o último conto da série é um space-opera que se passa em um planeta ainda pouco conhecido e que possui um povo espiritualizado, singular e exótico em um contexto que me fez lembrar um pouco do filme Avatar e um pouco do livro A Chegada a Darkover, da autora estadunidense, Marion Zimmer Bradley.

A era de Leonte me lembra o livro de Bradley por se tratar de uma narrativa sobre viagens intergalácticas com a busca e a descobertas de novos planetas, no caso de Bradley, sobretudo para colonização, e no caso de Merege, para atividades mercantis. E me faz recordar de Avatar, porque além de ser uma narrativa sobre viagens intergalácticas, o conto trata da invasão humana em busca de recursos minerais e possui um povo espiritualizado e intimamente ligado aos fenômenos naturais de seu lugar de vivência.

Contudo, tenho uma crítica a como este conto foi desenvolvido. Acho que a história de Merege tinha potencial para ser mais do que um conto, e, pela escolha da autora em fazer uma narrativa mais breve, fez com que o desenvolvimento da história fosse apressado e a narrativa ficasse um tanto inverossímil em seu desfecho e clímax. O fato é que não gostei do desenvolvimento, e sobretudo do desfecho.

Se Merege explorasse mais as características desse povo tão peculiar e intrigante, de seu planeta e do minério que ali existia, descrevesse a chegada dos heládicos, os primeiros contatos, colocasse alguns conflitos, desenvolvesse mais profundamente os personagens, escrevesse paralelamente a história de Elyssa e Hanno, e chegasse ao desfecho no qual chegou só que de forma mais desenvolvida e detalhada, A era de Leonte daria, não um romance, mas uma novela interessante ao estilo de Bradley, de Arthur C. Clarke, de Frank Herbert ou de seu filho Brian Herbert.

Até mesmo o título, A era de Leonte, é bom para um livro independente. Contudo, na forma compacta em que foi concebida ele não me agradou muito. Por outro lado, o objetivo da autora com seu livro é claro e ela deseja alcançar um público mais jovem. O livro que eu enxergo em minha mente seria algo bem diferente e distante da proposta inicial.

Enfim, para encerrar, no todo, Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é um livro simples, mas sensível e original.

A edição lida é da Editora Draco, do ano de 2018 e possui 64 páginas.

Sobre o autor

Ana Lúcia Merege. Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional.
Nascida em 1969, na cidade do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Merege é romancista e bibliotecária. Possui mestrado em Ciência da Informação, pelo IBICT/UFRJ-ECO, tendo defendido, em 1999, sua dissertação intitulada O livro impresso: trajetória e contemporaneidade. É também formada em Biblioteconomia pela UNIRIO e, desde 1996, trabalha no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional, onde atua no trabalho com material original, fontes primárias, identificação de documentos e organização de exposições.
Seu primeiro romance publicado, O Caçador (2009), foi também o primeiro do gênero fantasia escrito pela autora que desde então vem se dedicando a organização de diversas coletâneas do gênero, além de contos e romances. Suas principais obras estão ligadas ao universo de Athelgard, criado pela escritora para ambientar sua trilogia que se inicia com o romance O Castelo das Águias e ganha sequência com os livros A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar, todos publicados pela editora paulista Draco. Pertence também ao universo de Athelgard o livro Anna e a Trilha Secreta, que faz um regresso à infância da principal personagem de O Castelo das Águias, além de Orlando e o Escudo da Coragem, outro infantojuvenil publicado pela autora em 2018.
Com vasta experiência com manuscritos e forte interesse pela história do período medieval, Merege foi responsável ainda, na mesma editora, pela organização das coletâneas Excalibur: histórias de reis, magos e távolas redondas e Medieval: Contos de uma era fantástica, este último em parceria com o escritor brasileiro Eduardo Kasse.




[1]Subgênero da ficção científica que enfatiza a aventura melodramática, as batalhas interplanetárias, o romance cavalheiresco e a tomada de riscos. Definido principalmente ou inteiramente no espaço sideral. (Wikipédia)
[2]Civilização heládica é um termo moderno usado para identificar uma sequência de períodos que caracterizaram a cultura do continente grego durante a idade do bronze. (Wikipédia)
[3]Vilão era, na Idade Média, uma pessoa que não pertencia à nobreza feudal, e que habitava urbanamente em vilas. (Wikipédia)
[4]Nos meios de comunicação, obra derivada, história derivada ou derivagem (em inglês: spin-off) é um programa de rádio, programa de televisão, videojogo, grupo musical ou qualquer obra narrativa criada por derivação, isto é, derivada de uma ou mais obras já existentes. Sua diferença com uma obra original é que a primeira se concentra, em particular, mais detalhadamente em apenas um aspecto (por exemplo, um tema especifico, personagem ou evento) ou modificando um pouco a história e seus aspectos originais.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Orlando e o Escudo da Coragem – Ana Lúcia Merege – Resenha


Por Eric Silva

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Orlando e o Escudo da Coragem é o mais novo infantojuvenil do universo de Athelgard, criação da escritora brasileira Ana Lúcia Merege. Em seu novo livro, Merege conta as aventuras de Orlando, um menino de 12 anos filho de um poderoso senhor de terras em Athelgard, que apesar de sua pouca idade enfrenta uma perigosa prova de coragem para mostrar o seu valor. Um livro criativo e sensível, com uma escrita acolhedora e uma narrativa que ensina o valor da coragem.

