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sábado, 23 de dezembro de 2017

A Batalha do Apocalipse – Eduardo Spohr – Resenha


Por Eric Silva para Wendy Mota

“Amigo que é amigo lê os livros do outro só pra entender porque ele gostou tanto da história”
(Autor desconhecido)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.




Décimo segundo livro da Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo, A Batalha do Apocalipse, é um livro ousado e ambicioso que descreve praticamente uma epopeia moderna sobre a luta entre o bem e o mal empreendida entre anjos, renegados e demônios. Uma batalha que não apenas interfere no curso da história da humanidade como pode determinar o seu futuro. Extensa e fruto de uma pesquisa profunda sobre escritos bíblicos, apócrifos, históricos e mitológicos, essa é uma obra que não apenas projetou o nome de seu autor como comprovou toda a capacidade criativa de alguém que conseguiu reescrever a história humana e bíblica, confluindo ambas para sua própria narrativa.

Confira a resenha do antepenúltimo livro da campanha que neste ano homenageia a literatura do Brasil.

Sinopse

Com o findar do sexto dia, Deus supostamente adormeceu e deixou toda a criação aos cuidados do Arcanjo Miguel, o mais poderoso entre os anjos. Contudo ao longo de milhares de anos de governo tirânico, Miguel tentou por diversas vezes dizimar a raça humana até que um grupo de anjos guerreiros desafiou a tirania dos poderosos arcanjos, levantando armas contra seus opressores. Após serem traídos e derrotados, os renegados foram expulsos do céu e lançados à Terra onde passaram a vagar pelo mundo até o dia do Juízo Final. Contudo, a proximidade do fim do sétimo dia e a chegada do Apocalipse, o único renegado sobrevivente, Ablon, junta-se às suas legiões na batalha final que decidirá o destino do mundo. Essa é a trama principal do livro de estreia do autor carioca Eduardo Spohr e que desfia uma trama densa e ambiciosa que vai desde a antiguidade até os dias atuais para contar uma antiga história de luta do bem contra o mal.

Resenha

Já tem um tempo que venho prometendo ler esse livro, mas como todo leitor sabe, a gente sempre tem uma lista interminável de livros para ler e sempre aparece algum livro novo que fura a fila. No final é aquela coisa: você nunca dá conta de tudo o que tem pra ler e alguns projetos vão sendo adiados.

Contudo, A Batalha do Apocalipse era um livro que eu não podia deixar de ler. Demorasse o tempo que fosse, era um projeto que não podia ser adiado, porque já fazia um tempo que um de meus alunos – um de meus amigos – insistia para que eu lesse esse que é seu livro preferido.

Como não ler um livro diante de todo o entusiasmo de um leitor apaixonado pelo seu livro predileto? Como não ceder diante de olhos que brilhavam ao contar – mesmo que meio desajeitadamente – uma narrativa complexa, difícil mesmo de sintetizar? Eu normalmente cedo, prometo que leio e demore o tempo que for cumpro minha promessa.

Por muitas vezes coloquei esse livro na lista, mas, devido as obrigações da vida e as demandas do Conhecer, eu nunca chegava a lê-lo. Até que, no início desse ano, ele chegou com o livro na mochila, pôs sobre a mesa e deu o ultimato: “Leia! Não importa quanto tempo demore para devolver, mas leia!”. Alertei que demoraria realmente para devolvê-lo, mas meu aluno não quis saber, porque só lhe importava que eu conhecesse o livro que ele tanto gosta.

Hoje, estou aqui cumprindo a promessa que fiz. Colocando a resenha desse livro no projeto mais importante do meu blog, porque como diz a epígrafe que inicia essa resenha: “amigo que é amigo lê os livros do outro só pra entender porque ele gostou tanto da história”. E eu entendi o porquê.

Enredo

O arcanjo Miguel em pintura do artista barroco italiano Guido Reni (1636).
Imagem: Wikimedia Commons.
Primeiro grande sucesso do escritor brasileiro Eduardo Spohr, A Batalha do Apocalipse é mais do que um livro muito bem inspirado do gênero fantasia, é uma obra ambiciosa que reescreve toda a história bíblica, unindo ciência, história, geopolítica e mitologia a toda a epopeia da criação dos anjos e do universo.

