Mostrando postagens com marcador Literatura Inglesa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Literatura Inglesa. Mostrar todas as postagens

domingo, 4 de outubro de 2020

[#MeusLivros] Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley – Resenha

Por Eric Silva

Dedicado à ex-professora de Inglês

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

Edição de bolso que ganhei na aurora dos meus 18 anos de idade
 e que me acompanha até hoje.
Distópico e desolador, Admirável Mundo Novo foi o último livro a marcar minha adolescência deixando impressões que influenciaram meu pensamento político e social ainda no começo da minha vida adulta. Um romance sobre uma sociedade supertecnológica e consumista que aboliu a família, a religião e as relações duradoras em nome de uma felicidade programada e determinada pelo estado. Um livro cuja crítica social se torna cada vez mais atual apesar dos mais de setenta anos de escrito.

Confira a resenha.

Sinopse

Após uma guerra que revolucionaria a história da humanidade, a sociedade é inteiramente reorganizada entorno de um regime totalitário baseado em princípios científicos, com divisão social em castas e que prega a felicidade eterna. Nessa nova organização social de escala planetária, famílias e religiões forma abolidas tornando-se um mundo de pessoas biologicamente programadas em laboratório, e adestradas para cumprir um papel predeterminado na sociedade. Um mundo altamente tecnológico que proibiu a literatura e exalta o avanço da técnica e a uniformidade. Esse é o cenário de Admirável Mundo Novo, obra mais conhecida do escritor inglês Aldous Huxley publicado pela primeira vez em 1932.

Resenha

Eu e Admirável Mundo Novo

Ganhei esse livro de minha professora de Língua Inglesa já no final do último ano do Ensino Médio, como uma lembrança dos últimos três anos em que fui seu aluno. Ela, é claro, acertou em cheio em sua escolha, porque não há presente algum que me faça mais feliz do que ganhar um livro. É um tipo de presente que não me desfaço e que conservo com carinho. A prova disso é que os primeiros livros que ganhei na vida estão comigo há quase 22 anos.

Mas Admirável Mundo Novo significa muito mais do que uma lembrança carinhosa de alguém que admiro como ser humano e profissional docente, ele marcou um período de mudança para mim e se tornou uma importante referência no meu posicionamento crítico e político. Dentro da lista dos livros da Minha infância e adolescência, ele representa o último portal que atravessei antes de me tornar um leitor maduro.

Era dezembro de 2008, eu tinha 18 anos e o fim do ensino médio marcava para mim uma mudança profunda: o fim da vida escolar como eu a conhecia. Era o fim daquela rotina a qual estava acostumado desde os meus três anos de idade, e confesso que só não me sentia assustado com o que estaria por vir, porque sempre tive maturidade o suficiente para me manter equilibrado diante da mudança.

Sabia que o fim do período escolar marcava um momento em que se abriria para mim uma nova perspectiva: a vida adulta (que na verdade se iniciara um ano antes com o adoecimento de minha mãe) e também a vida acadêmica (que eu adiaria até meados do ano de 2010). De fato, um mundo novo de possibilidades e novas experiências me projetariam para além do universo e da rotina que eu conhecia até meus malformados 18 anos. O Eric CDF da escola daria lugar ao acadêmico, a um Eric mais crítico e fortemente ligado à ciência, à crítica social e à literatura como um todo. 

Como o protagonista do livro de Aldous Huxley, eu deixaria o mundo que conhecia para contemplar as maravilhas e os dissabores de outro, desconhecido. Por outro lado, também como ele, esse indivíduo que contemplaria e vivenciaria um mundo novo estaria de toda forma fortemente ligado e alicerçado no seu, no meu caso, o passado escolar, porque sou o que meus professores fizeram de mim, e eles são partes que compõem o meu todo.

Li Admirável Mundo Novo justamente nessa época, fazendo com que fosse o meu último livro desse período. Contudo sua influência vai além. A obra icônica de Huxley carrega em seu enredo uma crítica muito forte e contundente a uma sociedade que vive para o consumo e para a produção em massa. Uma sociedade alienada, baseada em um modo de vida alienante e de forte controle social, que é garantido mediante a inculcação de valores e ideias que reproduzem o status quo ao naturalizar a organização social hierarquizada e injusta, e que também reproduzia o conformismo e a submissão.

Admirável Mundo Novo é uma fabulosa crítica ao sistema capitalista bem como toda forma de autoritarismo seja ele de direita ou de esquerda, e, por isso, esse livro também se tornaria referência para mim em meus estudos acadêmicos.

Por conta destas coisas Admirável Mundo Novo é um livro que tem uma dupla importância para mim.

O Enredo e os Personagens Principais

No ano de 632 depois de Ford (2540 d.C.), muito séculos após A Guerra dos Nove Anos (141 d.F. – 2049 d.C.), o mundo e a sociedade como a conhecemos não existe mais. A sociedade humana alcançou o seu apogeu tornando-se ainda mais industrializada e voltada para o trabalho e o consumo, além de quase desprovida de humanidade.

Não existem mais pais ou filhos, maridos ou esposas, porque as crianças são produzidas, criadas e educadas em Centros de Incubação e Condicionamento como o de Londres Central, onde são também condicionadas e deformadas de acordo com sua posição social predefinida, duplicadas em grupo de dezenas de gêmeos para atender a demanda de mão de obra nas fábricas e condicionadas a não criarem vínculos afetivos duradouros. O amor e a paixão foram abolidos assim como as relações baseadas em compromisso.

Em nome de uma pretensa estabilidade a religião foi extinta, assim como as ciências humanas e a literatura, só os meios de comunicação de massa são permitidos e o acesso ao conhecimento é filtrado e restrito a uns poucos. A sociedade dividida em classes sociais foi substituída por uma comunidade organizada em castas (alfas, betas, gamas…), sem mobilidade social e definidas desde o nascimento. Da mesma forma é definida desde o nascimento a identidade individual e coletiva de cada indivíduo, condicionado a aceitar passivamente e alienadamente o seu lugar na sociedade.

Todos são sempre jovens e livres para ter tudo o que foram condicionados a desejar e, por isso, o isolamento, a castidade e a contemplação, mesmo que da natureza, são vistos como comportamentos estranhos e inadequados, atitudes antissociais e reprimíveis. Toda essa forma de pensar é inculcada e reproduzida constantemente através da repetição de uma ideologia que prega uma mentalidade e uma felicidade quase que infantil, que exalta o novo sobre o velho e a superficialidade das relações. A vida se resume a trabalhar e ser produtivo, consumir e descartar e, enfim, entregar-se aos prazeres proporcionado pelo sexo livre e sem compromisso, pelas drogas e pelas atividades de lazer em grupo, mas que envolvam algum tipo de consumo. E para àqueles que por algum erro no processo de “fabricação” ou de condicionamento não conseguem se encaixar nesse modelo de sociedade resta o exílio em alguma ilha isolada em algum lugar do globo.

Em resumo, essa é a sociedade distópica a que somos apresentados por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo. Uma sociedade criada e organizada por um Estado Mundial que tem como lema: COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE. Estabilidade essa que é forjada a partir de um controle social rígido, legitimado e inescapável e do consumo regular do soma, uma droga psicodélica capaz de afastar os anseios e sentimentos negativos através de uma fuga da realidade.

Ao longo dos três capítulos que iniciam a obra somos apresentados a forma como esse novo mundo se apresenta e é organizado. Acompanhando uma visita técnica de estudantes alfas – a casta superior na hierarquia social, formada basicamente por cientistas e dirigentes ao Centros de Incubação e Condicionamento de Londres Central, o narrador de Aldous vai descortinando a tessitura[1] social sustentado pelo Estado Mundial bem como história que levou a sociedade humana desprezar toda a sua cultura e natureza biológica para criar outra sociedade, uma que fosse “feliz”.

Porém sob a capa da pretensa felicidade, comunhão e estabilidade entre os povos mundiais existem aqueles que não conseguem se encaixar completamente dentro da sociedade e se sentem sempre deslocados e incompletos. O enredo de Admirável Mundo Novo gira entorno principalmente de três destes deslocados: Bernard, Helmholtz e Jhon.

Psicólogo da casta dos alfas, Bernard é um dos poucos em Londres que tem consciência da futilidade e promiscuidade das relações, além disso ele se sente diferente dos demais de sua casta porque possui um físico acanhado e muito parecido com o comum entre os indivíduos das castas inferiores, o que o irrita e diminui seu sucesso com as mulheres. Por conta destas inadequações, o psicólogo evita bastante a interação social com seus colegas de trabalho e nutre uma certa paixão por Lenina, uma das funcionárias do Centro de Incubação. Por outro lado, as atitudes “antissociais” de Bernard fazem com que gradativamente ele vá sendo evitado, desprezado e considerado como estranho por seus pares.

Por sua vez, Helmholtz é o justo contrário de seu amigo Bernard. Porém, mesmo sendo socialmente muito requisitado e um competente e promissor “Engenheiro em Emoção”, Helmholtz se sentia tolhido em uma sociedade tão carregada de superficialidade e tão desprovida de conteúdo. Decepcionava-o a falta de significado em tudo o que fazia como engenheiro (escrever para rádios, compor cenários para filmes sensíveis e criar slogans e versinhos hipnopédicos) e ansiava por algo que não sabia descrever ao certo o que era.

