Por Eric Silva
15 de abril de 2020
“As recordações que enterramos no silêncio são as que nunca deixam de
nos perseguir”
(O Labirinto dos Espíritos –
Carlos Ruiz Zafón).
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resenha, basta clicar no play.
Sinopse
do enredo
A Espanha vivia o
auge da Guerra Civil que
culminaria com ascensão do General Francisco Franco quando Barcelona se tornou
o alvo da Aviazione Legionaria
italiana. Entre os dias 16 e 18 março de 1938 a cidade catalã seria
intensamente bombardeada e 1.300 pessoas morreriam no ataque[1].
Na época, Alicia Gris ainda
era uma menina que só escapou da morte, graças a inesperada ajuda de um amigo
de seu pai, o foragido Fermín Romero de Torres. Desesperados, os dois fogem
pelos telhados dos prédios vizinhos à casa da menina até que uma explosão os
separa e deixa em Alicia uma ferida que a torturaria pelo resto de sua vida.
Vinte e um anos depois,
Alicia é uma investigadora talentosa que percorre o submundo da capital
espanhola solucionando casos a serviço do sistema franquista. Quando o ministro
da educação, Maurício Valls, desaparece, a moça é recrutada para investigar e
determinar seu paradeiro. É nesse momento que ela e seu parceiro no caso, o
capitão Vargas, imergem numa trama obscura envolvendo o passado do ministro e
que tem início ainda no período da guerra, quando ele ainda era diretor da
prisão barcelonesa de Montjuic.
Em Barcelona, Daniel Sempere,
protagonista de A Sombra do Vento, vive uma vida pacata ao lado da esposa e do filho,
Julián, mas é constantemente atormentado pelas sombras do mistério que cerca a
morte de sua mãe, Isabella. Angustiado pelo seu desejo de vingança, o rapaz
dedica-se secretamente a investigações inúteis sobre seu principal suspeito, o
desaparecido ministro Valls, enquanto administra a livraria do pai ao lado da
esposa e de Fermín.
A
medida que a investigação de Alicie avança, os fios que compõe a trama de uma
história cheia de crimes e segredos vão convergindo e se entrelaçando à
história da família Sempere, e em pouco tempo o destino de Alicia, Daniel e
Fermín se entrecruzam revelando mistérios e fechando lacunas que foram deixadas
nos livros publicados anteriormente. Assim, a macronarrativa do Cemitério dos Livros
Esquecidos, que teve seu
início a 18 anos atrás (2001 foi o ano de publicação de A Sombra do Vento), encontra seu desfecho com o entrecruzamento das
várias narrativas dos muitos personagens que compõem a série.
Resenha
Quarto e último livro da
série O Cemitério dos Livros Esquecidos,
O Labirinto dos Espíritos reúne, integra e faz confluir as narrativas de
todos os principais personagens da série, fazendo dos livros predecessores
afluentes de um rio tortuoso que vai preenchendo as lacunas e clareando os
livros anteriores. Ao mesmo tempo essa é também a mais longa narrativa de Zafón,
que introduz na trama a história de um novo e importante personagem: a sombria
e sarcástica Alicia Gris.
Sou fã declarado da série e
do estilo de escrita de Zafón e a leitura de O Labirinto dos Espíritos me prendeu de forma irresistível em seu
labirinto de histórias, tragédias e tramas. Zafón constrói cenários, enredos e
personagens de uma forma única e, em seu estilo sombrio e misterioso, compõe
com uma escrita que me fascina. O
Labirinto dos Espíritos é mais um atestado da qualidade da obra do escritor
barcelonês que fecha com estilo a sua série mais famosa.
Percebi que ao longo da
escrita da série Zafón optou por escrever combinando as características de
diferentes gêneros literários. A Sombra
do Vento é basicamente um livro de mistério e aventura, característica que
é mantida em O Prisioneiro do Céu, entretanto, esse último vai além da aventura e ressalta o
cenário de terror da ascensão do regime franquista. Por sua vez, O Jogo do Anjo possui uma pegada mais sobrenatural e gótica, no qual
elementos mágicos e a loucura são muito explorados. Contudo, O Labirinto dos Espíritos é
essencialmente um romance noir[2]. Digo isso
porque seu principal foco está nas investigações de Alicia e seu companheiro
Vargas que na busca por encontrar o paradeiro de Valls revira o seu passado e
desenterra seus crimes.
