quinta-feira, 12 de novembro de 2020

[Especial Zafón] O Príncipe da Névoa – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

 

Por Eric Silva para o Especial Zafón

04 de julho de 2020

“As lembranças ruins perseguem você sem que precise carregá-las consigo”

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Um romance jovem intercortado pelo sobrenatural durante a tensão e as incertezas da guerra, Príncipe da Névoa é o livro com o qual Zafón principiou sua carreira nas letras e também seu primeiro romance juvenil. Já nessa época, o escritor barcelonês esboçava alguns traços do estilo gótico marcante em sua obra numa narrativa que, sem deixar de ser “juvenil”, já se encontrava no limiar de uma escrita que em pouco tempo se tornaria madura.

Confira a resenha.

Sinopse do enredo

No verão do ano de 1943, a batalha dos países Aliados contra os nazistas e fascistas durante a Segunda Guerra Mundial caminhava para completar seu quarto ano, e mesmo nos lugares onde os blindados da Heer e os aviões da Luftwaffe alemã ainda não haviam chegado, a tensão provocada pela guerra era tão presente quanto em qualquer outro lugar da Europa. O Velho Mundo vivia anos de horror, desolação e apreensão que se estenderiam até o verão de 1945.

Foi justamente para fugir da guerra que naquele mesmo ano o relojoeiro e inventor Maximilian Carver decidiu que ele e sua família deveriam mudar-se para outro lugar, um pequeno vilarejo no litoral, cujas casas pareciam ter saído de uma maquete. Porém, a nova moradia dos Carver era uma casa de praia com um passado trágico e cercado de mistérios. A abastarda família que havia morado ali anteriormente tinha se diluído por completo após a morte trágica de seu único herdeiro, Jacob, vítima de afogamento aos cinco anos. Desde então a casa esteve abandonada a espera de ser novamente habitada.

Quando finalmente a família do relojoeiro ali se instala, logo fica nítido que algo não está certo. Max, o curioso filho dos Carver, descobre atrás da casa um jardim de pedra abandonado que guardava em seu interior um estranho conjunto de estátuas e símbolos desconhecidos. A irmã mais velha de Max, Alicia, passa a ter sonhos perturbadores, e a caçula, Irina, ouve vozes que sussurram para ela de um velho armário.

Mas nem tudo naquela vida nova parecia ruim. Max e Alicia fazem um novo amigo, o jovem Roland, e com ele desbravam os segredos de um velho barco que naufragou há muitos anos, durante uma terrível tempestade. Daquele naufrágio só saiu vivo um único tripulante, o avô do rapaz, o engenheiro responsável por construir o farol no fim da praia, onde passou a viver durante todos aqueles anos, vigiando a costa.

Mas os obscuros segredos daquele pequeno vilarejo não tardam a se revelar e enquanto os adolescentes exploram os mistérios do lugar, se interpõe em seu caminho uma entidade diabólica que ao longo de muitos anos deixou para trás um rastro de mortes e destruição: o Príncipe da Névoa. Um ser enigmático com forma humana que há muito ilude os incautos[1] com sua capacidade de conceder desejos em troca de favores malignos.

Resenha

Escrever essa resenha hoje está sendo para mim, assim como foi a leitura deste livro, um exercício de autoconvencimento de que é fato a morte recente de Zafón e de que nunca mais sentirei a expectativa de esperar o próximo lançamento desse autor que foi importantíssimo para mim e para a história deste blog. Foram os livros do escritor espanhol que me ensinaram a amar a Espanha, e mais particularmente a Catalunha, bem como o romance com estética gótica e que me inspiraram a criar a Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo em 2016. Novamente para homenageá-lo, retomo o especial sobre esse autor iniciado há quase dois anos, mas que não pude terminar por conta da rotina exaustiva de trabalho que se abateu sobre mim em 2019.

O Príncipe da Névoa: juvenil de fantasia gótica

Escrito na década de 1990, O Príncipe da Névoa pode ser considerado como o livro de estreia do falecido escritor barcelonês Carlos Ruiz Zafón, e o primeiro de uma série de romances voltados para o público juvenil, que inclui também O Palácio da Meia-noite e As Luzes de Setembro. Três livros que são considerados como “série”, mas que são independentes entre si e não possuem conexões diretas entre suas narrativas.



Em geral, Zafón é mais conhecido por sua série mais famosa, O Cemitério dos Livros Esquecidos, que gira entorno de escritores malditos dos anos da Espanha franquista e da colossal biblioteca secreta que dá nome a série. Contudo, o autor que nos deixou poucos livros escritos até seu falecimento prematuro aos 55 anos, também deixou ao seu público essa série composta de três livros juvenis que foram responsáveis por sua inserção no mundo das letras e que, já na década de 90, revelavam as nuances da estética literária gótica que mercariam seus livros posteriores.

