Por Eric Silva
24 de abril de 2020
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da
resenha nos comentários.
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa
resenha, basta clicar no play.
Realização com pareceria do Instituto Pegaí Leitura Grátis, a coletânea Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é mais uma das obras
delicadas, singelas e muito bem escritas da escritora fluminense Ana Lúcia Merege que neste
livro dá destaque à sabedoria, afetividade e experiências de personagens da
terceira idade, pertencentes aos universos ficcionais criados pela autora.
Confira a resenha.
Sinopse
do enredo
Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é uma pequena coletânea de contos publicados
com apoio do Instituto Pegaí e que,
segundo prefácio da autora, faz parte de um projeto mais amplo denominado Heróis de prata. Nesse projeto a autora
escreve uma série de contos de fantasia e ficção científica
que daria destaque, nas palavras da própria Merege, a “protagonistas idosos ou, pelo menos, bem maduros, cuja experiência e
amplitude de visão são determinantes para a resolução da trama”. Nesse
primeiro livro há um destaque para a relação entre esses personagens e seus
netos, com os quais contracenam.
Nos dois primeiros contos
temos narrativas inspiradas no universo ficcional de fantasia medieval de Athelgard, principal cenário das obras da autora, enquanto os
demais situam-se em outros dois universos criados por ela, o último deles
compartilhado com o escritor Luiz Felipe Vasques.
Intitulado O espetáculo não pode parar, o primeiro
conto é narrado em primeira pessoa e conta algumas das memórias de Zemel, um
saltimbanco que se recorda de seu avô com quem aprendeu o ofício, além de
relatar os desafios enfrentados por sua família para ganhar o sustento após seu
avô sofrer um acidente. Em suas memórias de infância, Zemel conta como o
acidente de seu avô, ocorrido durante um dos pequenos espetáculos que os dois
faziam juntos, o deixou traumatizado e de como com sapiência o velho
saltimbanco não permitiu que o amor do neto pela arte circense morresse.
O segundo conto, O eterno retorno, traz de volta a menina
Anna e sua avó, a elfa Kyara, dois importantes personagens de outro livro
infantojuvenil de Merege, Anna e a Trilha
Secreta, publicado em 2015.
Neste conto, Anna tem apenas nove anos e vive feliz com a avó que está
ensinando-a a caçar. Contudo a menina, que possui mais sangue humano do que
élfico, está cada vez mais curiosa sobre seu povo e pressiona para saber mais
sobre o passado da avó, uma história dolorosa que Kyara receia revisitar.
Em De amor e eternidade, Merege revisita a série Contos da Clepsidra, ambientada na cidade de Cartago, no século
III, e que em como protagonista o capitão fenício Balthazar de Tiro. Nesta
narrativa, Balthazar, já envelhecido, vive com a família de um dos seus
ex-tripulantes, família que o capitão adotou como sua e cujo futuro o preocupa
bastante. Como de costume ele brinca com suas netas e lhes conta suas aventuras
mágicas de viagens no tempo ao lado de outro dos tripulantes do seu navio,
Lísias, o que faz emergir lembranças boas e tristes e preocupações relacionadas
ao futuro.
Por fim, A era de Leonte, é um conto no estilo space opera[1] baseado no
universo ficcional de Medistelara, “no
qual as civilizações do antigo Mediterrâneo são transportadas para o espaço”,
com destaque neste conto para os fenícios espaciais, os ken’amis, e sua Liga Mercantil, e para os heládicos[2],
que na narrativa são donos de uma corporação de mineração chamada Caríbdes, que
iniciou uma exploração de um valioso mineral no planeta Carsis.
Nesta narrativa, Merege conta
uma história da personagem Elyssa de Quartag e seu neto adolescente, Hanno, um
aprendiz de piloto. Elyssa vai ao distante planeta Carsis representando a
poderosa Liga Mercantil para firmar um acordo de compensação financeira e
comercial com os heládicos após estes começarem a exploração de minério no
planeta. Ali, avó e neto percebem uma situação de exploração da mão de obra
barata local, e a história encontra uma reviravolta inesperada por conta de uma
especial movimentação de astros.
Resenha
Ana Lúcia é uma autora brasileira que venho acompanhando desde
2016, quando fiz a resenha de seu livro O Castelo das Águias. De 2016 para
cá, já resenhei outras três obras da autora e um quarto
livro no qual foi organizadora ao lado de Eduardo
Kasse, autor da série Tempos de Sangue.
No início de 2019, ela me enviou Contos Fantásticos de Avós Extraordinários para que eu conhecesse seu último trabalho.
