domingo, 1 de novembro de 2020

[Especial Zafón] O Labirinto dos Espíritos – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

Por Eric Silva

15 de abril de 2020

As recordações que enterramos no silêncio são as que nunca deixam de nos perseguir

(O Labirinto dos Espíritos – Carlos Ruiz Zafón).

 

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

Retomando o Especial Zafón trago a resenha do livro épico que fecha a Série do Cemitério dos Livros Esquecidos. Numa trama noir e cinematográfica, O Labirinto dos Espíritos faz confluir as narrativas de todos os principais personagens da série e explora de forma bastante incisiva o lado obscuro do passado da cidade catalã de Barcelona nos seus tempos de regime franquista, denunciando as atrocidades que eram comuns durante e também após a Guerra Civil Espanhola.

Sinopse do enredo

A Espanha vivia o auge da Guerra Civil que culminaria com ascensão do General Francisco Franco quando Barcelona se tornou o alvo da Aviazione Legionaria italiana. Entre os dias 16 e 18 março de 1938 a cidade catalã seria intensamente bombardeada e 1.300 pessoas morreriam no ataque[1].

Na época, Alicia Gris ainda era uma menina que só escapou da morte, graças a inesperada ajuda de um amigo de seu pai, o foragido Fermín Romero de Torres. Desesperados, os dois fogem pelos telhados dos prédios vizinhos à casa da menina até que uma explosão os separa e deixa em Alicia uma ferida que a torturaria pelo resto de sua vida.

Vinte e um anos depois, Alicia é uma investigadora talentosa que percorre o submundo da capital espanhola solucionando casos a serviço do sistema franquista. Quando o ministro da educação, Maurício Valls, desaparece, a moça é recrutada para investigar e determinar seu paradeiro. É nesse momento que ela e seu parceiro no caso, o capitão Vargas, imergem numa trama obscura envolvendo o passado do ministro e que tem início ainda no período da guerra, quando ele ainda era diretor da prisão barcelonesa de Montjuic.

Em Barcelona, Daniel Sempere, protagonista de A Sombra do Vento, vive uma vida pacata ao lado da esposa e do filho, Julián, mas é constantemente atormentado pelas sombras do mistério que cerca a morte de sua mãe, Isabella. Angustiado pelo seu desejo de vingança, o rapaz dedica-se secretamente a investigações inúteis sobre seu principal suspeito, o desaparecido ministro Valls, enquanto administra a livraria do pai ao lado da esposa e de Fermín.

A medida que a investigação de Alicie avança, os fios que compõe a trama de uma história cheia de crimes e segredos vão convergindo e se entrelaçando à história da família Sempere, e em pouco tempo o destino de Alicia, Daniel e Fermín se entrecruzam revelando mistérios e fechando lacunas que foram deixadas nos livros publicados anteriormente. Assim, a macronarrativa do Cemitério dos Livros Esquecidos, que teve seu início a 18 anos atrás (2001 foi o ano de publicação de A Sombra do Vento), encontra seu desfecho com o entrecruzamento das várias narrativas dos muitos personagens que compõem a série.

 

Resenha

Quarto e último livro da série O Cemitério dos Livros Esquecidos, O Labirinto dos Espíritos reúne, integra e faz confluir as narrativas de todos os principais personagens da série, fazendo dos livros predecessores afluentes de um rio tortuoso que vai preenchendo as lacunas e clareando os livros anteriores. Ao mesmo tempo essa é também a mais longa narrativa de Zafón, que introduz na trama a história de um novo e importante personagem: a sombria e sarcástica Alicia Gris.

Sou fã declarado da série e do estilo de escrita de Zafón e a leitura de O Labirinto dos Espíritos me prendeu de forma irresistível em seu labirinto de histórias, tragédias e tramas. Zafón constrói cenários, enredos e personagens de uma forma única e, em seu estilo sombrio e misterioso, compõe com uma escrita que me fascina. O Labirinto dos Espíritos é mais um atestado da qualidade da obra do escritor barcelonês que fecha com estilo a sua série mais famosa.