Por fim, temos John, ou o Selvagem, como seria chamado posteriormente. John é o principal personagem da trama de Aldous – apesar de só aparecer a partir do capítulo 7 – e o mais deslocado dos três, por ser o único que não havia nascido e sido criado dentro da sociedade controlada pelo Estado mundial.

John era filho de Linda, uma beta que acidentalmente se perdeu em uma reserva indígena durante uma viagem de turismo. Lá ela deu à luz a uma criança do último homem com quem se relacionara antes de se perder, e, por conta da vergonha de ter se tornado mãe, é forçada a viver entre os índios. Contudo as reservas indígenas eram os únicos recantos do mundo onde ainda se era permitido viver como séculos atrás, e impedidos de se adequar as gritantes diferenças culturais entre Linda e os indígenas, mãe e filho foram durante muitos anos desprezados e excluídos socialmente pela tribo até que são resgatados por Bernard e Lenina e levados de volta para Londres.

Em Londres John passa a conhecer aquele mundo novo que só conhecia das histórias contadas pela mãe, e começa a sentir o forte choque cultural que essa aproximação lhe impõe, sobretudo quando se descobre apaixonado pela fútil e sedutora Lenina. Ele era muito ligado às tradições e aos costumes da reserva, e com a forte influência dos livros de Shakespeare, ele era incapaz de compreender a futilidade, a licenciosidade e a superficialidade daquele modo de viver. Era incapaz de entender que seu sentimento por Lenina jamais seria correspondido da mesma maneira, porque o amor sublime, por vezes platônico e capaz de sacrifícios inimagináveis, simplesmente não existia na realidade em que ela vivia, e da qual fazia parte. Ela não conhecia essas coisas e era incapaz de compreendê-lo, e ele, a ela.

Quando pesamos o quanto John e sua mãe eram considerados indesejáveis na Reserva e toda a sua relutância em aderir ao modo de viver e de pensar do Outro Lado, concluímos que ele não pertencia a nenhum dos dois mundos, nem ao da reserva, nem a da sociedade condicionada a qual pertencia Lenina, e por isso estava ainda mais deslocado e irremediavelmente perdido.

Outros personagens importantes na trama são: a própria Lenina Crowne, que como todas as moças de seu tempo era uma mulher superficial e pouco inclinada a compreender as excentricidades de Bernard e John; o rígido Diretor do Centro de Incubação de Londres, Thomas “Tomakin”, e o Administrador Mundial, Mustafá Mond, principal dirigente da sociedade londrina e inglesa e notadamente o homem mais culto da trama.

Controle total: totalitarismo como tema principal

Admirável mundo Novo é um livro de ficção científica, mas é também uma distopia moderna. O principal tema deste livro é o totalitarismo, um totalitarismo que passa a controlar não apenas a ideologia e o comportamento das pessoas, como também, através do condicionamento e do soma, o seu nascimento, suas preferências e seu lugar no mundo. Um controle total e quase inescapável, tanto onipresente (uma vez que todos dentro da sociedade se tornam vigilantes em relação aos comportamentos uns dos outros) como onipotente (já que o sistema direciona todos os aspectos da vida dos indivíduos). 

É muito claro na narrativa que o principal objetivo de Aldous é, ao mesmo tempo que critica o autoritarismo, demonstrar o destino para o qual a sociedade humana está caminhando: uma sociedade de supercontrole, consumista, superficial e da fugacidade.

Objetivando alcançar uma felicidade absoluta e incontestável a sociedade de Admirável Mundo Novo caminha para uma ditadura totalitária e de controle total. Para a filósofa política alemã Hannah Arendt, o totalitarismo tem de específico “a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida[2], ou seja, exatamente o que é feito pela sociedade imaginada por Huxley.

As “medidas biopolíticas de administração da vida[3] existem e são aplicadas pelo Governo Mundial visando garantir o controle total sobre os indivíduos e seus corpos. A manipulação genética é utilizada para selecionar e agrupar os indivíduos, separando-os pelas potencialidades e cerceando por completo a liberdade de escolha; a propaganda ideológica serve à disseminação da obediência e da visão ideológica do sistema, naturalizando-as; a hipnopedia é empregada nas crianças para incutir a aceitação e o conformismo, ampliando as possibilidades de dominação absoluta na fase adulta – a mais complicada das fases; o soma existe como droga capaz de entorpecer os desejos e inconformismo, alienador químico, possibilidade de fuga controlada; a proibição da literatura para que ideias contrárias ao sistema e seus valores não sejam propagadas, bem como impedir o desenvolvimento da criticidade dos sujeitos para que eles não enxerguem como prisioneiros do sistema; e, por fim, o monitoramento constante dos comportamentos que desestimula a solidão e a exclusividade para que os próprios indivíduos se tornem vigilantes e vigiados, uma vigilância eterna, ininterrupta e sem rosto definido. Uma vigilância sem necessidade de câmeras.

Enfim, o que se vê em Admirável Mundo Novo é uma sociedade de controle total da vida, no qual cada aspecto do indivíduo (profissional, emocional, comportamental, amoroso, religioso e intelectual) é moldado a pensar e agir conforme a programação do regime.

Mas além de totalitária a sociedade de Admirável Mundo Novo é também utilitarista, forjada para o consumo e para uma vida emocionalmente fácil.

Tudo e cada coisa é medida e dado valor pela utilidade no tocante a torná-los felizes. Mesmo o corpo e o sexo deve ter essa utilidade, deixando de ser espaço individual e privado. Por outro lado, para sustentar o próprio sistema o consumo se torna essencial para que a economia esteja sempre em movimento. Consumista, a sociedade de Huxley se torna também do descarte, porque o que não é novo, o que não é tendência deve ser descartado eliminado, trocado, alimentando o consumismo irresponsável, despreocupado.

Se não bastasse, não há por que se preocupar com os laços por que eles não existem. Nesta sociedade vínculos familiares, de amizade e de amor inexistem. O primeiro é considerado uma aberração, um ato vergonhoso e quase criminoso. Os dois últimos são desestimulados para que se evite os excessos, os sentimentos de posse e de ciúmes. A felicidade pensada para essa sociedade é uma felicidade encontrada no descompromisso, caminho que, se pensarmos, já vem sendo seguido, sobretudo pelos mais jovens que buscam relações cada vez mais líquidas e descompromissadas. Contudo, a sociedade do livro de Huxley elimina completamente essas relações e as cercam de tabus.

Fico imaginando se não deveria ser solitário e vazio não se ter uma origem, não se ter pais ou família, viver com a certeza que será sempre só você e as pessoas que, transitoriamente, passarão por sua vida sem, no entanto, deixarem impressões profundas, sem que haja permanência e continuidade nessas relações tão somente marcadas pela realização dos desejos mais urgentes e efêmeros. Admirável Mundo Novo é, parafraseando Saramago, um ensaio sobre a efemeridade e a superficialidade. Ali tudo é efêmero ou superficial: a vida, os sentimentos, as relações, a utilidade das coisas. Acho que por isso mesmo houve a necessidade por aquela sociedade de adotar o consumo em massa de uma droga que fosse capaz de preencher as lacunas deixadas por essas coisas, por essas ausências, efemeridades e superficialidades que em nada combina com a natureza intensa e complexa do ser humano.

Contraditoriamente, a sociedade imaginada para o livro exalta a “comunidade”, o “fazer junto”, o “nunca estar só ou isolado” e o “compartilhar-se” literalmente. Todavia o resultado que essa exigência de comunidade produz no leitor é um sentimento de solidão inexpugnável, porque na verdade todos ali estão e sempre foram sós. Tudo no mundo daqueles personagens é vazio de conteúdo e profundidade, mas eles não são capazes de percebê-lo. O regime não o permitem ver.

Sátira da sociedade capitalista, consumista e utilitarista, em Admirável Mundo Novo Huxley faz sua crítica a sociedade capitalista moderna cada vez mais vazia de sentido em si. Tão acríticos quanto os personagens de sua trama, nós, a sociedade do consumismo e da liquidez, não vemos o vazio de nossas existências regidas pelo consumo do supérfluo e pelo desejo do que é inútil, vazio, entorpecente e alienante. A organização mundial da economia e a indústria cultural nos oferece o seu soma e como ovelhas lobotomizadas os seguimos sem refletir a essência das coisas. Nada é coletivo, mas é de massa. Os que por acaso se desviam deste caminho predefinido – semelhante ao que acontece no livro de Huxley – são acusados de desajustamento e sofrem preconceito, hostilidade ou são alvos de piadas.

Cheio de referências

Um dos livros mais importantes de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo (Brave New World) foi escrito em 1931, mas só foi publicado no ano seguinte pela Chatto & Windus. O título é inspirado em uma passagem do livro A Tempestade (Ato V), de William Shakespeare, mas funciona dentro da trama como um jogo de palavras, uma vez que para John o mundo moderno e ultratecnológico de Admirável Mundo Novo é uma realidade nova e desconhecida. Contudo, o livro é ainda cheio de outras referências à obra de Shakespeare, bem como de várias personalidades importantes que influenciaram profundamente a ciência e a história recente da humanidade. As principais dessas referências são a Henry Ford, Sigmund Freud e Thomas Malthus.

