Por Eric Silva
Dedicado à ex-professora de Inglês
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Edição de bolso que ganhei na aurora dos meus 18 anos de idade e que me acompanha até hoje. |
Confira a resenha.
Sinopse
Após uma guerra que
revolucionaria a história da humanidade, a sociedade é inteiramente
reorganizada entorno de um regime totalitário baseado em princípios
científicos, com divisão social em castas e que prega a felicidade eterna.
Nessa nova organização social de escala planetária, famílias e religiões forma
abolidas tornando-se um mundo de pessoas biologicamente programadas em
laboratório, e adestradas para cumprir um papel predeterminado na sociedade. Um
mundo altamente tecnológico que proibiu a literatura e exalta o avanço da
técnica e a uniformidade. Esse é o cenário de Admirável Mundo Novo, obra mais
conhecida do escritor inglês Aldous Huxley publicado pela primeira vez em 1932.
Resenha
Eu e Admirável Mundo
Novo
Ganhei esse livro de minha professora de Língua Inglesa já no
final do último ano do Ensino Médio, como uma lembrança dos últimos três anos
em que fui seu aluno. Ela, é claro, acertou em cheio em sua escolha, porque não
há presente algum que me faça mais feliz do que ganhar um livro. É um tipo de
presente que não me desfaço e que conservo com carinho. A prova disso é que os
primeiros livros que ganhei na vida estão comigo há quase 22 anos.
Mas Admirável Mundo Novo significa muito
mais do que uma lembrança carinhosa de alguém que admiro como ser humano e
profissional docente, ele marcou um período de mudança para mim e se tornou uma
importante referência no meu posicionamento crítico e político. Dentro da
lista dos livros da Minha infância e
adolescência, ele representa o último portal que atravessei antes de me
tornar um leitor maduro.
Era dezembro de 2008, eu tinha 18 anos e o fim do ensino médio marcava
para mim uma mudança profunda: o fim da
vida escolar como eu a conhecia. Era o fim daquela rotina a qual estava
acostumado desde os meus três anos de idade, e confesso que só não me sentia
assustado com o que estaria por vir, porque sempre tive maturidade o suficiente
para me manter equilibrado diante da mudança.
Sabia que o fim do período escolar marcava um momento em que se
abriria para mim uma nova perspectiva: a
vida adulta (que na verdade se iniciara um ano antes com o adoecimento de
minha mãe) e também a vida acadêmica
(que eu adiaria até meados do ano de 2010). De fato, um mundo novo de possibilidades e novas experiências me projetariam
para além do universo e da rotina que eu conhecia até meus malformados 18 anos.
O Eric CDF da escola daria lugar ao acadêmico, a um Eric mais crítico e
fortemente ligado à ciência, à crítica social e à literatura como um todo.
Como o protagonista do livro de Aldous Huxley, eu deixaria o
mundo que conhecia para contemplar as maravilhas e os dissabores de outro,
desconhecido. Por outro lado, também como ele, esse indivíduo que contemplaria
e vivenciaria um mundo novo estaria
de toda forma fortemente ligado e alicerçado no seu, no meu caso, o passado
escolar, porque sou o que meus professores fizeram de mim, e eles são partes que
compõem o meu todo.
Li Admirável Mundo Novo justamente
nessa época, fazendo com que fosse o meu último livro desse período. Contudo
sua influência vai além. A obra icônica de Huxley carrega em seu enredo uma
crítica muito forte e contundente a uma sociedade que vive para o consumo e
para a produção em massa. Uma sociedade alienada, baseada em um modo de vida
alienante e de forte controle social, que é garantido mediante a inculcação de
valores e ideias que reproduzem o status
quo ao naturalizar a organização social hierarquizada e injusta, e que
também reproduzia o conformismo e a submissão.
Admirável Mundo Novo é uma fabulosa crítica ao sistema capitalista
bem como toda forma de autoritarismo seja ele de direita ou de esquerda, e, por
isso, esse livro também se tornaria referência para mim em meus estudos
acadêmicos.
