Por Eric Silva, em
parceria com a Editora Draco que nos cedeu o livro.
“Eu era apenas mais um vulto nas sombras, imperceptível,
silencioso e isso proporcionava um sabor a mais no teatro do medo”.
Guerras, fé e corrupção marcaram a Europa em um período onde
glória e decadência caminhavam lado a lado, como os dois fios de uma mesma
espada. A “Idade das Trevas” europeia foi a era da ignorância e do medo do
inferno, do domínio de nobres e da Igreja e de um dos maiores flagelos da
história da humanidade: a peste negra. Contudo, era oculto nas sombras que espreitava
silencioso o maior de todos os perigos, aquele que outrora foi homem e que agora
imortal caminharia pela Terra, deixando para trás um rastro de perdição e morte.
O Andarilho das
Sombras, livro do escritor brasileiro Eduardo
Kasse, é o primeiro da série Tempos de Sangue, e narra
os primeiros passos da instigante história de Harold Stonecross, cujas “teias do
destino” a muito trançadas fizeram dele um eterno e solitário viajante, um errante
amaldiçoado, um vampiro.
Harold nasceu filho de um importante Earl
– que seria um título de nobreza anglo-saxão – da região de Dunholm, um recanto
perdido da Inglaterra medieval. Porém sendo desprezado pela família, e
principalmente pelo seu pai, fugiu de casa ainda menino para viver uma aventura
que não só mudaria completamente os rumos da sua vida, como o transformaria em
um homem carismático e sedutor, mas igualmente marcado pelo sofrimento e pela
desventura.
Viajando pelas estradas perigosas e pelas cidades imundas
da Inglaterra, o destino do menino cruzaria ainda com várias pessoas que lhe
estenderiam a mão e seriam decisivas para seu crescimento como pessoa, mas que
seriam igualmente passageiras em sua vida.
Caminhando sempre sem destino, primeiro sozinho e depois
ao lado do amigo Edred, Harold passaria muitas dificuldades e testemunharia
muitos dos males e glórias que o seu mundo possuía e lhe podia ofertar.
Contudo, chegaria o momento funesto em que seu caminho como homem íntegro, valoroso,
corajoso, mas, sobretudo, sensato, se encerraria, para que começasse uma nova
caminhada, agora como uma criatura amaldiçoada, sedenta por sangue e
destruição, igualmente errante, mas que levaria a morte e o sofrimento a todo
lugar por onde passasse.
Eduardo Kasse compôs em O Andarilho das Sombras o que eu chamaria de um dos livros
nacionais mais bem narrados que já li. E por que digo isso? Porque ainda não
havia visto entre os livros brasileiros que já li um trabalho de pesquisa tão impecável.
É certo que a princípio estranhei a forma com que o autor escreve logo no
início da narrativa, usando preferencialmente períodos curtos – frases constituídas
de uma ou mais orações –, mas o motivo do meu estranhamento se deve a minha
própria incapacidade de optar por eles – quase sempre escrevo com períodos longos. Contudo, deixando estas questões a
parte, logo que envolvido pela narrativa me esqueci dos períodos e a leitura se
tornou tranquila e fluida. Foi aí que comecei a notar o conhecimento
aprofundado do autor acerca da vida cotidiana na Idade Média e que ele se
utiliza na composição dos cenários e personagens de sua história.
A Idade Média representada em o Andarilho das Sombras não é aquela romantizada pelos livros de cavalaria, príncipes e reis como o rei Arthur. |
Kasse conseguiu neste livro descrever o mundo medieval
tal como ele era: de muito trabalho e perigos, festejo, sofrido, violento,
religioso, corrupto, desigual, supersticioso, mas fascinante e tragante. A
realidade da narrativa, sobretudo no comportamento de muitos dos personagens
masculinos, as vezes assusta, mas acredito que foi necessário para descrever a
devassidão escondida por sob a encardida manta de hipocrisias que recobria e
encobria a verdade daqueles tempos. Uma licenciosidade que era recriminada numa
“terra cheia de falsos pudores”, citando as palavras do próprio Harold.
Distante da idade média romantizada a qual estamos acostumados encontrar em
livros de príncipes, senhores feudais e cavaleiros, Kasse opta por uma idade
média mais realista e próxima ao que ela foi de fato.
Eduardo Kasse busca em seu livro representar a Idade Média em seu cotidiano, a vida das pessoas simples e a influência da Igreja e das superstições sobre elas. |
Mas além de contemplar a realidade cotidiana da época,
Kasse ainda faz um resgate da mitologia nórdica e dá aos vampiros de sua
narrativa não só o aspecto de seres das sombras sedentos por sangue, mas também
de criaturas míticas, resultado de poderes de deuses antigos que deixaram de
ser cultuados com a chegada da fé cristã.
