Por Eric Silva para o Especial
Zafón
04 de julho de 2020
“As
lembranças ruins perseguem você sem que precise carregá-las consigo”
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Sinopse
do enredo
No verão do ano de 1943, a
batalha dos países Aliados contra os nazistas e fascistas durante a Segunda
Guerra Mundial caminhava para completar seu quarto ano, e mesmo nos lugares
onde os blindados da Heer e os aviões
da Luftwaffe alemã ainda não haviam
chegado, a tensão provocada pela guerra era tão presente quanto em qualquer
outro lugar da Europa. O Velho Mundo vivia anos de horror, desolação e apreensão
que se estenderiam até o verão de 1945.
Foi justamente para fugir da
guerra que naquele mesmo ano o relojoeiro e inventor Maximilian Carver decidiu
que ele e sua família deveriam mudar-se para outro lugar, um pequeno vilarejo
no litoral, cujas casas pareciam ter saído de uma maquete. Porém, a nova
moradia dos Carver era uma casa de praia com um passado trágico e cercado de
mistérios. A abastarda família que havia morado ali anteriormente tinha se
diluído por completo após a morte trágica de seu único herdeiro, Jacob, vítima
de afogamento aos cinco anos. Desde então a casa esteve abandonada a espera de
ser novamente habitada.
Quando finalmente a família
do relojoeiro ali se instala, logo fica nítido que algo não está certo. Max, o
curioso filho dos Carver, descobre atrás da casa um jardim de pedra abandonado
que guardava em seu interior um estranho conjunto de estátuas e símbolos
desconhecidos. A irmã mais velha de Max, Alicia, passa a ter sonhos
perturbadores, e a caçula, Irina, ouve vozes que sussurram para ela de um velho
armário.
Mas nem tudo naquela vida
nova parecia ruim. Max e Alicia fazem um novo amigo, o jovem Roland, e com ele
desbravam os segredos de um velho barco que naufragou há muitos anos, durante
uma terrível tempestade. Daquele naufrágio só saiu vivo um único tripulante, o
avô do rapaz, o engenheiro responsável por construir o farol no fim da praia,
onde passou a viver durante todos aqueles anos, vigiando a costa.
Mas os obscuros segredos
daquele pequeno vilarejo não tardam a se revelar e enquanto os adolescentes
exploram os mistérios do lugar, se interpõe em seu caminho uma entidade
diabólica que ao longo de muitos anos deixou para trás um rastro de mortes e
destruição: o Príncipe da Névoa. Um ser enigmático com forma humana que há muito
ilude os incautos[1] com sua capacidade de
conceder desejos em troca de favores malignos.
Resenha
Escrever essa resenha hoje está sendo para mim, assim como foi a
leitura deste livro, um exercício de autoconvencimento de que é fato a morte
recente de Zafón e de que nunca mais sentirei a expectativa de esperar o
próximo lançamento desse autor que foi importantíssimo para mim e para a
história deste blog. Foram os livros do escritor espanhol que me ensinaram a
amar a Espanha, e mais particularmente a Catalunha, bem como o romance com
estética gótica e que me inspiraram a criar a Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo em 2016. Novamente para homenageá-lo, retomo o especial sobre esse autor iniciado há quase dois anos,
mas que não pude terminar por conta da rotina exaustiva de trabalho que se
abateu sobre mim em 2019.
O Príncipe da Névoa: juvenil de fantasia gótica
Escrito na década de 1990, O Príncipe da Névoa pode ser considerado
como o livro de estreia do falecido escritor barcelonês Carlos Ruiz Zafón, e o
primeiro de uma série de romances voltados para o público juvenil, que inclui
também O Palácio da Meia-noite e As Luzes de
Setembro. Três livros que são considerados como “série”, mas que são
independentes entre si e não possuem conexões diretas entre suas narrativas.
Em geral, Zafón é mais conhecido
por sua série mais famosa, O Cemitério dos Livros Esquecidos, que gira entorno de escritores malditos dos anos da
Espanha franquista e da colossal biblioteca secreta que dá nome a série. Contudo, o autor que nos deixou poucos
livros escritos até seu falecimento prematuro aos 55 anos, também deixou ao seu
público essa série composta de três livros juvenis que foram responsáveis por
sua inserção no mundo das letras e que, já na década de 90, revelavam as
nuances da estética literária gótica que mercariam seus livros posteriores.
No entanto, quem lê O Príncipe da Névoa pode se surpreender
ao constatar que para um livro classificado como juvenil, ele tem contornos que
não são tão comuns a esse tipo de narrativa. Mas isso não mudou o fato de que o
livro fora escrito pensando nos leitores mais jovens, o que se constata pela
brevidade da narrativa que pode ser facilmente entendida como uma novela; pela
opção por personagens majoritariamente jovens e vivendo as primeiras
descobertas da idade; pela alusão a elementos do imaginário infantil como
palhaços e mágicos de circo; pelo desenvolvimento rápido de seus personagens e,
por fim, por sua narrativa sem muita complexidade e com linguagem mais
acessível.