Por conta destas coisas Admirável
Mundo Novo é um livro que tem uma dupla importância para mim.
O Enredo e os
Personagens Principais
No ano de 632 depois de Ford (2540 d.C.), muito séculos após A
Guerra dos Nove Anos (141 d.F. – 2049 d.C.), o mundo e a sociedade como a
conhecemos não existe mais. A sociedade humana alcançou o seu apogeu
tornando-se ainda mais industrializada e voltada para o trabalho e o consumo,
além de quase desprovida de humanidade.
Não existem mais pais ou filhos, maridos ou esposas, porque as
crianças são produzidas, criadas e educadas em Centros de Incubação e
Condicionamento como o de Londres Central, onde são também condicionadas e
deformadas de acordo com sua posição social predefinida, duplicadas em grupo de
dezenas de gêmeos para atender a demanda de mão de obra nas fábricas e
condicionadas a não criarem vínculos afetivos duradouros. O amor e a paixão foram abolidos assim como as relações baseadas em
compromisso.
Em nome de uma pretensa estabilidade
a religião foi extinta, assim como as ciências humanas e a literatura, só os
meios de comunicação de massa são permitidos e o acesso ao conhecimento é
filtrado e restrito a uns poucos. A sociedade dividida em classes sociais foi
substituída por uma comunidade organizada em castas (alfas, betas, gamas…), sem mobilidade social e definidas desde o
nascimento. Da mesma forma é definida desde o nascimento a identidade individual e coletiva de cada indivíduo, condicionado a
aceitar passivamente e alienadamente o seu lugar na sociedade.
Todos são sempre jovens e livres para ter tudo o que foram
condicionados a desejar e, por isso, o isolamento, a castidade e a
contemplação, mesmo que da natureza, são vistos como comportamentos estranhos e
inadequados, atitudes antissociais e reprimíveis. Toda essa forma de pensar é
inculcada e reproduzida constantemente através da repetição de uma ideologia
que prega uma mentalidade e uma felicidade quase que infantil, que exalta o
novo sobre o velho e a superficialidade das relações. A vida se resume a
trabalhar e ser produtivo, consumir e descartar e, enfim, entregar-se aos
prazeres proporcionado pelo sexo livre e sem compromisso, pelas drogas e pelas
atividades de lazer em grupo, mas que envolvam algum tipo de consumo. E para
àqueles que por algum erro no processo de “fabricação” ou de condicionamento não
conseguem se encaixar nesse modelo de sociedade resta o exílio em alguma ilha
isolada em algum lugar do globo.
Em resumo, essa é a sociedade distópica a que somos apresentados
por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo.
Uma sociedade criada e organizada por um Estado Mundial que tem como lema:
COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE. Estabilidade essa que é forjada a partir
de um controle social rígido, legitimado e inescapável e do consumo regular do soma, uma droga psicodélica capaz de
afastar os anseios e sentimentos negativos através de uma fuga da realidade.
Ao longo dos três capítulos que iniciam a obra somos
apresentados a forma como esse novo mundo
se apresenta e é organizado. Acompanhando uma visita técnica de estudantes alfas – a casta superior na hierarquia
social, formada basicamente por cientistas e dirigentes – ao Centros de Incubação e Condicionamento de Londres Central, o
narrador de Aldous vai descortinando a tessitura[1]
social sustentado pelo Estado Mundial bem como história que levou a sociedade
humana desprezar toda a sua cultura e natureza biológica para criar outra
sociedade, uma que fosse “feliz”.
Porém sob a
capa da pretensa felicidade, comunhão e estabilidade entre os povos mundiais
existem aqueles que não conseguem se encaixar completamente dentro da sociedade
e se sentem sempre deslocados e incompletos. O enredo de Admirável Mundo Novo gira entorno principalmente de três destes
deslocados: Bernard, Helmholtz e Jhon.