Diferente do que ocorre em A Sombra do Vento, no qual Daniel e Fermín investigam o passado do escritor
maldito Julián Carax, os personagens do último livro da série são de fato
investigadores profissionais.
Alicia não é uma policial como Vargas, mas não deixa de se
comportar como uma investigadora, uma detetive implacável. Ela é uma mulher
soturna e sofrida, como tantas outras que sobreviveram aos tempos de
guerra. Como investigadora Alice é uma
pessoa curiosa, determinada e capaz de tudo. Sua aura é sombria e até mesmo
fatal e seu humor sarcástico só vacila quando as dores de seu ferimento de
guerra a atormentam. Mas no fundo ela é também uma pessoa sensível e que ama,
uma literata apaixonada e alguém que inveja a felicidade modesta daqueles que
vivem uma vida comum. Como um mosaico de sentimentos conflitantes que vão da
frieza a doçura, Alicia é um personagem singular e único dentro do livro
responsável por revelar cada um dos fios que ligam os muitos personagens da
série. Não é à toa que ela é a
personagem preferida de seu criador.
Vargas, por sua vez, faz o papel do investigador durão e
rústico, comilão e que odeia demonstrar qualquer tipo de fragilidade. Ele é o
típico policial que, de tão acostumado ao submundo e aos seus horrores, já não
consegue ter uma perspectiva positiva da vida, além de carregar consigo todo o
peso de um passado de tragédias e traumas.
Juntos, mesmo que contra a vontade, os dois reviram o passado
nebuloso do ministro Valls e revelam a corrupção e a podridão que existe por
trás do sistema e das pessoas ilustres que representam o seu panteão.
Quanto a Daniel, também nesse
livro sua participação é modesta, como vinha se revelando nos volumes
anteriores protagonizados por outros personagens, mas tudo conflui para ele e
para o passado de sua família como também já se era de esperar. O mesmo se dá
com Fermín que, depois do seu protagonismo em O Prisioneiro do Céu, volta a
dar mais espaço aos novos personagens, contudo ainda sendo uma peça chave para
o desencadeamento da narrativa e para ligar as histórias de cada personagem na
trama. Por vezes, me questiono se Fermín
não seria o grande personagem dessa série, haja vista a sua extensa
participação nos fatos ocorridos em várias épocas da linha histórica de O Cemitério dos Livros Esquecidos.
Estilo e temática de um livro mosaico, caleidoscópico
Em O Labirinto dos Espíritos, Zafón volta a falar da corrupção e de toda a
podridão impregnada dentro do sistema implantado durante o governo do general
Franco. Os horrores do fim da Guerra
Civil Espanhola também são novamente invocados.
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Fotografia do bombardeio aéreo a Barcelona em 17 de março de 1938, visto de um bombardeiro italiano. Wikimedia Commons. |
Barcelona e Madri são cidades mergulhadas na obscuridade, ainda
mais sombrias do que a Barcelona narrada pelo olhar de Daniel no primeiro
livro da série. A narrativa, as suas personagens e os lugares
que lhes servem de cenário estão impregnados pela melancolia, pelo sabor de
derrota e pela taciturnidade dos espanhóis, mas principalmente pelas sombras
pesadas de um regime que espalhara a morte e cultivava o terror através de seus
agentes sombrios, que carregavam a morte no olhar e ceifavam vidas em nome de
um sistema deturpado e a favor apenas dos mais poderosos.
Mas o elemento que mais se destaca no livro é o estilo. O Labirinto dos Espíritos representa, sem dúvida, o ápice da
escrita de Zafón. Nele seu estilo que mistura poética, romance gótico e policial ganha um
maior refinamento e sua escrita chega ao seu auge.