Um artigo da Wikipédia[2]
sobre literatura infantojuvenil classifica como as principais características
que marcam os livros do gênero juvenil:
·
Apresentar temas de
interesse ao jovem adolescente, alguns deles controversos, como sexo,
violência, drogas, relacionamentos amorosos, etc;
·
Ter em sua trama
personagens da mesma faixa etária dos leitores, especialmente seus
protagonistas;
·
Podem ser
ilustrados, ainda que não necessariamente;
·
E possuir um número
maior de páginas, podendo alcançar 200 a 300 páginas.
Com exceção de não ser um
livro ilustrado, O Príncipe da Névoa
possui todos os elementos elencados e pode ser facilmente classificado como um
livro da literatura juvenil por estes elementos, não obstante sua atmosfera e sua
composição excedem o gênero em alguns pontos: há nele uma elevada maturidade de
seus personagens, o seu desfecho que vai na contramão do que é comum ao gênero,
a sua história permeada de um terror não tão infantil, além do fato de que um
dos adolescentes está preste a ser convocado para lutar na guerra (um tema bem
adulto, mas tratado com bastante leveza). Por conta destes elementos me
surpreendi com a proposta de enredo do autor, ainda que eu a considere um tanto
simplória.
Nas notas do livro, Zafón explica que quando era
adolescente não costumava ler romances juvenis e por isso resolveu ao escrever O Príncipe da Névoa compor um romance
que ele mesmo teria gostado de ler com 13 ou 14 anos, mas que ainda o
interessasse depois de adulto. O resultado foi algo muito bom. Um livro ágil,
instigante no qual terror,
tragédia, romance
e aventura se encontra nos níveis nos quais qualquer
pré-adolescente se interessaria, mas que também é agradável a qualquer adulto
que se disponha a lê-lo.
Eu,
ao contrário do escritor espanhol, li e ainda leio muitos livros juvenis. Na minha
infância de leitor cheguei a ler algumas obras
classificadas como infantojuvenis ou apenas como juvenis que possuía alguma
maturidade, geralmente em seus temas, como foi o caso de Tonico, de José Rezende
Filho, que aborda a questão da pobreza e o trabalho infantil, e o bem pouco
conhecido Anjos no Aquário, de Júlio
Emílio Braz, que aborda o difícil tema da gravidez na adolescência. Mas havia
também os livros que são maduros por seus desfechos como o inesquecível Meu Pé de Laranja Lima de José Mauro de
Vasconcelos, que fala da aceitação da morte na infância e da violência
revestida pelo rótulo tradicionalista de “educação doméstica”. Contudo, nunca
li algo como O Príncipe da Névoa que
se diferencia por ser maduro em seu desfecho, nas personalidades dos
protagonistas, na atmosfera trágica da trama, no seu tema de terror sem
comicidade. Um livro que em alguns momentos me fez lembrar das histórias de Stephen
King
sem, no entanto, apelar para a carnificina das mesmas.
A
narrativa em si é muito simples e não muito original (pelo menos não para a
literatura mais madura), reitero, porém, que seu estilo é marcadamente incomum
entre as obras mais ingênuas classificadas como infantojuvenis ou apenas como
juvenis. A narrativa como um todo se passa em um período muito curto de tempo
(apenas algumas semanas do verão de 1943) e como quase qualquer história que
use os verões litorâneos como cenário desenvolve uma súbita paixão entre
adolescente em seu enredo.
Os
personagens são desenvolvidos de forma breve por conta da extensão mais curta
do romance e, para fazê-lo de forma mais propicia a cativa os narradores, Zafón
foca suas energias em apenas uma parte do elenco já bastante reduzido: Max, sua
irmã Alicia, o jovem Roland e seu avô Víctor Kray, que dividem entre si o
protagonismo da narrativa junto com o ser sombrio da narrativa que é ora
chamado de Dr. Cain, ora de Príncipe da Névoa.
Max
é o personagem central da trama, a mente pensante do grupo. Um garoto
introspectivo, perspicaz, inteligente e, por esses traços, bastante observador.
Ele é o primeiro a notar as estranhezas daquele vilarejo: sua estranha
aparência de maquete, o relógio da estação ferroviária que parecia andar para
trás, a aura medonha que circunda o gato que sua irmã Irina adota assim que
chegam de viagem.
Por
suas características entre ele e o pai existe uma cumplicidade e
autoentendimento difícil de descrever e que se produz com poucas palavras.
Maximilian o estimula com leituras avançadas a exemplo dos tratados de
Copérnico sobre o sistema solar e o menino responde às ações do pai com uma
maturidade acentuada. As falas de Max são em geral bem calculadas e
meticulosas, a menos que esteja sendo provocado pelas brincadeiras de Roland e
sinta a necessidade de rebatê-las, ou quando quer ser divertido com o jovem
casal que vai se formando entre seu novo amigo e sua irmã.
Alicia
por sua vez é ainda mais introspectiva e de uma rebeldia silenciosa. Come pouco
porque se preocupa com sua aparência e interage muito menos ainda com a
família, preferindo o isolamento de seu quarto e de seus silêncios. De todos,
ela é a quem menos se satisfez com a mudança repentina para o litoral, no
entanto, Alicia é daqueles personagens que crescem e se modificam ao longo da
narrativa e, por isso, vai aos poucos conquistando seu espaço, até se tornar um
elemento importante da história, apesar do elevado protagonismo masculino da
trama.