Psicólogo da casta dos alfas,
Bernard é um dos poucos em Londres que tem consciência da futilidade e
promiscuidade das relações, além disso ele se sente diferente dos demais de sua
casta porque possui um físico acanhado e muito parecido com o comum entre os
indivíduos das castas inferiores, o que o irrita e diminui seu sucesso com as
mulheres. Por conta destas inadequações, o psicólogo evita bastante a interação
social com seus colegas de trabalho e nutre uma certa paixão por Lenina, uma
das funcionárias do Centro de Incubação. Por outro lado, as atitudes
“antissociais” de Bernard fazem com que gradativamente ele vá sendo evitado,
desprezado e considerado como estranho por seus pares.
Por sua vez, Helmholtz é o justo contrário de seu amigo Bernard.
Porém, mesmo sendo socialmente muito requisitado e um competente e promissor
“Engenheiro em Emoção”, Helmholtz se sentia tolhido em uma sociedade tão
carregada de superficialidade e tão desprovida de conteúdo. Decepcionava-o a
falta de significado em tudo o que fazia como engenheiro (escrever para rádios,
compor cenários para filmes sensíveis
e criar slogans e versinhos hipnopédicos)
e ansiava por algo que não sabia descrever ao certo o que era.
Por fim, temos John, ou o Selvagem, como seria chamado posteriormente.
John é o principal personagem da trama de Aldous – apesar de só aparecer a
partir do capítulo 7 – e o mais deslocado dos três, por ser o único que não
havia nascido e sido criado dentro da sociedade controlada pelo Estado mundial.
John era filho de Linda, uma beta
que acidentalmente se perdeu em uma reserva indígena durante uma viagem de
turismo. Lá ela deu à luz a uma criança do último homem com quem se relacionara
antes de se perder, e, por conta da vergonha de ter se tornado mãe, é forçada a
viver entre os índios. Contudo as reservas indígenas eram os únicos recantos do
mundo onde ainda se era permitido viver como séculos atrás, e impedidos de se
adequar as gritantes diferenças culturais entre Linda e os indígenas, mãe e
filho foram durante muitos anos desprezados e excluídos socialmente pela tribo
até que são resgatados por Bernard e Lenina e levados de volta para Londres.
Em Londres John passa a conhecer aquele mundo novo que só
conhecia das histórias contadas pela mãe, e começa a sentir o forte choque
cultural que essa aproximação lhe impõe, sobretudo quando se descobre
apaixonado pela fútil e sedutora Lenina. Ele era muito ligado às tradições e
aos costumes da reserva, e com a forte influência dos livros de Shakespeare,
ele era incapaz de compreender a futilidade, a licenciosidade e a
superficialidade daquele modo de viver. Era incapaz de entender que seu
sentimento por Lenina jamais seria correspondido da mesma maneira, porque o
amor sublime, por vezes platônico e capaz de sacrifícios inimagináveis,
simplesmente não existia na realidade em que ela vivia, e da qual fazia parte.
Ela não conhecia essas coisas e era incapaz de compreendê-lo, e ele, a ela.
Quando pesamos o quanto John e sua mãe eram considerados
indesejáveis na Reserva e toda a sua relutância em aderir ao modo de viver e de
pensar do Outro Lado, concluímos que ele não pertencia a nenhum dos dois
mundos, nem ao da reserva, nem a da sociedade condicionada a qual pertencia
Lenina, e por isso estava ainda mais deslocado e irremediavelmente perdido.
Outros personagens importantes na trama são: a própria Lenina
Crowne, que como todas as moças de seu tempo era uma mulher superficial e pouco
inclinada a compreender as excentricidades de Bernard e John; o rígido Diretor
do Centro de Incubação de Londres, Thomas “Tomakin”, e o Administrador Mundial,
Mustafá Mond, principal dirigente da sociedade londrina e inglesa e notadamente
o homem mais culto da trama.
Controle total:
totalitarismo como tema principal
Objetivando alcançar uma felicidade absoluta e incontestável a
sociedade de Admirável Mundo Novo
caminha para uma ditadura totalitária e de controle total. Para a filósofa
política alemã Hannah Arendt, o totalitarismo tem de específico “a dominação permanente de todos os
indivíduos em toda e qualquer esfera da vida”[2], ou seja,
exatamente o que é feito pela sociedade imaginada por Huxley.