Sempre comento como admiro o
estilo poético e cheio de construções estilísticas da escrita de Zafón. Mesmo
falando sobre temas sombrios ele escreve de uma forma única que lhe é peculiar
e que ajuda a construir com sombras e
vapores os cenários e a atmosfera de
seus enredos. A escrita é bastante descritiva, mas nunca se torna cansativa.
Humor, sarcasmo, ironia e divagações poetizadas se misturam a uma descrição
impecável e original que encanta aqueles que, como eu, apreciam um texto muito
bem escrito. Mas o que o escritor barcelonês faz no último livro de sua série é
levar ao ponto mais extremo esse seu estilo único e compor o volume mais bem
escrito da coleção.
Confesso que ainda prefiro A Sombra do Vento, o livro mais
romântico da série e que apresenta meu personagem predileto, Daniel. Ali
Barcelona é uma mistura de sombras e perfumes que se misturam e revelam uma
cidade cheia de mistérios, perdas e pessoas sofridas e taciturnas. Mas, ao
mesmo tempo, é uma cidade que permite o florescer dos amores juvenis e inconsequentes
como o de Daniel e Beatriz, e que abriga, apesar dos pesares, os sonhos
daqueles que possuem muito pouca esperança.
Não obstante, à medida que
avançamos na série, Barcelona vai se tornando cada vez mais sombria, por vezes
gótica, mas sempre encoberta por um véu de obscuridade formada pelo medo, por
mentiras e mistérios, e pela crueldade da guerra e do regime de Franco. O
Labirinto dos Espíritos explora de forma ainda mais incisiva esse lado
obscuro do passado da cidade catalã e denuncia as atrocidades cometidas durante
a Guerra Civil Espanhola, ao mesmo tempo que faz uma excursão pelos bastidores
do sistema implantado após a sua conclusão.
O romance é mosaico e em suas muitas partes ele vai
conectando cada uma das narrativas contadas nos livros anteriores da série,
compondo um labirinto com muitas portas, ramificações e fantasmas. Todas as
histórias e personagens do Cemitério dos Livros Esquecidos convergem para essa trama e muitos pontos
propositadamente deixados soltos nos demais livros vão sendo preenchidos e os
vários fios da trama são atados em um ponto de convergência único.
Podemos considerar que em si
o livro todo é o desfecho de uma grande história, a do Cemitério dos Livros Esquecidos, mas Zafón também buscou dar ao Labirinto dos Espíritos um desfecho
completamente e indubitavelmente fechado, o que nos torna oficialmente órfãos
da série.
O autor dá destino a todos os
seus personagens, encerrando para sempre uma das melhores séries que já li. Por
isso, O livro de Julián, a última
parte que compõe a história, não só nos dá uma noção de depois, indicando os
desdobramentos das vidas de cada personagem, como também nos dá uma noção da
transformação sofrida pela Espanha com o final
do regime franquista. A cidade que vemos é uma cidade que se moderniza e que
dissipa as trevas e a lugubridade que marcam a Barcelona da série.
Assim, a
história épica que começa com o jovem e ingênuo Daniel Sempere em uma madrugada
de magia e descobertas, se encerra com a perigosa aventura de Alicia Gris e com
o destino da nova geração que vislumbra, com brilho nos olhos, a magnífica
basílica de livros, o Cemitério dos Livros Esquecidos.
Enfim, um fim digno a uma narrativa caleidoscópica que
por 15 anos embalou os leitores assíduos e apaixonados de Zafón.
A edição lida é da Editora
Suma, do ano de 2016 e possui 680 páginas.
Sobre
o autor
Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem
especial que fizemos sobre ele.
Preview do Google Books
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível
no Google Books.
[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/Bombardeio_de_Barcelona
[2]Os
romances Noir, Preto em francês é o tipo de romance policial onde os
personagens são mais humanizados, os detetives nesse tipo de história, costumam
beber, brigar, se envolver em romances e sexo. Também existem outras tramas
paralelas, a história portanto não gira em torno de apenas um fato, mas vários.
(Wikipédia)
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