sexta-feira, 6 de abril de 2018

O Jihad Butleriano – Brian Herbert e Kevin J. Anderson – Resenha


Por Eric Silva
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Integrando o universo da série Duna, O Jihad Butleriano volta 10 mil anos no passado do primeiro livro de Frank Herbert para contar a origem de importantes elementos do universo ficcional de Duna. Um livro épico, envolvente e de uma riqueza de criatividade, de mundos e de temas de discussão que faz desta obra uma referência importante para a literatura de ficção científica tal como foi com os originais de Frank.

Sinopse

Em um futuro longínquo, os seres humanos construíram um império intergaláctico que, no entanto, cai em parte sob o controle das máquinas pensantes. Subjugados, restam poucos planetas de humanos livres e resistentes aos desejos de expansão da supermente eletrônica, Omnius. Neste universo, as máquinas, ao lado de robôs controlados por mentes humanas que servem a Omnius, estão empenhados a conquistar os planetas restantes, estendendo o domínio e a supremacia da supermente à toda humanidade. Uma guerra de proporções épicas entre os últimos humanos livres e as opressoras máquinas é eminente e poderá decidir o curso da história da humanidade e das máquinas.

Resenha

Esse ano está sendo para mim o momento de iniciar séries que já conhecia há séculos, mas que nunca tive tempo de ler. Primeiro foi com O Jardim dos Esquecidos, primeiro livro da Saga dos Foxworth, da estadunidense Virgínia C. Andrews, e agora é a vez do universo ficcional de Duna, idealizado por Frank Herbert e que foi continuado por seu filho Brian Herbert em parceria com Kevin J. Anderson.

A saga Duna foi iniciada pelo estadunidense Frank Herbert ainda em 1965 com a publicação do livro homônimo e que veio a se tornar o livro de ficção científica mais vendido de todos os tempos, “uma das mais renomadas obras de ficção e fantasia já lançadas, e um dos pilares da ficção científica moderna[1].

Os Vermes gigantes do planeta Arrakis (Duna)
Foto: https://mavearworx.weebly.com/blog/category/music-inspired-by-dune    
Até sua morte, ocorrida em 1986, Frank escreveria o total de seis livros para a série. O universo ficcional de Duna gira entorno de um império intergaláctico dominado por casas nobres em disputa política e do planeta desértico Arrakis (Duna), dominado por vermes gigantes e única fonte da preciosa especiaria Melange, que era capaz de prolongar a vida de seus usuários.

Após a morte de seu pai e seguindo o desejo desse, Brian Herbert, em parceria com Kevin J. Anderson, decide dar continuidade a série interrompida em seu sexto volume através da publicação de Os Caçadores de Duna (Hunters of Dune) e Vermes da Areia de Duna (Sandworms of Dune) e também ampliar o universo ficcional de seu pai contando fatos ocorridos anteriores a trama do livro Duna. Assim nascem as trilogias As Lendas de Duna e Os Prelúdios de Duna.

O Jihad Butleriano faz parte desta ampliação do universo de Duna e como primeiro volume da trilogia As Lendas de Duna narra fatos ocorridos 10 mil anos antes daqueles contados em Duna, em um período no qual a humanidade vivia a ameaça do avanço do império das máquinas pensantes.

Um enredo épico

No islamismo o termo Jihad (جهاد) é um conceito religioso que, a depender do contexto, pode significar “empenho”, “esforço” ou “luta” e ser interpretada como “uma luta, mediante vontade pessoal, de se buscar e conquistar a fé perfeita[2]. Ou seja, a Jihad pode ser interpretada como “a luta interna de um indivíduo contra instintos básicos, o esforço para construir uma boa sociedade muçulmana[3]. No entanto, também pode ser entendida como “uma guerra pela fé contra os infiéis[4], quer dizer, Guerra Santa, conceito que é radicalizado e levado ao pé da letra por alguns grupos, chamados no ocidente de jihadistas. Para mais detalhes sugerimos a leitura do texto da How Stuff Works.

Em O Jihad Butleriano, o termo Jihad também é usado no sentido de guerra, porém contra as sofisticadas máquinas com inteligência artificial, enquanto que Butleriano se refere a família do Vice-rei da liga dos Nobres, os Butler.