As “medidas biopolíticas
de administração da vida”[3] existem e são aplicadas
pelo Governo Mundial visando garantir o controle total sobre os indivíduos e
seus corpos. A manipulação genética
é utilizada para selecionar e agrupar os indivíduos, separando-os pelas
potencialidades e cerceando por completo a liberdade de escolha; a propaganda ideológica serve à
disseminação da obediência e da visão ideológica do sistema, naturalizando-as;
a hipnopedia é empregada nas
crianças para incutir a aceitação e o conformismo, ampliando as possibilidades
de dominação absoluta na fase adulta – a mais complicada das fases; o soma existe como droga capaz de
entorpecer os desejos e inconformismo, alienador químico, possibilidade de fuga
controlada; a proibição da literatura
para que ideias contrárias ao sistema e seus valores não sejam propagadas, bem
como impedir o desenvolvimento da criticidade dos sujeitos para que eles não
enxerguem como prisioneiros do sistema; e, por fim, o monitoramento constante dos comportamentos que desestimula a
solidão e a exclusividade para que os próprios indivíduos se tornem vigilantes
e vigiados, uma vigilância eterna, ininterrupta e sem rosto definido. Uma
vigilância sem necessidade de câmeras.
Enfim, o que se vê em Admirável
Mundo Novo é uma sociedade de controle total da vida, no qual cada aspecto
do indivíduo (profissional, emocional, comportamental, amoroso, religioso e
intelectual) é moldado a pensar e agir conforme a programação do regime.
Mas além de totalitária a sociedade de Admirável Mundo Novo é também utilitarista, forjada para o consumo
e para uma vida emocionalmente fácil.
Tudo e cada
coisa é medida e dado valor pela utilidade no tocante a torná-los felizes. Mesmo o corpo
e o sexo deve ter essa utilidade, deixando de ser espaço individual e privado.
Por outro lado, para sustentar o próprio sistema o consumo se torna essencial
para que a economia esteja sempre em movimento. Consumista, a sociedade de
Huxley se torna também do descarte, porque o que não é novo, o que não é
tendência deve ser descartado eliminado, trocado, alimentando o consumismo
irresponsável, despreocupado.
Se não
bastasse, não há por que se preocupar com os laços por que eles não existem.
Nesta sociedade vínculos familiares, de amizade e de amor inexistem. O primeiro é
considerado uma aberração, um ato vergonhoso e quase criminoso. Os dois últimos
são desestimulados para que se evite os excessos, os sentimentos de posse e de
ciúmes. A felicidade pensada para essa sociedade é uma felicidade encontrada no
descompromisso, caminho que, se pensarmos, já vem sendo seguido, sobretudo
pelos mais jovens que buscam relações cada vez mais líquidas e
descompromissadas. Contudo, a sociedade do livro de Huxley elimina
completamente essas relações e as cercam de tabus.
Fico imaginando se não deveria ser solitário e vazio não se ter
uma origem, não se ter pais ou família, viver com a certeza que será sempre só
você e as pessoas que, transitoriamente, passarão por sua vida sem, no entanto,
deixarem impressões profundas, sem que haja permanência e continuidade nessas
relações tão somente marcadas pela realização dos desejos mais urgentes e
efêmeros. Admirável Mundo Novo é, parafraseando Saramago, um ensaio sobre a efemeridade e a
superficialidade. Ali tudo é efêmero ou superficial: a vida, os
sentimentos, as relações, a utilidade das coisas. Acho que por isso mesmo houve
a necessidade por aquela sociedade de adotar o consumo em massa de uma droga
que fosse capaz de preencher as lacunas deixadas por essas coisas, por essas
ausências, efemeridades e superficialidades que em nada combina com a natureza
intensa e complexa do ser humano.