Nesse projeto arrojado, Spohr relata a história da Criação através da trajetória e das aventuras do anjo renegado Ablon contra a tirania do príncipe dos anjos, o Arcanjo Miguel, e da perseguição do irmão caído do arcanjo, Lúcifer.

Após começar o sétimo dia da criação – que assim como os demais perduraria por milênios –, Yahweh adormeceu deixando toda a sua obra aos cuidados dos arcanjos, e, sobretudo, de Miguel. Ao príncipe dos anjos, o Onipotente confiou o Livro da Vida, no qual era relatado toda a história do sétimo dia, e a Roda do Tempo que marcava o continuar do sétimo dia, o apocalipse e o retorno do Deus Único. Contudo, Miguel ao contrário de dedicar-se a cumprir a promessa feita a seu Pai, instaura um governo despótico e dedica todos os seus esforços a perseguir a humanidade e destruí-la. O diluvio, a destruição de Sodoma e Gomorra, e tantos outros desastres que se abateram sobre os humanos eram, na verdade, arquitetados pelo príncipe e executado pelos anjos de castas inferiores, porém sem sucesso em seu objetivo de exterminar a espécie humana.

Insatisfeito com a tirania de Miguel, o querubim Ablon reuniu um grupo de rebelados e buscaram o apoio do Arcanjo Lúcifer para pôr fim no governo do arcanjo, contudo, o querubim e seus amigos foram traídos pela Estrela da Manhã, renegados e lançados a Terra, aprisionados em corpos físicos sem possibilidade de regressar. Após trair o movimento de Ablon, Lúcifer tenta sua própria rebelião para tomar o trono do irmão, mas é expulso com seus aliados para o Sheol onde se tornam uma horda de demônios.

É nesse ponto que começa a odisseia particular de Ablon. Vivendo entre os mortais ele e seus amigos renegados vão sendo perseguidos tanto pelos anjos de Miguel como pelos demônios de Lúcifer, até que só resta Ablon do grupo de exilados.

Sozinho o querubim aprende a sobreviver deambulando pelo mundo, escondendo sua identidade e lutando contra os inimigos que se interpunham em seu caminho enquanto esperava o dia em que poderia vingar o assassinato de seus companheiros renegados. Mas é tentando descobrir o paradeiro de Istha, uma de suas últimas aliadas ainda viva, que Ablon conhece Shamira, a Feiticeira de En-Dor. Daquele encontro nasce uma amizade que perdura por séculos, nos quais Ablon vive dezenas de imensos perigos ora para tentar salvar Shamira de seus desafetos, ora por conta das intrigas e disputas que envolviam o Céu, a Terra e o Inferno.

Da China ao Brasil, da idade antiga aos tempos modernos, a aventura do guerreiro querubim e da Feiticeira contra os demônios de Lúcifer e os anjos fiéis a Miguel prossegue até o dia do Apocalipse, quando finalmente o destino do mundo é decidido.

Ciência, mitologia e religião para criar um livro épico

Spohr utiliza de muitas fontes para compor sua narrativa
indo dos textos bíblicos e apócrifos à mitologia de varias nações.
Na imagem, o livro de gênesis, de 1723, escrito em tamil.
Imagem: Wikimedia Commons.
A literatura brasileira possui pouca tradição com o gênero fantasia, mas nos últimos anos vários escritores vêm se empenhando para construir a história do gênero em nossa literatura. São histórias de magos, vampiros, épicos, anjos e demônios, uma multiplicidade de temas que abrem espaço para um campo vasto e ainda pouco explorado no Brasil. Entre esses autores está o carioca Eduardo Spohr.

A Batalha do Apocalipse marca a estreia de Spohr na literatura. Publicado pela primeira vez em 2007 pelo site Jovem Nerd, administrado pelos amigos do autor, Alexandre Otoni e Deive Pazos, o livro foi republicado pelo selo editorial criado pelo site dois anos depois, em decorrência ao sucesso alcançado, e publicado novamente em 2010 pela Verus Editora[1].