Percebi que ao longo da escrita da série Zafón optou por escrever combinando as características de diferentes gêneros literários. A Sombra do Vento é basicamente um livro de mistério e aventura, característica que é mantida em O Prisioneiro do Céu, entretanto, esse último vai além da aventura e ressalta o cenário de terror da ascensão do regime franquista. Por sua vez, O Jogo do Anjo possui uma pegada mais sobrenatural e gótica, no qual elementos mágicos e a loucura são muito explorados. Contudo, O Labirinto dos Espíritos é essencialmente um romance noir[2]. Digo isso porque seu principal foco está nas investigações de Alicia e seu companheiro Vargas que na busca por encontrar o paradeiro de Valls revira o seu passado e desenterra seus crimes.

Diferente do que ocorre em A Sombra do Vento, no qual Daniel e Fermín investigam o passado do escritor maldito Julián Carax, os personagens do último livro da série são de fato investigadores profissionais.

Alicia não é uma policial como Vargas, mas não deixa de se comportar como uma investigadora, uma detetive implacável. Ela é uma mulher soturna e sofrida, como tantas outras que sobreviveram aos tempos de guerra.  Como investigadora Alice é uma pessoa curiosa, determinada e capaz de tudo. Sua aura é sombria e até mesmo fatal e seu humor sarcástico só vacila quando as dores de seu ferimento de guerra a atormentam. Mas no fundo ela é também uma pessoa sensível e que ama, uma literata apaixonada e alguém que inveja a felicidade modesta daqueles que vivem uma vida comum. Como um mosaico de sentimentos conflitantes que vão da frieza a doçura, Alicia é um personagem singular e único dentro do livro responsável por revelar cada um dos fios que ligam os muitos personagens da série.  Não é à toa que ela é a personagem preferida de seu criador.

Vargas, por sua vez, faz o papel do investigador durão e rústico, comilão e que odeia demonstrar qualquer tipo de fragilidade. Ele é o típico policial que, de tão acostumado ao submundo e aos seus horrores, já não consegue ter uma perspectiva positiva da vida, além de carregar consigo todo o peso de um passado de tragédias e traumas.

Juntos, mesmo que contra a vontade, os dois reviram o passado nebuloso do ministro Valls e revelam a corrupção e a podridão que existe por trás do sistema e das pessoas ilustres que representam o seu panteão.

Quanto a Daniel, também nesse livro sua participação é modesta, como vinha se revelando nos volumes anteriores protagonizados por outros personagens, mas tudo conflui para ele e para o passado de sua família como também já se era de esperar. O mesmo se dá com Fermín que, depois do seu protagonismo em O Prisioneiro do Céu, volta a dar mais espaço aos novos personagens, contudo ainda sendo uma peça chave para o desencadeamento da narrativa e para ligar as histórias de cada personagem na trama.  Por vezes, me questiono se Fermín não seria o grande personagem dessa série, haja vista a sua extensa participação nos fatos ocorridos em várias épocas da linha histórica de O Cemitério dos Livros Esquecidos.

Estilo e temática de um livro mosaico, caleidoscópico

Em O Labirinto dos Espíritos, Zafón volta a falar da corrupção e de toda a podridão impregnada dentro do sistema implantado durante o governo do general Franco. Os horrores do fim da Guerra Civil Espanhola também são novamente invocados.

Fotografia do bombardeio aéreo de Barcelona em 17 de março de 1938, visto de um bombardeiro italiano. Wikimedia Commons.
Fotografia do bombardeio aéreo a Barcelona em 17 de março de 1938, visto de um bombardeiro italiano. Wikimedia Commons.


Barcelona e Madri são cidades mergulhadas na obscuridade, ainda mais sombrias do que a Barcelona narrada pelo olhar de Daniel no primeiro livro da série. A narrativa, as suas personagens e os lugares que lhes servem de cenário estão impregnados pela melancolia, pelo sabor de derrota e pela taciturnidade dos espanhóis, mas principalmente pelas sombras pesadas de um regime que espalhara a morte e cultivava o terror através de seus agentes sombrios, que carregavam a morte no olhar e ceifavam vidas em nome de um sistema deturpado e a favor apenas dos mais poderosos.