No entanto, quem lê O Príncipe da Névoa pode se surpreender ao constatar que para um livro classificado como juvenil, ele tem contornos que não são tão comuns a esse tipo de narrativa. Mas isso não mudou o fato de que o livro fora escrito pensando nos leitores mais jovens, o que se constata pela brevidade da narrativa que pode ser facilmente entendida como uma novela; pela opção por personagens majoritariamente jovens e vivendo as primeiras descobertas da idade; pela alusão a elementos do imaginário infantil como palhaços e mágicos de circo; pelo desenvolvimento rápido de seus personagens e, por fim, por sua narrativa sem muita complexidade e com linguagem mais acessível.

Um artigo da Wikipédia[2] sobre literatura infantojuvenil classifica como as principais características que marcam os livros do gênero juvenil:

·         Apresentar temas de interesse ao jovem adolescente, alguns deles controversos, como sexo, violência, drogas, relacionamentos amorosos, etc;

·         Ter em sua trama personagens da mesma faixa etária dos leitores, especialmente seus protagonistas;

·         Podem ser ilustrados, ainda que não necessariamente;

·         E possuir um número maior de páginas, podendo alcançar 200 a 300 páginas.

Com exceção de não ser um livro ilustrado, O Príncipe da Névoa possui todos os elementos elencados e pode ser facilmente classificado como um livro da literatura juvenil por estes elementos, não obstante sua atmosfera e sua composição excedem o gênero em alguns pontos: há nele uma elevada maturidade de seus personagens, o seu desfecho que vai na contramão do que é comum ao gênero, a sua história permeada de um terror não tão infantil, além do fato de que um dos adolescentes está preste a ser convocado para lutar na guerra (um tema bem adulto, mas tratado com bastante leveza). Por conta destes elementos me surpreendi com a proposta de enredo do autor, ainda que eu a considere um tanto simplória.

Nas notas do livro, Zafón explica que quando era adolescente não costumava ler romances juvenis e por isso resolveu ao escrever O Príncipe da Névoa compor um romance que ele mesmo teria gostado de ler com 13 ou 14 anos, mas que ainda o interessasse depois de adulto. O resultado foi algo muito bom. Um livro ágil, instigante no qual terror, tragédia, romance e aventura se encontra nos níveis nos quais qualquer pré-adolescente se interessaria, mas que também é agradável a qualquer adulto que se disponha a lê-lo.

Eu, ao contrário do escritor espanhol, li e ainda leio muitos livros juvenis. Na minha infância de leitor cheguei a ler algumas obras classificadas como infantojuvenis ou apenas como juvenis que possuía alguma maturidade, geralmente em seus temas, como foi o caso de Tonico, de José Rezende Filho, que aborda a questão da pobreza e o trabalho infantil, e o bem pouco conhecido Anjos no Aquário, de Júlio Emílio Braz, que aborda o difícil tema da gravidez na adolescência. Mas havia também os livros que são maduros por seus desfechos como o inesquecível Meu Pé de Laranja Lima de José Mauro de Vasconcelos, que fala da aceitação da morte na infância e da violência revestida pelo rótulo tradicionalista de “educação doméstica”. Contudo, nunca li algo como O Príncipe da Névoa que se diferencia por ser maduro em seu desfecho, nas personalidades dos protagonistas, na atmosfera trágica da trama, no seu tema de terror sem comicidade. Um livro que em alguns momentos me fez lembrar das histórias de Stephen King sem, no entanto, apelar para a carnificina das mesmas.

A narrativa em si é muito simples e não muito original (pelo menos não para a literatura mais madura), reitero, porém, que seu estilo é marcadamente incomum entre as obras mais ingênuas classificadas como infantojuvenis ou apenas como juvenis. A narrativa como um todo se passa em um período muito curto de tempo (apenas algumas semanas do verão de 1943) e como quase qualquer história que use os verões litorâneos como cenário desenvolve uma súbita paixão entre adolescente em seu enredo.

Os personagens são desenvolvidos de forma breve por conta da extensão mais curta do romance e, para fazê-lo de forma mais propicia a cativa os narradores, Zafón foca suas energias em apenas uma parte do elenco já bastante reduzido: Max, sua irmã Alicia, o jovem Roland e seu avô Víctor Kray, que dividem entre si o protagonismo da narrativa junto com o ser sombrio da narrativa que é ora chamado de Dr. Cain, ora de Príncipe da Névoa.

Max é o personagem central da trama, a mente pensante do grupo. Um garoto introspectivo, perspicaz, inteligente e, por esses traços, bastante observador. Ele é o primeiro a notar as estranhezas daquele vilarejo: sua estranha aparência de maquete, o relógio da estação ferroviária que parecia andar para trás, a aura medonha que circunda o gato que sua irmã Irina adota assim que chegam de viagem.

Por suas características entre ele e o pai existe uma cumplicidade e autoentendimento difícil de descrever e que se produz com poucas palavras. Maximilian o estimula com leituras avançadas a exemplo dos tratados de Copérnico sobre o sistema solar e o menino responde às ações do pai com uma maturidade acentuada. As falas de Max são em geral bem calculadas e meticulosas, a menos que esteja sendo provocado pelas brincadeiras de Roland e sinta a necessidade de rebatê-las, ou quando quer ser divertido com o jovem casal que vai se formando entre seu novo amigo e sua irmã.