Em uma sociedade extremamente industrializada em que até a fecundação e o nascimento dos indivíduos se dá como em uma linha de produção fabril, Henry Ford, mundialmente conhecido pela criação da Linha de Montagem, acaba por se tornar uma figura messiânica[4] dentro do mundo controlado pelo Estado Mundial. Ele é mencionado e exaltado a todo momento pelos personagens da trama. Não apenas seu nome como também algumas de suas ideias são mencionadas e configurando-se quase como um Deus, a referência a Ford substitui na trama até a tão conhecida expressão inglesa “my God” por “our Ford”, e a cruz, símbolo máximo do cristianismo, pelo “T”, nome do primeiro modelo de carro confeccionado pela empresa de Ford.

No caso de Freud o destaque é bem menor e por vezes citado no lugar de Henry Ford. Por sua vez, quanto a Thomas Malthus, economista britânico que via o crescimento da população como a causa da pobreza no mundo, a referência é bem mais sutil e relacionada aos métodos contraceptivos adotados pelas mulheres que podem reproduzir. Por fim, Shakespeare é outra grande referência na obra que cita através das falas de John – um dos poucos a ter tido contato com alguma obra de literatura – grandes passagens de obras como Macbeth, A Tempestade, Romeu e Julieta, Hamlet, Rei Lear, Sonho de uma Noite de Verão, Medida por Medida e Otelo.

Sobre a estética literária

Admirável Mundo Novo é dividido em 18 capítulos sem títulos e sem que haja grandes ganchos entre eles. Não há suspense ou grandes reviravoltas em grande parte de sua narrativa, mas Huxley garante a atenção do seu leitor pelo deslumbramento causado por um mundo absurdo, onde certamente não conseguiríamos nos encaixar facilmente. E é por ser absurdo um mundo sem pais, filhos, amor ou religião que o livro de Huxley causa em seus leitores mais sensíveis um sentimento de desolação e desesperança.

Apesar de escrito há quase 89 anos atrás a escrita de Huxley nesse livro é muito fluida e de fácil compreensão o que e aliado a tradução de Lino Vallandro ajudou bastante para o entendimento de todo o universo distópico e muito singular imaginado pelo autor.

O narrador deste livro é onisciente[5] e bastante complexo, ora mostrando distanciamento da narrativa ora “deixando marcas das suas impressões” como atesta Nelson Samuel Porto Veratti. Na sua narração, muitas vezes crítica, irônica e até desdenhosa, como a caracteriza o autor supracitado, o narrador permite que os pensamentos dos personagens se misturem à sua fala indo no íntimo das convicções e dos pensamentos alheios, sem, no entanto, acatá-los, por isso, Veratti o classifica como um “entre aqueles que não se deixam iludir pelas aparências” daquele mundo novo.

O que mais gosto nessa narrativa é sua crítica social ao totalitarismo, à sociedade do consumo, à superficialidade e à banalidade das relações do mundo dito pós-moderno. É quase uma aula de Zygmunt Bauman. Porém, o livro tem também seus pontos fracos e o principal deles é a lentidão do seu desenvolvimento. Contudo, esse foi um mal necessário sem o qual não conheceríamos e compreenderíamos a fundo nem o mundo criado para o livro nem as pretensões do autor ao escrevê-lo.

Notas finais: a atualidade de um livro complexo e fascinante

Admirável Mundo Novo foi escrito numa época na qual grande parte de seus avanços tecnológicos ainda se encontravam no campo do vir a ser, do pode vir a ser. O capitalismo financeiro e industrial se encontrava instalado e passava primeira de suas mais profundas crises, a grande depressão. O tom da obra transmite o pessimismo daqueles dias sombrios, nos quais as nações capitalistas viviam anos de profunda recessão econômica e desemprego crescente, regimes totalitários emergiam na Europa e as circunstâncias preparavam o terreno para uma segunda guerra mundial que eclodiria em set de 1939.

O profundo pessimismo de Huxley que não oferece saída a seus personagens reflete a própria atmosfera de um período no qual o futuro era incerto e as circunstâncias adversas, por isso esse tom carregado de desalento domina o livro. Mas em grande parte, para a sociedade da década de 30, Admirável Mundo Novo não fez tanto sentido quanto ele faz nos dias atuais de um capitalismo globalizado, de grandes avanços científicos e tecnológicos de uma sociedade liquida e consumista e com uma população mundial de 7,5 bilhões de pessoas (na década de 30 éramos pouco mais de 2 bilhões).

Parecemo-nos muito mais com a sociedade de Admirável Mundo Novo do que há 89 anos, quando instituições como a família e religião eram sólidas e as relações, duradoras. O consumo se encontrava limitado pelas circunstâncias dos anos difíceis, mas em anos anteriores, sobretudo nos EUA, havia ocorrido um crescimento exponencial do consumo por conta da busca incessante dos estadunidenses por manter o American way of life[6] (o estilo americano de vida) e concretizar o tão sonhado American Dream[7] (o sonho americano).

Por se parecer tanto com nossa sociedade é que Admirável Mundo Novo pode ser considerado visionário e fazer mais sentido hoje do que na época em que foi escrito. Com uma clareza impressionante o pesquisador Nelson Samuel Porto Veratti expõe a atualidade do livro de Huxley quando afirma que:

 “A passividade e a cooptação que caracterizam as personagens huxleyanas também estão presentes na massa acrítica do mundo atual, muitas vezes sedada por tranquilizantes (Soma), distraída por superficialidades sensoriais (cinema sensível e música sintética), conduzida pelo aboio ideológico capitalista (consumismo desenfreado), seduzida pela busca da felicidade a qualquer preço (hedonismo e ecstasy), privada das instâncias libertadoras (escasso incentivo à leitura e à reflexão) e infantilizada pela intolerância à frustração (liberdade sem responsabilidade), entre outras coisas

Enfim, a ideia do livro de Huxley não é só criativa como avançadíssima para a época em que a obra fora escrita. O autor antevê avanços como a inseminação artificial e a clonagem que só se tornariam possíveis muitas décadas depois. Além disso, o consumismo retratado na narrativa é um tema cada vez mais atual e próximo da forma como se dá na trama: ilimitado, superestimulado e inconsciente. Em muitos aspectos, como expõem Veratti, nos encontramos perigosamente próximos de um mundo admiravelmente novo.

O desfecho é inusitado, bastante realista e pessimista, mas bastante condizente com o caráter desapaixonado de seu narrador e de toda a narrativa, bem como com a insanidade daquele mundo. [ALERTA DE SPOILER SOBRE O DESFECHO]. Não havia ali possibilidade de um final romântico ou ingênuo, mas só da realidade crua e bruta de quando somos incapazes de nos encaixar e possibilidades de solução nos faltam. Aos personagens que conseguem vislumbrar algo para além do que o controle social lhe permite resta apenas duas opções:  ou aceitar o que é posto e aderir a ele, ou ir para o extremo contrário e abandonar tudo, pois não é a eles permitido transformar a realidade ao sabor dos próprios desejos ou convicções. Uma realidade inescapável tão não só pela morte.

Enfim, um livro crítico, atual, possível e desapaixonadamente marcante.

A edição lida é da Editora Globo, do ano de 2003 e possui 318 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro em outra edição que se encontra disponível no Google Books.

Sobre o autor

Escritor inglês, Aldous Leonard Huxley nasceu em Godalming, no dia 26 de julho de 1894. Estudou no Balliol College, em Oxford e graduou-se em inglês em 1916.

Huxley é mundialmente conhecido pelos seus romances e ensaios.

Seus primeiros poemas foram publicados em 1916. Quatro anos depois lançou mais duas obras. Só em 1921 chegou a publicar seu primeiro livro de crítica social, "Crome Yellow", ainda sem tradução no Brasil.

Atuou como crítico literário e teatral e escreveu artigos para várias revistas. Foi editor da revista Oxford Poetry e publicou contos, poesias, literatura de viagem e roteiros de filmes.

A partir da década de 50, tornou-se um entusiasta do uso responsável do LSD, fazendo ele mesmo uso do alucinógeno. Em 1960, Huxley foi diagnosticado com câncer de laringe e faleceu em Los Angeles no dia 22 de novembro de 1963.

Prévia do Google Books



[1]Modo como estão interligadas as partes de um todo; organização, contextura

[2]ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989

[3]Nelson Samuel Porto Veratti.

[4]https://pt.wikipedia.org/wiki/Admirável_Mundo_Novo

[5]Segundo Ana Paula de Araújo é quando o narrador “sabe de tudo. Há vários tipos de narrador onisciente, mas podemos dizer que são chamados assim porque conhecem todos os aspectos da história e de seus personagens. Pode por exemplo descrever sentimentos e pensamentos das personagens, assim como pode descrever coisas que acontecem em dois locais ao mesmo tempo”. (Infoescola).

[6]O Sonho Americano (em inglês: American Dream) é um ethos nacional dos Estados Unidos, uma variedade de ideais de liberdade inclui a chance para o sucesso e prosperidade, maior mobilidade social para as famílias e crianças, alcançada através de trabalho duro em uma sociedade sem obstáculos. (Wikipédia).