Contudo, aquele ano foi tão difícil e conturbado para mim que acabei
abandonando todas as atividades do blog e também a maioria das minhas leituras.
Aquele também foi o ano que menos li.
Com o período de quarentena devido ao Covid-19, retomei minhas
leituras, o blog e me recordei desse livro e, por isso, resolvi resenhá-lo,
antes que minha rotina voltasse a ficar insana.
Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é uma coletânea pequena, contando com apenas quatro
contos que giram entorno de uma mesma temática: narrativas de aventuras (contos
2 e 4) ou de momentos cotidianos (contos 1 e 3) vividos por avós e netos e que
levam esses últimos a beberem das experiências e sapiência de seus avós.
É uma obra infantojuvenil, mas sensível e madura, e que
pode agradar outras faixas etárias pela qualidade da escrita da autora e de
algumas narrativas que não são particularmente tão infantis.
Como é de seu costume, Merege utiliza novamente suas narrativas para
trazer aos leitores mirins algumas lições de vida e, dessa vez, inova por dar
destaque a um grupo etário que na sociedade moderna tem enfrentado um visível
declínio de importância atribuída.
Serei mais claro.
Nesta sociedade de tantos
avanços tecnológicos, de imediatismo exacerbado e de pragmatismo proeminente, a
terceira idade vem sendo constantemente tratada como um estorvo para suas
famílias, e visivelmente perdem importância no papel de matriarcas e
patriarcas, de chefes de família, para os mais jovens. Em grande parte, esse
grupo etário passa a ser visto, preconceituosamente, como ultrapassado e
incapaz de ser útil numa sociedade tecnológica muito diferente da realidade
vivida outrora pelos mesmos. Por conta desse fator, a importância que no
passado era atribuída aos mesmos entra em declínio. Por outro lado, em relação
a importância adquirida pelos mesmos em termo de vivências e experiências, essa
não pode ser diminuída.
Com este pequeno livro, Merege vem com o claro objetivo
de mostrar a importância desses personagens mais velhos e falar dos impactos
que a relação que se estabelece entre netos e avós tem para a formação do
caráter das novas gerações. Sendo ele um
livro voltado para crianças de 10 a 12 anos, Merege busca estimular um novo olhar nos pequenos para as gerações que os
antecederam. Um olhar de respeito e de admiração.
O livro é escrito por Merege
com sua linguagem costumeira que busca um meio termo entre um vocabulário culto
e uma linguagem simplificada, e como sempre, a autora mostra que ainda é uma
grande contadora de histórias. Esse seu estilo fica bastante proeminente no
primeiro conto da série, no qual a autora nos traz um narrador jovem, mas
maduro e sensível, de olhar observador e inteligente, e com ele escreve um
texto com uma escrita imersiva e gostosa de ler.
Já disse em outras
oportunidades que o ponto que me conquistou nas obras de Merege foi a sua
escrita impecável, tecida com esmero e, por que não, com amor. Mesmo quando se
trata de uma narrativa que eu goste menos, sou tão fascinado pela forma como
ela escreve que me esqueço do resto. Além disso, a temática medieval me agrada
bastante, sobretudo quando a autora foca no cotidiano medievo, como é o caso do
conto O espetáculo não pode parar e
do meu livro preferido de Merege, O Caçador.
Como um bibliomaníaco nerd e otaku ligado
em História, em vida cotidiana e em cultura nacional e internacional, sou fã de
narrativas ambientadas em cenários medievais, de slice-of-life (histórias centradas no dia a dia de pessoas comuns)
e de obras artísticas que mostrem a riqueza cultural de uma época ou lugar. O espetáculo não pode parar me
conquistou por esses elementos ao apresentar um personagem criança no limiar de
adquirir a maturidade adulta, pertencente a um universo medievo, e cujo
espírito, ainda jovem, foi forjado nas dificuldades de uma vida nômade e
paupérrima. Trata-se do conto mais adulto da obra e que me lembrou da força do
livro O Caçador.
Zemel, protagonista do conto,
é ainda menino e junto com sua família vive migrando de cidade em cidade, o pai
e o tio oferecendo seus serviços de ferreiro e de paneleiro, respectivamente, e
o avó e o neto, fazendo pequenos espetáculos de saltimbancos para entreter
camponeses e vilões[3] das povoações por onde
passavam.
