domingo, 29 de novembro de 2020

[Especial Zafón] O Palácio da Meia-noite - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

 

Por Eric Silva para o Especial Zafón

21 de agosto de 2020

Citação

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Cinematográfico e pirotécnico, o segundo livro juvenil escrito por Carlos Ruiz Zafón viaja até a quente e misteriosa cidade de Calcutá para contar uma história sobre amizade, família e orfandade povoada de segredos do passado e assombrada por um poderoso e perverso espírito de fogo que mesmo depois de décadas ainda espalha sobre a vida de muitos a sua fúria destrutiva e seu desejo implacável de vingança.

Confira a resenha de O Palácio da Meia-noite (El Palacio de la Medianoche), mais uma obra do escritor barcelonês resenhado para o Especial Zafón.

Sinopse do enredo

Maio de 1916, Calcutá, Índia.

Acossado por um assassino implacável e sobre-humano, o tenente do Exército Britânico, Peake, corta a noite úmida e escura da cidade indiana carregando consigo uma carga preciosa: dois bebês recém-arrancados das unhas de seu perseguidor – o diabólico Jawahal.

Em clara desvantagem em relação a seus adversários, o tenente percorre as ruelas da cidade negra, como era chamada a zona norte de Calcutá, até alcançar o velho casarão bengali onde vivia Argami Bosé, a última anciã da família Bosé e avó das duas crianças. Era preciso entregar-lhe os gêmeos, avisar-lhe da morte de seus pais e do perigo que as crianças e também ela corriam, o que ele felizmente consegue fazer antes de se entregar ao seu destino certo enquanto tentaria, por fim, despistar seu poderoso rival.

Sozinha com duas crianças pequenas e sabendo dos riscos que corriam, a velha matriarca não tem tempo para chorar a perda de sua única filha, mãe dos gêmeos, ou de seu genro, e resolve partir o quanto antes de Calcutá. No entanto, sabendo do perigo e das dificuldades de manter os irmãos juntos a ela, Argami resolve deixar para trás uma das crianças, entregando o menino aos cuidados de um velho amigo de seu falecido esposo, o inglês Thomas Carter, administrador do orfanato St Patrick’s, onde a identidade da criança se matéria incógnita, e partiu, levando consigo a menina, ainda que a estratagema não fosse o suficiente para apagar todos os rastros das duas crianças.

Dezesseis anos se passam e vivendo como órfão, Benjamin (Ben) está próximo de completar ele também seus 16 anos, idade na qual terá que deixar o orfanato com seus amigos mais próximos: Isobel, Roshan, Siraj, Michael, Seth e Ian. Juntos eles haviam formado, anos antes, um clube secreto, a Chowbar Society, cujas reuniões aconteciam à meia-noite em um velho e decadente palacete abandonado e por eles apelidados de “o Palácio da Meia-noite”, em alusão ao horário das reuniões. Muito unidos, ali, os jovens juraram ajudar-se mutuamente, garantindo a ajuda, o apoio e a proteção incondicional um dos outros, além de compartilharem entre si os conhecimentos que possuíssem.

No entanto, com a proximidade do décimo sexto aniversário de ingresso de Bem ao orfanato, a Chowbar Society se prepara para ser desfeita e ter suas últimas reuniões antes que Ian embarque para a Inglaterra, onde pretende estudar medicina, e que os demais tomem cada um seu próprio rumo na vida incerta que os esperava fora dos muros de St Patrick’s.

Contudo, após conhecerem a delicada e inteligente Sheere, as coisas começam a mudar rapidamente e eventos estranhos começam a acontecer no velho orfanato, fazendo emergir os segredos de um passado de dor e violência e prenunciando o retorno de um antigo inimigo feito de maldade, fúria e fogo.