De
sua parte, Roland é o típico rapaz criado em cidade pequena. Ativo,
entusiasmado em interagir com os visitantes, desejoso de aventuras e por
respirar outros ares longe da monotonia do pequeno vilarejo. Extremamente
apaixonado pelo mar, o rapaz construiu sua própria cabana na praia, onde passa
a maior parte de seu tempo quando não está com o avô no farol, ou vasculhando
os restos de um velho navio naufragado perto da costa.
Expansivo,
prestativo e brincalhão, Roland facilmente conquista a amizade de Max e Alicia
que passam a segui-lo por toda parte, e acaba por ser a cola que começará a
unir os dois irmãos que pouco conversavam. Ainda assim, paira sobre o rapaz,
assim como sobre Max, a incerteza do futuro, uma vez que Roland está alistado
no exército e teme que aquele seja seu último verão antes que seja convocado
para o front de guerra. A Max restaria
mais alguns anos de liberdade caso a guerra não encontrasse seu desfecho logo.
Entorno
destes três personagens e do velho faroleiro girará a história do personagem
principal da trama e que dá nome a mesma, o Príncipe da Névoa, Dr. Cain. Um
mago, um bruxo, uma entidade maligna, não dá exatamente para precisar o quê,
mas que ao longo de muitas décadas se dedicou a destruir muitas vidas através
de seus dons de conceder desejos, pelos quais exigia um preço elevado demais.
Apreciação crítica
Confesso
que apesar de ser um livro excelente, O
Príncipe da Névoa não se compara ao estilo e qualidade literária atingido
por Zafón quando este escreveu A Sombra do Vento, seu livro de
maior sucesso. Provavelmente por isso que o autor teve que lutar contra seu
desejo de reescrever a história deste livro, desejo este que ele expressou
também na introdução de O
Palácio da Meia-noite. No entanto, para uma
trama de livro juvenil, O Príncipe da
Névoa é um livro estimulante, porque um pouco da estética do escritor
barcelonês já é visível, e sua predileção pelas temáticas góticas já são
evidentes.
Ele escreve uma narrativa de
terror, aventura e suspense com a estética
gótica que marca seus livros, mas com uma
delicadeza e uma sensibilidade acentuada. Não há nada no livro que dialogue com
o universo barcelonês que serve de cenário a seus livros posteriores, nem mesmo
a localização de onde se dão os fatos narrados em O Príncipe da Névoa são revelados, o que deu a cada série de livros
uma alma e personalidade própria e distintas, estando ligados unicamente pela
estética narrativa de seu autor.
A escrita é fluida,
instigante, mais leve e delicada do que a encontramos nos livros da série d’O Cemitério dos Livros Esquecidos, mas mesmo ali a linguagem empregada por Zafón é de uma
beleza poética que quase não é sentida, uma vez que suas narrativas têm um
caráter cinematográfico proeminente que envolve o leitor na narrativa tal como
se a vivesse ou a assistisse na penumbra de uma sala de cinema. Essa característica cinematográfica
também já é notável em O Príncipe da
Névoa que nos conduz a locais sombrios e paisagens marítimas.
Chamou-me a atenção sobretudo
o desfecho que achei extremamente original e inesperado, ou melhor, esperado,
se partíssemos de uma lógica mais racional. É um livro que acredito que deixou
muitos de seus leitores com um leve aperto no peito e um sentimento de
impotência. Igualmente belo é a forma como naturalmente os laços entre os
personagens vão sendo construídos e fortalecidos, como se o encontro entre eles
tivesse sido destinado a acontecer. A questão é que você vive com os
personagens aquele verão, os acompanha a toda parte, e o laço se estende a você
também. Trata-se de uma narrativa que fala do amor, da juventude, do medo e da
necessidade de união para vencer as adversidades da vida.
Mesmo tendo me surpreendido com o desfecho escolhido pelo
escritor para uma narrativa juvenil, reitero que a forma como ele decidiu
fechar a trama é a parte mais original do livro, justamente por não seguir as
velhas fórmulas já tornadas clássicas neste gênero. Senti-me frustrado apenas
com o fato de não existir conexão entre as tramas dos livros seguintes que
seguem como obras independentes. Ainda assim, sinto-me ansioso pelo que virá
dos últimos livros escritos por Zafón que ainda não li, e ao mesmo tempo triste
por saber que serão os últimos.
A edição lida é da Editora
Suma de Letras, do ano de 2013 e possui 184 páginas. Título original: El
Príncipe de la Niebla.
Preview do Google Books
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível
no Google Books.
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de Releitura
[1]
“Diz-se de ou aquele que não tem cautela; descuidado, imprudente; que ou o que
é destituído de malícia; crédulo, ingênuo” (Houaiss, 2009)
[2]
LITERATURA INFANTOJUVENIL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida:
Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Literatura_infantojuvenil&oldid=57297725>.
Acesso em: 05 jul. 2020.
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