Alicia por sua vez é ainda mais introspectiva e de uma rebeldia silenciosa. Come pouco porque se preocupa com sua aparência e interage muito menos ainda com a família, preferindo o isolamento de seu quarto e de seus silêncios. De todos, ela é a quem menos se satisfez com a mudança repentina para o litoral, no entanto, Alicia é daqueles personagens que crescem e se modificam ao longo da narrativa e, por isso, vai aos poucos conquistando seu espaço, até se tornar um elemento importante da história, apesar do elevado protagonismo masculino da trama.

De sua parte, Roland é o típico rapaz criado em cidade pequena. Ativo, entusiasmado em interagir com os visitantes, desejoso de aventuras e por respirar outros ares longe da monotonia do pequeno vilarejo. Extremamente apaixonado pelo mar, o rapaz construiu sua própria cabana na praia, onde passa a maior parte de seu tempo quando não está com o avô no farol, ou vasculhando os restos de um velho navio naufragado perto da costa.

Expansivo, prestativo e brincalhão, Roland facilmente conquista a amizade de Max e Alicia que passam a segui-lo por toda parte, e acaba por ser a cola que começará a unir os dois irmãos que pouco conversavam. Ainda assim, paira sobre o rapaz, assim como sobre Max, a incerteza do futuro, uma vez que Roland está alistado no exército e teme que aquele seja seu último verão antes que seja convocado para o front de guerra. A Max restaria mais alguns anos de liberdade caso a guerra não encontrasse seu desfecho logo.

Entorno destes três personagens e do velho faroleiro girará a história do personagem principal da trama e que dá nome a mesma, o Príncipe da Névoa, Dr. Cain. Um mago, um bruxo, uma entidade maligna, não dá exatamente para precisar o quê, mas que ao longo de muitas décadas se dedicou a destruir muitas vidas através de seus dons de conceder desejos, pelos quais exigia um preço elevado demais.

Apreciação crítica

Confesso que apesar de ser um livro excelente, O Príncipe da Névoa não se compara ao estilo e qualidade literária atingido por Zafón quando este escreveu A Sombra do Vento, seu livro de maior sucesso. Provavelmente por isso que o autor teve que lutar contra seu desejo de reescrever a história deste livro, desejo este que ele expressou também na introdução de O Palácio da Meia-noite. No entanto, para uma trama de livro juvenil, O Príncipe da Névoa é um livro estimulante, porque um pouco da estética do escritor barcelonês já é visível, e sua predileção pelas temáticas góticas já são evidentes.

Ele escreve uma narrativa de terror, aventura e suspense com a estética gótica que marca seus livros, mas com uma delicadeza e uma sensibilidade acentuada. Não há nada no livro que dialogue com o universo barcelonês que serve de cenário a seus livros posteriores, nem mesmo a localização de onde se dão os fatos narrados em O Príncipe da Névoa são revelados, o que deu a cada série de livros uma alma e personalidade própria e distintas, estando ligados unicamente pela estética narrativa de seu autor.

A escrita é fluida, instigante, mais leve e delicada do que a encontramos nos livros da série d’O Cemitério dos Livros Esquecidos, mas mesmo ali a linguagem empregada por Zafón é de uma beleza poética que quase não é sentida, uma vez que suas narrativas têm um caráter cinematográfico proeminente que envolve o leitor na narrativa tal como se a vivesse ou a assistisse na penumbra de uma sala de cinema. Essa característica cinematográfica também já é notável em O Príncipe da Névoa que nos conduz a locais sombrios e paisagens marítimas.

Chamou-me a atenção sobretudo o desfecho que achei extremamente original e inesperado, ou melhor, esperado, se partíssemos de uma lógica mais racional. É um livro que acredito que deixou muitos de seus leitores com um leve aperto no peito e um sentimento de impotência. Igualmente belo é a forma como naturalmente os laços entre os personagens vão sendo construídos e fortalecidos, como se o encontro entre eles tivesse sido destinado a acontecer. A questão é que você vive com os personagens aquele verão, os acompanha a toda parte, e o laço se estende a você também. Trata-se de uma narrativa que fala do amor, da juventude, do medo e da necessidade de união para vencer as adversidades da vida.

Mesmo tendo me surpreendido com o desfecho escolhido pelo escritor para uma narrativa juvenil, reitero que a forma como ele decidiu fechar a trama é a parte mais original do livro, justamente por não seguir as velhas fórmulas já tornadas clássicas neste gênero. Senti-me frustrado apenas com o fato de não existir conexão entre as tramas dos livros seguintes que seguem como obras independentes. Ainda assim, sinto-me ansioso pelo que virá dos últimos livros escritos por Zafón que ainda não li, e ao mesmo tempo triste por saber que serão os últimos.

A edição lida é da Editora Suma de Letras, do ano de 2013 e possui 184 páginas. Título original: El Príncipe de la Niebla.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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[1] “Diz-se de ou aquele que não tem cautela; descuidado, imprudente; que ou o que é destituído de malícia; crédulo, ingênuo” (Houaiss, 2009)

[2] LITERATURA INFANTOJUVENIL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Literatura_infantojuvenil&oldid=57297725>. Acesso em: 05 jul. 2020.

 


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