Trata-se de uma obra extensa (585 páginas) composta por 18 grandes capítulos, um prólogo e um epílogo e que por sua vez são divididos em três grandes partes: A Vingadora Sagrada, A Ira de Deus e Flagelo de Fogo. Mas se trata também de um livro de enredo denso porque comprime muitas histórias e abarca diferentes épocas da história da humanidade, recorrendo a flashbacks para narrar os acontecimentos que levaram Ablon e Shamira ao campo da batalha do Armagedom, aquela que marcava o fim do mundo.

A Batalha do Apocalipse é um livro que mescla aventura, ação e fantasia, mas que se observado atentamente poderia ser comparado a uma versão moderna das grandes epopeias contadas nos tempos antigos, a exemplo da história de Gigalmesh e da Odisseia de Homero. Em todas essas histórias o herói vive aventuras fantásticas e épicas, no qual arrisca sua vida para alcançar um objetivo, enfrenta adversidades aparentemente intransponíveis e está exposto aos humores de seres poderosos como os deuses.

Apesar de existir muitas histórias envolvendo anjos na literatura internacional, como os livros de Alexandra Adornetto, Becca Fitzpatrick e Lauren Kate, entretanto, a ideia de Spohr não é só criativa como original e explora caminhos particulares e, em muitos pontos, divergentes aos seguidos pelas autoras citadas. Ainda que o componente romance não seja eliminado de sua narrativa, a proposta de A Batalha do Apocalipse é muito mais complexa e ambiciosa, porque o autor propõe uma confluência entre passagens bíblicas, mitologia de diferentes povos e ciência.

Nessa que é a mais ousada das obras do autor, Spohr praticamente reescreve toda a bíblia ao recriar os bastidores dos fatos ali narrados e também desnudando a origem do homem confluindo teoria religiosa e científica. Trata-se de uma interpretação alternativa dos textos sagrados abrindo espaço para um sincretismo tão verossímil que assusta:

1.      O sétimo dia ainda perdura, porque na verdade o tempo para Deus e para os homens passam de forma diferente e, logo, o que o livro sagrado chama de dias seria uma metáfora para períodos de milhares de anos;

2.      Como o sétimo dia não acabou, Deus supostamente ainda dorme;

3.      Ao longo de milhares de anos foram os anjos que interferiram na Terra: o dilúvio, Sodoma, Gomorra, Babel, Moisés, os mandamentos, os profetas, o messias, todos foram obra do ódio de uns e da interferência de outros numa luta entre aqueles que queriam proteger a humanidade e os que queriam destruí-la;

4.      A criação comporta muitos mundos e muitos deuses menores. Esses nasciam da força da fé pagã que alimentava de poder o espírito de antigos guerreiros e heróis mortos, mas que, por séculos, foram cultuados pelos seus povos de origem. Daí se explicaria tantos mitos e crenças;

Contudo, na minha opinião, uma das passagens mais criativas do autor está quando, às margens do rio Tigre, na Mesopotâmia, Ablon explica a Shamira a origem do homem e o trabalho de Deus nos dias da criação:

"Ao meio-dia, Shamira recolheu-se à praia, e Ablon lançou a rede de pesca à torrente, onde o fluxo descia em queda. Estavam no paraíso, realmente, uma visão delirante e fértil, cercada de vida e beleza, um sítio agradável na vastidão deserto.

— Os sacerdotes em Canaã nos ensinavam que os homens surgiram do barro — começou a feiticeira, rateando a terra molhada. — Quando criança, eu ficava pensando se as escrituras estavam corretas.

— O barro é metafórico — explicou o general. — Ele representa a carne, a matéria física, a substância palpável do universo concreto. O ser humano é parte de uma escala evolutiva que se iniciou no mar, no quarto dia, e que deu início ao nascimento de várias espécies.

— Mas você disse que os terrenos foram criados por Deus.

—A força de Deus sempre esteve presente na evolução. Ela é a energia essencial que move o curso do infinito e o engrandecimento das coisas. Os clérigos costumam comparar o trabalho de Yahweh com o labor da gente comum, para que possam compreendê-lo. Mas o ofício de um marceneiro ou de um pescador não se equipara à potência divina. A criação movimentou energias supremas, misteriosas e invisíveis.