Sinopse

Orlando é o mais jovem dos filhos do thane[1] de Leighdale, um garoto esperto, gentil e corajoso de descendência élfica e com o dom da magia, mas que, no entanto, vive à sombra do seu meio-irmão mais velho, Lionel, conhecido por todos pela nobreza e bravura.

O garoto é tão honrado e capaz quanto seu irmão por quem ele tem uma grande admiração, mas ainda não conhece as próprias potencialidades. Em casa, todos implicam por ele insistir em treinar um falcão estrábico, o Vesgo, mas Orlando sabe que assim como ele o pequeno falcão possui potenciais inexplorados e por isso insiste no treinamento do falcão.

Entretanto chega o dia no qual, as potencialidades tanto do menino quanto as do falcão são postas à prova quando Lionel viaja para participar de um torneio e Orlando o acompanha como escudeiro. Naquela viagem às desconhecidas terras das Colinas Negras, por conta de uma série de mal-entendidos e confusões, o menino e seu falcão vivem uma grande e perigosa aventura na qual são testados e levados a mostrar os quão corajosos e capazes eram.

Resenha
Orlando, Lionel e um conto de cavalaria

Imagem: Eric Silva, 2018.
Orlando e o Escudo da Coragem possui uma série grande de personagens importantes, como Brian, que participa do torneio ao lado de Orlando, os caçadores Raylin e Ellak, e o senhor das Colinas Negras, Turnedil, mais a sua esposa, a Dama Elfrida. Porém destacarei apenas Orlando e seu irmão Lionel.

Orlando é um garoto repleto de qualidades positivas. Ele é amigável, aplicado, humilde e sensível, além de guardar em si acentuados graus de sabedoria, maturidade e senso de justiça. Isso tira, na visão de um adulto, um pouco da verossimilhança do personagem, mas para o público infantil ele é um símbolo de retidão e moralidade a ser seguido. Um garoto honesto e bom. Contudo, mesmo aí, o personagem se encaixa perfeitamente dentro das clássicas histórias de cavalaria, onde os cavaleiros tidos como justos eram, em sua maioria, exemplos de nobreza, cristandade e retidão de caráter.

É sem dúvida um personagem que possui seus medos e inseguranças sobretudo pela sua falta de experiência e pouca idade, entretanto ele busca a coragem para vencer seus medos e dar seu melhor.
Lionel é descrito como corajoso e habilidoso estando muito à frente de seu irmão menor, mas também é um bom irmão, atencioso e carinhoso. Defende-o, o estimula e incentiva, além de ensiná-lo, por isso, em lugar de competir com Lionel, Orlando sente admiração e não se importa profundamente de estar à sua sombra. São, em suma companheiros e bons irmãos.

Com precisamente 100 páginas Orlando e o Escudo da Coragem é uma pequena novela que se inspira nos antigos contos de cavalaria medievais. Como é especialidade da sua autora, trata-se de um livro cheio de magia e ensinamentos pensado para o público infantojuvenil, mas escrito com a qualidade de um livro sem faixa etária determinada.

Imagem: Eric Silva, 2018.
No blog da editora Draco[2], Merege conta que teve a ideia do livro depois que viu a imagem de um rapaz falcoeiro com o seu falcão, na imagem um falcão peregrino. Dali junto com o desejo de escrever mais livros voltados para o público infantojuvenil que usasse o universo de Athelgard como plano de fundo, a autora foi, durante o processo de escrita, compondo a narrativa de Orlando.
Para escrever seu livro Ana Lúcia buscou se aprofundar no universo da falcoaria, da cavalaria e dos torneios de justas. Em seu texto ela explica que a relação entre Orlando e seu meio-irmão Lionel foi inicialmente inspirada em “A Espada era a Lei”, e o tema em contos de cavalaria como “Sir Gawaine e o Cavaleiro Verde”. Daí nasceu a ideia de uma novela infantojuvenil inspirado nos romances de cavalaria e histórias de fantasia com a falcoaria, os torneiros medievais, o respeito as diferenças e a coragem como os principais temas abordados.

A falcoaria é uma prática antiga e hoje quase extinta que remota do período medieval. Trata-se da prática de caçar com falcões treinados para este fim. Era uma atividade comum entre a elite medieva e foi o esporte preferido de reis e senhores feudais da época[3]. Para amestrar as aves era necessário paciência e tempo e por isso é preciso escolher muito bem o animal e começar a treiná-la ainda filhote.