A sensação que tive ao ler é que na narrativa, mais do que
monstro, o autor transforma o vampiro em uma destas entidades antigas, um ser
de um conjunto de seres fantásticos, antigos, mitológicos, a muito tempo desacreditados,
como deuses a muito esquecidos. Além deste aspecto, o autor ainda consegue
demonstrar como um pouco da cultura e das crenças dos povos pagãos ainda se
encontravam vivas – ainda que meio adormecidas – e fundidas à cultura cristã,
em um todo ambivalente e contraditório.
Outro aspecto sobre os vampiros de Kasse que quero
destacar é a humanidade que estes seres ainda conservam não se diluindo
completamente na fúria de sua selvageria. Harold, por exemplo, mesmo muitas
vezes se demonstrando um caçador implacável e inclemente, também em muitos
momentos deixa emergir vislumbres da generosidade, da cordialidade e da ternura que
tinha quando em vida, como quando conversou com um menino que era caçoado por
outros garotos maiores:
– Qual é o seu nome? – perguntei ao garotinho que tinha lágrimas nos olhos.
– Edgar, filho de Edgar, senhor... – respondeu com a voz magoada.
– Você é um fricote, Edgar, filho de Edgar? É um maricas? – indaguei com escárnio.
– Não senhor – respondeu o garoto fracamente.
– Você é tolo, Edgar?
– Já sei contar as moedas e preparar a lã das ovelhas tosquiadas na primavera, senhor – respondeu com um pouco de orgulho.
– Está com medo de mim, Edgar? – inquiri incisivamente.
– Por que deveria senhor? – respondeu com os olhos curiosos.
– Então, Edgar, nunca deixe que zombem de você! Seja o mais rápido, o mais forte e o mais esperto – falei em tom áspero, olhando para os outros garotos espantados – Dance e cague sobre as tripas dos seus inimigos! Ignore o medo e tenha sempre belas mulheres para aquecer a sua cama! – disse enquanto segurava o garoto no colo e dançava rodopiando com ele – Lembre-se sempre disso Edgar!
– Farei isso senhor – respondeu com uma risada marota.
– Agora vão para casa! – falei sério – Rápido.Os quatro garotos correram sem olhar para trás, escorregando nas ruas cobertas pelo barro úmido devido ao dia chuvoso.
Contudo, generoso ou não, Harold era um vampiro e em seguida,
para se alimentar, mataria um dos garotos que caçoavam do pequeno Edgar.
Harold é um personagem que chama bastante a atenção. O
autor teceu para sua narrativa um personagem bastante crítico e sincero que,
como um espectador do mundo que lhe é contemporâneo, fala de certos aspectos da
época com sarcasmo e repugnância. Harold tem horror à corrupção instalada no
seio da Igreja e à ignorância dos camponeses que se deixam levar pelo medo que
o clero lhes incutia. Assim, o personagem é, no livro, o maior crítico da fé
professada na época. Além disso, ele não carrega consigo nem um pouco de
hipocrisia e reconhece o “demônio” que existia nele mesmo.
O autor |
Por fim, para concluir, não poderia deixar de mencionar
as passagens de tempo existentes na narrativa.
A história de Harold não é contada de forma linear, ao
contrário, vivemos dois momentos distintos na narração. Uma alternância entre o
passado quando Harold ainda era humano e o momento presente. A todo instante
somos levados a continuação da história do jovem Harold, como se fosse a
transição entre o dia e a noite. Eu diria que o livro é dividido em dois e
assim como o tempo se alterna entre períodos de luz e de escuridão nos
alternamos entre o humano e o vampiro. O dia seria do Harold garoto, o jovem
aventureiro e andarilho, e a noite, do vampiro sanguinário, mas ainda assim
bastante humano.
O Andarilho das Sombras foi publicado pela Editora Draco. A edição é de 2012 e conta
com 384 páginas. O livro seguinte da série chama-se Deuses Esquecidos e também foi publicado pela Editora Draco.
Desde já, estou ansioso para continuar a leitura da série,
e assim que conseguir fazê-lo venho correndo contar minhas impressões a vocês.
Obrigado pela atenção.
Eric Silva
Oi Eric,
ResponderExcluirLegal, fiquei curiosa com o livro. Não conhecia nada sobre o Eduardo Kasse. Sabe quantos livros a série vai ter? Vi que já tem 4 livros.
Rafaela (ohmylivros.wordpress.com)
Olá, Rafaela, por enquanto quatro livros já foram publicados, mas segundo texto do autor publicado no Blog da Editora Draco os planos são de 5 livros e uma série de contos. Inclusive Kasse já está em processo de escrita do ultimo volume da série.
ExcluirConfira o texto:http://blog.editoradraco.com/2016/02/os-caminhos-em-tempos-de-sangue/