Mas o elemento que mais se destaca no livro é o estilo. O Labirinto dos Espíritos representa, sem dúvida, o ápice da escrita de Zafón. Nele seu estilo que mistura poética, romance gótico e policial ganha um maior refinamento e sua escrita chega ao seu auge.

Sempre comento como admiro o estilo poético e cheio de construções estilísticas da escrita de Zafón. Mesmo falando sobre temas sombrios ele escreve de uma forma única que lhe é peculiar e que ajuda a construir com sombras e vapores os cenários e a atmosfera de seus enredos. A escrita é bastante descritiva, mas nunca se torna cansativa. Humor, sarcasmo, ironia e divagações poetizadas se misturam a uma descrição impecável e original que encanta aqueles que, como eu, apreciam um texto muito bem escrito. Mas o que o escritor barcelonês faz no último livro de sua série é levar ao ponto mais extremo esse seu estilo único e compor o volume mais bem escrito da coleção.

Confesso que ainda prefiro A Sombra do Vento, o livro mais romântico da série e que apresenta meu personagem predileto, Daniel. Ali Barcelona é uma mistura de sombras e perfumes que se misturam e revelam uma cidade cheia de mistérios, perdas e pessoas sofridas e taciturnas. Mas, ao mesmo tempo, é uma cidade que permite o florescer dos amores juvenis e inconsequentes como o de Daniel e Beatriz, e que abriga, apesar dos pesares, os sonhos daqueles que possuem muito pouca esperança.


Não obstante, à medida que avançamos na série, Barcelona vai se tornando cada vez mais sombria, por vezes gótica, mas sempre encoberta por um véu de obscuridade formada pelo medo, por mentiras e mistérios, e pela crueldade da guerra e do regime de Franco. O Labirinto dos Espíritos explora de forma ainda mais incisiva esse lado obscuro do passado da cidade catalã e denuncia as atrocidades cometidas durante a Guerra Civil Espanhola, ao mesmo tempo que faz uma excursão pelos bastidores do sistema implantado após a sua conclusão.

O romance é mosaico e em suas muitas partes ele vai conectando cada uma das narrativas contadas nos livros anteriores da série, compondo um labirinto com muitas portas, ramificações e fantasmas. Todas as histórias e personagens do Cemitério dos Livros Esquecidos convergem para essa trama e muitos pontos propositadamente deixados soltos nos demais livros vão sendo preenchidos e os vários fios da trama são atados em um ponto de convergência único.

Podemos considerar que em si o livro todo é o desfecho de uma grande história, a do Cemitério dos Livros Esquecidos, mas Zafón também buscou dar ao Labirinto dos Espíritos um desfecho completamente e indubitavelmente fechado, o que nos torna oficialmente órfãos da série.

O autor dá destino a todos os seus personagens, encerrando para sempre uma das melhores séries que já li. Por isso, O livro de Julián, a última parte que compõe a história, não só nos dá uma noção de depois, indicando os desdobramentos das vidas de cada personagem, como também nos dá uma noção da transformação sofrida pela Espanha com o final do regime franquista. A cidade que vemos é uma cidade que se moderniza e que dissipa as trevas e a lugubridade que marcam a Barcelona da série.

Assim, a história épica que começa com o jovem e ingênuo Daniel Sempere em uma madrugada de magia e descobertas, se encerra com a perigosa aventura de Alicia Gris e com o destino da nova geração que vislumbra, com brilho nos olhos, a magnífica basílica de livros, o Cemitério dos Livros Esquecidos.

Enfim, um fim digno a uma narrativa caleidoscópica que por 15 anos embalou os leitores assíduos e apaixonados de Zafón.

A edição lida é da Editora Suma, do ano de 2016 e possui 680 páginas.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

 



[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/Bombardeio_de_Barcelona

[2]Os romances Noir, Preto em francês é o tipo de romance policial onde os personagens são mais humanizados, os detetives nesse tipo de história, costumam beber, brigar, se envolver em romances e sexo. Também existem outras tramas paralelas, a história portanto não gira em torno de apenas um fato, mas vários. (Wikipédia)



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