— Então, os documentos sagrados nada mais são do que velhas parábolas?

—As parábolas não são desprezíveis, mas representam o ápice da comunicação humana. Assim, cabe ao indivíduo interpretá-las. Não há nada mais adequado a uma raça dotada de livre vontade, aberta a encontrar as próprias respostas. As escrituras estão cheias de símbolos que ajudam os homens a entender o significado do cosmo. Mas a verdade perfeita só existe na mente de cada um.

— E quem foram os nossos ancestrais, antes do surgimento de Adão?

— Uma espécie de hominídeos que habitava a escuridão das cavernas. Os anjos os desprezavam na época, até que eles alcançaram o cimo da evolução, e Deus os concedeu uma alma, instigando o ciúme dos perversos arcanjos. É por isso que muitos celestiais invejosos preferem se referir aos mortais como bonecos de barro, ou primatas, uma alusão à sua origem material."


O autor. Eduardo Spohr é carioca e atua como  jornalista, escritor, professor, 
blogueiro e podcaster
O que mais gostei em A Batalha do Apocalipse foi a capacidade criativa do autor. Logo se vê que o livro é fruto de uma pesquisa exaustiva pelo nível de detalhamento da história quanto aos aspectos culturais e mitológicos de cada povo retratado na narrativa. Textos bíblicos, de apócrifos (referências a Enoque), mitológicos e de História Antiga, são, sobretudo, as principais fontes usadas por Spohr, e unir elementos nem sempre conciliáveis foi, por sua vez, a principal demonstração de talento e criatividade do autor. Contudo o livro também tem seus pontos fracos e o mais destacado deles são as idas e vindas no tempo que deixam a narrativa principal em suspenso em vários trechos do livro. A falta de linearidade da narrativa seria interessante se muitas dessas interrupções não fosse demasiadamente longas, a maior delas com 135 páginas.

Contudo, é nítido que por tratar de um tema delicado e que envolve profundamente o dogmatismo, especialmente, das religiões cristãs, esse não é o tipo de enredo que agradará a todos, mas apenas àqueles que souberem separa fé de ficção e liberdade criativa. Por isso é surpreendente que em um autor em seus primeiros anos de carreira literária tenha tido a coragem de lançar uma obra capaz de levantar polêmica. Certamente outros autores esperariam uma certa maturidade e ter cativado seu público antes de se lançar em uma empresa tão ambiciosa e ousada.

Principais personagens

Representação artística dos principais personagens de A Batalha do Apocalipse.
Artista desconhecido.
O livro comporta um grande número de personagens, mas, devido as batalhas e o grande número de eras que a narrativa abarca, muitos deles acabam ficando pelo caminho. Destaco como os mais importantes a feiticeira Shamira, o protagonista Ablon e os três principais antagonistas: Miguel, Lúcifer e Apollyon.

Shamira é uma mulher que busca ser forte para apoiar Ablon e dentro da trama ela se torna a principal aliada do anjo renegado. Feiticeira muito poderosa, ela descobre uma maneira de prolongar sua vida e juventude por dezenas de séculos e segue dando apoio a Ablon em quase todas as suas aventuras, auxiliando com suas magias e conhecimentos sobre portais, invocações e runas mágicas de proteção. Por conta dessa proximidade, ela pouco a pouco vai se tornando o possível par romântico do protagonista, ainda que ela respeite profundamente a condição angelical do rapaz.

Miguel é o principal antagonista na escala hierárquica, mas perde em muitos outros quesitos para o insuperável Apollyon, o personagem mais detestável da trama. Além disso, o Príncipe dos Anjos é o vilão que menos aparece na narrativa, tendo participação mais ativa na reta final da história. Entretanto, em todas as suas aparições Miguel é revestido de uma prepotência e altivez que faz jus ao seu papel de tirano. Ao contrário do irmão, o ardiloso Lúcifer possui presença mais frequente na história e é também seu personagem mais enigmático, porém, é representado como um líder entediado sempre às voltas com questões políticas em seus domínios.