Contraditoriamente, a sociedade imaginada para o livro exalta a
“comunidade”, o “fazer junto”, o “nunca estar só ou isolado” e o
“compartilhar-se” literalmente. Todavia o resultado que essa exigência de
comunidade produz no leitor é um sentimento de solidão inexpugnável, porque na
verdade todos ali estão e sempre foram sós. Tudo no mundo daqueles personagens é vazio de conteúdo e profundidade,
mas eles não são capazes de percebê-lo. O regime não o permitem ver.
Sátira da sociedade capitalista, consumista e
utilitarista, em Admirável Mundo Novo
Huxley faz sua crítica a sociedade capitalista moderna cada vez mais vazia de
sentido em si. Tão acríticos quanto os personagens de sua trama, nós, a
sociedade do consumismo e da liquidez, não vemos o vazio de nossas existências
regidas pelo consumo do supérfluo e pelo desejo do que é inútil, vazio,
entorpecente e alienante. A organização mundial da economia e a indústria
cultural nos oferece o seu soma e
como ovelhas lobotomizadas os seguimos sem refletir a essência das coisas. Nada
é coletivo, mas é de massa. Os que por acaso se desviam deste caminho
predefinido – semelhante ao que acontece no livro de Huxley – são acusados de
desajustamento e sofrem preconceito, hostilidade ou são alvos de piadas.
Cheio de referências
Um dos livros mais importantes de Aldous Huxley, Admirável
Mundo Novo (Brave New World) foi escrito em 1931, mas só foi publicado no ano
seguinte pela Chatto & Windus. O título é inspirado em uma passagem do
livro A Tempestade (Ato V), de
William Shakespeare, mas funciona dentro da trama como um jogo de palavras, uma
vez que para John o mundo moderno e ultratecnológico de Admirável Mundo Novo é uma
realidade nova e desconhecida. Contudo, o livro é ainda cheio de outras
referências à obra de Shakespeare, bem como de várias personalidades
importantes que influenciaram profundamente a ciência e a história recente da
humanidade. As principais dessas referências são a Henry Ford, Sigmund Freud e
Thomas Malthus.
Em uma sociedade extremamente
industrializada em que até a fecundação e o nascimento dos indivíduos se dá
como em uma linha de produção fabril, Henry Ford, mundialmente conhecido pela
criação da Linha de Montagem, acaba por se tornar uma figura messiânica[4]
dentro do mundo controlado pelo Estado Mundial. Ele é mencionado e exaltado a
todo momento pelos personagens da trama. Não apenas seu nome como também
algumas de suas ideias são mencionadas e configurando-se quase como um Deus, a
referência a Ford substitui na trama até a tão conhecida expressão inglesa “my God” por “our Ford”, e a cruz, símbolo máximo do cristianismo, pelo “T”, nome
do primeiro modelo de carro confeccionado pela empresa de Ford.
No caso de Freud o destaque é
bem menor e por vezes citado no lugar de Henry Ford. Por sua vez, quanto a
Thomas Malthus, economista britânico que via o crescimento da população como a
causa da pobreza no mundo, a referência é bem mais sutil e relacionada aos
métodos contraceptivos adotados pelas mulheres que podem reproduzir. Por fim,
Shakespeare é outra grande referência na obra que cita através das falas de
John – um dos poucos a ter tido contato com alguma obra de literatura – grandes
passagens de obras como Macbeth, A Tempestade, Romeu e Julieta, Hamlet, Rei Lear, Sonho de uma Noite de Verão, Medida
por Medida e Otelo.
Sobre a estética
literária
Admirável Mundo Novo
é dividido em 18 capítulos sem títulos e sem que haja grandes ganchos entre
eles. Não há suspense ou grandes reviravoltas em grande parte de sua narrativa,
mas Huxley garante a atenção do seu leitor pelo deslumbramento causado por um
mundo absurdo, onde certamente não conseguiríamos nos encaixar facilmente. E é
por ser absurdo um mundo sem pais, filhos, amor ou religião que o livro de
Huxley causa em seus leitores mais sensíveis um sentimento de desolação e
desesperança.
Apesar de
escrito há quase 89 anos atrás a escrita de Huxley nesse livro é muito fluida e de
fácil compreensão o que e aliado a tradução de Lino Vallandro ajudou bastante
para o entendimento de todo o universo distópico e muito singular imaginado
pelo autor.