No livro de Merege falcoaria e respeito às diferenças se encontram para falar da relação de Orlando com sua ave, o Vesgo. Orlando dedica seu tempo a uma ave estrábica e que provavelmente nunca aprenderia a caçar por conta da alta precisão na visão necessária às aves nessa prática. Contudo, ele não abandona nem despreza Vesgo pelas suas condições físicas e busca explorar seus potenciais ao máximo, jamais desistindo, e irrita-se quando sua ave é descriminada pelos adultos e pelos amigos do irmão.

Image: Eric Silva, 2018.
O tema do respeito às diferenças é marcante na narrativa desse livro e vai muito além da história de Orlando e seu falcão. Ela permeia as relações humanas com os elfos e as criaturas míticas e é um dos principais valores defendidos por Merege em sua obra.

O outro valor é a coragem que vem na trama ligada as grandes dificuldades enfrentadas pelos cavaleiros nos torneios medievais.

Os torneios medievais ou justas eram competições de cavalaria ou pelejas comuns entre os séculos XII ao XVI na Europa[4], e utilizadas como populares formas de diversão executada pelos nobres, mas que atraía também a atenção da população camponesa que assistia às competições.

Todas as provas aplicadas nestes torneios implicavam riscos aos seus participantes e por isso funcionavam também como treinamento e teste de coragem. Mas a coragem de que fala Merege não se resume a bravura, mas a coragem de fazer o que é certo e de ser justo sempre, e Orlando enfrenta suas provações buscando mostra que a coragem possui um significado mais largo e amplo do que a qualidade de não ter medo. O torneio idealizado por ela baliza e faz aflorar a essência dos competidores fazendo emergir os preconceitos e valores: arrogância, bravura, honestidade, compaixão, egoísmo, descriminação, tudo aflora em cada competidor e são jugadas pelos idealizadores da disputa com equidade e justiça.

Essas associações e ensinamentos são comuns na obra de Merege. A autora sempre busca através de suas histórias trazer ao leitor adulto e infantojuvenil algum tipo de aprendizado. Neste livro coragem significa ser justo, não buscar o caminho mais curto, respeitando as diferenças e o outro enquanto busca abrir seu caminho pela vida. Ser corajoso é nunca recuar diante da adversidade e lutar por justiça.

Por esses ensinamentos Orlando e o Escudo da Coragem é um livro que dialoga intensamente com os demais da coleção que compreende o universo ficcional criado pela autora, porque em todos ela encerra algum tipo de ensinamento e valor essencial ao crescimento pessoal das pessoas. Esse diálogo é ainda mais intenso com Anna e a Trilha Secreta, outro livro infantojuvenil sobre a necessidade de que trilhemos caminhos que nos leve ao autoconhecimento, a autocitação e ao respeito às diferenças.

Características gerais e apreciação crítica

Imagem: Eric Silva, 2018.
Uma talentosa contadora de histórias, a escrita de Merege é o ponto que mais me agrada em sua obra. Seja lá qual for a temática que ela escreva, esteja na forma de romances, novelas ou mesmo de contos, e independentemente de para quais públicos ela escreva, sua escrita sempre me dá uma sensação de conforto que poucos autores me causam.

Quando você penetra em seus cenários primorosamente construídos é como se estivesse realmente vivenciando aqueles cenários medievais, bosques e florestas. A linguagem é coerente e adequada, você compreende completamente a história ainda que ela faça referências a elementos e objetos de época que não são conhecidos do público geral. Trata-se de liberdade criativa ampla sem perder o rumo ou deixar o leitor confuso.

A narração é limpa e se limita ao essencial sem perder, porém, a beleza de um texto que te envolve e prende. O narrador não opina nem interfere na narrativa, mas lhe diz o suficiente para que você entenda que toda a peça cumpre o papel de te ensinar algo.

O livro é curto e dividido em 13 capítulos pequenos e por isso a leitura é rápida. Como o texto é fluido e muito bem construído você nem sente quando a história acaba. A linguagem é acessível e mesmo os termos técnicos e históricos não atrapalham o entendimento geral da narrativa, deixa apenas o leitor na curiosidade para saber o que é um jarl (“título usado na Era Viquingue e no início da Idade Média para designar o governador de uma região relativamente grande ou o braço-direito de um rei”)[5] ou um thane (título dado a um oficial do rei local)[6].

Os personagens são construídos conforme suas características e valores, mas como o objetivo da trama é fazer emergir o que está oculto bem poucos são os personagens planos, o que se destaca são os personagens que evoluem com a trama e se transformam. O principal deles é Brian, um dos principais competidores do torneio e que ao longo da história mostra muitas de suas facetas. Isso torna interessante a narrativa e instigante, porque os personagens deixam de ser previsíveis, e ainda que o desfecho da história o seja, não sabemos por quais caminhos a história passará antes de desembocar no resultado que o leitor espera.

A edição é muito semelhante ao livro Anna e a Trilha Secreta e possui o mesmo desenho gráfico e diagramação. O livro é também ilustrado com os desenhos de Ericksama que além de bonitos são também delicados.