Depois de milênios de dominação humana que já havia se espalhado por inúmeros planetas da galáxia, o Império Antigo humano é subjugado por um grupo rebelde autointitulado de Titãs, que se utiliza da tecnologia de informática e robótica existente para desenvolver uma inteligência artificial. Com esta nova tecnologia o grupo atinge seu objetivo de dar um golpe de Estado e subjugar a população através de um governo de terror e massacre. Alguns dos poucos planetas que se mentem livres do domínio tirânico dos titãs (Planetas Alinhados) se agrupam e formam uma confederação chamada Liga dos Nobres, os demais planetas humanos fora da liga são chamados de não-alinhados.

Por sua vez, para prolongar seu governo através dos milênios, os titãs se submetem a operações cerebrais para se tornarem os chamados, cimeks, “máquinas com mentes humana”, ou seja, “cérebros imateriais armazenados em corpos mecânicos[5]. Contudo, com o passar dos séculos um dos titãs delega tantas funções a mente artificial criada que Omnius, nome da inteligência artificial autoconsciente, toma o controle do império titã. Uma vez no controle, Omnius impõe um governo das máquinas, submetendo bilhões de pessoas à escravidão e muitos outros são condenados à morte. Apenas os titãs são poupados devido a uma configuração que impedia Omnius de eliminar seus criadores. Por conta disso, os antigos ditadores são incorporados ao exército robótico como generais da mente artificial, enquanto os planetas dominados por Omnius passam a ser chamados de Planetas Sincronizados.

Durante um milênio de governo das máquinas, os humanos cativos dos Planetas Sincronizados se mantêm submissos mesmo diante da insensibilidade e descaso das máquinas pela vida humana, enquanto que nos planetas Alinhados e Não-Alinhados seus habitantes buscam defender-se das investidas de Omnius e Cimeks.

Neste caos, humanos como Xavier Harkonnen, Serena Butler e Vorian Atreides, cimeks como Agamenon, Barba Azul, Juno e Ajax e máquinas como Erasmo, assim como muitos outros personagens, emergem como importantes protagonistas na luta entre homens, cimeks e máquinas.

Características gerais e apreciação crítica

Brian Herbert, filho de Frank Herbert e um dos autores de O Jihad Butleriano.
Em seus inacreditáveis 126 capítulos, felizmente bem curtos, os dois autores alternam sua narrativa entre vários mundos e personagens. Nesse passeio a narrativa se divide entre Salusa Secundus, sede do governo da Liga dos Nobres, passa pelos domínios de Omnius em planetas como a Terra, e também por alguns planetas não-alinhados, com destaque especial para Arrakis, que em um futuro distante seria chamado de Duna. Através desse jogo de alternar cenários vamos conhecendo as várias realidades de planetas muito distintos uns dos outros, e diferentes temas são tratados como tráfico de órgãos, escravidão, drogas, inteligência artificial, ciência e tecnologia de viagem interplanetária.

O livro começa com uma breve narração da história de como a mente eletrônica toma o poder após uma era de domínio titã. Em seguida passamos à batalha empreendida pelos humanos livres para defender Salusa Secundus contra a tentativa de invasão orquestrada por Omnius e liderada pelo seu general cimek Agamenon. Essa parte da batalha é um tanto confusa por consequência da tradução, mas pouco a pouco vamos nos adaptando a narrativa e ela toma um ritmo menos agitado.

No todo, a narrativa de O Jihad Butleriano é muito tranquila e envolvente. Vai crescendo gradativamente, à medida que inclui novos personagens e situações à história. Como mudamos rapidamente de capítulo somos deixados em suspense sobre quais rumos cada história, de cada personagem tomará. Uma história cheia de reviravoltas, complexa, mas muito bem construída, costurada, fazendo com que cada coisa, de cada povo, tenha sua própria lógica, mas se harmonize com o todo. Cada personagem possui sua personalidade e são igualmente destacados, não permitindo com que sejam evidentes seus destinos, nem sejam deixadas pontas soltas em cada história.

Kevin J. Anderson, co-autor da obra.
Escreveu também algumas continuações da série Star Wars 
Algumas coisas são bem curiosas nesse livro. A principal delas são as citações que iniciam cada capítulo. Reflexões de livros e registros fictícios escritos ou pronunciados pelos próprios personagens, mas que de alguma forma refletem o conteúdo do capítulo. Algumas dessas passagens são bem profundas e postarei no nosso Twitter, Pinterest e Tumblr.