Contudo, a narrativa se dá
quando o avô de Zemel sofre um acidente durante uma dessas apresentações e as
coisas ficam mais difíceis para a família. Se não bastasse, o menino fica
traumatizado com o ocorrido e tenta abandonar as artes circenses, em um momento
crítico, no qual seu trabalho também é importante para a sobrevivência de
todos. Nesse cenário, Thiers de Pwilrie, o avô da criança, tem que usar de
inteligência, paciência e força de vontade para demover o neto e ao mesmo tempo
garantir o pão. É um texto que traz uma lição de vida importante e que agrega
muito do que gosto nesse tipo de literatura: drama, personagens realistas e
vida cotidiana e cultural medieval.
Numa linha similar, ainda que
fale de elfos, O eterno retorno foi
também um conto que me agradou, um pouco menos do que o primeiro, mas que me
fez recordar de narrativas anteriores envolvendo os mesmos personagens.
Uma das narrativas ambientadas na Floresta dos Teixos |
Nas histórias envolvendo as
tribos élficas da Floresta dos Teixos,
Merege costuma nos mergulhar em cenários muito bonitos de florestas e bosques,
e desde pequeno tenho particular fascínio por florestas, o que se consolidou
com minha formação em Geografia. Por seu turno, esses contos e novelas sobre a
infância da protagonista de O Castelo das Águias nos proporciona o contato com esses cenários. Além disso,
Merege dá a estas narrativas povoadas por espíritos guardiões e xamãs uma
pegada um tanto indígena que faz do seu trabalho bastante original ao somar fantasia e crenças
similares às dos indígenas norte-americanos.
O tema de O eterno retorno é também bastante
maduro. Na verdade, todo o livro se
encontra nesse limiar entre uma obra para crianças e um tom de histórias mais
sérias, e acredito que esse tom emana do peso da maturidade de seus
protagonistas adultos. Neste conto em particular, Merege falam de dores do
passado, e de forma meio velada remota às histórias de amores familiares
marcados pela tragédia. Contudo, a autora não entra em todos os detalhes do que
ocorreu no passado da protagonista Kyara, porque se trata de uma narrativa
retirada de uma história maior que compõe os livros da série Athelgard.
Mesmo para quem não acompanha
a obra da autora, o conto ainda assim fará sentido, porque Merege dá todos os
elementos necessários para que ele seja lido de forma independente, mas tudo
ali faz alusão a uma história mais ampla do qual nos foi permitido ver só uma
parte. Isso me lembra, inclusive, que tenho que ler as duas obras de
continuação de O Castelo das
Águias.
Os contos seguintes foram os
que menos me agradaram, ainda que eles tenham muita qualidade e, por isso, não
me demorarei neles.
O terceiro conto, De amor e eternidade,
traz um personagem de Merege com o qual eu ainda não tinha tido contato, o
capitão fenício Balthazar. O conto é baseado em memórias do capitão que ele
narra para duas de suas netas a fim de entretê-las.
Por conta dessa sua natureza
de narrativa de memórias, é o conto, que na minha opinião, ficou mais
deslocado, porque faz muitas referências às outras histórias escritas ou
imaginadas pela autora. Merege novamente toma cuidado para fazer todas essas
referências compreensíveis ao leitor e não prejudicar a leitura de quem não leu
as aventuras da mocidade de Balthazar. Não obstante, o conto tem todo os
elementos de um spin-off[4] e por conta disso, a sensação que o conto
me deu foi de um leve deslocamento. Acho
que não tive essa mesma sensação com o segundo conto da coletânea tanto pelos
motivos já citados, como também porque acompanho a trajetória da personagem
Anna desde 2016.
Por sua vez, o último conto
da série é um space-opera que se
passa em um planeta ainda pouco conhecido e que possui um povo espiritualizado,
singular e exótico em um contexto que me fez lembrar um pouco do filme Avatar e um pouco do livro A Chegada a Darkover, da autora estadunidense, Marion Zimmer Bradley.
A era de Leonte me
lembra o livro de Bradley por se tratar de uma narrativa sobre viagens
intergalácticas com a busca e a descobertas de novos planetas, no caso de
Bradley, sobretudo para colonização, e no caso de Merege, para atividades
mercantis. E me faz recordar de Avatar, porque além de ser uma narrativa sobre
viagens intergalácticas, o conto trata da invasão humana em busca de recursos
minerais e possui um povo espiritualizado e intimamente ligado aos fenômenos
naturais de seu lugar de vivência.
Contudo, tenho uma crítica a
como este conto foi desenvolvido. Acho que a história de Merege tinha potencial
para ser mais do que um conto, e, pela escolha da autora em fazer uma narrativa
mais breve, fez com que o desenvolvimento da história fosse apressado e a narrativa
ficasse um tanto inverossímil em seu desfecho e clímax. O fato é que não gostei
do desenvolvimento, e sobretudo do desfecho.