Novamente o que mais gostei em Orlando e o Escudo da Coragem é o que costumo gostar e me atrair na obra de Merege: os temas, cenários e a escrita aconchegante e gostosa de se ler. Não vejo pontos fracos em uma trama que foi pensado para o público infantil. Há alguns clichês e o uso de fórmulas já clássicas, mas isso é tudo e está totalmente condizente com o gênero e com o público a que o livro está dirigido. Ainda assim, Merege se sobressai com o seu talento e originalidade nos seus pontos mais fortes. Seus propósitos são claros: divertir, encantar e ensinar, e essas metas o livro cumpre com maestria.

A edição lida é da Editora Draco, do ano de 2018 e possui 100 páginas.

Sobre a autora

Nascida em 1969, na cidade do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Merege é romancista e bibliotecária. Possui mestrado em Ciência da Informação, pelo IBICT/UFRJ-ECO, tendo defendido, em 1999, sua dissertação intitulada O livro impresso: trajetória e contemporaneidade. É também formada em Biblioteconomia pela UNIRIO e, desde 1996, trabalha no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional, onde atua no trabalho com material original, fontes primárias, identificação de documentos e organização de exposições.

Seu primeiro romance publicado, O Caçador (2009), foi também o primeiro do gênero fantasia escrito pela autora que desde então vem se dedicando a organização de diversas coletâneas do gênero, além de contos e romances. Suas principais obras estão ligadas ao universo de Athelgard, criado pela escritora para ambientar sua mais recente trilogia que se inicia com o romance O Castelo das Águias e ganha sequência com os livros A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar, todos publicados pela editora paulista Draco.

Com vasta experiência com manuscritos e forte interesse pela história do período medieval, Merege foi responsável ainda, na mesma editora, pela organização das coletâneas Excalibur: histórias de reis, magos e távolas redondas e Medieval: Contos de uma era fantástica, este último em parceria com o escritor brasileiro Eduardo Kasse.

A escritora ainda ministra cursos e palestras em instituições e escolas.




[1] Título dado a um oficial do rei local (Wikipédia).
[2] https://blog.editoradraco.com/2018/07/como-escrevi-orlando-e-o-escudo-da-coragem/
[3] Enciclopédia Delta Júnior
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Torneio_medieval
[5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Jarl
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Thane_(Scotland)


domingo, 31 de dezembro de 2017

Medieval: contos de uma era fantástica – Ana Lúcia Merege e Eduardo Kasse (org.) – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Da Escandinávia ao Japão, Medieval é uma obra que reúne nove autores brasileiros para contar histórias sobre uma época que fascina muitos leitores: a Idade Média. Juntando História e fantasia a coletânea organizada pelos autores Ana Lúcia Merege e Eduardo Kasse narra o lado fantástico de um período marcado por lutas sangrentas, disputas pelo poder e pela hegemonia do pensamento cristão, mas que ainda assim não foi o suficiente para apagar totalmente as crenças e mitos pagãos. Gênios, bruxos e entidades antigas povoam os contos dessa coleção que recentemente foi vencedora do Prêmio Argos de melhor coletânea.

Confira a resenha do último livro da Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageou a literatura do Brasil.


Sinopse

Cruzados, vikings, chineses, japoneses, mouros, gênios, bruxos e reis, todos eles cabem nessa coletânea de contos que faz um retorno à Idade Média para contar histórias que vão da Escandinávia ao longínquo Oriente de imperadores e samurais, tendo a magia como elemento condutor de cada narrativa. Organizado pelos especialistas em Idade Média e ficção histórica Ana Lúcia Merege e Eduardo Kasse, o livro conta com a participação de nove contos de vários autores brasileiros além de seus organizadores e foi ganhador do Prêmio Argos de 2017.


Resenha

Para além da Idade Média europeia

Ilustração do manuscrito francês medieval das três classes
da sociedade medieval: aqueles que oravam (o clero) 
aqueles que lutavam (os cavaleiros) e os que trabalhavam
 (o campesinato). 
(Li Livres dou Sante, século 13).
Imagem: Wikimedia Commons
Costumamos erroneamente associar a Idade Média (de 476 d.C. a 1453 d.C.) apenas aos feudos, castelos e batalhas ocorridas em solo europeu, porque assim nos ensinam quase todos os livros de História. Contudo, esse período da história da humanidade guarda em si uma diversidade que varia enormemente tanto no tempo como no espaço, sendo tão diverso quantos são os povos que coexistiram nesse mesmo momento histórico. E mesmo na Europa distinções culturais são perceptíveis quando nos aprofundamos no estudo histórico e cultural da miscelânea que compunha o povo europeu.

Muitos não sabem ou esquecem que a Idade Média não está restrita ao continente europeu, mas foi vivida também por todos os povos no mundo. Claro que essa vivência não se deu com as mesmas características, nem sob um mesmo sistema econômico e social. Enquanto na Europa da época o sistema social foi chamado de feudalismo, no oriente, tínhamos os grandes impérios como é o caso da China e do Japão, neste último substituído pela ditadura militar dos xogunatos ainda no século X.