[7]O American way (em português, '‘jeito ou estilo americano’') ou American way of life ('estilo americano de vida’') é a expressão aplicada a um estilo de vida que funcionaria como referência de autoimagem para a maioria dos habitantes dos Estados Unidos da América. Seria uma modalidade comportamento dominante e expressão do ethos nacionalista desenvolvido a partir do século XVIII, cuja base é a crença nos direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade, como direitos inalienáveis de todos americanos, nos termos da Declaração de Independência. Pode-se relacionar o American way com o American Dream. (Wikipédia).


domingo, 13 de setembro de 2020

O Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde – Resenha

Por Eric Silva

19 de abril de 2020

“Não existem fatos morais ou imorais em um livro. Os livros são apenas bem ou mal escritos. Isto é tudo”.

(Oscar Wilde)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

A história fantástica de Dorian Gray, mesmo após de 130 anos, é uma ressalva sobre a corrupção nascida da vaidade e do ego ainda bastante atual, ainda que a intenção do autor não fosse originalmente dar nenhuma lição de moralidade. Complexo, dramático e absurdamente original em sua ideia básica de enredo, O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde causou polêmica em sua época por trazer temas reprováveis pela sociedade da época, e é o tipo do livro que ou você ou vai amar ou odiar (e há muitos motivos para ambos).

Sinopse do enredo

O pintor Basil Hallward encontra um novo ímpeto e inspiração para sua arte depois que conhece o jovem Dorian Gray, um rapaz um tanto puro, ingênuo e imaturo, mas dono de uma beleza juvenil espetacular e que vinha chamando a atenção da aristocrática sociedade londrina. Movido por essa adoração quase romântica, Basil comenta com seu amigo, o hedonista e cínico Lorde Henry Wotton, sobre o seu achado. Exalta o caráter e beleza de Dorian e fala sobre o retrato estupendo do rapaz que com tanto afinco e arte ele pintava, ainda que Dorian se sentisse entediado de posar por tanto tempo para seu amigo pintor.

Curioso com a devoção apaixonada de Basil pelo rapaz, Henry insiste em conhecer Dorian, e também se encanta com o rapaz, logo se tornando amigos. Com a convivências com Henry, Dorian pouco a pouco se desvia para uma vida de prazeres imediatos e de superficialidades estéticas que o Lorde cultuava como o único tipo de vida que valia a pena ser vivida e que tratou de incutir na mente do rapaz.

Quando finalmente a pintura de Basil fica pronta, o pintor teme ter impresso na tela todo o seu íntimo e assim ter exposto seus sentimentos mais recônditos pelo rapaz. Então, decide presentear Dorian com o retrato pintado dele. Impressionado com a pintura, o rapaz se dá conta, pela primeira vez, de sua enorme beleza e inveja a pintura, porque ela nunca envelheceria, enquanto ele perderia o frescor da juventude com o transcorrer dos anos.

Depois daquele episódio, a medida com que o tempo passa, a beleza do rapaz aprece imutável e enquanto todos envelhecem ele se mantém jovem. Ao mesmo tempo, uma revolução se dá no caráter do rapaz, e Dorian vai se tornando ele também hedonista, egoísta e narcisista, entregando-se a um estilo de vida que transforma radicalmente a ele e ao retrato.

Resenha

Antes de começar, preciso fazer a seguinte observação: O Retrato de Dorian Gray possui duas versões, a original de 1890, com treze capítulos, e outra, publicada no ano seguinte, com vinte capítulos. Essa segunda versão ampliada e modificada foi exigência dos editores de Oscar Wilde que desejavam que a narrativa original de 1890 fosse suavizada, provavelmente pela recepção do público e as controvérsias entorno do livro.

A edição que eu li, é a versão original, bilíngue, contendo apenas os 13 capítulos originais. Por conta disso, essa edição não pode ser comparada, por exemplo, com o filme homônimo de Oliver Parker (2009), que possui personagens existentes na versão ampliada, mas que inexistem na versão original de 1890.

Como falei no lead desta resenha, O Retrato de Dorian Gray é uma obra complexa, dramática e absurdamente original em sua ideia básica de enredo. Mas preciso, no entanto, esclarecer cada um desses pontos.

Afirmo que o único romance escrito por Oscar Wilde é uma obra complexa por um motivo bastante peculiar. Em geral considero um livro complexo pela natureza de sua narrativa, mas este não é o caso, porque que em geral os acontecimentos narrados em O Retrato de Dorian Gray se dá em espaços fechados como o ateliê de Basil, ou em teatros e óperas, quando não nas salas de estar dos aristocratas Henry e Dorian. Não, em relação a enredo o livro é simples, bem pouco dinâmico e pesado na quantidade de diálogos. O que faz essa narrativa complexa do meu ponto de vista é a complexidade de dois de seus personagens principais. Falemos um pouco então deles: Dorian e Lorde Henry.

Dorian

O rapaz Dorian é de longe o mais complexo dos personagens do livro, porque o protagonista da trama foi pintado por Wilde com muitos matizes de cores e sua personalidade vai se metamorfoseando com o desenvolvimento da trama, tornando-o extremamente narcisista, imoral, insensível e até pérfido.

Segundo dá a entender o narrador, Dorian, antes mesmo de conhecer Basil, era um garoto ingênuo, puro e bom. Sua beleza física, que se encontrava na primavera da vida, se harmonizava com uma candura, talvez, bucólica, campestre. Mas talvez ele não fosse isso tudo, e essa minha sensação seja influência da atuação de Ben Barnes, que interpreta um Dorian bastante tímido e um tantinho interiorano no filme de Oliver Parker (2009). Mas seja como for, foram o culto recebido nos salões ingleses, mas principalmente a devoção apaixonada de Basil, que levaram o rapaz a tomar consciência do quão grande e fascinante era a sua beleza física, despertando nele a primeira semente de sua derrocada: uma vaidade até então adormecida.

Dorian, interpretado por Ben Barnes, ao chegar em Londres

Contudo, Henry, foi o ator e o regente principal da perdição do jovem Dorian, que inocente das maldades e vaidades do mundo, encontra no Lorde um instrutor para uma vida de prazeres supérfluos, devassidão, superficialidade e galanterias.

Henry incute em Dorian uma paixão doentia pelo que a vida e a sua condição podiam lhe dar. Dentro dessa paixão ele acaba deturpando ou afastando qualquer outro sentimento que possa prendê-lo ou afastá-lo de uma realidade que ele criou em sua mente e considera como perfeita. [ALERTA DE SPOILER]. Por isso, ele se mostra capaz distorcer a realidade para que ela caiba no que seu desejo lhe impõe, como convencer a si mesmo que Sibyl Vane, atriz sem sucesso por quem ele pensou estar apaixonado e que depois ele ilude e abandona por um motivo torpe e sem sentido, não cometeu suicídio por sua causa. Ele, literalmente, convence a si mesmo que não tem culpa por aquela morte desesperada, e passa a ver o caso com indiferença e a Sibyl como um sonho de um passado mais longínquo do que recente.

Além disso, essa paixão pela vida leva Dorian a ter uma sede insaciável por conhecer coisas novas, uma fome de conhecimento que poderia ser construtiva, se em outros aspectos de seu caráter o rapaz não fosse danoso a si e a todos os demais (na narrativa quase todo mundo que se relaciona com ele se desvia, entra em declínio ou tem fim trágico).

Contudo, Dorian não é, em nenhum sentido, um personagem plano, ou seja, previsível e constituído de uma única ideia ou qualidade. Em muitos momentos, a mente de Dorian parece enevoada e tentando resistir ao declínio rápido e acentuado de seu caráter. Ele tem momentos breves de sensatez e humanidade, mas que logo depois são espantados pela vaidade e degeneração a que estava submetido. Ainda assim, Dorian vai ser, até o fim da trama, egoísta e egocêntricos. Incapaz de arrepender-se de seus crimes e das consequências de seus atos. Até chega a surgir um lampejo de uma vontade de ser bom novamente, talvez resultado do cansaço promovido pelo peso de sua vida depravada, mas na minha opinião (a mesma de Henry), ele só estava inclinando-se ao desejo de sentir uma nova sensação, novamente agia por vaidade. Porque a imagem que construí de Dorian, é que ele só tinha pena de si mesmo e tudo que fazia era pensando unicamente em si, em sua vaidade e em alimentar sua fome de novidades, prazeres, de sentir novas sensações e de afastar o tédio.

Todo esse egoísmo e depravação de Dorian se tornam evidentes na pintura de Basil que passa a carregar em si o peso dos pecados e da consciência que o próprio rapaz parecia perder.  Tanto que seu instinto de esconder o quadro não era apenas para ocultar dos outros o seu segredo, era também ocultar de si a verdade de que ele se transformava em um monstro desalmado, porque a pintura, como um espelho, era o reflexo de sua alma corrupta. Por desejar nunca envelhecer e perder sua beleza, colocando a beleza e a estética na frente de tudo, de todos e de todas as coisas que ele teria “uma carga terrível de carregar”. Essa seria a frase que melhor ilustra o futuro de Dorian na trama.