Resenha

De todos os livros que já li de Zafón para o projeto do especial que leva seu nome, O Palácio da Meia-noite foi a obra que menos me cativou, que menos me envolveu em sua leitura e em seus mistérios tão infantis (talvez tão infantis quanto os presentes em O Príncipe da Névoa, mas aquele lá me agradou bem mais). Todavia é natural que isso aconteça com qualquer leitor fã de um dado escritor, e eu não me encontre isento disso, ainda que goste muito do autor, de sua escrita e da qualidade de suas narrativas. Também foi seu livro mais famoso, A Sombra do Vento, a inspiração para o projeto principal do nosso blog, a Campanha Anual de Literatura (CALCT), que já teve três edições desde 2016, mas infelizmente foi interrompido em 2019, no começo de sua quarta edição adiada para 2021. Ainda assim, gostar de um autor, não significa gostar de toda a sua obra. Abdiquemos então dos fanatismos sempre desnecessários, prejudiciais e que nada agregam, mas que, no entanto, costumam dividir e criar desarmonia. Mas voltando ao texto….

Há pouco mais de um mês (contando a data em que redijo a primeira versão desta resenha) entrei em contato com O Príncipe da Névoa, a primeira obra juvenil do autor barcelonês. Apesar de considerar esta obra de qualidade abaixo da obra mais madura do autor, teci vários elogios na resenha que escrevi sobre o livro, sobretudo porque o autor conseguiu criar personagens maduros e um desfecho um tanto incomum ao gênero; por fazer referências históricas que fizeram de um dos personagens juvenis um convocado à segunda grande guerra (ainda que o tema seja tratado com leveza) e, por fim, por optar por um terror não muito infantil (ainda que o seja) e que agora me parece ainda mais familiar com o estilo de Stephen King, sem, no entanto, ser propriamente similar ou copiado.

O que se pode julgar das minhas impressões sobre O Príncipe da Névoa, antecessor de O Palácio da Meia-noite, é que o livro de Zafón foi para mim agradável e estimulante, mas não está entre as grandes obras que entraram para o seleto grupo de meus livros preferidos, onde tem lugar cativo o já citado A Sombra do Vento, e obras de outros atores, a exemplo de A Catedral do Mar,  do também espanhol Ildelfonso Falcones, Admirável Mundo Novo de Huxley, Os Miseráveis, do francês Victor Hugo, As Mil e Uma Noites, principal obra da literária árabe, e, por fim, no universo literário nacional, O Caçador, de Ana Lúcia Merege, Capitães da Areia, de Jorge Amado, e Meu Pé de Laranja-lima, obra infantojuvenil consagrada de José Mauro de Vasconcelos. O Palácio da Meia-noite, por seu turno, fica ainda mais distante deste grupo de meus favoritos.

Como se vê, meu gosto é bem eclético, indo do clássico ao infantojuvenil, mas em termos de gênero temático tende sobretudo para o drama. Mas isso não me fez gostar de O Palácio da Meia-noite, que me agradou bem menos do que seu antecessor, sobretudo pela forma como sua narrativa foi construída e conduzida. O seu enredo em si não me atraiu e a verdade é que achei a simplicidade de O Príncipe da Névoa mais atraente do que o desenvolvimento da narrativa ambientada entre ruínas, palácios e ruas empoeiradas de uma Calcutá escaldante e ainda sob domínio britânico (e aqui vejo agora algumas similaridades com os cenários decadentes da Barcelona franquista onde se ambienta A Sombra do Vento).

Assim como em outros dos seus romances, Zafón dá destaque a uma cidade secular e envolta de mistérios ao escolher como cenário de sua narrativa a quente e populosa Calcutá, a atual capital do estado indiano de Bengala Ocidental, situada às margens do rio Hooghly, ao lado do qual, na história de Zafón fora erguida uma suntuosa e engenhosa estação ferroviária feita de aço e vidro, mas que fora destruída no dia de sua inauguração por um monstruoso incêndio que vitimou não só o engenheiro idealizador do projeto, como centena de crianças órfãs que participariam da viagem inaugural. O nome da estação era Jheeter’s Gate, cujas ruínas se destacavam sombriamente na paisagem como uma ferida na cidade. 

Calcutá em 1945. Wikimedia Commons.