O problema está todo na visão eurocêntrica da Historiografia ocidental que quando foi transposta para a escola nos fez pensar que a Idade Média aconteceu como um fenômeno europeu, que se confunde ao feudalismo – esse sim original daquelas bandas – e não como um período do tempo histórico da humanidade que nada mais representa do que uma datação. Cada povo que foram contemporâneos dos europeus medievos possuíam suas particularidades, diferentes graus de avanço tecnológico, diversos sistemas socioeconômicos e culturais, mas viveram na mesma época.

Medieval foi a primeira obra que eu li que toma a Idade Média como período da história da humanidade e não apenas das civilizações europeias e busca revelar a multiplicidade cultural e étnica da época, extrapolando os limites da Europa Medieval e indo ao Oriente. Desse modo, povoa suas histórias com vikings, mouros, mongóis, chineses, japoneses, imperadores, reis, camponeses, magos, cruzados e cavaleiros, cobrindo mais de mil anos de história. Senti falta apenas dos reinos africanos (Império de Gana, de Aksum, do Mali)[1] e dos povos pré-colombianos da América (Astecas e Maias)[2], surgidos na antiguidade e existentes ainda na época, logo, contemporâneos de europeus e asiáticos, ainda que o contato entre eles variasse de muito pouco a nulo, no caso dos americanos, nulo. Obviamente que sei que essa não era a proposta do livro, mas Medieval me fez ficar com vontade de ler contos também sobre esses povos.

Mas ir para além da Europa medieval não foi a única surpresa desse livro. Logo no primeiro conto percebi que Medieval divergia enormemente do que eu imaginava a princípio. Pensei inicialmente que os contos dessa coletânea tratavam da Idade Média histórica pura e simplesmente, contando enredos que se assemelhariam a livros como A Catedral do Mar de Ildefonso Falcones, que trata da servidão camponesa, o poder da nobreza, e das perseguições religiosas, ou Os Pilares da Terra, de Ken Follett, que aborda também a questão religiosa somada às disputas pelo poder.

Qual foi então a minha surpresa ao perceber elementos mágicos e sobrenaturais nas narrativas. Foi então que lendo o prefácio que compreendi que era esse o grande diferencial da obra e que o termo “fantástica” do subtítulo não se tratava apenas de um adjetivo para exaltar a era medieval. Isso não significa, porém, que os autores sacrificaram a História oficial para contar as suas narrativas, pelo contrário, todos os contos são povoados de muitos elementos da história real de cada povo que é retratado e o elemento mágico vem, por assim dizer, complementar e enriquecer cada conto ao lançar uma aura diferente sobre eles.

Compreendi também que o objetivo dos organizadores era mostrar que mesmo num período no qual a “visão cristã de mundo” era hegemônica, o fantástico e o maravilhoso sobre-existiam e sobreviviam no cotidiano e nas crendices, alimentando histórias fantásticas como as relatadas neste livro.

A ideia de juntar o fantástico com a Idade Média me fez lembrar das lendas de Arthur e do mago Merlim e também dos contos de fadas europeus, que são quase todos ambientados na era medieval e possuem um componente mágico muito forte. Porém, Medieval se distancia enormemente desses últimos pois não é uma obra ingênua. A maioria de seus contos busca o mágico atrelado ao realismo e não o mágico pelo mágico. Além disso, a ferocidade das relações humanas não é suavizada ou omitida e nem há uma tentativa de retomar o romantismo das histórias de cavalaria, que é próprio dos Contos da Távola Redonda e distante da realidade cruel da época a que faz referência.

Os contos em sua maioria não são arrebatadores ou magnéticos, algo que, na mainha opinião, é raro no gênero, sendo mais comuns os desfechos surpreendentes e acho que por isso mesmo que Antonio Skármeta dizia que "[...] o que opera no conto desde o começo é a noção de fim. Tudo chama, tudo convoca a um "final".

Contudo, os contos de Medieval são cheios de peculiaridades que os tornam únicos e especiais. Alguns são carregados de referências, mas todos buscam ser originais. Há aqueles que deixam seus desfechos em aberto deixando-nos em suspenso, outros que são imprevisíveis em seu enredo e nos pegam desprevenidos, mas todos são de uma qualidade narrativa que se sobressai. Muito bem escritos são frutos de pesquisas aprofundadas e cuidadosas sobre a época e os povos ali descritos, nos fazendo mergulhar na História, nos costumes e nos cenários de cada lugar.
Para não me estender resenharei apenas alguns, escolhidos arbitrariamente, e sobre os demais falarei só o que for de mais significativo.

Da Escandinávia ao Japão: os contos que compõem a obra

As Cruzadas são o principal tema do conto Erva Daninha,
de Melissa de Sá. Na imagem, Victoria hussita
 sobre os cruzados na batalha
de Domažlice em 1431 (c. 1500, Jena Codex)
Composta por nove contos, a coletânea é iniciada com o texto Erva daninha de Melissa de Sá e que tem como cenário a Veneza dos tempos das cruzadas.