 

Lorde Henry

Considero Lorde Henry Wotton como um hedonista desprezível. Henry é uma pessoa inescrupulosa, imoral e sob sua influência Dorian vai se tornando sórdido e desprezível. Um dos personagens mais repulsivos que já tive o desprazer de conhecer na literatura. A avó sadista dos Dollanganger de O Jardim dos Esquecidos, não conseguiu provocar em mim tanta repulsa quanto o personagem do aristocrata de O Retrato de Dorian Gray.

Lorde Henry, interpretado por Colin Firth

Ele é o que na época era chamado de dândi, um homem que se vestia de forma refinada, com excelente senso estético, conhecedor da arte, que defendia que a vida deveria ser vivida de forma intensa e que dava um enorme valor ao esteticismo e à beleza presente em detalhes miúdos e por vezes até insignificantes[1]. No popular um boa-vida muito bem trajado e cheio de tempo ocioso para pensar, tecer e falar sobre coisas pouco imediatas enquanto se entretém com jogos e lazer. Contudo, Henry era um dândi em decadência, além disso, um homem arrogante e sem nenhum moralismo.

Era profundo defensor da filosofia hedonista[2], mas um completo hipócrita, uma vez que ele mesmo não pusesse em prática as suas ideias. Em lugar disso, usava como experiências aqueles que, ao seu redor, fossem impressionáveis o bastante para se envolver em suas preleções pomposas, aparentemente muito profundas e reveladoras. Uma vez que os mergulhava em suas ideias Henry se entretinha em observá-los, estudá-los e distorcer pensamentos e sentimentos.

Dorian foi ingênuo e impressionável o bastante para se tornar um experimento de Henry, e, enquanto Basil criou sua obra-prima a partir da imagem de Dorian, impresso na tela, o aristocrata hedonista buscou tornar Dorian, literalmente, em seu magnum opus[3]. Talvez, acredito eu, que ele só o tenha conseguido porque faltou a Dorian orientação familiar. O rapaz havia tido como única família um tio que o desprezava, maltratava e o trancava, isolando-o do mundo. Dorian era novo demais e não foi preparado para pensar por si mesmo ou para separar o joio do trigo. Basil, que era profundamente moral, talvez pudesse tê-lo ajudado, se sua devoção, se sua paixão por Dorian não o tivesse tornado fraco e complacente[4] com os erros do rapaz.

Gosto de filosofia, mas o hedonismo e esteticismo apresentado pelo personagem Henry, me enojou bastante, não me convenceu e foi insuportável de ler.

Dramático e absurdamente original

Mesmo tendo falado mais profundamente destes dois personagens, porém, isso não é o suficiente para explicar porque eu acho O Retrato de Dorian Gray dramático, absurdamente original e o tipo do livro que ou você ama ou odeia, havendo muitos motivos para ambos.

Corrupção: o retrato antes e depois.

Histórias de maldições e de pactos com o demônio são comuns, mas eu ainda não vi nada na literatura moderna que se assemelhe a proposta de enredo de O Retrato de Dorian Gray e que não tenha sido inspiração na própria obra de Wilde.

Em primeiro lugar, temos aqui uma maldição muito peculiar: trocar de lugar com um retrato que envelhecerá em seu lugar e representará o âmago de sua alma como se fosse um espelho. Faz lembrar o conto da Branca de Neve, onde o espelho seria o retrato, e a vaidade o motor que move o seu usuário. Contudo, Dorian não é um bruxo. Ao contrário do que ocorre no conto dos Irmãos Grimm, trata-se de uma maldição que dota o personagem de uma personalidade muito singular e maquiavélica, sem, no entanto, dotá-lo de nenhum poder sobrenatural em particular o qual ele possa fazer uso. Mas se fossemos comparar esse texto a algum clássico antecessor, eu o compararia a uma releitura moderna do mito de Narciso.

Na trama, Basil talvez seria a versão masculina da ninfa Eco, que cultua a imagem de Narciso (Dorian), enamora-se e fica preso a uma torrente devocional que causa a desgraça dos dois. No caso, a Eco de Wilde confecciona a pintura que será a destruição dos dois.

No mito, por conta de Eco, que em algumas versões morre apaixonada, Narciso é levado por Nêmesis, deusa da vingança, a olhar para seu reflexo n’água e apaixona-se por sua própria imagem refletida, ficando tão fixado e incapaz de afastar-se da imagem, que morre ali mesmo à margem do regato. Dorian, assim como Narciso, era belo, orgulhosos e arrogante, e ao ver-se representado na tela de Basil, inveja a si mesmo, porque passa a amar a si mesmo mais do que a tudo e a todos. Como Narciso, era incapaz de se apaixonar, e por isso causou dor, não só a Basil, como a muitas outras pessoas que por ele se enamoraram. [ALERTA DE SPOILER] E pela vaidade e egoísmo condena a si e a Basil a um fim trágico.

“A própria agudeza do contraste costumava animar seu sentimento de prazer. Ele se tornava cada vez mais enamorado de sua própria beleza e cada vez mais interessado na corrupção de sua alma”.

Mas voltando a discussão.

Em segundo lugar, o livro de Wilde contém uma maldição nascida de um desejo muito forte, mas quase inconsciente e sem que haja uma promessa, um pacto demoníaco. E por fim, Wilde faz com que tudo isso se torne uma união entre o fantástico sobrenatural, sem perder as raízes na podridão muito real das relações humanas em uma sociedade hipócrita, conservadora e corrupta. Por isso, achei O Retrato de Dorian Gray original, sobretudo para a sua época.

Segundo afirma a introdução da edição lida, Wilde teria tido a ideia após ser chamado ao estúdio do pintor Basil Ward. Na época, o pintor estava finalizando uma pintura de um jovem modelo, e Wilde, após ter visto a obra teria dito: “é uma pena que tal gloriosa criatura um dia envelheça”, afirmação com a qual Basil Ward concordou e acrescentou: “seria maravilhoso se ele pudesse permanecer exatamente como ele é; a imagem do quadro é que deveria ganhar as marcas do tempo”. Daí nasceria a inspiração para o livro.

Contudo, apesar dessa ideia básica do enredo ser estimulante, instigante, a escrita de Wilde não ajudou muito. O Retrato de Dorian Gray é um livro pensado pelo autor para que seja filosófico e defenda suas ideias esteticistas e, por isso, o autor carrega a narrativa com diálogos pomposos e longuíssimos que logo entediam o leitor mais acostumado ao dinamismo da literatura contemporânea, ou simplesmente àqueles que não estão interessados na temática do hedonismo ou do esteticismo wildiano (este último é meu caso em particular).

Além desse fator, o livro é extremamente dramático no sentido dramatúrgico da palavra. Único romance do autor inglês que, no entanto, escreveu dezenas de peças teatrais, é provável que por conta da veia dramaturga de Wilde tudo nesse livro soa como uma grande peça de teatro, com longos discursos do narrador e diálogos extensos quase sempre com duas ou três pessoas no máximo.

Outro aspecto da narrativa a ser destacada é o seu conteúdo filosófico proeminente, ligado ao hedonismo e ao esteticismo (falo mais sobre logo a seguir), e que torna a leitura do livro um pouco irritante, bastante cansativa e me fez levar 105 dias para terminar de ler. Esses 105 dias é expressão do quanto muito pouco a escrita wildiana me estimulou a terminar de ler.

Por isso, afirmo que ele é um livro que ou você vai amar (pela originalidade e pela narrativa de cunho fantástico) ou odiar (por todos os outros motivos).

Temas que saltam à vista: esteticismo e homossexualidade

Como falei, O Retrato de Dorian Gray é um livro que aborda com ênfase o esteticismo.

Segundo Alexandre Garcia Peres[5], o esteticismo foi um movimento tanto artístico quanto intelectual que se desenvolveu ao longo do século XIX. Tinha por características o “[...] culto ao Belo na arte, em detrimento da função ético-moral que ela pode ter [...]” e “[...] foi um dos vários movimentos que se valeram da ideia de se fazer ‘arte pela arte’”.

Segundo informa a introdução[6] da edição que eu li “as bases do Esteticismo foram desenvolvidas principalmente por Walter Pater, professor de Estética da Universidade de Oxford [...].” A principal defesa do movimento seria “[...] o ‘belo’ como única solução contra tudo o que considerava denegrir a sociedade da época, onde em suas manifestações mais fortes, os valores estéticos têm predominância sobre todos os demais aspectos da vida, numa atitude elitista em relação à arte”. Seria naquele século um movimento, que contaria com o apoio de uma geração de intelectuais e artistas britânicos e que “[...] visava transformar o tradicionalismo na época vitoriana, dando um tom de vanguarda às artes”. 

Seguidor desta corrente Wilde imprime na sua obra muitos aspectos de suas ideias, e obviamente entrara em choque com a posição que era corrente na preconceituosa, moralista e conservadora sociedade vitoriana, “onde a Arte não é apenas um meio de se propagar a moralidade, mas também um meio de reforçá-la[7].