Representação do demônio Apollyon no livro O Peregrino de John  Bunyan.
Imagem: Wikimedia Commons.
O demônio Apollyon é um dos braços direitos de Lúcifer, mas que, como eu disse, é de longe o personagem mais odioso da trama. Cruel no mais alto grau do adjetivo, o anjo caído mesmo antes de sua expulsão do céu já se mostrava abjeto e sedento por sangue e destruição. Nada na criação trazia mais prazer ao caído do que a aniquilação, a guerra e a morte. Contudo, não se trata de ideologia ou de defesa de um algum ideal louco, mas o puro e mais primitivo prazer de sobrepujar o adversário e exterminar qualquer um de inimigos a inocentes.

Por fim, Ablon é o típico herói de espada e armadura que é guiado por valores inabaláveis e pelos quais morreria. O anjo caído possui um senso de justiça muito grande e é movido pela vingança sobretudo contra Apollyon que sempre foi seu rival e posteriormente se tornou um de seus principais inimigos. É um personagem destemido e poderoso, mas não invencível.

Por muitas vezes Spohr expõe as fraquezas do anjo renegado e o coloca em situações que, sem a ajuda de outras pessoas, ele não sobreviveria. Ainda que eu não tenha me identificado com o personagem reconheço que é justamente pela sua vulnerabilidade que ele se torna um personagem rico. Mesmo sendo moralmente inabalável e seus poderes não o são, e na sua jornada pela Terra ele encontrou desafios que sozinho não seria capaz de transpor.

Contudo não é pelos seus personagens que o livro se torna interessante, mas pela história em si, por todo o intricado universo criado e sustentado pelo autor. Não achei os personagens cativantes nem me apeguei a nenhum deles. Eles não invocar em mim o carinho e o amor que tenho por personagens como Daniel Sempere, de A Sombra do Vento, ou Arnau Estanyol, de A Catedral do Mar, ou ainda pelo pequeno Harold Stonecross, de O Andarilho das Sombras. Mas, ainda assim, reconheço que são personagens com vidas incríveis e feitos fabulosos.

Por outro lado, foi o enredo quem me cativou com suas interligações entre história real, mitológica e bíblica, os cenários e períodos, suas reviravoltas, as possibilidades de ir e vir por tantos cenários. Com A Batalha do Apocalipse pude reviver as sensações provocadas por livros como Aventuras do Vampiro de Palmares, A Casa do Céu, O Caçador e O Elixir da Longa Vida, que assim como ele são povoados de cenários e lugares reais e fictícios de tirar o fôlego, que mexem com a sua imaginação e proporcionam quase uma volta ao redor do mundo.

Conclusão

A Batalha do Apocalipse é um livro de linguagem acessível, além de ser bastante didático. Como assim?

É nítido que o livro foi escrito para um público amplo que vai do adolescente, passando pelo adulto jovem e até o adulto mais velho e interessado pelos gêneros de aventura, épicos e de fantasia (como eu, por exemplo). Mas uma obra que abarca tantas faixas etárias costuma pecar no quesito adequação da linguagem. Normalmente esses livros comportam uma escrita que é adequada a um dos extremos, mas se torna complexa (rebuscada) demais ou “ingênua” demais para o outro. Spohr conseguiu alcançar o meio termo. Com uma escrita culta o suficiente para prender os leitores mais exigentes como eu, mas acessível o bastante para não cansar ou desestimular o público mais jovem, ou de vocabulário menos expansivo.

Além disso, digo que ele é didático, no sentido que o livro explica o necessário para garantir a compreensão de fatos históricos e bíblicos, de épocas e de lugares que são usados como base da narrativa, sem por outro lado tornar-se cansativo.

Aprendemos pouco a pouco tudo o que é necessário para compreender o universo alternativo criado por Spohr sem que isso se torne um compêndio de História, história bíblica ou de Geografia. O autor ainda teve o cuidado de criar um glossário para facilitar a nossa compreensão de cada elemento da narrativa.