Nesse conto conhecemos Pierre, um cruzado francês atormentado pelo passado e que buscava na Santa Missão (a luta contra os muçulmanos que ocupavam Jerusalém) a remissão dos seus pecados. Porém, chegando a Veneza, onde as tropas cruzadistas ficaram apostos a espera que os navios que os levariam a Terra Santa, Pierre conhece Agnes, uma linda e misteriosa jovem que mudaria para sempre a história do rapaz.

Esse é um conto que traz um dos elementos mais comuns às histórias fantásticas que é o tema da imortalidade e do furor daqueles que ambicionam conquistá-la. Contudo, a narrativa se sobressai pela grande sensibilidade da autora para trabalhar com histórias que envolvem o relato e a memória, o que se evidencia nos detalhes que o personagem rememora. O crucifixo que a mãe trazia por baixo da manga do vestido quando ia trabalhar nos campos; a primeira lembrança de Agnes, na feira, escolhendo uma fazenda e apalpando o tecido, roçando-o contra o rosto. A até mesmo do ar frio e dos modos duros dos venezianos ele se recorda.

Mural de guerra de cerco, Genghis Khan.
o Grande líder mongol foi responsável por um cerco a capital
chinesa que durou um ano.
Imagem: Wikimedia Commons.
Em O desejo de Pungie, texto de A. Z. Cordenonsi, temos uma completa mudança de cenário e somos guiados a Zhongdu, atualmente Beijing, em pelo cerco empreendido pelo chefe mongol Gengis Khan[3] e que já matava de fome a população da cidade. Nesse conto, conhecemos o dilema de Pungie, um descendente dos povos mongóis, mas que fora criado como chinês e conseguiu uma posição de funcionário público no liquidado Estado chinês. Odiado pelos moradores da cidade, sobretudo os mais pobres, Pungie ainda enfrentava a fome e privação com a sua família, assim como quase todos na cidade sitiada. Além disso temia pela segurança dos filhos diante da invasão iminente e que dizimaria a enfraquecida população de Zhongdu. E é por desespero que ele recorre a um velho e odiado membro de sua família, mas que era entendido dos mistérios da feitiçaria.

O texto de Cordenonsi, primeiro que leio do autor, é muito bem escrito e uma verdadeira aula de história chinesa e mongol. Ele é o primeiro conto da coleção a pintar a idade média com os matizes de outros povos ao mesmo tempo que busca inspiração em uma parte da História Mundial que ainda não tinha visto em nenhuma obra brasileira.

O conto é surpreendente e imprevisível, a única coisa que nos é dada pela descrição breve da história de Beijing, é a certeza de que a cidade cairá, tudo o mais, o destino de Pungie, de sua família e das artes mágicas que são evocadas por sua parente, pega-nos desprevenidos em um desfecho inesperado.
Na sequência, o quarto conto é Sacrifício, texto de Eduardo Kasse, autor dos livros da série Tempos de Sangue, do qual fazem parte os livros O Andarilho das Sombras e Deuses Esquecidos ambos resenhados aqui no blog.

Em Sacrifício, Kasse conta uma história dos vikings escandinavos com todas as características típicas dessa forma de narrativa: batalhas ferozes, pilhagens, grandes langskibs[4] e rituais mágicos.

Draugen, entidade mitologia nórdica presente em Sacrifício,
conto de Eduardo Kasse. 
Nesse conto acompanhamos quatro irmãos (Arvid, Einarr, Ragnvald e Ulrik) que se preparam para viajar a Inglaterra para uma nova pilhagem, esperançosos de encontrar fartura de ouro para saquearem como em suas últimas excursões às ilhas britânicas. Contudo, um deles acaba vivenciando um encontro com uma entidade mágica, um draugen (morto-vivo na mitologia nórdica), que lhe faz revelações tenebrosas quanto ao futuro da viagem. Por todo o conto acompanhamos da peleja empreendida pelos irmãos contra ladrões de gado até as preparações para a viagem e a chegada ao destino dos guerreiros, numa narrativa carregada tanto de misticidade como da potência guerreira pelo qual os vikings entraram para a história mundial.

Sacrifício é um conto que me fez lembrar de imediato de O Último Reino de Bernard Cornwell, livro que tem a mesma pegada e temática, com exceção de toda a parte mítica. Todavia, foi um outro aspecto da narrativa que muito me chamou a atenção para esse que é o conto mais inquietante de toda a coletânea: a passagem que lhe dá nome.

[PARÁGRAFO COM SPOILER] Antes de se aventurarem pelos mares em busca de cidades e povoados para pilharem, os vikings realizavam rituais mágicos de proteção e que lhe dessem sorte em suas campanhas. É em um desses rituais que os personagens do conto realizam sacrifícios humanos de prisioneiros de guerra, mas junto a eles é também sacrificada uma de suas filhas pequenas, a delicada e inocente Inga.