As descrições que ele faz de Calcutá lembram de certa forma o que Zafón faria mais tarde em A Sombra do Vento ao construir a atmosfera melancólica e tensa da Barcelona franquista dos anos de 1960. Com parte da minucia que é característica do autor, ele descreve as divisões da cidade, seus guetos e áreas de maior presença colonialista, mas, provavelmente por conta de seu público-alvo ou da pouca maturidade de escritor em começo de carreira, não dá ao romance o peso criativo e a vivacidade narrativa que fez com que Barcelona se despisse ante os olhos de seus leitores tal como ela era na década de 60. E suspeito que falar sobre terras estrangeiras tenha sido também motivo para a menor força descritiva de seu livro juvenil. Ainda que Calcutá se torne visível e compreensível em O Palácio da Meia-noite, não consegui me sentir na Índia, tal como me senti caminhar à noite pelas ramblas barcelonesas com suas luzes vaporosas na companhia soturna de Daniel e Fermín em busca do paradeiro de Carax.

Talvez meu desalento com O Palácio da Meia-noite tenha sido efeito da falta de algumas características e marcas culturais das terras indianas que povoam o imaginário e senso comum ocidental, mas que facilmente nos remeteriam àquelas paragens, a exemplo dos desfiles de turbantes e saris coloridos, vacas “pastando” tranquilamente pelas ruas, mercados sortidos de especiarias multicores, brâmanes eremitas por toda parte e encantadores de serpentes com seus cestos e najas (caso queiramos ser ainda mais clichês). Pela pouca exigência que o gênero juvenil impõe, Zafón faz muito em suas descrições, mas não o faz com a vivacidade com a qual nos acostumamos em sua série mais famosa, (mas talvez eu esteja querendo demais).

Festival das Cores (Holi), Índia. Murtaza Ali/Pixabay.

Por outro lado, Zafón consegue evidenciar na trama um pouco do domínio cultural e político britânico sobre a cidade, o que se torna evidente nas muitas referências aos britânicos e nos nomes ocidentais de alguns dos integrantes da Chowbar Society, não esquecendo das nacionalidades e posições sociais de dois dos personagens centrais da trama, o tenente Peake e o administrador do orfanato, Thomas Carter, ambos ingleses de origem.

O enredo

Em relação ao enredo, Zafón tece uma narrativa que não é tão gótica (seu principal estilo) quanto é fantasmagórica e fantástica (o gênero), e que ele decide narrar sob dois focos narrativos. O primeiro mais poético e saudoso feito pelos olhos do mais frágil dos órfãos, Ian, que fora testemunha ocular de todos (ou quase todos) os fatos narrados, e o outro foco – predominante na obra – feito em terceira pessoa por um narrador onisciente e não-personagem.

A história dos jovens órfãos indianos gira entorno de lugares arruinados e de um espírito maligno com domínio sobre o fogo. Mortes e acidentes complementam o cenário que se inspira na velha fórmula de um grupo de jovens extremamente inteligentes que reúnem suas forças, coragem e capacidades para proteger uns aos outros. Por isso, o romance de Zafón é uma obra que versa sobe a amizade, a coragem e o companheirismo, mas também podemos acrescentar a esta lista a importância da união e do amor familiar, tanto por parte dos gêmeos separados na infância, como por parte dos fortes laços construídos entre os moradores de St Patrick’s. São essa união e o espírito de coletividade que guiam os vários personagens no enfrentamento a um adversário mais poderoso, com maiores recursos (inclusive sobrenaturais) e com a vantagem de saber mais sobre eles do que o grupo de adolescente, em contrapartida, possui sobre a identidade e história de seu antagonista, inclusive esta é daquelas narrativas onde conhecimento se torna crucial para virar o jogo.

A trama não é das mais instigantes, ainda que seja em muitos aspectos bastante original. O desenvolvimento é rápido e alguns pontos são propositadamente confusos, a fim de despistar o leitor. Contudo algumas resoluções encontradas pelo autor no desfecho poderiam ter sido melhor trabalhadas e acredito que este era um dos pontos que na ocasião da publicação do livro Zafón manifestou a vontade de mudar e reescrever a narrativa, mas não o fez para preservar a versão original da obra.