O livro fala um pouco de cada lugar, de cada época e recria a história bíblica encaixando nela as teorias darwinianas e explicações alternativas para grandes passagens do antigo e do novo testamento, mas nada disso é feito de uma vez ou toma um espaço excessivo na narrativa. É feito em pequenas doses, somente onde é necessário explicar algo para garantir a verossimilhança do enredo e não deixar confuso o leitor.

O desfecho é no mínimo surpreendente e revela alguns segredos que espantam o leitor. No entanto, o final do último capítulo e o prólogo do livro não acompanham o ritmo de todo o desfecho e deixam em aberto a narrativa. O finalzinho do livro não deixa muito claro como toda a trama se rearranja após a saída escolhida pelo autor para encerrar a narrativa. Por outro lado, Spohr dá continuidade ao universo por ele criado em uma trilogia intitulada Filhos do Éden, mas não sei honestamente se os livros que se seguem lançam luz sobre o rearranjo feito pelo autor.

Serie que dá prosseguimento ao universo de A Batalha do Apocalipse

Em conclusão, A Batalha do Apocalipse é um livro nascido de um projeto arrojado, ousado e ambicioso que buscou inovar em um tema já um tanto desgastado e assim criar uma epopeia moderna. Conseguiu e o sucesso do livro comprova essa tese. Trata-se de um livro que atesta a capacidade brasileira de criar bons livros de fantasia, gênero que vem se destacando nas últimas décadas no Brasil e no exterior. Um livro instigante e muito bem escrito e que expôs a grande capacidade criativa de seu autor. Agradeço a Wendy pela leitura.

A edição lida é da Editora Verus, do ano de 2014 e possui 586 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

Prévia do Google Books







[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Batalha_do_Apocalipse

terça-feira, 7 de março de 2017

Tenda dos Milagres – Jorge Amado - Resenha

Por Eric Silva, dedico a meu pai e aos soteropolitanos.

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.


Quinto livro da campanha do #AnoDoBrasil, Tenda dos Milagres é uma obra densa e fantástica pela sua qualidade crítica e engajamento político, bem como por sua importância que supera a monotonia de alguns de seus capítulos.

Já li alguns livros de Amado, entre eles Capitães da Areia, e pude atestar o quanto é politizada e crítica a sua obra, talvez isso seja uma das coisas que mais admiro no autor baiano. Contudo, tenho para mim que Tenda dos Milagres tenha sido, dos romances do autor que já li, aquele que revela este caráter crítico de forma mais contundente.

O livro abriga em si uma denúncia extensiva do racismo e da perseguição contra as religiões de matriz africana na Bahia do início do século XX. Aborda com humor, as vezes com asco e bastante realismo, como até mesmo a ciência era usada e descaradamente manipulada para justificar e comprovar cientificamente a inferioridade de negros e mulatos, justificando deste modo o ódio dispensado a estes grupos e a marginalização a eles imposta. Politicamente engajado, mulato, pobre e frequentador do terreiro de mãe Majé Bassan, Pedro Archanjo, personagem principal da trama, é em si a personificação de tudo que a elite soteropolitana mais desprezava, reunindo os elementos de ambas as discussões engendradas pelo livro, no entanto, mais do que isso, Pedro é um personagem que veio para quebrar estereótipos e tabus e o faz magnificamente bem.



Sinopse

A vinda ao Brasil do professor da Universidade de Columbia e detentor do Prêmio Nobel, James D. Levenson, causa um verdadeiro alvoroço no país, mas é quando este aporta na Bahia para conhecer “onde viveu e trabalhou” o “homem notável, de ideias profundas e generosas”, Pedro Archanjo, que uma verdadeira corrida por parte da mídia é iniciada.

Aparentemente ninguém no país sabia a quem se referia o etnólogo norte-americano e por isso jornalistas e pesquisadores partem em uma busca frenética por desvendar o passado de Pedro Archanjo, Ojuobá, um mulato pobre da ladeira do Tabuão, autodidata, estudioso da herança africana na Bahia, entusiasta da miscigenação, bedel da Faculdade Baiana de Medicina e um mulherengo incorrigível, que a despeito e contra todo o preconceito de cor existente na Bahia do início do século XX, sobretudo nos meios acadêmicos, defendeu a miscigenação e a liberdade religiosa e produziu uma obra que não só abalou a ortodoxia acadêmica de seu tempo como escandalizou a elite branca soteropolitana da época.