Eduardo cria ali uma cena de uma beleza única, forte e aterrorizante, no qual a pureza e inocência contrasta e se mistura a tetricidade[5] de alguns ritos pagãos. Uma cena que aflige, deixa o coração apertado perante a iminência de um ato lúgubre. Estas são as palavras que melhor definem a cena que dá nome ao conto: belo e macabro.

O último conto que apresentarei o enredo será O grande livro do fogo de Ana Lúcia Merege, texto vencedor do prêmio Argo de 2017. Ana Lúcia é autora da série Athelgard, cujo primeiro livro, O Castelo das Águias, e outra obra complementar, Anna e a Trilha Secreta, já foram resenhados aqui no blog.

Ana Lúcia Merege capta toda a singularidade dos contos das
Mile e uma Noites e transfere para seu conto O grande livro do fogo.
Na imagem: Cassim na caverna por Maxfield Parrish, 1909,
da história Ali Baba e os Quarenta Ladrões.
Imagem: Wikimedia Commons.
Em O grande livro do fogo, com seu talento ímpar para contar histórias, Merege faz renascer todas as características peculiares dos contos das Mil e Uma Noites para contar uma história da época do califa Al-Hakkam, quando, em Córdoba, na península Ibérica, vivia o empobrecido tapeceiro Mustafá e sua filha Khadija. Motivados pela ambição de Khadija, os dois se lançam na empresa de tentarem roubar uma misteriosa garrafa na qual se acreditava estar encerrado um poderoso jinn[6], mas que se encontrava em posse de um sábio e rico comerciante, Walid Abu-Bakr. Na tentativa de furtarem a garrafa com o objetivo de fazer o gênio realizar seus desejos, pai e filha, juntamente, com o próprio Walid, acabam por se envolverem em uma aventura fantástica e perigosa que desafia a vida dos três, mas que podia ser a chave para alcançar todos os seus sonhos.

As Mil e Uma Noites é uma obra de grande importância para mim porque é uma daquelas que foram responsáveis por me fazer leitor. Está lá na lista dos livros da minha infância e adolescência e ainda será resenhado aqui no blog. Desta que é a maior coleção de contos da qual já ouvi falar, Merege resgata as aventuras cheias de animais fabulosos, criaturas mágicas, incursões pelo deserto, jinns, tesouros e desafios que põem a prova a moral e os valores de seus personagens, bem como sua coragem de enfrentar as barreiras impostas pela sorte. Uma história que muito bem podia pertencer à fabulosa coleção de contos árabes, porque sua autora conseguiu captar toda a essência mágica dessas histórias seculares e dela criou sua própria narrativa.

Há ainda outros contos que não abordarei em detalhes para não me alongar. São eles: A flor vermelha, de Karen Alvares, Kitsune, de Erick Santos Cardoso, A dama negra e a donzela de palha de Nikelen Witter, A clareira mágica, de Roberto de Sousa Causo e Lenora dos Leões, de autoria da escritora Helena Gomes e que encerra a coleção.

O conto de Karen é o meu preferido na coletânea por ser povoado de muitos simbolismos, mas principalmente pela sua protagonista vibrante que no momento em que toma as rédeas de sua própria vida e destino vive uma aventura digna de relembrar Joana D’Arc.

Por sua vez, nos contos de Roberto e Helena me surpreenderam pelo inesperado e explícito erotismo que encerram em suas narrativas. Eu até esperava encontrar esse erotismo no texto de Kasse, especialmente, após a experiência de dois livros já lidos do autor, mas fui pego de surpresa ao encontrá-lo também nos dois contos supracitados. Porém é digno de nota que nas três narrativas o sexo cumpre funções muito próprias. Em Lenora dos Leões as cenas explícitas de sexo é, na verdade, uma denúncia a cultura do estupro, muito comum não só em campos de batalha como em todo o período medieval. Enquanto que, sob outra perspectiva, em Sacrifício e A clareira mágica, essas cenas estariam ligadas aos ritos pagãos e buscam, por sua vez, descortinar esse aspecto não muito conhecido dos rituais mágico-religiosos de vários povos antigos que tinham no sexo uma forma de rito.

Representação artística de um guerreiro samurai prestes a
realizar o seppuku. Xilogravura Ukiyo-e do período Edo
(1850-1860). O mesmo ritual é um dos temas do 
conto Kitsune de Erick Santos Cardoso.
Imagem: Wikimedia Commons.
Kitsune foi outro conto que muito me chamou a atenção. Sou muito sensível ao que leio e minha mente está sempre tentando expandir a narrativa a sua maneira. Kitsune foi um conto que brincou com essa minha sensibilidade porque produziu em mim uma imagem mental da narrativa extremamente singular.