Por seu tamanho um tanto reduzido e narrativa sem muitos elementos a explorar, uma vez que a trama é demasiadamente simples, assim como são limitadas as possibilidades de ramificação da mesma, o livro não consegue desenvolver profundamente o número elevado e desnecessário de personagens (oito só no núcleo jovem que pouco criativamente possuem todos eles a mesma idade). Contudo, por ser um escritor talentoso, Zafón conseguiu imprimir em cada um deles um traço único que de certa forma os individualizam dentro do conjunto.

O mais cinematográfico até então

Uma característica marcante na narrativa de Zafón é sua estética particularmente cinematográfica. Zafón redige com uma riqueza de detalhes e imprime o cenário e também na narração um número tão grande de elementos estéticos, que ler seus livros se torna uma experiência quase fílmica, o que não é mera coincidência, mas um recurso do qual o barcelonês lançou mão para que não houvesse necessidade de que sua obra fosse posteriormente adaptada nem para a TV, nem para a telona. Desta forma, toda a narração de sua obra faz lembrar os planos de filmagem usados na cinematografia. Sinto isso quando ele descreve lugares e cidades como se quisesse desenhar long shots (planos gerais), ou quando vai descrevendo os interiores de casarões e palacetes como se a câmera andasse (o travelling). Mas mais do que isso, ele constrói elementos que dão ainda maior cinematografia ao texto, a exemplo da névoa, do jardim de pedra e do navio afundado que emerge do fundo do mar em O Príncipe da Névoa, ou os cenários chuvosos, decadentes, góticos e obscuros de A Sombra do Vento.

O Palácio da Meia-noite é, no entanto, o mais cinematográfico de todos, porque Zafón não só explora elementos arquitetônicos fabulosos como a imensa estação de trem feita de aço e ferro, arruinada pelo fogo e repleta de túneis obscuros que formam verdadeiros labirintos (outro elemento comum na sua obra), como também explora explosões e incêndios grandiosos (o fogo é outro fascínio de Zafón) e acrescenta ao enredo um fantasmagórico trem em chamas que corre desgovernado por sobre os trilhos e de onde se ouve os gritos de agonia de centenas de crianças consumidas vivas pelo fogo, mas que desaparece tão repentinamente quanto surge a sua frente. É quase uma cena de filme de terror num verdadeiro show pirotécnico no qual acabe a você imaginar tudo enquanto lê. Um deleite para os leitores de imaginação fértil. Enfim, o que quero dizer com isso é que, o que tem de fraca a narrativa de O Palácio da Meia-noite tem de riquíssima, por assim dizer, nestes elementos cinematográficos.

Chegando ao fim….

O Palácio da Meia-noite é exatamente o que propõe: um livro para adolescentes, sem muita profundidade, sem linguagem muito poética (salvo algumas falas de Ian e a simbologia das “lágrimas de Shiva” que encerram atrama), com linguagem nem rebuscada nem coloquial e infantil, com desenvolvimento rápido para não se tornar cansativo e com certa originalidade. Entretanto, no todo, seu enredo é mediano e sua melhor aposta está nos elementos cinematográficos.

Enfim, acho que Zafón cumpriu com seu objetivo de escrever uma obra que agrada uma faixa etária mais ampla, mas que não chama muito a atenção de quem conhece o outro Zafón, o do Cemitério dos Livros Esquecidos. Por isso, vamos a leitura de As Luzes de Setembro, livro que encerra a trilogia juvenil de Zafón, e depois à Marina, que parece ser a linha divisória entre aquele Zafón mais maduro de A Sombra do Vento, e este Zafón dos romances juvenis.

A edição lida é da Editora Suma das Letras, com tradução de Eliana Aguiar. Do ano de 2013 e possui 271 páginas. O título original em espanhol El Palacio de la Medianoche.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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