O narrador deste livro é
onisciente[5]
e bastante complexo, ora mostrando distanciamento da narrativa ora “deixando marcas das suas impressões”
como atesta Nelson Samuel Porto Veratti. Na sua narração, muitas vezes crítica,
irônica e até desdenhosa, como a caracteriza o autor supracitado, o narrador
permite que os pensamentos dos personagens se misturem à sua fala indo no
íntimo das convicções e dos pensamentos alheios, sem, no entanto, acatá-los,
por isso, Veratti o classifica como um “entre
aqueles que não se deixam iludir pelas aparências” daquele mundo novo.
O que mais gosto nessa
narrativa é sua crítica social ao totalitarismo, à sociedade do consumo, à
superficialidade e à banalidade das relações do mundo dito pós-moderno. É quase
uma aula de Zygmunt Bauman. Porém, o livro tem também seus pontos fracos e o
principal deles é a lentidão do seu desenvolvimento. Contudo, esse foi um mal
necessário sem o qual não conheceríamos e compreenderíamos a fundo nem o mundo
criado para o livro nem as pretensões do autor ao escrevê-lo.
Notas finais: a
atualidade de um livro complexo e fascinante
Admirável
Mundo Novo foi escrito numa época na qual grande parte de seus avanços
tecnológicos ainda se encontravam no campo do vir a ser, do pode vir a ser.
O capitalismo financeiro e industrial se encontrava instalado e passava
primeira de suas mais profundas crises, a grande depressão. O tom da obra
transmite o pessimismo daqueles dias sombrios, nos quais as nações capitalistas
viviam anos de profunda recessão econômica e desemprego crescente, regimes
totalitários emergiam na Europa e as circunstâncias preparavam o terreno para
uma segunda guerra mundial que eclodiria em set de 1939.
O profundo pessimismo de Huxley que não oferece saída a seus
personagens reflete a própria atmosfera de um período no qual o futuro era
incerto e as circunstâncias adversas, por isso esse tom carregado de desalento
domina o livro. Mas em grande parte, para a sociedade da década de 30,
Admirável Mundo Novo não fez tanto
sentido quanto ele faz nos dias atuais de um capitalismo globalizado, de
grandes avanços científicos e tecnológicos de uma sociedade liquida e
consumista e com uma população mundial de 7,5 bilhões de pessoas (na década de
30 éramos pouco mais de 2 bilhões).
Parecemo-nos muito mais com a sociedade de Admirável Mundo Novo do que há 89 anos, quando instituições como a
família e religião eram sólidas e as relações, duradoras. O consumo se
encontrava limitado pelas circunstâncias dos anos difíceis, mas em anos
anteriores, sobretudo nos EUA, havia ocorrido um crescimento exponencial do
consumo por conta da busca incessante dos estadunidenses por manter o American
way of life[6] (o estilo americano de vida) e concretizar o tão sonhado American
Dream[7] (o sonho
americano).
Por se parecer tanto com nossa sociedade é que Admirável Mundo Novo pode ser
considerado visionário e fazer mais sentido hoje do que na época em que foi
escrito. Com uma
clareza impressionante o pesquisador Nelson
Samuel Porto Veratti
expõe a atualidade do livro de Huxley quando afirma que:
“A passividade e a cooptação que caracterizam as
personagens huxleyanas também estão presentes na massa acrítica do mundo atual,
muitas vezes sedada por tranquilizantes (Soma), distraída por superficialidades
sensoriais (cinema sensível e música sintética), conduzida pelo aboio
ideológico capitalista (consumismo desenfreado), seduzida pela busca da
felicidade a qualquer preço (hedonismo e ecstasy), privada das instâncias libertadoras (escasso
incentivo à leitura e à reflexão) e infantilizada pela intolerância à frustração
(liberdade sem responsabilidade), entre outras coisas”
Enfim, a ideia do livro de
Huxley não é só criativa como avançadíssima para a época em que a obra fora
escrita. O autor antevê avanços como a inseminação artificial e a clonagem que
só se tornariam possíveis muitas décadas depois. Além disso, o consumismo
retratado na narrativa é um tema cada vez mais atual e próximo da forma como se
dá na trama: ilimitado, superestimulado e inconsciente. Em muitos aspectos,
como expõem Veratti, nos encontramos perigosamente próximos de um mundo admiravelmente novo.