Esse conto tem uma estética que beira o cinematográfico e me fez imaginar as cenas como se estivesse em um daqueles anime japonês com uma história do período Edo. As cores vivas, as lâminas afiadas e os ukiyo-ê[7] típicos do Edo vieram à tona em minha mente ao imaginar os bambus tremulando ao vento, a cor viva da pelagem da raposa, o sangue rubro a escorrer pela lâmina da katana enquanto impregnava a roupa do samurai com sua cor e calor. Um show de sensações que, no entanto, (tenho certeza) não será igual para todos que lerem, porque a minha otakice ajudou bastante na associação, ainda que isso não tire o mérito da narração.

Por fim, A dama negra e a donzela de palha é também um conto interessante que fala um pouquinho da infância camponesa, assim como dos mistérios das artes mágicas. Porém o seu desfecho em aberto me frustrou bastante, sobretudo porque se dá no principal clímax da história.

Conclusão

Medieval é um trabalho muito interessante de dois escritores que admiro muito e como sempre eles fizeram um bom trabalho com uma proposta que acho agradará muitos leitores, tanto aqueles que gostam de contos cheios de magia, como aqueles que gostam de histórias do período contemplado pelo livro. Além disso eles reuniram um time de escritores talentosos e que escrevem muito bem. Não é à toa que o livro foi logo premiado em duas categorias: melhor coletânea e melhor conto.

O que senti falta na coletânea foi um glossário ou um conjunto de notas maior e que desse conta dos vários termos e expressões estrangeiras desconhecidas. Em vários contos estas expressões aparecem. São termos em japonês, chinês, dinamarquês (acho), árabe, alguns explicados dentro do próprio contexto, mas outros carentes de notas ou dos organizadores ou dos próprios autores.

Para quem tem um conhecimento vasto nas temáticas tratadas isso não foi problema. Também para quem leu pelo Kindle, como foi meu caso, o motor de pesquisa do Wikipédia presente no aplicativo foi essencial, mas isso, por outro lado requer acesso à internet. Para os leitores da versão impressa, por vezes terá que fazer uma pesquisa ou outra para conhecer mais de perto esses termos. Cito só alguns deles com os significados em nossas notas no final da postagem: zoco[8], wushamao[9], langskib[10], seppuku[11], tian-dao[12], dentre outros.

Mas, em conclusão, com seus pontos positivos e negativos, não importa, Medieval é uma obra brasileira sem precedentes no formato em que se apresenta e realmente digno do prêmio que recebeu. A edição é linda, uma das capas mais inspiradas do catálogo da Draco. Os contos são diversificados e não repetem temáticas, além de serem muito bem escritos. Muitos deles originalíssimos e todos carregam as marcas pessoais de seus autores.

Cortesia do programa Kindle para Samsung, a edição lida é digital, publicado pela Editora Draco e do ano de 2016. A versão impressa possui 232 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


Prévia do Google Books




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[1]https://seuhistory.com/microsite/raizes/news/oito-grandes-imperios-africanos-que-voce-provavelmente-nao-conhece
[2]http://www.ufscar.br/cursinhoufscar/civili_precolombiana.htm
[3] “Título de um conquistador e também, atualmente, o nome do imperador mongol, nascido com o nome de Temudjin nas proximidades do rio Onon, perto do lago Baikal. [...] Estrategista brilhante, com hábeis arqueiros montados à sua disposição, venceu a grande muralha da China, conquistou aquele país e estendeu o seu império em direção ao oeste e ao sul” (Wikipédia).
[4] Nome pelo qual são conhecidos os navios clássicos dos vikings. (Wikipédia)
[5] Caráter ou qualidade de tétrico (que causa horror; horrível, medonho). (Houaiss, 2001)
[6]O mesmo que gênio. Espírito que, segundo os antigos, regia o destino de um indivíduo, de um lugar etc., ou que se supunha dominar um elemento da natureza, ou inspirar as artes, as paixões, os vícios etc. (Houaiss, 2001)
[7]Gênero de xilogravura e pintura que prosperou no Japão entre os séculos XVII e XIX. (Wikipédia)
[8]Mercados tradicionais em países árabes especialmente aqueles que são realizados ao ar livre. (Wikipédia Espanhola)
[9]Chapéu usado pelos funcionários chineses da etnia Han durante a dinastia Ming. Consistia-se em um chapéu preto com duas abas parecidas com asas de placas finas, de forma oval, em cada lado. (Wikipédia Inglesa)
[10]Vide nota 4.
[11]Ritual suicida japonês reservado à classe guerreira, principalmente samurai, em que ocorre o suicídio por esventramento (consiste em realizar um corte, “kiru”, horizontal na zona do abdômen, abaixo do umbigo, “hara”, efetuado com um tantō, wakizashi ou um simples punhal, partindo do lado esquerdo e cortando-o até ao lado direito, deixando assim as vísceras expostas como forma de mostrar pureza de carácter). (Wikipédia).
[12]Grupo de religiões de origem chinesa que seguem sua linhagem de volta ao movimento Lótus Branco da China imperial, adaptado ao quadro da religião popular chinesa. Conhecido também como xiantiandao. (Wikipédia).

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