Narrado em dois tempos, Tenda dos Milagres conta a história, aventuras e amores de Pedro Archanjo e de como, com ajuda de seu amigo tipógrafo e riscador de milagres, Lídio Corró, publicara com sacrifícios seus quatro únicos livros. Entremeado a narrativa da vida de Archanjo, o livro resgata também os fatos que no tempo presente (década de 60) levaram sua obra – por tanto tempo ignorada – a ser enaltecida por seus conterrâneos logo após o reconhecimento internacional de seu trabalho.

A Ciência elitista e as teorias racistas: os personagens Pedro Archanjo e Nilo Argolo

O autor
O racismo é o primeiro e principal tema desenvolvido em Tenda dos Milagres. Ele é apresentado tanto na sua forma mais comum – quando o “afilhado” de Pedro Archanjo é desprezado pela família da moça por quem se apaixona, por serem eles brancos e o rapaz mulato – como também, e principalmente, no embate intelectual que é travado pelos corredores da Faculdade de Medicina entre o bedel Pedro Archanjo e o professor Nilo Argolo, apresentando aos leitores o pouco discutido racismo científico.

Pedro Archanjo era morador de uma região pobre da cidade alta. Órfão, não conhecera seu pai, morto na Guerra do Paraguai. Foi criado pela mãe, mas também esta morreu de bexiga logo cedo, dez anos depois de seu nascimento. Ainda assim se tornou um rapaz obstinado e inteligente, curioso e amante de muitas mulheres. Pela força de sua determinação e apoio dos amigos tornou-se autodidata e bedel[1] da Faculdade de Medicina. Aprendeu o francês, o inglês, o espanhol e o italiano e com sacrifício estudou muito para produzir seus livros que falavam das raízes africanas da Bahia e da miscigenação de seu povo, o que Pedro defendia com afinco.

Nilo Argolo, por sua vez, era professor na Faculdade de Medicina nascido em uma das famílias mais ricas e tradicionais da Bahia. Admirador da falsa ideia de superioridade da raça ariana, desenvolvia e apoiava teorias de cunho racistas. Se orgulhava da suposta “pureza” de sua família e por isso nutria um ódio particular pelo bedel, desprezando-o não só pela sua posição baixa na hierarquia da universidade, mas principalmente pela sua cor e pela defesa que o outro fazia à miscigenação que tanto abominava o catedrático.

Através destes dois personagens Jorge Amado traz a discussão o tema da ciência elitista e suas teorias racistas do final do século XIX e início do século XX e que foram base entre outras coisas para determinar o perfil de potenciais criminosos a partir de características físicas como fisionomia do rosto e cor. Trata-se de um tema difícil de se encontrar na literatura, o que me surpreendeu bastante e que pretendo discutir mais profundamente em outra postagem.

Com Pedro Archanjo, Jorge Amado aponta como independente da origem ou da raça todos tem a possibilidade de ascender intelectualmente, dependo muito mais do interesse e do desejo de fazê-lo e das oportunidades que lhe é dada, do que propriamente de outros fatores. Archanjo é um pesquisador, um intelectual nascido das classes mais pobres e um autodidata, politizado e inteligente, cientista honoris causa e ativista consciente, ao mesmo tempo que homem do povo e de comportamento simples. Entretanto seus talentos são tardiamente reconhecidos e não por si mesmo, mas por pressão estrangeira.

Com este personagem, Amado desmente a teoria de seu outro personagem que vê nos negros e nos mulatos uma raça inferior e inábil, aproveitável apenas para o trabalho braçal, e que se isso não bastasse, ainda abomina a miscigenação por acreditar que isso diluiria tudo aquilo que tornava a raça branca superior e mais capaz.