O desfecho é inusitado, bastante realista e pessimista,
mas bastante condizente com o caráter desapaixonado de seu narrador e de toda a
narrativa, bem como com a insanidade daquele mundo. [ALERTA DE SPOILER SOBRE O
DESFECHO]. Não havia ali possibilidade de um final romântico ou ingênuo, mas só
da realidade crua e bruta de quando somos incapazes de nos encaixar e
possibilidades de solução nos faltam. Aos personagens que conseguem vislumbrar
algo para além do que o controle social lhe permite resta apenas duas
opções: ou aceitar o que é posto e
aderir a ele, ou ir para o extremo contrário e abandonar tudo, pois não é a
eles permitido transformar a realidade ao sabor dos próprios desejos ou convicções.
Uma realidade inescapável tão não só pela morte.
Enfim, um livro crítico, atual, possível e
desapaixonadamente marcante.
A edição lida é da Editora
Globo, do ano de 2003 e possui 318 páginas. Abaixo você pode conferir uma
prévia do livro em outra edição que
se encontra disponível no Google Books.
Sobre
o autor
Escritor inglês, Aldous Leonard Huxley nasceu em Godalming, no
dia 26 de julho de 1894. Estudou no Balliol College, em Oxford e graduou-se em
inglês em 1916.
Huxley é mundialmente conhecido pelos seus romances e ensaios.
Seus primeiros poemas foram publicados em 1916. Quatro anos
depois lançou mais duas obras. Só em 1921 chegou a publicar seu primeiro livro
de crítica social, "Crome Yellow",
ainda sem tradução no Brasil.
Atuou como crítico literário e teatral e escreveu artigos para
várias revistas. Foi editor da revista Oxford
Poetry e publicou contos, poesias, literatura de viagem e roteiros de
filmes.
A partir da década de 50, tornou-se um entusiasta do uso
responsável do LSD, fazendo ele mesmo uso do alucinógeno. Em 1960, Huxley foi
diagnosticado com câncer de laringe e faleceu em Los Angeles no dia 22 de
novembro de 1963.
[1]Modo
como estão interligadas as partes de um todo; organização, contextura
[2]ARENDT,
H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989
[3]Nelson
Samuel Porto Veratti.
[4]https://pt.wikipedia.org/wiki/Admirável_Mundo_Novo
[5]Segundo
Ana Paula de Araújo é quando o narrador “sabe de tudo. Há vários tipos de
narrador onisciente, mas podemos dizer que são chamados assim porque conhecem
todos os aspectos da história e de seus personagens. Pode por exemplo descrever
sentimentos e pensamentos das personagens, assim como pode descrever coisas que
acontecem em dois locais ao mesmo tempo”. (Infoescola).
[6]O
Sonho Americano (em inglês: American Dream) é um ethos nacional dos Estados
Unidos, uma variedade de ideais de liberdade inclui a chance para o sucesso e
prosperidade, maior mobilidade social para as famílias e crianças, alcançada
através de trabalho duro em uma sociedade sem obstáculos. (Wikipédia).
[7]O
American way (em português, '‘jeito ou estilo americano’') ou American way of
life ('estilo americano de vida’') é a expressão aplicada a um estilo de vida
que funcionaria como referência de autoimagem para a maioria dos habitantes dos
Estados Unidos da América. Seria uma modalidade comportamento dominante e
expressão do ethos nacionalista desenvolvido a partir do século XVIII, cuja
base é a crença nos direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade, como
direitos inalienáveis de todos americanos, nos termos da Declaração de
Independência. Pode-se relacionar o American way com o American Dream.
(Wikipédia).
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