Por conta das ideias do esteticismo, o livro traz muitas referências às artes, desde as artes menores (joias e objetos decorativos), até as artes mais destacadas como às literaturas clássica e moderna, à música, dentre outras formas de artes. O capítulo nove, por exemplo, dedica várias páginas a falar dos hobbies de Dorian e as coisas que por algumas temporadas chamavam-lhe a atenção, e as quais se dedicava com afinco até abandoná-las e seguir para a atividade seguinte. Essas atividades, quase todas, estavam ligadas ao mundo artístico. Além disso, o amor passageiro de Dorian por Sibyl Vane estava mais ligado aos talentos artísticos da moça no teatro, do que de fato à pessoa que ela era: uma jovem apaixonada e inexperiente.

As ideias esteticistas estão também nos discursos tediosos de Lorde Henry e também nas observações do narrador. Por fazer essa defesa das ideias do autor, o narrador é bastante opinativo, porque ele representa a própria voz do autor, que como havia se referido uma vez, via nos personagens algo de si:

Basil Hallward é o que penso que sou: Lorde Henry é o que o mundo pensa de mim: Dorian Gray é o que eu gostaria de ser — em outras eras, talvez”.

Acredito que com isso ele queria firmar que era um apaixonado como Basil, mas que era visto como um degenerado que desviava inocentes, como Lorde Henry, e desejava ser tão encantador e fascinante quanto era Dorian.

Sou uma pessoa que gosta de filosofia, sobretudo do ato de pensar filosoficamente, apesar de ser mais da prática do que da teoria, mas esse autor me cansou verdadeiramente, não tive muita paciência de ler as ideias filosóficas de Wilde, e o texto se tornou um martírio para mim.

No entanto, algo que surpreende em O Retrato de Dorian Gray é a coragem de Wilde de, naquela época, fazer referências tão óbvias ao homossexualismo, sobretudo com o personagem do pintor Basil. Mas esta atitude corajosa se voltou contra ele quando, em uma contenda judicial contra o pai de um de seus amantes, passagens de O Retrato de Dorian Gray foram usados como provas das inclinações homossexuais de Wilde. Além de ter sido preso ele foi afastado de seus filhos e, depois, abandonou a Inglaterra.

A era vitoriana foi marcada por uma moral muito severa, marcada por valores que englobavam a “restrição sexual, pouca tolerância para o crime e um código social de conduta pública rigoroso[8] e nesse período foram constantes os processos por sodomia ilegal. Na época, os homossexuais eram tratados como sodomitas, uma referência a Sodoma, cidade citada na bíblia sobre a qual eram relatados casos de relações sexuais entre homens. A homossexualidade era considerada uma aberração e era alvo de estudos médicos que tentavam entendê-la.

No plano legal, a Emenda Labouchere à Lei de Emenda da Lei Criminal de 1885, tornou todos os atos homossexuais masculinos ilegais no Reino Unido. A punição para quem desrespeitasse pública ou privadamente a norma era de dois anos de prisão, em outras palavras, cometer ou ser parte em atos de homossexualidade era crime, mesmo quando isso ocorria de forma privada. Oscar Wilde foi um dos condenados por violar esta lei, em 1895, se tornando símbolo da repressão puritana inglesa[9].

Mesmo muitos anos depois, no Reino Unido, a homossexualidade continuou como um tabu que gerava punições. É também icônico o caso do cientista da computação Alan Turing, retratado no filme O Jogo da Imitação (2014) como um dos responsáveis pela vitória sobre os alemães durante a segunda guerra mundial. Turing era homossexual e, para não ser condenado a prisão, foi forçado a sofrer castração química em 1952. Ainda naquela época a orientação homossexual era amplamente considerada pelos britânicos como uma doença mental cujo tratamento eficaz seria a castração química[10]

Para finalizar...

O Retrato de Dorian Gray é um livro interessante e peculiar. Um romance gótico que seria um dos meus favoritos se tivesse sido escrito em outra época e sem o exagero de tantos diálogos longuíssimos e suntuosos, e sem tanto destaque para o hedonismo e o esteticismo que foi exaustivamente descrito por Wilde.

Os personagens são complexos e muito bem desenvolvidos e a trama fantástica (gótica) muito bem pensada e executada. O texto traz muitas referências a cidade de Londres, aos costumes ingleses em voga e também a obras da literatura clássica que tornam as notas de tradução indispensáveis. O desfecho não se dá pelos motivos mais criativos, mas não decepciona.

Atrevo-me a dizer, apesar de não ter gostado do livro, que a obra de Wilde é uma expressão vívida e apaixonada do idealismo de uma época e do íntimo de um grupo que era marginalizado, ainda que falar de homossexualismo não fosse o objetivo do autor, mas, como era de sua natureza e Wilde se coloca tão intensamente nesta obra, não foi possível a ele dissimular.

A edição lida é bilíngue (português e inglês), da Editora Landmark, do ano de 2012 e possui 224 páginas.

Sobre o autor

Nascido em 16 de outubro de 1854, em Dublin, na Irlanda, e filho de uma poetisa nacionalista, Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde foi escritor, poeta e dramaturgo. Em quanto estudou em Oxford se aliou ao movimento artístico do Esteticismo. Casou-se em 1884 com Constance Lloyd, com quem teve dois filhos.

Embora conhecido nos círculos sociais, recebeu pouco reconhecimento por sua obra durante muitos anos.

Em 1895, o marquês de Queensberry, pai de Lorde Douglas amante de Wilde, iniciou uma campanha pública contra o autor. Após perder um processo judicial contra o Marquês, Wilde foi condenado a dois anos de trabalhos forçados. Ao ser libertado, se autoexilou em França, onde morreu na completa obscuridade em 30 de novembro de 1900.

 



[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/D%C3%A2ndi

[2] Cada uma das doutrinas que concordam na determinação do prazer como o bem supremo, finalidade e fundamento da vida moral, embora se afastem no momento de explicitar o conteúdo e as características da plena fruição, assim como os meios para obtê-la (HOUAISS, 2009).

[3] Refere-se a melhor, mais popular ou renomada obra de um artista ou pensador.

[4] Desejoso de agradar, de demonstrar cortesia, de servir

[5] PERES, Alexandre Garcia. Esteticismo – O que é? Quando surgiu? O que defende? Características e Artistas. Disponível em: <https://www.gestaoeducacional.com.br/esteticismo-o-que-e/>. Acesso em: 19 de abril de 2020.

[6] INTRODUÇÃO. In: WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Landmark, 2014. 224 p.

[7] INTRODUÇÃO. In: WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Landmark, 2014. 224 p.

[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Moral_vitoriana

[9] https://pt.wikipedia.org/wiki/Moral_vitoriana

[10] https://pt.wikipedia.org/wiki/Castra%C3%A7%C3%A3o_qu%C3%ADmica#Europa


domingo, 2 de agosto de 2020

A Revolução dos Bichos – George Orwell – Resenha

Por Eric Silva

A linguagem política, destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável, bem como a imprimir ao vento uma aparência de solidez”

(George Orwell)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Um livro que marcou uma época superpolarizada e controversa, A Revolução dos Bichos é um livro extremamente politizado e leitura importante para se entender toda uma época de opressão: o totalitarismo soviético comandado por Stalin na União Soviética. Com uma linguagem simples e direta, Orwell, que foi imortalizado pelos seus ensaios políticos e por suas obras mais populares e importantes, 1984 e A Revolução dos Bichos, descreve nesse livro, sobre uma ótica clara, lúcida e objetiva, o retrato satírico da opressão, hasteando uma bandeira contra toda e qualquer forma de totalitarismo político, ainda que suas ideias tenham sido desviadas e, no final, utilizadas para outros fins políticos.

Uma fábula política: sinopse do enredo

Publicado no ano de 1945, o livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos, conta a história da revolução empreendida pelos animais da Granja do Solar, uma propriedade no interior da Inglaterra, cujo dono, o Sr. Jones, por ser indolente e alcoólatra, deixa aos cuidados de empregados preguiçosos que frequentemente deixam os animais com fome.

A vida na granja não é fácil para os animais que além de trabalharem e terem os frutos de seus esforços usurpados pelos humanos, ainda sofriam maus-tratos e viviam em condições de miséria. Certa noite, porém, o discurso de um velho porco de premiação, Major, incute nos animais da granja a semente de uma rebelião contra os humanos e a instauração de um sistema social no qual os animais trabalhassem para si e fossem considerados como iguais.

Major, pouco antes de morrer, reúne todos os animais para falar-lhes sobre um sonho que tivera na noite anterior. Segundo ele no sonho ele vira um mundo onde os animais viveriam em liberdade, livres da tirania humana e sem que fossem explorados, mortos ou usurpados pelos homens. O velho porco fala aos animais sobre as coisas que aprendera ao longo de sua vida e da exploração a que sempre se encontraram submetidos e ensina-os um velho hino que fala daquele mundo utópico regido pelos animais: o hino “Bichos da Inglaterra”.

Major morre três noites depois, mas deixa plantada a semente da revolução. Os porcos, por serem os mais inteligentes entre os animais da granja e por terem, secretamente, aprendido a ler e escrever, passam a liderar o movimento revolucionário tendo como lideres os porcos Bola-de-Neve e Napoleão. Sobretudo Bola-de-Neve, baseado nas ideias do Major na noite em que revelara seu sonho, institui os preceitos do Animalismo, o sistema social no qual os animais eram tidos como iguais e os humanos considerados seus principais antagonistas.