Outra curiosidade são as referências religiosas. No universo criado pelos autores alguns grupos professam uma religião que é a fusão do islamismo com preceitos budistas, os budislâmicos. Mais curiosos ainda é que este grupo se subdividem zensunni e zenshiítas, uma clara referência aos grupos sunitas e xiitas.

Pacifistas os budislâmicos tinham fugido das máquinas para os Planetas Não-Alinhados sem contribuir na luta desesperada da humanidade contra o avanço de Omnius. Diante do que chamaram de traição, os sobreviventes da Liga dos Nobres sentiram-se no direito a submeter milhões de budislâmicos ao regime de escravidão.

Em O Jihad Butleriano temos na escravidão um dos temas mais polêmicos que se encontra em igual grau de aprofundamento com o qual é abordado o tema da inteligência artificial que se volta contra a humanidade. A verdade é que brutalidade e opressão permeia todos os contextos dessa história fabulosa. Escravocratas, as relações humanas não eram tão menos cruéis e criminosas do que o genocídio empreendido pelas máquinas.

As máquinas, e sobretudo o robô independente Erasmo têm total desprezo e indiferença a vida humana que consideram como recursos que muitas vezes é descartada por motivo torpe[6]. Muitos humanos eram utilizados por Erasmo como ratos de laboratório para experiências científicas brutais, uma verdadeira carnificina para saciar a sede inesgotável de conhecimento da mente eletrônica. Por sua vez, os humanos livres também demonstravam total desprezo pela vida dos budislâmicos.

Uma outra discussão interessante está nos propósitos a que se serve a ciência. O Jihad Butleriano nos faz questionar se, mesmo como produtora de sofisticação técnica que servirá a libertação da humanidade, a ciência deve ou não fechar os olhos para as questões sociais. Faz também com que nos questionemos sobre qual é o verdadeiro papel do cientista e até onde somos éticos quando estamos diante de alguma questão que consideramos uma alta prioridade.

Frank Herbert, idealizador e primeiro escritor da série Duna.
Depois que lemos é impossível não lembrar de Matrix, onde as máquinas com inteligência artificial se voltam contra os humanos e escravizam a espécie, enquanto os poucos sobreviventes montam núcleos de resistência às máquinas altamente especializadas na exterminação dos rebeldes. Além disso, assim como O Jihad Butleriano, Matrix também traz, em sua trama, profundas reflexões filosóficas em relação a humanidade e sua relação com a tecnologia.

Mas as principais diferenças entre as duas obras são que, primeiro, o universo ficcional de O Jihad Butleriano é bem mais amplo, rico e diversificado; segundo, não se limita a Terra; e terceiro, não existe uma realidade alternativa artificial para escravizar os humanos, e sim uma escravidão real, literal e consciente, o que só aumenta o grau de brutalidade das máquinas. De toda a forma, são duas obras fabulosas, inteligentes, originais e criativas cujas semelhanças são enriquecidas pelas diferenças contundentes.

Enfim, o que digo é que lamento o livro tão rico e capaz de suscitar sentimentos dos mais diversos não ter sido publicado no país, mas agradeço aos fãs da série que empreenderam o esforço gigantesco de traduzi-lo.

Sobre a edição

A edição lida é uma tradução em formato digital realizada pelos próprios fãs da série. Nos primeiros capítulos a tradução soa confusa, sobretudo pela narração da batalha contra as máquinas pensantes e cimeks em Salusa Secundus, mas logo ela se torna mais clara e quase sem erros, apesar de algumas incoerências de regência e concordância facilmente absorvidas pela leitura.

Interessante que os fãs tiveram inclusive a sensibilidade de incluir um glossário que ignoro se é parte do original em inglês, mas que ajuda muito no entendimento da narrativa e foi essencial para esta postagem.

Ao que tudo indica o livro nunca foi publicado no Brasil e algumas das capas parecem também ser produção dos fãs.




[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Duna_(livro)
[2]https://pt.wikipedia.org/wiki/Jihad
[3]http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/12/141211_jihadismo_entenda_cc
[4]Idem.
[5]Nota do glossário da edição lida.
[6]Que revela caráter vil; ignóbil, indecoroso, infame.

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