Se Merege explorasse mais as
características desse povo tão peculiar e intrigante, de seu planeta e do
minério que ali existia, descrevesse a chegada dos heládicos, os primeiros
contatos, colocasse alguns conflitos, desenvolvesse mais profundamente os
personagens, escrevesse paralelamente a história de Elyssa e Hanno, e chegasse
ao desfecho no qual chegou só que de forma mais desenvolvida e detalhada, A era de Leonte daria, não um romance,
mas uma novela interessante ao estilo de Bradley, de Arthur C. Clarke, de Frank
Herbert ou de seu filho Brian Herbert.
Até mesmo o título, A era de Leonte, é bom para um livro
independente. Contudo, na forma compacta em que foi concebida ele não me
agradou muito. Por outro lado, o objetivo da autora com seu livro é claro e ela
deseja alcançar um público mais jovem. O livro que eu enxergo em minha mente
seria algo bem diferente e distante da proposta inicial.
Enfim, para encerrar, no todo, Contos Fantásticos de Avós Extraordinários é um livro simples, mas
sensível e original.
A edição lida é da Editora
Draco, do ano de 2018 e possui 64 páginas.
Sobre
o autor
Ana Lúcia Merege. Imagem: Acervo da Biblioteca Nacional. |
Nascida em 1969, na cidade do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Merege é
romancista e bibliotecária. Possui mestrado em Ciência da Informação, pelo
IBICT/UFRJ-ECO, tendo defendido, em 1999, sua dissertação intitulada O
livro impresso: trajetória e contemporaneidade. É também formada em
Biblioteconomia pela UNIRIO e, desde 1996, trabalha no Setor de Manuscritos da
Biblioteca Nacional, onde atua no trabalho com material original, fontes primárias,
identificação de documentos e organização de exposições.
Seu primeiro romance publicado, O
Caçador (2009), foi também o primeiro do gênero fantasia escrito pela
autora que desde então vem se dedicando a organização de diversas coletâneas do
gênero, além de contos e romances. Suas principais obras estão ligadas ao
universo de Athelgard, criado pela escritora para ambientar sua trilogia que se
inicia com o romance O
Castelo das Águias e ganha sequência
com os livros A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar,
todos publicados pela editora paulista Draco. Pertence também ao universo de
Athelgard o livro Anna e a Trilha Secreta, que faz um
regresso à infância da principal personagem de O Castelo das Águias, além
de Orlando e o Escudo da Coragem, outro infantojuvenil publicado pela autora em 2018.
Com vasta experiência com manuscritos e forte interesse pela
história do período medieval, Merege foi responsável ainda, na mesma editora,
pela organização das coletâneas Excalibur: histórias de reis, magos e
távolas redondas e Medieval:
Contos de uma era fantástica, este último em parceria com o
escritor brasileiro Eduardo Kasse.
[4]Nos
meios de comunicação, obra derivada, história derivada ou derivagem (em inglês:
spin-off) é um programa de rádio, programa de televisão, videojogo, grupo
musical ou qualquer obra narrativa criada por derivação, isto é, derivada de
uma ou mais obras já existentes. Sua diferença com uma obra original é que a
primeira se concentra, em particular, mais detalhadamente em apenas um aspecto
(por exemplo, um tema especifico, personagem ou evento) ou modificando um pouco
a história e seus aspectos originais.
Muito obrigada pela resenha, Eric! Na verdade, pelo compilado de resenhas deste post. Ficou maravilhoso.
ResponderExcluirSó para esclarecer, o último conto se destina a ser parte de um livro que narra a primeira viagem de Hanno e de seu primo Himilco (Prêmio Jovem Comerciante da Liga Mercantil) passando por vários planetas além de Carsis. Possivelmente, se o livro for concluído, haverá uma versão um pouco melhorada, embora, talvez, sem mergulhar na história dos carsísios. ;) De qualquer forma, mesmo não tendo gostado tanto desse conto e do anterior, seu respeito e carinho por meu trabalho são um enorme incentivo. Obrigada de coração!
Ah, e esse infográfico eu vou roubar, tá? ;)
Fico feliz que tenha gostado. Acompanhar o desenvolvimento de sua obra é sempre um prazer, porque você é uma excelente contadora de histórias. Que bom que o último conto fará parte de algo maior, há muito potencial nele. Acerca do infográfico, use-o à vontade e em qualquer mídia que desejar fazê-lo.
ExcluirFarei apenas uma pequena modificação no infográfico. Um erro de digitação que encontrei agora.
Excluir