O racismo e a perseguição religiosa do delegado Pedrito Gordo

Quem já leu Jorge Amado sabe que em muitos de seus romances é forte a presença das crenças míticas do candomblé, por isso elementos como terreiros, pais e filhos de santos e a crença nos orixás é bastante comum em suas histórias e personagens. Porém em Tenda dos Milagres o tema toma um corpo mais profundo e se mescla ao tema do racismo com um tom de denúncia contra o poder político, sobretudo na Bahia da década de 1920, que criminalizava o candomblé sob a acusação de “prática de feitiçaria e falsa medicina”[2].

Para dar relevo ao tema, Amado cria Pedrito Gordo, o inescrupuloso delegado que com seus policiais tocam o terror na cidade destruindo terreiros, agredindo e até matando inocentes em nome de uma guerra que considerava santa. Mas o que se observa era que nada mais se desejava do que uma higienização religiosa e racial. É evidente que a perseguição religiosa empreendida por Pedrito e apoiada pela elite da cidade tem um cunho de aversão a toda prática religiosa não católica, mas a base que dá lastro ao ódio às religiões de matriz africana continua sendo o racismo. É o ódio irracional entre raças que se estende também às manifestações culturais e religiosas vistas como animalescas e macabras. Trata-se pois de um misto abominável de preconceito religioso com racismo, em que se torna impossível separar uma coisa da outra.

Uma crítica a visão dos brasileiros em relação ao estrangeiro

Contudo as censuras ao racismo e à perseguição religiosa ao candomblé não são as únicas discussões de Amado em Tenda dos Milagres. É igualmente forte a sua crítica ao comportamento do brasileiro de supervalorizar o que é estrangeiro em detrimento do nacional.

Jorge Amado faz um crítica divertida ao mostrar como foi necessária a palavra e o reconhecimento de um estrangeiro, um PHD ganhador do prêmio Nobel, para que, no Brasil, se passasse a valorizar o trabalho de Archanjo, a tanto tempo relegado ao esquecimento. Foi necessário que um estadunidense, vindo “do mundo desenvolvido” reconhecesse a magnitude da contribuição teórica de Pedro para que se buscasse pela primeira vez ouvir aqueles teóricos brasileiros que já discutiam e falavam de Archanjo, de seu trabalho e creditavam a obra do baiano morto anos antes.

Este é um comportamento típico na maioria da população, um aspecto da síndrome do colonizado que valoriza demasiadamente a opinião, os modelos e de tudo quanto é estrangeiro – do “mundo desenvolvido” – em detrimento do que é de seu próprio país.

Porém a sua crítica não para aí e Amado vai também nos mostrando o quanto a camada empresarial brasileira começa a ver nesse “renascimento” de Archanjo uma forma de lucrar. Dessa forma o autor também desfia como o sistema capitalista tem o poder de tornar tudo mercadoria e em oportunidade de lucro, muitas vezes destorcendo os fatos ou destacando apenas aquilo que lhe é conveniente.

Bem, acho que posso ter dado alguns spoilers nesta resenha, mas foi necessário para demostrar a importância de Tenda dos Milagres como um livro capaz de fazer o seu leitor refletir sobre questões que muitas vezes são ignoradas pelas pessoas. Alternando poesia, sensualidade, realismo, misticismo e denúncia, Jorge Amado vai descrevendo a Bahia dos humildes, dos afoxés, dos babalorixás. Este livro é parte do projeto de Amado de valorização das classes marginalizadas pelo sistema social, ora esquecidos ora reprimidos pelo poder político da elite, mas que são a verdadeira face da cidade da Bahia, a cidade mais negra do país.

A edição lida é antiga, de luxo e da Editora Record. Foi dada para mim por meu pai e possui ilustrações de Jenny Augusto, Flávio de Carvalho e Zélia Amado.

Quer saber mais sobre o autor? Confira nossa postagem sobre os autores que estamos lendo na campanha do #AnoDoBrasil (link)




[1]Empregado de secretaria que, na universidade e em outros estabelecimentos de instrução, aponta as faltas dos estudantes e dos professores, entre outras tarefas administrativas. No Brasil também significa o funcionário de uma escola responsável pela disciplina. Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/bedel [consultado em 25-09-2016].
[2]https://bahia320102myblog.wordpress.com/perseguicao-aos-terreiros-de-candomble-na-decada-de-1920/

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