A rebelião, porém, não tarda a explodir e os animais expulsam Jones e todos os outros humanos assumindo o controle da granja. Vitoriosos, após destruírem todos os objetos da opressão imposta pelo homem (freios, argolas de nariz, correntes de cachorro, facas para castrações, rédeas e cabrestos), os animais mudam o nome da granja para Granja dos Bichos e decidem os sete mandamentos do novo sistema, o Animalismo, que deveria ser conduzido pelos animais da granja sobre orientação dos porcos e que deveria instituir uma sociedade animal livre, igualitária e opulenta.

Alguns dias depois, Sr. Jones ainda tenta retomar a posse de sua propriedade, mas é novamente afugentado pelos animais após uma batalha onde uma ovelha falece e um humano é quase morto. Livres do antigo proprietário e a despeito de todo o descrédito e calúnias contadas pelos outros granjeiros que temiam rebeliões semelhantes em suas propriedades, os animais se dedicam a fazer dar certo o Animalismo e a propagar para outras fazendas as notícias sobre a revolução através de pombos mensageiros que voavam por toda parte divulgando as ideias do sistema que nascia ali.

Muito inventivo e inteligente, Bola-de-Neve com a ajuda dos outros porcos planeja e institui todo o sistema produtivo da granja, coordenando os trabalhos de forma planejada, criando comitês de animais e aumentando a produção de alimento para todos. Ele chega a idealizar a construção de um moinho de vento que permitiria a geração de energia na granja, diminuindo o trabalho dos animais e aumentando o conforto de todos. Por outro lado, seu parceiro, Napoleão, a todo momento desacredita as ideias de Bola-de-Neve e na primeira oportunidade acusa-o de traição e utiliza-se de cães secretamente treinados por ele para acossarem Bola-de-Neve e expulsá-lo da granja, tomando para si o poder.

Utilizando-se do medo e de acusações enganosas que colocam todos contra o “traidor” Bola-de-Neve, Napoleão se consolida no poder e instaura um regime opressor e totalitário se autoproclamando o Líder e criando uma elite intelectual formada pelos porcos, que passam a ter privilégios sobre os demais animais da granja.

Resenha

Roman à clef: Orwell, a Revolução Russa e a Animal Farm

Polêmico e denunciativo, A Revolução dos Bichos é uma fábula que satiriza não só a Revolução Russa, mas, principalmente o sistema totalitarista imposto pelo ditador socialista, Josef Stalin, na União das Repúblicas Socialistas Soviética (URSS), após a morte do primeiro líder revolucionário do país, Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lenin.

Mesmo afirmando-se socialista, George Orwell repudiava o domínio absoluto e o regime de terror, exploração e perseguição política instituído por Stalin na União Soviética. Orwell havia lutado ao lado dos socialistas na Guerra Civil Espanhola, em 1936 e lá teve a oportunidade de presenciar as atrocidades cometidas a mando do regime soviético contra seus inimigos políticos e opositores dentro do partido comunista espanhol.

Um profundo conhecedor da política e dono de uma clareza de visão única, Orwell, que não aceitava que disfarçassem a verdade, ao retornar ao Reino Unido começa a compreender o que ocorria no longínquo e fechado país socialista e, em 1943, escreve um roman à clef [1]que satirizaria e denunciaria no que a revolução socialista russa estava se transformando, assim como antevê alguns dos caminhos que o regime totalitarista de Stalin adotaria contra seu próprio povo. A Revolução dos Bichos é este romance que, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, quando a URSS era aliada da Inglaterra e da França contra os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), foi considerado inconveniente e só pôde ser publicado em 1945, com o término do conflito. Um livro explosivo que claramente usava animais para contar a história da Revolução Russa e que usava um porco para retratar o líder soviético era visto com maus olhos por ofender e denunciar claramente as atrocidades do regime stalinista. Por isso o livro foi por muitos anos censurado em muitos países e proibido nas nações que adotavam o socialismo.

A fábula contada em A Revolução dos Bichos faz diversas e profundas referências a Revolução de 1917, ano da derrubada do poder imperial na Rússia. A Granja do Sol representaria o antigo Império Russo que após a revolução bolchevique mudaria de nome (assim como a granja), passando a ser chamada de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Sr. Jones e os outros humanos da granja simbolizariam, ao mesmo tempo, os capitalistas, a monarquia e a burguesia russa que explorava o proletariado do país (os bichos) e viviam em conforto com os frutos do trabalho usurpado destes últimos. No que lhe concerne, os animais seriam os trabalhadores que viviam na miséria e sustentavam a sociedade capitalista/monárquica/burguesa com os produtos do seu esforço e sacrifício.

O porco Major, para alguns pensadores representaria Karl Marx, teórico e economista alemão que denunciou o esquema de funcionamento da máquina de exploração do sistema capitalista e idealizou um sistema social comandado pelos trabalhadores (proletários) através de uma ditadura no qual estes formariam a classe dominante e almejariam uma sociedade igualitária e opulenta. Para outros teóricos Major seria a “personificação” de Lenin, líder máximo dos Bolcheviques, grupo partidário que deflagrou a Revolução Russa, e primeiro governante da URSS. Assim como Lenin, Major morre e seu corpo (embalsamado) é colocado em exposição para servir de símbolo da revolução.

“A caveira do velho Major, já sem carnes, fora desenterrada e colocada sobre um toco ao pé do mastro, junto à espingarda. Após o hasteamento da bandeira, os animais deviam desfilar reverentemente perante a caveira, antes de entrar no celeiro”

Por sua vez, Bola-de-Neve representaria Leon Trotsky, segundo no comando da revolução e rival de Stalin (o porco Napoleão) na disputa pela hegemonia do Partido Comunista da União Soviética após a morte de Lenin[2]. Assim como Trotsky, Bola-de-Neve é expulso e exilado nunca retornando vivo a URSS.

Os cães representariam as diversas forças armadas, repressoras e de serviços de inteligência e contrainteligência existentes no país como o Exército Vermelho[3], o Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD)[4] e as polícias secretas da União Soviética[5]. Os cães seriam responsáveis não só pela proteção do Líder (Stalin/Napoleão) e defesa da granja (nação), como também pela perseguição e execução dos traidores e inimigos políticos do Líder, e por manter o controle social.

Por seu turno, as organizações de censura soviéticas[6] e propaganda[7] foram representadas por Garganta, o porco porta-voz de Napoleão que tinha como responsabilidades: enaltecer a figura do líder estimulando o culto à personalidade de Napoleão; transmitir aos demais animais as decisões do líder; manipular e incutir informações falsas na mente dos “trabalhadores”, e, principalmente, transfigurar os princípios do animalismo, aproveitando-se da memória naturalmente curta dos animais e da ignorância de muitos que não aprenderam a ler ou que eram simplesmente simplórios demais para compreender ideias complexas.

Nesse ponto, algo que se pode destacar é a questão da memória. Os animais tinham dificuldade de se lembrar o que havia acontecido nos primeiros dias de revolução e antes da Revolução, sobretudo, porque a maioria deles eram estúpidos. Essa condição natural dos animais foi amplamente utilizada por Napoleão, através da retórica de Garganta, como uma maneira de estratégica de mantê-los obedientes e modificar os princípios do Animalismo ao seu bel-prazer sem que estes conseguisse protestar de fato, uma vez que não tinham certeza do que recordava ou se o que lembrava realmente é correto. Benjamim, o burro, era o único que de fato se recordava das coisas, porém costumava não se manifestar.

Ao longo da sátira, outros aspectos do socialismo soviético são representados e denunciados na narrativa:

1.      O uso do termo camaradas que se inspira na mesma linguagem empregada pelos revolucionários russos e marxistas.

2.      Todos os animais são iguais”: princípio da igualdade social entre os homens que afirma que todos os homens são iguais e por isso a sociedade de classes deve ser abolida.

3.      O Animalismo seria o comunismo ou socialismo dos animais.

4.      A doutrinação ideológica empreendida sobretudo com as ovelhas que repetem exaustivamente máximas do “partido” (animalismo) e com os cães que agem cegamente segundo as ordens e desejos do Líder.

5.      A propagação de ideias contrárias aos países estrangeiros (as granjas comandadas por humanos) apresentadas como plutocracias[8] que desejavam o fim da URSS/Granja dos Bichos.

6.      A perseguição política com execução sumária dos “traidores” da revolução como forma de controle social através da coerção e de eliminar a oposição interna.

7.      O gosto pelos desfiles militares que visavam intimidar é ostentar o poderio do país e ao mesmo tempo ovacionar sua grandeza e do Líder.

8.      O uso da propaganda e da coerção para que a população mantenha a obediência aos princípios valores difundidos e à figura do líder.

9.      A formação de uma elite intelectual e tecnocrata por trás da administração pública (os porcos), mas que no final formam uma classe social dirigente composta por burocratas privilegiados e detentores do poder, grupo que na URSS foi chamada de nomenklatura (“burocracia” ou “casta dirigente”)[9].

10.  O Hino “Bichos da Inglaterra” faz apologia ao Hino da Internacional Socialista.

Em todos os seus aspectos a fábula criada por Orwell denuncia e desmistifica “o mito soviético”[10] que divulgava para as demais nações do mundo um sistema perfeito, de justiça e igualdade social, riqueza e progresso liderado e feito pelo e para os trabalhadores, e que mascarava a realidade de um sistema injusto, perseguidor, ditatorial e totalitário sobre a chefia de Josef Stalin.

O objetivo claro de Orwell era criticar o modelo de socialismo adotado pelos soviéticos, mostrar ao mundo que haviam outras formas de socialismo e que aquilo que vinha sendo imposto por Stalin era, na verdade, uma forma totalitária de governar muito distinta do que o socialismo verdadeiramente propõe para a sociedade.

Contudo, após sua morte, no ano de 1950, a propaganda antissocialista adotada pelos EUA durante o contexto da Guerra Fria, período de polarização do mundo entre socialistas e capitalistas, utilizou-se desta obra e também de outra, o livro 1984, para pregar contra os regimes socialistas, sem fazer nenhum tipo de distinção das diferentes matizes que o pensamento socialista possui, e desconsiderando a posição política de Orwell. A CIA, serviço secreto americano, chegou a financiar a distribuição dos dois livros de Orwell em diversos países, bem como a produção de um desenho animado em 1954, adaptando a obra segundo a visão propagandista da Guerra Fria.

Tanto destaque se deu a crítica política presente no livro e sua correlação com a revolução e o sistema socialista russo, que o livro, cujo título original é Animal Farm – algo que poderia ser traduzido como Fazenda de animais, Fazenda dos animais ou A Fazenda dos animais –, teve seu nome modificado em alguns países para enfatizar seu conteúdo político e facilmente associá-lo ao regime soviético. Foi o caso do Brasil (A Revolução dos Bichos) e da Espanha (Rebelión en la granja).

Crítica literária: escrita, linguagem e narração

A Revolução dos Bichos é um romance de muitos personagens. Como afirmamos esta obra é um roman à clef, ou seja, uma narrativa na qual Orwell trata de pessoas reais por meio de personagens fictícios, no caso os bichos da fazenda. A maioria dos bichos, no entanto, representam o povo soviético que era na época essencialmente multicultural, multiétnicos e multinacional. A variedade dos animais retratados pelo romance representam essa multiplicidade do povo da URSS, como também a multiplicidade de posições: os que acreditavam piamente no sistema e davam o melhor de si para construir a grande nação socialista mesmo não compreendendo completamente o cenário político-social (caso do cavalo Sansão), aqueles que olhavam com desconfiança para o sistema mas não possuíam o conhecimento necessário para contestá-lo (a égua Maricota), os partidários que absorviam as versões simplificadas e cheias de erros e incoerências do ideal socialista e repetiam as máximas do sistema e viviam através delas sem compreendê-las por completo (as ovelhas), os intelectuais que compreendiam toda a barbárie que estava sendo feito, mas que se calavam por medo (o burro Benjamim), a elite intelectual dirigente (os porcos) e a massa camponesa que vivia para produzir (os demais animais).

Diante da multiplicidade de papéis desempenhado pelos animais, o personagem principal da trama acaba por ser a própria revolução que se transmuta e muda de forma com o tempo.

O livro foi escrito para ser fácil de ser lido e compreendido com uma linguagem simples, enxuta e acessível numa narração linear e com capítulos pequenos. Orwell evitou metáfora bem como outros recursos estilísticos e escreveu A Revolução dos Bichos com uma forma simples e fluída o que é essencial para que o maior número de pessoas pudesse compreender a mensagem objetiva do livro. A escrita é descritiva só no essencial e de forma precisa, por isso o livro não é cansativo e, simultaneamente, cumpre a função de transmitir uma visão da URSS da época.

Cheguei à conclusão, ao longo de minha leitura, que facilitar a linguagem era uma estratégia do autor para facilitar também o entendimento da denúncia: o que vinha sendo feito na URSS por Stalin não era socialismo, assim como o que Napoleão fez não era animalismo.

O narrador procura não intervir na narrativa, mas tece comentários breves. Porém apesar de breves alguns destes comentários são mordazes:

Depois que o casco ficou bom, Sansão trabalhou mais violentamente do que nunca. Aliás, naquele ano todos os bichos trabalharam feito escravos. Além da faina normal na fazenda e da reconstrução do moinho de vento, ainda houve a escola dos porquinhos, iniciada em março”.

Gostei do livro como um todo e a única coisa que me faz pensar como um ponto fraco da obra, politicamente falando, é seu desfecho desesperançoso. O tom da obra é quase todo esse, mas está obvio que sua mensagem não é de desesperança, e acho que Orwell não soube deixar isso evidente. A ideia é original e criativa, mas deixou espaço para ser utilizada para fins diversos e, até mesmo, contrários.

A título de conclusão: um final inconcluso

A União Soviética só teve seu fim em 25 de dezembro de 1991, e como era de se esperar, A Revolução dos Bichos possui um desfecho em aberto, mas com o prenúncio de um futuro obscuro e a abertura para uma nova revolução. Apesar disso, este é um livro que não faz apenas uma sátira aos regimes totalitaristas, é também uma obra que fala de justiça social e liberdade. Espelha a realidade de uma época no qual emergiu uma luta dos oprimidos contra uma sociedade injusta e excludente, que o exploravam massivamente e a tentativa de construir um reino de liberdade e opulência. Fala de como esse projeto ia mal e de como a forma de opressão só havia mudado de nome, pois o regime instaurado se afastara completamente dos princípios iniciais que garantiriam a liberdade e a fartura desejada.

Contudo, é uma obra que também traz uma mensagem para nossa época que se encontra tomada pelo desalento, o desamparo e a desesperança. A Revolução do Bichos não possui um final feliz, nem uma moral da história como as fábulas clássicas, mas como fábula moderna ela deixa implícito um ensinamento: a liberdade e a igualdade só é possível com o trabalho de todos, mas exige um olhar atento e politizado contra os governantes, bem como o combate contra o oportunismo, os abusos e a ganância. O conhecimento e a liberdade de expressão e debate são os princípios fundamentais para se conquistar a liberdade e reconstruir a sociedade, porque, “se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir” (George Orwell).

A edição lida é da Editora Companhia das Letras, do ano de 2007 e possui 152 páginas.

Sobre o autor

Eric Arthur Blair nasceu Motihari, na Índia, em 1903. Sob o pseudônimo de George Orwell foi um romancista, ensaísta e crítico, conhecido por seus livros “A Revolução dos Bichos” e “1984”.

Nascido numa família aristocrática inglesa decadente, Orwell viveu seus primeiros anos na Índia onde seu pai, um funcionário público britânico, trabalhava. No ano seguinte a seu nascimento, mudou-se com sua mãe e irmã para a Inglaterra onde estudou em colégio interno e viveu sua infância e parte da vida adulta.

Estudou por um tempo na Wellington College e na Eton College, mas se viu obrigado a abandonar a última por questões financeiras e, por isso, acabou se alistando na Indian Imperial Police Force, em 1922. Viveu cinco anos na Birmânia, mas renunciou ao seu cargo e voltou para a Inglaterra para se dedicar à literatura.

Passou uma fase muito difícil e empobrecida na Inglaterra e na França enquanto tentava deslanchar na carreira de escritor. Gradativamente ganha interesse pela política, área na qual demonstrou uma considerável clareza de pensamento.

Casou-se com Eileen O’ Shaughnessy em junho de 1936 e no mesmo ano, ambos viajaram para a Espanha, onde, aliados a um dos grupos milicianos, lutaram contra o general Francisco Franco, na Guerra Civil Espanhola.

Orwell foi gravemente ferido durante o enfrentamento, levando um tiro na garganta e ficou sem poder falar por várias semanas. Orwell e Eileen após serem acusados de traição na Espanha foram obrigados a retornarem à Inglaterra.

Nos anos seguintes atuaria no jornalismo e sua literatura ficaria conhecida pelo teor político, pela escrita marcada por descrições concisas de eventos e condições sociais, e pelo desprezo por todos os tipos de autoridade.

Orwell faleceu em 21 de janeiro de 1950, em Londres.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.



[1] Roman à clef, ou roman a cle, designa a forma narrativa na qual o autor trata de pessoas reais por meio de personagens fictícios. Em alguns casos, o autor recorre a anagramas ou pseudônimos para referir-se a sujeitos reais; noutros, vale-se de uma tabela que permite converter números ou iniciais em nomes (verdadeiros) correspondentes. (Wikipédia)

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Leon_Tr%C3%B3tski

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ex%C3%A9rcito_Vermelho

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/NKVD

[5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADcia_secreta_da_Uni%C3%A3o_Sovi%C3%A9tica

[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Censorship_in_the_Soviet_Union

[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Propaganda_na_Uni%C3%A3o_Sovi%C3%A9tica

[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Propaganda_na_Uni%C3%A3o_Sovi%C3%A9tica#Plutocracias

[9] https://pt.wikipedia.org/wiki/Nomenklatura

[10] DOS SANTOS, Fernanda Cristina N.; MATOS, Luciene; DE OLIVEIRA, Lucilene. Uma Discussão sobre os Elementos Utópicos e Distópicos em A Revolução dos Bichos.


Postagens populares

Conhecer Tudo